Sem referência - 2010.congresoamp.com2010.congresoamp.com/pt/textos/papers/papers_01_pt.pdf ·...

22
SEM REFERÊNCIA Eric Laurent O primeiro número da nova séria de Papers marca a vontade do Comitê de ação da Escola Uma de dinamizar a preparação do próximo Congresso da AMP que nos receberá dentro de apenas um ano. O volume Scilicet estará disponível em breve. Os Papers, que não são publicados de forma periódica, são confiados, em cada oportunidade, particularmente a um redator escolhido no Comitê de ação. Este número multilíngüe, como a Escola Uma, foi confiado a Marie-Hélène Blancard. As traduções dos artigos já estão em curso, em cada uma das línguas presentes no número. Algumas já estão prontas. Estarão disponíveis, em breve. Cada um dos cinco textos, os de Lizbeth Ahumada Yanet, Marie-Hélène Blancard, Luisella Brusa, Ana Lydia Santiago e Hebe Tizio, desenvolve um ponto preciso do binário “Semblantes e Sinthoma”, clínico, teórico e/ou pragmático. Cada uma escolheu comentar um texto de sua preferência que a interpela particularmente. Um tema de atualidade ou uma descoberta clínica. Hebe Tizio põe em tensão “A Terceira” e o Seminário XXIII, Ana Lydia Santiago “O aturdito” e o Seminário XX, Luisella Brusa o Seminário XVIII, Marie Hélène Blancard destaca o lugar do semblante nos processos de inserção e desinserção do sujeito. Gostaria de enlaçar suas contribuições através da pergunta sobre o lugar do psicanalista que atravessa cada um dos textos. O psicanalista, na idade da ciência, é aquele que faz um uso do discurso que escapa à ciência. A lingüística é a encarregada de fazer ciência do discurso, mas a posição do lingüista não lhe permite fazer ato da disjunção entre a semântica e o significante. O psicanalista, de forma contrária ao lingüista, denuncia o espelhismo da referência, especialmente na perspectiva de um cálculo dela, no mito de uma língua mental computacional, artificial. O psicanalista denuncia a necessidade da referência e esclarece a contingência da causa do desejo e das formas da substância gozante. Não há outra referência além da que claudica e produz uma ruptura na palavra e seu aparelhamento com o discurso. Nesse sentido, a abordagem do sintoma pela psicanálise, sua redução à singularidade do sinthoma , faz os semblantes vacilarem radicalmente. O que seria um discurso que fosse feito só de não-relações? Isso se escreve S¹/S². Cada um dos artigos deste número de Papers se aproximou ao seu modo deste pont de ruptura. Ajudarão a cada um dos seus leitores a fazerem o mesmo. Papers agradece a Philippe Bénichou seu engenhoso trabalho de edição deste número multilíngüe. Eric Laurent 2 de março de 2009. Tradução: Elizabete Almeida de Siqueira

Transcript of Sem referência - 2010.congresoamp.com2010.congresoamp.com/pt/textos/papers/papers_01_pt.pdf ·...

SEM REFERÊNCIA Eric Laurent O primeiro número da nova séria de Papers marca a vontade do Comitê de ação da Escola Uma de dinamizar a preparação do próximo Congresso da AMP que nos receberá dentro de apenas um ano. O volume Scilicet estará disponível em breve. Os Papers, que não são publicados de forma periódica, são confiados, em cada oportunidade, particularmente a um redator escolhido no Comitê de ação. Este número multilíngüe, como a Escola Uma, foi confiado a Marie-Hélène Blancard. As traduções dos artigos já estão em curso, em cada uma das línguas presentes no número. Algumas já estão prontas. Estarão disponíveis, em breve. Cada um dos cinco textos, os de Lizbeth Ahumada Yanet, Marie-Hélène Blancard, Luisella Brusa, Ana Lydia Santiago e Hebe Tizio, desenvolve um ponto preciso do binário “Semblantes e Sinthoma”, clínico, teórico e/ou pragmático. Cada uma escolheu comentar um texto de sua preferência que a interpela particularmente. Um tema de atualidade ou uma descoberta clínica. Hebe Tizio põe em tensão “A Terceira” e o Seminário XXIII, Ana Lydia Santiago “O aturdito” e o Seminário XX, Luisella Brusa o Seminário XVIII, Marie Hélène Blancard destaca o lugar do semblante nos processos de inserção e desinserção do sujeito. Gostaria de enlaçar suas contribuições através da pergunta sobre o lugar do psicanalista que atravessa cada um dos textos. O psicanalista, na idade da ciência, é aquele que faz um uso do discurso que escapa à ciência. A lingüística é a encarregada de fazer ciência do discurso, mas a posição do lingüista não lhe permite fazer ato da disjunção entre a semântica e o significante. O psicanalista, de forma contrária ao lingüista, denuncia o espelhismo da referência, especialmente na perspectiva de um cálculo dela, no mito de uma língua mental computacional, artificial. O psicanalista denuncia a necessidade da referência e esclarece a contingência da causa do desejo e das formas da substância gozante. Não há outra referência além da que claudica e produz uma ruptura na palavra e seu aparelhamento com o discurso. Nesse sentido, a abordagem do sintoma pela psicanálise, sua redução à singularidade do sinthoma , faz os semblantes vacilarem radicalmente. O que seria um discurso que fosse feito só de não-relações? Isso se escreve S¹/S². Cada um dos artigos deste número de Papers se aproximou ao seu modo deste pont de ruptura. Ajudarão a cada um dos seus leitores a fazerem o mesmo. Papers agradece a Philippe Bénichou seu engenhoso trabalho de edição deste número multilíngüe. Eric Laurent 2 de março de 2009. Tradução: Elizabete Almeida de Siqueira

TRÊS: NOME-DO-PAI, OBJETO A, SINTHOME Luisella Brusa

1. “Sintomas e semblantes” é a conclusão de um ternário. Assim nos foi anunciado por Jacques-Allain Miller em Buenos Aires, um ternário finalmente constituído pelos significantes que Lacan introduziu na psicanálise, e cujos primeiros dois termos, sobre os quais a AMP trabalhou nos últimos congressos, são Nome-do-Pai e Objeto a. O que faz a originalidade desse ternário é que se trata aqui dos pontos limite da elaboração teórica de Lacan, sintagmas de conjunção e disjunção, que permitem um ponto de vista dirigido ao sujeito ainda no interior do campo em que é colocado, no campo do Outro, mas ao mesmo tempo, vai além deste limite, que vem a se relativizar, a desconsistir. São sintagmas que, no corpus teórico lacaniano, fazem a função da caveira disforme na anamorfose de Os embaixadores de Holbein, comentada no Seminário 11. Semblantes com o estatuto particular de se dirigir ao real.

2. Nome-do-Pai. No Congresso de Roma foi feita uma investigação sistemática da fórmula “Nome-do-pai, prescindir, à condição de dele se servir”. O significante privilegiado, pivô da sustentação do sujeito, e do operar psicanalítico, traz consigo um dote de crença que faz de cada sujeito um fiel, disposto a sacrificar-se por um deus mais ou menos obscuro, mesmo quando esse deus traga o nome de Ciência. A posição teórica elaborada no congresso é aquela de uma redução do Nome-do-pai à sua função. O êxito de uma psicanálise consiste no desvanecimento da crença em um ser posto no lugar do Nome-do-pai, à condição da aquisição do uso da função, de se servir da instância. Se servir torna-se um ato, que abre não mais à fé, mas à confiança. O Nome-do-pai, “o semblante operatório”, segundo a bela fórmula de J.-A. Miller, marca o furo no saber que o real confirma. 3. O Congresso de Buenos Aires sobre “Os Objetos a na experiência psicanalítica” abordou o furo do outro lado. Do lado dos objetos que preenchem este furo sob a forma de um mais de gozo. Através de uma investigação teórica e clínica, se examinou com minúcia as muitas formas desse objeto anômalo, que não se deixa apreender pelas significações da linguagem: nem ausente, nem presente, nem dentro, nem fora. O objeto a não se encontra na clínica senão sob suas formas fantasmáticas, consistências de um gozo do corpo, semblantes que preenchem o vazio lógico chamado objeto a, lugar do impossível da relação sexual, outro nome do real.

4. Em direção ao real. Vê-se agora que aquela escolha de J.-A. Miller no último ternário é a trajetória de uma elaboração que leva em direção ao real de Lacan. O terceiro termo, conclusão do ternário, tema do congresso de Paris com sua referência explícita aos significantes da elaboração dos anos 1970, circunscreve ainda mais de perto o real, o sinthome de Lacan, a sua contribuição original à psicanálise (ipse dixit) e à história das idéias. “A psicanálise... terá sido um momento privilegiado durante o qual ter-se-á tido uma medida bem correta... do ‘falasser’”, “durante um pequeno instante, pôde-se perceber que se tratava apenas da intrusão do real. O analista permanece aí. Está aí como um sintoma. Só pode durar a título de sintoma”1

1 J. Lacan, Il trionfo della religione, Enaudi, Torino, 2006, p.102 e 100. NT. Versão em língua portuguesa: O triunfo da religião, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2005, p. 72 e 67.

. O furo do real é um invariante em seu ensino, cifra estilística de sua investigação, ao qual devemos também o traço inapreensível da sua retórica, tal qual afirma J.-A. Miller “ele se dedica a construir uma teoria cuja atopia certamente não há precedentes, - uma teoria que inclui uma falta que deve reencontrar-

se em todos os níveis, inscrever-se aqui como indeterminação, ali como certeza, e formar o nó do ininterpretável - ...”2

.

5. O discurso é um artefato. Se o real é o quanto de mais humano se possa conceber, produto por excelência do discurso e da castração, os semblantes, ao contrário, são abundantes in natura. Essa é uma das observações iniciais de Lacan no Seminário 18. Coincidem com os significantes, “o semblante é o significante, nem mais, nem menos”, quando entra na di-mension humana. É porque eles entram aí, que é preciso um passo, que é a instituição do inconsciente. Há um salto, uma geradora descontinuidade, da natureza, passa-se ao artefato. Surge a possibilidade de interrogação sobre o próprio semblante: “é verdade ou aparência?” Institui-se uma banda de Moebius cujo semblante se contrapõe à verdade, o semblante dissipa-se na verdade. A verdade tem estrutura de ficção, é feita de significantes/semblantes. Uma desarticulação entre verdade e efeito de verdade abre um caminho no mundo dos semblantes: a verdade é semblante, mas “o verídico pertence à palavra como, no fundo, insensata” e “O efeito de verdade não é semblante”.3

O semblante é capturado no artefato que é o discurso (“Le discours, c’est l’artefact”) O efeito de verdade, o efeito da interpretação analítica não é semblante.

4, a partir do qual não existe mais “fato” que de enunciação, de discurso, de semblante. O ingresso na dimensão humana traz consigo o inconsciente e o recalque, inelimináveis na sua raiz originária, atada à castração. ("Les signifiants [...] sont repartis dans [...] la nature [...]. Pour que naisse le language [...] il a fallu que [...] s'établisse [...] l'inconscient. L'inconscient et son jeu, cela veut dire que [...] il va y avoir le corps morcelé.")5

A castração impõe o discurso com os seus efeitos: o desfiladeiro do discurso com seus efeitos de verdade. "C'est cela qu'on appelle le refoulement. Ce n'est plus une répresentation qu'il représente, c'est cette suite de discours qui se caracterise comme effet de vérité"6

.

O discurso é de semblante e não escapa do semblante. "Tout ce qui est discours ne peut que se donner pour semblant, et rien ne s'y edifie qui ne soit à base de ce qui s'appelle le signifiant."7

. É a posição radical de Lacan: não há metalinguagem.

O juízo de atribuição chamado em causa pela formulação negativa do título do Seminário 18 estabelece que “o discurso é do semblante” e, além disso, deixa vazio o lugar do objeto da demanda: semblante de quê? 8

Como analistas estamos à escuta de um discurso que não seria dos semblantes, forma de evitação com a qual sempre se nos apresenta a castração, expectativa fantasmática de um gozo não barrado da linguagem que viria a coincidir com o Além do Princípio do Prazer freudiano. “Il faut partir de ce point central du discours psychanalytique, en tant qu'il n'est ici qu'a l'écoute de ce discours dernier, celui qui ne serait pas du semblant...qui ne serait pas et qui aussi bien n'est pas." 9 "Tout ce qui est évoqué comme castration, nous le voyons sous quelle forme? Sous la forme, toujours, d'un évitement."10 "De quoi s'agit-il là où ce ne serait pas du semblant? Bien sur, le terrain est préparé d'un pas singulier quoique timide, qui est celui que Freud a fait dans Au-delà du principe du plaisir."11

2 J.-A. Miller, Della natura dei sembianti, lição de 4.12.1991, «La psicoanalisi», n. 13, p.169. 3 L'effet de vérité n'est pas du semblant" (J. Lacan, Le Seminaire. Livre XVIII. D'un discours que ne serait pas du semblant, Seuil, Paris, 2006, p 14). 4 Idem, p. 27. 5 Idem p. 16. 6 Idem, p.14. 7 Idem, p.15. 8 Idem, p.19. 9 Idem, p.166. 10 Idem, p. 167. 11 Idem, p.19.

Não obstante a expectativa, não existe um discurso que não seja dos semblantes, não existe um Outro do Outro, uma metalinguagem que permita dizer o verdadeiro sobre o verdadeiro, colocar a palavra sobre [recobrindo] o objeto.

“Um discurso que não seria do semblante. Passei o ano a demonstrar que é um discurso totalmente impossível. Não existe nenhum discurso possível que não seja do semblante”.

É a castração ligada à di-mensão e à emergência do inconsciente que coloca como impossível um discurso que não seria do semblante. Mas, é esse mesmo impossível o impulso que permite chegar ao real servindo-se dos semblantes. É a partir do fato de que um discurso se centre de seu efeito como impossível, que haveria alguma chance de ser um discurso que não seria do semblante. "Mais les conséquences de son émergence, c'est cela qui doit etre introduit pour que quelque chose change - qui ne peut pas changer, car ce n'est pas possible. C'est au contraire de ce q'un discours se centre de son effet comme impossible qu'il aurait quelque chance d'etre un discours qui ne serait pas du semblant."12

O discurso que se centra em seu efeito como impossível é o discurso psicanalítico. Como discurso, também ele não pode sair dos semblantes, não pode designar um objeto, aquilo de que se trata não é o objeto, mas o referente e “o referente engana”. Porque engana, não existe nunca o último, o bom, o verdadeiro. "Il est de la nature du langage [que] le référent n'est jamais le bon, et c'est ça qui fait un langage."13

Mas, é ele mesmo, colocado no centro do discurso, a liberação para o real do discurso psicanalítico: “o referente é sempre real porque é impossível de designar”.

Efeitos de verdade e referente como impossível são as duas vias através das quais o discurso analítico introduz o real. De um lado, a interpretação produz efeitos de verdade que furam o semblante, de outro, a central aceitação do impossível de designar marcado pela Bedeutung do falo, significação à qual nenhum significado responde, plenitude do sentido, o qual remete, na linguagem, “à impossibilidade de simbolizar a relação sexual entre os seres que a habitam [a linguagem], em razão do fato de que é mesmo desse habitat que retiram a palavra”. O artefato-discurso constrói o acesso a um real heterogêneo ao semblante. Com seus semblantes ele compõe uma álgebra combinatória que toca o real. “Trata-se só que sua rede [...] faça aparecer os bons buracos no bom lugar”. O discurso científico manifesta o “verdadeiro real”, o discurso do psicanalista o “real em nosso nível de seres vivos”.

6. O artifício do sinthoma. A proposição Sintomas nos leva a uma atualização da política psicanalítica. Se a política psicanalítica é uma política do sintoma como política da interpretação, ela implica que tudo aquilo que se articula em sua ordem seja passível de interpretação. ("Que le symptome institue l'ordre dont s'avere notre politique [...] implique d'autre part que tout ce qui s'articule de cet ordre soit passible d'interpretation.")14

. O que pede uma atualização na época joyceana em que vivemos.

O que se conquista na orientação ao real? O impossível? A Bedeutung? A plenitude do sentido? O efeito de verdade? O tetraedro do discurso é substituído, na primeira lição do Seminário 23, pelos quatro barbantes do nó. A perspectiva vira de ponta cabeça para convergir em um furo do outro lado. Manejando os nós para reproduzir as figuras do Seminário 23 experimenta-se como o que faz os anéis de barbante se manterem juntos é, efetivamente, o furo: o nó é mantido se, no centro, for mantido o furo, e esta operação, a introdução de uma reta que fixa o furo, operação definida por Lacan como “controle do furo”, que o transforma em real.

12 Lacan, J., Le Seminaire. Livre XVIII. D'un discours que ne serait pas du semblant cit., p. 21. 13 Idem, p.45 14 Le Seminaire. Livre XVIII. D'un discours que ne serait pas du semblant, cit., p. 123.

Na perspectiva do sinthoma é o terceiro anel/reta, o “Terceiro”, que fixa o furo, que o institui como furo. É o terceiro que faz laço entre os três, que faz Um de três. O real fura, isto é, separa, porém, ao mesmo tempo, até separando liga. Assim o sinthoma, aquilo que é mais íntimo e particular do sujeito, que o separa do Outro, é também aquilo que une, faz laço com o Outro. O artifício, a operação humana que conduz ao real no Seminário 23 é definida como “saber fazer” os nós. Disso Joyce é o paradigma. O artifício é valorizado como ato artístico. O artifício é o ato que enovela e institui, dá ex-sistência, sem ele não podemos ter nenhuma noção do objeto. “Não existe fato senão por artifício”. 15

Joyce é paradigmático por ter feito de seu sintoma o anel que enovela as três funções da estrutura humana com a subjetividade inconsciente, elevou-o ao nível de sintoma central, aquele constituído pela carência própria da relação sexual, conferindo a essa carência uma forma e não uma qualquer. “O sintoma central, claro, é o sintoma feito da carência própria da relação sexual. Mas, é preciso que essa carência tome uma forma. Ela não toma uma forma qualquer”. 16

A recusa do Nome-do-Pai deixa Joyce na necessidade de inventar soluções particulares para questões vitais às quais o Nome-do-Pai responde. Vamos listá-las: a questão da significação no escorregadio equívoco da alíngua, a questão do Nome próprio, a questão da assunção do próprio sexo, da relação com o Outro sexo e com a própria descendência. Os últimos capítulos do Seminário 23 são um exame das soluções particulares que o sinthoma Joyceano aporta a tais questões, todas girando em torno do furo da não-relação sexual. Assim, é através de sua obra que Joyce mantém uma relação subjetiva com a alíngua que o parasita (permanece ambíguo17

, diz Lacan, se o progresso de sua arte é na direção de se livrar do parasita falador ou de se deixar invadir pela polifonia da fala).

É através de sua obra que se faz um Nome, através da homenagem que quis fosse dada ao seu próprio nome, fixou o nome próprio contra escorregar para o nome comum ao qual estava consagrado, e que Lacan vê deslizar na sua obra. 18

É através de sua obra que recupera uma posição sexuada, “a arte de Joyce é o verdadeiro fiador de seu falo”. 19

É através de sua obra que constrói uma relação com o Outro sexo: consegue colocar a mulher no lugar de sintoma por meio de um personagem literário por ele imaginado o qual sabe ampliar a escolha de uma-mulher como a sua mulher. 20

A dimensão sinthomática toca a relação de filiação de modo revelador. O sinthoma é mobilizado em função fálica também na função de proteção paternal, à qual Joyce se sente chamado para proteger a filha da internação. O ponto sobre o qual sustenta a defesa da saúde mental da filha, destaca Lacan, é o seu próprio sinthoma, ou seja, a imposição das palavras que atribui à filha na forma de sensibilidade telepática. 21

Talvez seja este último traço a revelar que a solução sinthomática mantém o nó em uma posição de ter o ar de fazer o nó de três, já não de fazê-lo verdadeiramente, como de resto se vê na escrita do nó do ego joyceano. “Me permiti definir como sinthoma o que permite ao nó de três, não só se manter nó de três, como se conservar em uma posição tal que ele tenha o aspecto de constituir nó de três. Eis o que declarei sem pressa”.

22

15Lacan, J. Il Seminario. Libro XXIII. Il sinthomo cit. p.62. O Seminário – livro 23, p. 63. 16Idem, p.67. O Seminário – livro 23, p. 68. 17 Idem, p.93. Em O Seminário – livro 23, p. 93, último parágrafo. 18 Idem, p.86. Em O Seminário – livro 23, p. 86. 19 Idem, p.14. Em O Seminário – livro 23, p. 16. 20 Idem, p.67. Em O Seminário – livro 23, p. 68. 21 Idem, p.92. Em O Seminário – livro 23, p. 93. 22 Idem, p.90. Em O Seminário – livro 23, p. 91.

Isto não impede que a arte tão particular de Joyce consiga ser exemplo de um modo inédito de compreender a estrutura e a função do sinthoma. Isso incide sobre a era joyceana, a nossa, na qual a política da psicanálise se orienta num saber-fazer sustentado pela ciência da função do sinthoma. É a heresia lacaniana que, “por ter reconhecido a natureza do sinthoma, não se priva de usar isso logicamente, isto é, de usar isso até atingir seu real, até se fartar”. 23

Tradução: Lucíola Freitas de Macêdo e Maria do Carmo Dias Batista. Fevereiro, 2009.

23 Idem, p.14. Em O Seminário – livro 23, p. 16.

O ANALISTA E OS SEMBLANTES

Hebe Tizio

Estes são alguns primeiros passos em um tema que me coloca muitas questões, porque não está claro, para mim, o funcionamento dos semblantes no discurso analítico. Bem como, parece-me difícil em relação à posição do analista, e vi que Lacan também o destaca, porque existe o risco de uma certa oscilação entre a tendência identificatória , por exemplo, confundir-se com o sujeito suposto saber, ou a tendência em considerar que tudo é semblante, esquecendo o real por trás do sentido. Com isto, não me refiro somente à clínica, mas, também, à relação com o discurso do mestre nas diversas instituições, porque entendo que conforme os semblantes que se ponham em jogo, se desprenderá uma modalidade de tratamento do real. Em outras palavras, o uso dos semblantes não é sem conseqüências.

* No discurso analítico a questão do semblante se coloca na antinomia sentido/real. O semblante é tributário do sentido. Lacan coloca-o, primeiramente, entre o simbólico e o real e depois é definido em oposição ao real enquanto este exclui o sentido. Sem dúvida que isto coloca questões sobre a própria prática analítica. Efetivamente, se o real exclui o sentido isto pareceria ser o contrário da análise que se sustenta da idéia de que as palavras têm um alcance, o que se verifica na prática. Miller, em sua aula de 21.03.07, retoma esta questão e abre uma dupla via para pensá-la. Destaca um hiato entre a psicanálise como prática, e como perspectiva. Como perspectiva tem no horizonte o real separado do sentido e julga que a psicanálise como prática que opera pela conexão do sentido é semblante. Se bem o sentido varie, o sintoma permanece. Isto permitiria assimilá-lo ao real com o qual trabalha a psicanálise. Haveria, assim, o real que alberga o sintoma sobre o qual não se pode incidir diretamente. Por isso, a psicanálise oferece um dispositivo onde algo poderia ser alcançado pela via do semblante, na medida em que se suponha que “isso” tem um sentido. Isto coloca o tema da interpretação e de um efeito que Lacan sempre guardou para ela, sua ressonância. Coloca-se para mim a pergunta sobre como o semblante opera e se se poderia tomar a ressonância como a forma que incide sobre algo do real. Lacan fala do efeito poético. É preciso, então, destacar que o equívoco seria a ressonância que faz buraco e que este tipo de interpretação é mais adequada ao objeto a? Assim, a psicanálise seria da ordem do semblante porque trata o real por essa via. Pode-se acrescentar que não há outra, e por isso se diferencia do tratamento que faz a pósmodernidade que considera que tudo é semblante, excluindo, desta forma, o real. Se se considera que tudo é semblante, abre-se a perspectiva do cinismo e da errância do gozo com as conseqüentes dificuldades para sintomatizá-lo. Os semblantes não podem ser abordados separados da orientação para o real. Como já sublinhei, a psicanálise sabe que não se pode tocar diretamente o gozo que o sintoma encerra, porque gera a transferência negativa. Isto é, não se pode abordá-lo com qualquer semblante e isso é o que os discursos ensinam. É preciso ter em mente que o semblante se torna um lugar nos discursos. Lugar vazio que permite ao elemento que se coloque ali, fazer as vezes de agente. O discurso se funda no lugar do semblante 1

1 Lacan, J. Seminario L’insu... 8.3.77. Ornicar? 16

já que é o agente que especifica uma maneira de tratar o gozo. Em cada discurso, os semblantes se sustentam de maneira diferente, e, cada um tem seu fundamento. O S1 aparece como semblante de comando. O S2 como semblante de saber. O a como semblante de gozo. Cada um tem um estatuto tão fundamental quanto o outro, mas o que se precisa saber é que não é a mesma coisa, porque conforme for o semblante com o qual se trata o gozo os efeitos mudam. Podem expressar-se através das diferentes

forma de recusa, ou declinar-se nas diversas maneiras explicitadas por Lacan, quando sublinha que o gozo “se interpela, se evoca, se acossa ou elabora a partir de um semblante” 2

.

Sem dúvida, que essa é uma formulação paradoxal, porque o lugar do agente acha-se marcado, em todos os casos, pela impossibilidade de governar isso que não se pode dominar. É preciso lembrar que o discurso é um dispositivo que se assenta no gozo, o que quer dizer que tem uma função civilizadora, mas que não pode dar conta desse núcleo que embora forcluído se agita. É o obscuro umbigo do discurso. Esse que Freud descobriu no sonho como resistente a uma interpretação última que o pudesse assujeitar.

* Então, o semblante é um instrumento para a psicanálise do qual há que se servir, à condição de não deslizar para outros discursos. Mas, é preciso acrescentar que isto não é fácil. É daí, que em seu último ensino, Lacan toma este ponto, para assinalar o incômodo da posição do analista. Por que é uma posição incômoda? Lacan procurava tornar suportável a colocação do analista no discurso já que não é simples elevar essa função à posição de semblante de objeto, que é a chave do discurso 3

e é o que permite que seja “digno” de sustentar a transferência.

O discurso analítico coloca o objeto a, no lugar do agente. Tal objeto é um semblante idôneo para tratar o gozo e o faz porque constitui o núcleo elaborável de gozo que depende da existência do nó. O analista “faz” dessa “poluição” que é o a. Para isso, deve “fazer em seu corpo e em sua existência de analista uma representação” e tê-la em conta, como tal 4. É preciso lembrar que Lacan quando fala de representação coloca essa função imaginária no corpo5, o que dá consistência e permite que funcione como causa das voltas necessárias de uma análise. O analista “em corpo” (en corps, encore), instala o objeto a. Por aí, tem que passar para encontrar algo do real. É de certa forma, um re-achar que tenta sublinhar que não há progresso linear, salvo para a morte, mas que se trata de voltas, desde que define a estrutura como tórica.6

A posição do analista implica em saber manter o vazio, e não se identificar com o semblante, mas fazê-lo funcionar. Efetivamente, semblante e identificação não são a mesma coisa. Em uma das declinações que Lacan deu do termo semblante joga com s’embler e s’emblant – que coloca do lado do precipitar -, como o que precipita algo relacionado com o ser7. Isto o torna propício à identificação que cristaliza em uma identidade8

e é por isso que se trata de manter a mencionada diferença, para poder sustentar o lugar de semblante de objeto no discurso. Saber fazer desse objeto, sem sê-lo, porque então perderia a idoneidade para tratar o gozo.

Se bem que o semblante de objeto faça às vezes de posto de comando no discurso analítico, isto não quer dizer que, como fez a IPA, se converta “em um semblante além da conta, em um semblante ostentado”, e, é a partir dessa dificuldade que Lacan dá uma orientação9

.

Não esqueçam agora que o semblante do qual se fala como tal, sempre está presente em qualquer espécie de discurso que o ocupe. É até uma segunda natureza. Sejam, então, mais soltos, mais naturais quando receberem alguém que vem lhes pedir uma análise. Não se sintam obrigados a se fazerem de importantes. Ainda como bufões, que estejam se justifica. Basta assistirem minha televisão. Sou um palhaço. Sigam o exemplo, e não me imitem!”

O corpo se introduz por uma necessidade lógica. Lacan assinala10

2 Lacan, J. Seminario Aún. Paidos. Buenos Aires. 1985. p. 112

que o real é fora de sentido. É este “sentido em branco” (sens en blanc), sentido branco (sens blanc), implica que o corpo, necessariamente,

3 Lacan, J. 14.6.72. Inédito 4 Lacan, J. 14.6.72. Inédito 5 Lacan, J. “La Tercera. En: Intervenciones y textos 2. Manantial. Buenos Aires, 1988. p.82 6 Lacan, J. Seminario El sinthome. Paidos. Buenos Aires. 2006. p.122 7 Lacan, J. 8.3.77 Op. cit. 8 Lacan, J. 18.11.76 Op. cit. Ornicar? 12/13 9 Lacan, J. La Tercera p.81 10 Lacan, J. RSI. 11.3.75 Ornicar? 5

faz semblante. Retoma este ponto, mais adiante11

, para dizer que tenta instaurar o discurso analítico como o semblante mais verossímil, espécie de curto-circuito da linguagem com o corpo. Entenda-se mais verossímil, como o semblante mais adequado para tratar o gozo, o que implica que o semblante se sustenta em presença.

Daí a resistência do analista para cumprir esta função. Vale lembrar que Lacan localizou, desde o início, a resistência do lado do analista e que em “ A Terceira” sublinha que “para ser seu semblante (refere-se ao objeto a) é preciso ter condições”12

. Este ter condições quer dizer saber dar o consentimento à posição de objeto. Pode-se pensar se o responder à demanda não é uma forma de atuação dessa dificuldade. E, se em outro momento, Lacan falou das mulheres como melhores analistas, neste ponto, destaca que, às vezes, existe a dificuldade para consentir com a posição de objeto.

A resistência do analista em cumprir sua função tem a vê com esse não consentimento. Efetivamente, no discurso analítico o lugar do semblante não é sustentado pelo S1 ou S2, mas de outra forma, já que se trata do analista e do seu corpo. Isto atualiza a leitura do sintagma “presença do analista”, embora abra todos os riscos desta posição. Isso porque apesar do analista fazer semblante de que está ali para que haja proporção sexual, acreditar nisso o anularia13

. Ou seja, é uma presença que se sustenta da falta de proporção sexual para ajudar, suportando esse buraco, a fim de que o analisante ponha em jogo, seu modo de gozo.

O analista deve praticar, de maneira sempre renovada, para manter o vazio que permita ao analisante alojar sua particularidade. Em outras palavras, trabalhar com o véu necessário sobre essa hiância sem preenchê-la. Lacan sublinha que na medida em que o tempo histórico de instalação do discurso analítico é recente, não há uma tradição que o garanta. Podemos acrescentar que, em todo caso, a tradição é a do próprio gozo do analista que deve haver se tratado em uma análise que o produza como tal.

* Esse ponto é central na formação do analista e daí a diferença entre autorizar-se e auto-ritualizar-se que Lacan aponta em a “Nota italiana”. O “auto-ritualizar-se” é uma forma de tentar preencher o buraco, fazendo existir um Outro regular, burocrático. Dá conta de uma dificuldade radical para trabalhar essa “obscura recusa” que se encarna como “ não querer saber nada disso”. É a tentativa de reduzir os efeitos do discurso analítico que fazem vacilar os semblantes, incluídos os do analista. Uma teoria que inclua a falta deve ser reencontrada em todos os níveis. Inscrever-se como indeterminação, como certeza, formar o nó do ininterpretável implica uma atopia sem precedentes14

. É na prática onde o analista dever estar à altura da estrutura que a determina. Por isso os semblantes psicologizantes do discurso do mestre, o sujeito da representação, o da comunicação, os “bons sentimentos”, o “bem do outro”, quando são utilizam, dão conta das dificuldades com a prática pela perda da bússola do próprio discurso.

Isto implica que, na medida em que se é produto do discurso do mestre, o praticante deve “deformar-se” em sua análise da formatação egóica e sintomática para saber fazer de outra maneira com isso que marca sua posição. Por isso Lacan separa a posição do analista da profissão entendida como o que completa pela via de dar uma “identidade profissional”, uma sustentação identificatória15. Deste modo, o analista poderá saber fazer em sua função, em seu corpo, recolhendo o que escuta do interpretante que é o analisante. Porém, também saberá fazer com o discurso do mestre já que, na medida em que o discurso analítico faz parte do discurso comum, começa a ser, cada vez mais, permeável e entra na “armação dos bons sentimentos”16

11 Lacan, J. Seminario El sinthome. Op.cit. p. 120

, quer dizer, é infiltrado pelo discurso do mestre.

12 Lacan, J. “La Tercera”. Op.cit.83 13 Lacan, J. Lacan en Italia. Milan 12 de mayo de 1972 14 Lacan, J. “La equivocación del sujeto supuesto saber”, En: Momentos cruciales de la experiencia analítica, Manantial. Buenos Aires. p.35 15 Lacan, J. “Segunda carta al Foro” 11.3.81. En: Escansión. Nueva serie.1.Buenos Aires.1989 16 Lacan, J. 14.6.72. Inédito

Barcelona, 10 de janeiro de 2009-02-23

O SEMBLANTE E OBJETO POSTIÇO

Ana Lydia Santiago

Como esclarece Jacques-Alain Miller, no seminário Da natureza dos semblant1, foram as inquietações de sua filha no sentido de distinguir o que é verdade e o que é semblante que constituíram, para Lacan, a fonte de inspiração para a postulação do semblante como uma categoria com um uso próprio na psicanálise. “É de verdade ou de mentira?” Essa pergunta, que, de fato, é comumente formulada por crianças até certa idade, sobretudo diante de pessoas fantasiadas ou de bonecos animados, parece apropriada para se questionar o valor do semblante na relação deste com o que é o status do objeto na experiência da análise. Com esse intuito, pode-se tomar o exemplo do chamado objeto postiço, pois sua função não é outra senão a de fazer semblante2

de alguma coisa. Mais precisamente, o objeto postiço é sempre artificial, no sentido de se poder colocar em um lugar qualquer, para fazer crer em algo que, na verdade, ele não é. Isso posto, torna-se possível até perguntar se a distinção entre objeto postiço e semblante não representa um meio para se interrogar o propósito de Lacan ao intitular seu Seminário 18 de Um discurso que não seria semblante.

Genitivo Objeto Ao esclarecer esse enunciado-título, afirma-se, na verdade, que o discurso não se constitui semblante de outra coisa. O du semblant, do original francês, deve ser considerado como um genitivo objetivo, pois se trata do semblante como objeto próprio, do que regula a própria economia de gozo de um discurso3. Em lingüística, o emprego do genitivo consiste na interpretação dada à preposição de que estabelece uma relação entre dois sintagmas nominais. Conforme se trate do sujeito ou do objeto expresso pelo genitivo, tem-se o genitivo substantivo ou o genitivo objetivo4. Assim, na frase “a citação de Camões do professor”, o professor é o genitivo substantivo e Camões, o genitivo objetivo – ou seja, aquilo que determina a citação. Outro exemplo de genitivo objetivo é a expressão “livro de matemática”, em que matemática determina livro. Lacan sustenta, então, que o semblante não pode ser um genitivo subjetivo, na medida em que o sujeito é apenas o produto da articulação significante – ele não a domina; ao contrário, é determinado por uma cadeia de significantes. E, no âmbito do genitivo objetivo e da articulação significante, segundo o próprio Lacan, “é precisamente como objeto do que apenas se produz no discurso, que o semblante se coloca”5

.

Retomo, portanto, esse esclarecimento oriundo da lingüística como uma maneira de explicitar que, na psicanálise, o uso do semblante como conceito se situa para além do significante, pois se trata de um nome que determina algo de essencial de outro nome. A meu ver, é isso que permite caracterizá-lo como um fator essencial na definição do discurso, particularmente no que concerne à economia de gozo que lhe é própria. Proponho-me, então, como campo de investigação, analisar as implicações clínicas, no terreno da experiência analítica, das possíveis relações entre o objeto a e o semblante. A propósito dessa articulação entre o objeto a e o semblante no discurso analítico, destaco, inicialmente, duas referências de Lacan – ambas propostas no mesmo ano – que, de alguma maneira, se opõem. Em

1 MILLER, Jacques-Alain. De la naturaleza de los semblantes. Buenos Aires: Paidós, 2002. p.10 e 99. 2 O significado do termo semblante, em português, não recobre, inteiramente, o valor semântico do seu equivalente em francês. Ou seja, os significados ‘rosto’, ‘face’, ‘cara’, ‘aparência’, ‘fisionomia’ estão longe de assimilar o fato de tal substantivo, em francês, não designar apenas o que é ilusório, aparente ou falso. Como a própria conceitualização lacaniana demonstra, a categoria de semblant concerne àquilo que, apesar de se apresentar como aparente, comporta sempre algo de verdadeiro e, inclusive, sob certas condições, assume uma função estruturante no processo de constituição do sujeito do inconsciente. (Cf. SANTIAGO, Jésus. A droga do toxicômano. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. Nota 50, p. 200.) 3 LACAN, Jacques. Le Seminário, Livre XVIII, D’un discours qui ne serait pas du semblant (1971). Paris: Seuil, 2006. Lição do dia 13 de janeiro de 1971, p. 18. 4 HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Sales. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. 5 LACAN, Jacques. Le Seminário, Livre XVIII. Op. cit., p.18-19.

1o de janeiro de 1973, em O aturdido6, ele formula que o objeto a recusa o semblante. Já em 10 de abril de 1973, no Seminário, Livro 20, ele assinala uma equivalência desse objeto ao semblante. Segundo Lacan, portanto, o analista é aquele que põe o objeto a no lugar do semblante e, assim, fica bem situado para interrogar como saber o que é a verdade7. Isso posto, é possível, inclusive, conjeturar se esta segunda referência não anula a primeira, já que opta pela existência de uma equação entre objeto a e semblante8

. A propósito, importa destacar, ainda, que, além do objeto a, a psicanálise abarca, pelo menos, dois outros semblantes, ambos capitais para a abordagem da clínica do real do gozo – o semblante do Nome-do-Pai, que inscreve o gozo à medida que nomeia o obscuro do desejo da mãe e promove algo da ordem de uma transmissão, e o falo.

O falo é um significante, uma representação, que permite formular e articular o gozo sexual. Seu uso ultrapassa o plano da imagem, sem com esta perder a conexão. Para todos os que habitam a linguagem, é preciso estabelecer-se algo de artificial para suprir a falta inscrita no ser falante, impõe-se elaborar alguma coisa para preencher, sob a forma da castração, o ponto de real da reprodução humana. A inscrição da castração, definida como “uma composição entre o gozo e o semblante”, tem o privilégio de tratar desse indizível. Como semblante, o falo circunda a verdade velada da castração. No que concerne à identificação sexual, não se trata, simplesmente, de alguém se crer homem ou mulher, mas de o sujeito se dar conta de que, “para os homens, a menina é o falo e é isso que os castra. Para as mulheres, o menino é a mesma coisa, o falo, e é isso, também, que as castra, porque elas adquirem um pênis apenas falho”9

. Em suma, tudo que tenta inscrever o real do gozo sexual pode ser incluído na categoria de semblante. E, desse modo, o objeto a inclui-se na lista de semblantes próprios à psicanálise. Pode-se, contudo, indagar: Como semblante, o objeto a é da mesma natureza que o semblante Nome-do-Pai e o falo?

“Faz de conta” “É de verdade ou de mentira?” O jogo infantil, na prática clínica com crianças, põe em cena uma dimensão do que é semblante – do que é faz de conta – que anula a oposição entre falso e verdadeiro. Numa sessão analítica, por exemplo, no momento em que uma criança propõe fazer de conta que é a mãe, enquanto o analista é a filha doente, o que é encenado evoca um ponto de verdade do sujeito concernente à sua posição de objeto para o Outro. O jogo não tem a ver com o que é fato e, como uma ficção, está fadado a “meio dizer” a verdade sobre o efeito castrador da incidência da linguagem sobre o ser falante. Um fragmento clínico, que relato a seguir, parece-me explicitar, de outra maneira, a dimensão de objeto presente no discurso. Um menino passa os fins de semana brincando de luta com seu pai, que trabalha em outra cidade e apenas convive com a família durante um fim de semana por mês. Nessas ocasiões, as lutas entre pai e filho promovem golpes reais e, ao final, o pai deixa o filho vencê-lo. Nos períodos de ausência do pai, no entanto, com vistas a atrair a atenção da mãe, a disputa se estabelece entre o menino e seu irmão mais velho. A articulação significante a respeito da luta com o pai revela o jogo inconsciente – o objeto denegado da disputa é a mãe. O saldo do jogo, nesse caso, reside na ideia do sujeito de que ele é um perdedor. Eis o objeto próprio que especifica e determina o sujeito pela apreensão de um significante que viabiliza a conexão do aparelho do sintoma com a posição de gozo. O sintoma inicial que motiva a demanda de tratamento é, porém, o fracasso escolar. Após as primeiras sessões de tratamento, o menino já consegue usufruir mais das aulas de reforço pedagógico que recebia, há muito tempo, sem nenhum resultado. O efeito terapêutico conseguido contribui, então, para que, na escola, ele deixe a posição de fracassado. Em seguida, ele passa a demonstrar preocupação com seu futuro, perguntando-se se conseguirá não ser um homem perdedor. “A dimensão do semblante fornece suporte à verdade, naquilo que se expressa veiculado em um discurso”10

6 LACAN, Jacques. Outros escritos. Op. cit., p.488.

. O enunciado do inconsciente

7 LACAN, Jacques. O Seminário, livro 20, mais, ainda (1973). Rio de Janeiro: Zahar, 1982. p.121-141. 8 MILLER, Jacques-Alain. Op. cit., p. 86. 9 LACAN, Jacques. Le Seminário, Livre XVIII. Op. cit. p. 33-35. 10 Ibid.

traz a marca do objeto a no nível em que falta o saber, pois nada se conhece sobre o absoluto que é o real e que, sempre, retorna ao mesmo lugar.

Fantasia e objeto postiço O ato analítico é fonte de semblante e, na direção do encontro com o real, leva aos limites do discurso. Nessa trajetória, há um encontro marcado para o analisante – o momento em que o objeto a toma a forma do objeto postiço – que constitui um verdadeiro obstáculo ao tratamento. Em A angústia, Lacan explica esse fenômeno. Primeiramente, considera que não é a castração propriamente dita que se constitui um impasse para o ser falante, mas, sim, a castração imaginária, o fazer da castração algo de positivo. Não há como assumir que, em alguma parte, há gozo, a não ser por meio de um significante que falta. Nesse lugar de falta, o sujeito é convocado a pagar, com o signo de sua castração, o “devido” preço. É nesse ponto que ele se detém, para não consagrar sua castração à garantia do Outro. No momento preciso em que, portanto, o discurso analítico o leva a interpretar a castração como tal, por meio de uma ficção, de que se extrai a função da fantasia, o sujeito para. A fantasia do sujeito neurótico situa-se no campo do Outro. O apoio do sujeito na fantasia do que ele é para o Outro se apresenta, pois, como perversão. Deve-se ressaltar que o fato de o neurótico ter fantasias perversas não equivale a dizer que se trata de uma perversão. Esse elemento perverso da fantasia do neurótico, em que este se detém, assume a função precípua de proteção contra a angústia. O sujeito faz uso da fantasia, serve-se dela, para recobrir a angústia. Ao se fazer objeto a de sua fantasia, ele não vai muito longe. E justamente nesse ponto, o objeto da fantasia “consegue defendê-lo da angústia na medida em que é um objeto a postiço”11

.

Ainda nesse ponto, em que o objeto postiço assume o lugar do objeto a na função do desejo e como defesa contra a angústia, pode-se situar outro obstáculo ao tratamento analítico, que incide na transferência. Partindo do esquema ótico, Lacan insiste sobre o fato de o falo (-ϕ) não só deixar de ser representado no nível do imaginário, mas também de ser “cortado” da imagem especular. Não existe imagem da falta, afirma ele. Assim, a imagem do sujeito refletida no campo do Outro caracteriza-se por uma falta, pois o que é convocado a se revelar não pode aparecer. Essa imagem marcada pela falta orienta o desejo, que surge de forma velada e, sobretudo, associada a uma ausência. Essa ausência, por sua vez, consiste na possibilidade de uma presença – a do objeto a, na função que este exerce na fantasia. Ainda nesse lugar da falta, lugar do que é o irredutível à imagem especular, Lacan ressalta que há uma reserva libidinal, que permanece investida no próprio corpo. Nesse lugar, manifesta-se a angústia da castração resultante da relação do sujeito com o Outro. É desse investimento – também chamado de autoerotismo ou gozo autista – que a imagem do corpo se nutre para o exercício da função de seduzir o parceiro sexual. O objeto a, que funciona na fantasia, serve, então, como objeto postiço, para enganar o Outro12

–“... o objeto a que funciona em sua fantasia e que lhes serve de defesa contra a angústia é também, contrariando todas as aparências, a isca com que fisgam o Outro”. Tal fenômeno é, do mesmo modo, produto do discurso analítico. Lacan recorre ao exemplo de Anna O. para comprovar que tanto Breuer quanto Freud foram fisgados pelo pequeno nada do objeto da fantasia que lhes oferecia essa paciente, em uma manobra histérica de sedução, com que testava o desejo do analista.

No discurso analítico, a possibilidade de franquear esse obstáculo, em que o objeto a toma a forma do objeto postiço – ou seja, de facilitar a travessia desse obstáculo relativo à construção da fantasia –, está condicionada à criação do objeto a semblante? Em torno dessa questão, desenvolve-se esta proposta de trabalho, que seguirá a trajetória da elaboração de Lacan acerca do objeto a e de suas possíveis ficções, no sentido de reestabelecer o objeto a na posição de semblante.

Considerações finais

Na estrutura do discurso, o objeto a consiste no resíduo da operação de evacuação de gozo do campo do Outro, em que funciona como lugar de captura de gozo, lugar êxtimo na relação instaurada pela instituição do sujeito como efeito de significante. O objeto a semblante não é esse objeto a da estrutura, 11 LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 10, A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. p. 60-61. 12 Ibid., p. 61.

que preenche o lugar do mais de gozo por meio dos objetos ditos substâncias episódicas – seios, fezes, olhar e voz. Embora se trate, também, de uma categoria que se caracteriza pela positividade – mais de gozo –, o objeto a semblante não é uma substância episódica13. Lacan inscreve-o em uma relação metafórica com a falta [a/ϕ]14, o que indica a solidariedade do objeto a com a castração. É um mais de gozo que tampona a falta, cobre a interdição de gozo. O objeto a semblante não se restringe, também, ao significante do ser do sujeito – ou seja, ao valor eletivo do objeto a na fantasia fundamental, que surge no momento em que o sujeito se realiza como desejo, que deixa, então, de ser uma metonímia. Quando isso acontece, quando algo passa ao real, o sujeito descobre-se como o próprio objeto a, aquilo que, em sua constituição de ser vivo, foi para o Outro15

.

13 MILLER, Jacques-Alain. Op. cit., p. 72. 14 Ibid., p. 85. 15 Ibid., p. 115-116.

LAÇO SOCIAL: SEMBLANTE E SINTOMA Lizbeth Ahumada Yanet

Sintoma, semblante e laço social constituem uma tríade de significantes que vetorizam o trabalho teórico e clínico do Campo Freudiano já há algum tempo e convocam a próximos encontros, tanto na América como na Europa1

. A relação de oposição entre sintoma e semblante aponta à possibilidade de que, embora o sintoma seja uma modalidade de semblante, seja de tal forma que, minimamente, permita circunscrever um real, enodá-lo, de alguma maneira, mais além da impotência do simbólico e das armadilhas do imaginário.

No que diz respeito ao laço social, ele entra nessa tríade de uma forma natural. Isso porque o vínculo é uma forma privilegiada de enodamento (ou de sua tentativa), em uma época em que, com Miller, podemos dizer que o Outro tende a reduzir-se ao Outro social. Por isso o interesse dos discursos que falam do laço social. E, isso numa dupla perspectiva: por um lado, aqueles que apontam à possibilidade de algum tipo de vínculo, como possibilidade de suplência do Outro que não existe e de enodamento do real do gozo. Trata-se de discursos que, frequentemente fazendo apelo à categoria de comunhão, fazem semblante de sua existência (a do próprio vínculo). Por outro lado, estão aqueles outros discursos que apontam à inexistência do vínculo, à sua impossibilidade, a não existência do Outro social, cuja missão era, ainda, de alguma forma, fazer existir o Outro. Entre uns e outros, trata-se de propor o sintomático do vínculo, de suas formas de fazê-lo existir e de seus fracassos. Ultimamente, têm tomado bastante relevo, no social, significantes que se situam, precisamente, nesse ponto de intersecção entre o vínculo como possível e suas formas de fracasso. São, no fundo, nomes de novos sintomas definidos, precisamente, com relação ao funcionamento ou desfuncionamento, à sustentação ou à ruptura, ao estabelecimento ou reestabelecimento do vínculo. Estes novos sintomas, frequentemente, dizem respeito a situações sociais que não são novas, mas que tomam novo destaque, em um momento em que a sociedade, como tal, parece ocupar-se “reflexivamente” (Giddens, Beck) de seu papel como Outro. Assim, quando a própria sociedade toma o lugar do Outro, o sintoma tende a definir-se em termos sociais. Frente a estas novas formas de definir o sintoma, que acentuam seu lado de impasse, no que diz respeito ao vínculo social, como diferenciar certos semblantes falsos de uma restituição da verdadeira dimensão do sintoma, na medida em que, nele, o real está implicado? Nesse contexto, desperta nosso interesse, as formas de falar do vínculo, referidas a situações contingentes em que algo de sua possibilidade se vê comprometida. É o caso do que foi classificado como a desinserção social dentro do marco da cena político-administrativa contemporânea, que deu lugar ao título do programa de trabalho proposto por Jacques-Alain Miller, relativo ao interesse psicanalítico por tal problemática: “A Clínica e a pragmática da desinserção em psicanálise”. No entanto, devemos compreender que a desinserção toma sentido no marco de uma dialética mais ampla que nos conduz a revisar o que podemos considerar, sem idéia de esquematismos, seu avesso: a reinserção. Com efeito, cabe nos perguntarmos pela situação de retorno daquele que percorreu as fronteiras do exílio social, da exclusão do vínculo com o outro constituinte de sua realidade. O que deu lugar a uma grande quantidade de esforços, oriundos de diferentes âmbitos, dirigidos a propor programas de reinserção para indivíduos ou grandes populações não inseridas em um determinado contexto, e que por si mesmas começam a agruparem-se sob uma nova categoria social. O ternário em questão: inserção-deinserção-reinserção, dá conta do valor temporal que toma o que aparece como um contínuo, e que, na realidade, se trata de marcas profundas da discontinuidade do semblante do laço social. Isto é, o discurso do mestre dominante

1 O Encontro Americano de 2009 tem por título: Sintoma e Laço social. O PIPOL 4 2009 na Europa: A clínica e a pragmática da desinserção em psicanálise. O congresso da AMP 2010: Sintoma e semblante.

promove a necessidade ficcional de uma sociedade integrada, introduzindo uma terminologia a partir de categorias propriamente funcionais que indicam uma direção, um tratamento da disfunção do laço do sujeito com o Outro. Podemos dizer que a Psicologia se constitui na guardiã deste resultado, pois com suas técnicas, mais ou menos sofisticadas, a serviço da aprendizagem, busca consolidar o laço do indivíduo à realidade objetiva, utilizando o que considera uma escala avançada ou evolutiva no ser humano, sua capacidade de socialização. Como com a criança. Basta acompanhar neste processo, que irá brotando como por passe de mágica. É preciso esperar o momento do desenvolvimento e jogar pra frente. Em outras palavras, o ponto culminante do ciclo antes descrito é a ressocialização. Um reenlace com aquilo que era oferecido ao sujeito por seu ambiente próximo, invariável, e que foi perdido, a partir da des-socialização, se me permitem. Processo que não deixa de ser complexo e que traduz uma engrenagem profundamente simbólica sobre o habitar no mundo de um sujeito. No recente caso da libertação dos três cidadãos norte-americanos das garras infames do terrorismo colombiano, assistimos a um programa de reinserção produzido no laboratório, isto é, a aplicação de um protocolo concebido como uma situação preliminar ao encontro com o “ambiente natural” destas três pessoas. Isso indica o nível de sofisticação a que chegou a psicologia ao propor que retornar ao mesmo pode ser muito pouco terapêutico. É óbvio, que para a psicologia cognitiva trata-se simplesmente de uma aproximação progressiva, de passos que lentamente vão aproximando à realidade que está ali. E, está para acolher o filho pródigo, que, neste sentido, é um filho anônimo, pois se trata de uma pedagogia, de um programa de aplicação universal: para todo aquele se veja exposto a ficar nas fronteiras do Outro, à margem do Outro, há um esquema pré-estabelecido que permite o bom reencontro. A psicanálise pensa diferente. Com Lacan, reconhecemos que o ideal do retorno a um estado anterior, a um estado primeiro, define a pretensão terapêutica, e somos obrigados a dizer que estamos advertidos do destino que toma tal pretensão, pois com esse afã se silencia o que se dissimula, e, na verdade, se enodava com o Outro, que não era senão o sintoma. E, seu retorno não deixa de ser traumático. Isto nos leva a considerar que encontrar e valorizar o ponto não terapêutico, o ponto de não retorno da reinserção, é a via para circunscrever o que da separação ficou exposto para o sujeito, e que estava jogado nas costas do Outro. O sintoma é aquilo que localiza o impossível de enlaçar no social. É o tropeço ao qual a cadeia social está submetida. Mas, também, é o que torna possível este enlaçamento, isto é, o vínculo sempre é sintomático, porque o único que pode introduzir o elemento de real no laço é o sintoma. É que apesar de ele mesmo seja semblante, veicula um real que por seu intermédio se inclui no laço com o Outro. Neste sentido, o sintoma mostra, em sua formação, a face de semblante do laço, o artifício que é, e, ao mesmo tempo, o mais real que existe na relação com o Outro. Dois modos de separação que implicam o destino da reinserção, vista a partir de diferentes perspectivas, podem nos indicar o que está em jogo, mais além da tipologia pretendida pela psicologia. Separações que não deixam incólume a função do fantasma, pois atacam, de maneira direta, sua consistência. Trata-se do arrancar da sua pele, do brusco rompimento de sua tela, a partir do atravessamento selvagem ou de sua “suspensão” temporal efetiva. Duas situações subjetivas de exclusão que manifestam e radicalizam a natureza do semblante do laço social: o seqüestro e a imigração.

O seqüestro Ser seqüestrado, subtraído das mãos do Outro de forma intempestiva e violenta, deixa a marca do vazio existencial sobre o qual se funda o vínculo. Falamos desse rapto do sujeito, não com o encanto singular com que o apresenta M. Duras, mas com a ferocidade própria do imperativo. O rapto brutal, o seqüestro, pode ser considerado, em si mesmo, uma descontinuidade imposta do laço social a que é submetido o indivíduo que dele é objeto. Neste sentido, abre-se um vazio entre o Outro e o sujeito que rompe abruptamente a possibilidade de subjetivar o acontecimento e, finalmente, trata-se de um feroz e maciço atravessamento do fantasma, que enquadra, para o sujeito, o mundo que habita. Assim, a reinserção do indivíduo que atravessou tal experiência desgarradora, só pode ser compreendida sob a óptica do que dessa extração fica como marca no sujeito, em termos do mais íntimo, isto é, o desvelamento do buraco que há (que de fato sempre houve) na relação com o Outro. Ou seja, o saldo deste atravessamento

intempestivo da barreira fantasmática abre a questão: como ligar-se a partir da vacuidade e do desamparo mais radical? Que parceria é agora possível e a partir de que nome? Os testemunhos que dão conta de uma vivência de perda absoluta, de tempo, de identidade, de sentido, são correlativos da necessidade de fazer-se para um Outro, e, nisso, cada sujeito tem uma margem de escolha. Essa é sua dignidade no encontro com a liberdade. Por isso, uma liberdade que, paradoxalmente, é vivida traumaticamente, contradiz toda idéia de uma busca de recuperação terapêutica do deixado, pois se trata muito mais do que fazer a partir do encontrado. Se há retorno, é retornar ao pouco de liberdade que se localiza na dimensão subjetiva e que permite uma nova volta na relação com o Outro, sua reinvenção. Há liberdade se há condições que a torne localizável em cada ato de escolha. Neste sentido, não há outra liberdade que a do ato de escolha, de consentir ou não com isso, e para isto deve haver um sujeito disposto a sustentar o ato e a se responsabilizar pelas conseqüências que se desprendem dele. É a liberdade de enlaçar-se de novo (mas a partir do novo), de instituir, a partir do saldo de saber sobre a causa em jogo, na relação com o Outro, um novo vínculo, ou, pelo menos, uma nova maneira de habitar o campo do Outro com a verdade nas costas. Para isso, paradoxalmente, o sujeito não pode deixar o sequestro completamente por conta do Outro. Tem que poder assumir algo da separação que aconteceu. Separação que, embora não tendo desejado, foi algo da qual recolhe suas consequências. Esta é sua participação. As diferentes modalidades, mais ou menos patológicas, de volta, têm, também, a ver com a possibilidade de assumir essa participação, as formas de fazer com ela. Algumas podem ser formas, mais ou menos selvagens, de atuar a separação previamente sofrida, outras formas de insistência na condição puramente passiva de vítima.

A imigração

Supõe a ruptura com o laço estabelecido, para instalar-se em um novo. Aí, todos os parâmetros identificatórios se perdem e dão lugar ao teste dos instrumentos de que dispõe quem emigra. Aqui, às vezes, pela violência que esta experiência pode acarretar, é o próprio sujeito quem “se seqüestra”. O que é posto à prova é a possível inserção do fantasma e do sintoma como modos de enlaçamento com o Outro. É, neste sentido, que se trataria de uma reacomodação fantasmática na aposta de sua funcionalidade. Da mesma forma, a bússola do sintoma orientará o caminho do novo vínculo, e, para isso, o sujeito deverá separar o real do sintoma em sua sempre nova forma, do imaginário das condições de vida com as quais se encontra. A relação com o Outro, agora transferida, dá lugar a pensar que o vazio ao qual se enfrenta o sujeito, nessa nova realidade, é o vazio de referências de lugar e de ambiente. Entretanto, o que se desvela é que o vazio é justamente um vazio de estrutura, sobre o qual há que construir, novamente, o semblante do vínculo. O que é posto em jogo é um saber-fazer com o de sempre, a partir da dimensão do novo. No entanto, a situação não é em si mesma essencial: o que é mobilizada é a trama subjetiva, e a tentativa de romper com o Outro consegue simplesmente sua reinstalação, em formas mais ou menos dramáticas. Vejamos um exemplo que nos ensina essas coordenadas. Trata-se do caso de um jovem estrangeiro que solicita atendimento no marco de um CPCT. Há um ano e meio se foi a outro país para terminar seus estudos, inacabados em seu país de origem. Consulta em virtude de uma crise de angústia. Esta o leva a temer o fracasso de seu projeto, que é, ao mesmo tempo, completar o que deixou inacabado e inserir-se numa nova sociedade. Imediatamente, o hiato representado pelo oceano, em suas costas, se lhe abre como um buraco que o faz sentir-se sem lugar e incapaz de se adaptar ao país que o acolhe. O trabalho analítico lhe permite situar que, na realidade, esse hiato já se abrira há muitos anos. Primeiramente, refere-se à idade avançada do seu pai, que sempre lhe fez sentir que havia uma carência em seu vínculo com ele. Havia algo que não lhe pudera transmitir. Um irmão muito mais velho cobrira de algum modo esse vazio, mas quando esse irmão se distancia, por causa do seu casamento, ele, o paciente, cai numa profunda apatia, sente-se sem lugar e sem projeto. Muitos anos mais tarde, a idéia de emigrar já é uma tentativa de realizar o que caiu nesse parêntese de abulia e desconcerto, com consequências duradouras em seus resultados acadêmicos e profissionais,

fixando-o em uma posição de fracassado. A emigração, portanto, ao confrontá-lo, abruptamente, com o desenraizamento, permite-lhe subjetivar uma separação muito anterior, que é sua relação ao seu pai. O surgimento sintomático da crise de angústia lhe dá a oportunidade de procurar uma análise, que lhe permite, em pouco tempo, sustentar seu desejo frente aos embates da angústia. Seu desejo, de fato, tem a ver com concluir seu projeto migratório. Voltar seria ignorar que esse vazio que agora parece tragá-lo estava no começo, causando seu desejo de ir-se. Voltar seria, na realidade, cair naquilo que, sem dar-se conta inteiramente, tivera que fugir: a abulia e a desorientação que se haviam apoderado dele na confrontação com a carência paterna. Assim, a descontinuidade que supõe a emigração lhe permitiu subjetivar um vazio de outra ordem. O sintoma é o meio que lhe deu condições. O jovem, em questão, consegue terminar seus estudos e começa a se promover profissionalmente. Por outro lado, decidiu terminar uma relação com uma mulher de seu país de origem, que fora escolhida por uma série de traços sociais (classe social muito elevada) que o colocavam no lugar de fracassado. Finalmente, podemos dizer que falamos de certas formas de metáfora desconhecidas do sujeito moderno, exilado do seu Outro. Metáfora que faz crer, às vezes de forma enganosa, que esse exílio é contingente e não necessário. É, neste ponto, onde o psicanalista deve reintroduzir a dimensão do sintoma na consideração dessa modalidade de semblante que é o laço social. Tradução: Elizabete Siqueira

1

A INVENÇÃO DE UMA ESCRITA Marie-Hélène Blancard

Seja qual for a sua relação com o falo, o neurótico encontra um limite ao gozo. A impossível relação sublinha a inexistência do significante d`A mulher, mas também a importância da fantasia que, por intermédio do objeto a, serve de enquadre ao encontro com o parceiro. Já o psicótico é coagido a inventar uma solução original para remediarNT 1 a ausência da significação fálica, pois o encontro com uma mulher pode precipitá-lo na derrelição de seu ser, caso esta venha a encarnar A mulher que não existe como «Ser-supremo-em maldade». Figura, então, de um gozo ilimitado que faria existir, para o pior, a relação sexual. A psicose revela ser assim «o fracasso dos semblantes»: «Vê-se operar, na clareza mais crua, Um-Pai como real, esse Um-Pai que o véu do semblante do Nome-do-Pai evita encontrar»1

.

Henri e Lucas são dois homens que uma relação amorosa precipitou em uma posição de dejeto. Esse encontro fatal os obriga a cingir um gozo mortífero do qual eles devem se desprender, ao qual se esforçarão em seguida para contrapor-se NT 2 ou limitar, apesar da ausência da significação fálica. Dizer não ao desencadeamento mortal do gozo é uma necessidade que os impele a procurar um analista, para conseguir encontrar uma solução original que se apoiaria no sinthoma como uma «escrita que permanece de uso privado, singular»2. No lugar da significação fálica que lhes falta, a invenção de uma escrita se impõe como o que poderia corrigir o erro, «o lapso do nó»3

, e permitir uma nova relação com o mundo.

Henri, o homem de pé Henri acaba de ser abandonado pela companheira à qual dedicou quinze anos de uma vida sem problemas. Ela é a mulher de sua vida, a mãe de seus filhos, e ele jamais imaginou perdê-la. Numa noite do Dia dos namorados, ela lhe abre os olhos: não o ama mais, não mais o deseja, ele é um fracassado, um egoísta ridículo, uma nulidade. Ela se empenha em maltratá-lo, em humilhá-lo como homem e como pai, acusando-o de ter desperdiçado a juventude dela. Ele se abate dominado por um ciúme feroz, convencido de que ela ama outro, um sedutor celibatário. Torna-se objeto de gozo desse Outro inumano que desejaria a sua perda: planeja então suicidar-se. Ser pai não conta, apenas essa mulher conta para ele. Acreditando preenchê-la, deu-lhe os filhos que ela queria e é disso que ela lhe reprova hoje.

Henri é um sujeito moderno e pragmático, que aposta na eficácia e multiplica os tratamentos para superar seu desespero e as idéias suicidas que o acompanham. Nenhuma relação com o inconsciente, pouquíssimas lembranças a evocar, às vezes um sonho que ele trata como uma mensagem que lhe vem de alhures, ou como simples transposição da realidade cotidiana mais do que da realidade psíquica. Ele evocará no entanto, não sem reticências, uma lembrança datada dos seus onze anos e que marca uma verdadeira fissura em sua vida: numa briga durante o recreio do colégio, quebra um dente e entra em casa envergonhado, sem nada dizer. Confessa isto para sua mãe, esperando que ela guarde segredo. Mas ela conta para o pai que, na mesma noite, fica furioso e o castiga com uma bofetada magistral, o que é para ele o insulto, uma traição insuportável. Isola-se do Outro, mantendo apenas

NT 1 Pallier (no original). Segundo o Robert, significa remediar, ou seja, aliviar sem curar, minorar ou limitar. E ainda, dissimular. 1 Miller J.-A., «L’orientation lacanienne. De la nature des semblants», seminário pronunciado no âmbito do Departamento de Psicanálise de Paris VIII, aula de 27.11.91, inédito. A tradutora acrescenta: em “De la naturaleza de los semblantes” (Buenos Aires, Paidós, 2005), esta citação se encontra no final do capítulo ‘Los nombres del padre’, p. 38. NT 2 Contrer (no original). No bridge, segundo o Robert, significa anunciar que se pretende impedir que o adversário faça o seu contrat. Declarar que se vai contra (em certos jogos de carta). 2 Lecœur B., «Le type idéal», La Lettre Mensuelle, n° 269, julho de 2008, p. 14. 3 Lacan J., Le Séminaire, livre XXIII, Le sinthome, Paris, Seuil, 2005, p. 97. A tradutora acrescenta: em O Seminário, livro 23, O sinthoma, Rio de Janeiro, Jorge Zahar editor, 2007, essa citação está na p. 94.

2

alguns laços de cumplicidade com sua irmã mais velha. A partir de então se experimenta como sozinho no mundo, até o encontro com a mulher de sua vida. Henri se esforça para manter as aparências, ostentando em todas as circunstâncias uma máscara sorridente. O que lhe importa é a imagem que ele dá aos outros, a de um homem dinâmico e moderno, que venceu na vida. Uma imagem de comercial, uma família exemplar: ele se situa na norma e não se coloca nenhuma pergunta. Dois anos antes, quando ocorrem dificuldades em sua vida profissional – uma espécie de perseguição que deixa aflorar um tom persecutório sobre o qual ele não insiste –, ele se entrega a alguns excessos: fuma maconha, bebe mais do que deve e engorda. O que o perturba é, sobretudo, que seu mal-estar seja visível, até que sua companheira lhe expressa violentamente o desprezo e a rejeição que ele lhe inspira. O desmoronamento do corpo faz signo de sua posição de dejeto. Acima de tudo, o que o preocupa é este corpo desfalicizado, que ele se empenha em modelar e sustentar, apoiando-se na transferência para manter distância dessa mulher que lhe faz mal, humilha-o e certamente o engana. Recuperar sua dignidade de homem implica para ele em recuperar um corpo viril que ele possa expor aos olhares sem vergonha e mesmo com orgulho. Aí então ele seria capaz de confrontar-se com seu rival imaginário, este que sua mulher deseja em seu lugar. Seu ciúme obsedante progressivamente vai diminuindo. Rapidamente, já não está mais convencido de que ela tenha um amante, menos ainda que queira deixá-lo... Ele a vê de outra maneira: frágil e vulnerável, agressiva porque angustiada. Desempregada, portanto dependente de seu marido. Ele não se deixa mais maltratar por ela, mantém-na à distância com sua ironia fustigante, reencontrando assim um equilíbrio precário. Ele revelará com certa satisfação seu achado, uma fórmula de estabilização que lhe permite limitar seu gozo, disciplinando seu corpo: « PYAF ! P 70 ». Comenta essa fórmula, esclarecendo que o ponto de exclamação inscreve a verticalidade do seu corpo, assim como o estado positivo de seu humor. Ele não é mais um dejeto; desde então, é um homem de pé. É o que ele decompõe assim: Piscina Yoga Amor Forma ! Psy 70 (= 70 kg, seu «peso ideal») Essa surpreendente escrita dá conta do esforço do sujeito para limitar seu gozo mortífero, refazer para si um corpo fálico e recuperar sua dignidade de homem. Ele não mais espera de sua companheira um hipotético reconhecimento de sua virilidade; mantém-na à distância, mantendo ao mesmo tempo as aparências de uma vida familiar sem problemas. Recentemente, ele reencontrou uma jovem mulher estrangeira com a qual teve uma relação amorosa, na época em que eram estudantes. Logo depois, eles se perderam de vista, pois ela emigrara para os Estados-Unidos para casar-se; mas ela sentiu saudade do encontro deles, comunicando-se com ele de tempos em tempos. Ela retorna a Paris para uma estadia de algumas semanas, comunicando-lhe que estava inteiramente disponível para ele. Ele se reaproxima dela, deixa-se progressivamente aprisionar, fazendo desse parêntese amoroso clandestino uma verificação da posição viril que ele pudera ajustar. Posição que ele defenderá violentamente para resistir a uma demanda que descobre cada vez mais insaciável quanto mais se aproxima o dia da separação entre eles: sobretudo não deixar-se aspirar pela voracidade do outro e fazer-se respeitar pelo que ele se tornou, um homem que conhece seus limites, embora não disponha da medida fálica.

Lucas, homem do mundo Lucas me procurou para tentar entender o que lhe ocorrera após o encontro fatal que havia devastado sua vida em poucos meses. De início, confessou que, se não metera uma bala na cabeça, era porque tinha a impressão de já estar morto e de não poder tomar pé no mundo dos vivos sem a ajuda de um analista. Eu o incitei a suspender qualquer projeto de trabalho ou de partida. Apenas contava o trabalho analítico que ele deseja empreender para reconstruir-se e reorganizar sua vida, e ele devia ater-se a ele.

3

Um sonho foi a sua resposta, seu consentimento ao trabalho de transferência. Ele rolava numa rua cada vez mais caótica, que se interrompia brutalmente. Ocorrera um cataclismo que havia engolido o ponto sobre o qual ele devia passar; era absolutamente necessário que ele construísse com suas mãos um desvio que lhe permitisse reencontrar o traçado da rua principal, contornando o precipício aberto. Arregaçando as mangas, ele se punha imediatamente ao trabalho. Lucas cingiu as circunstâncias do encontro fatal, o desencadeamento discreto, a seguir a eclosão de idéias delirantes, por fim o desencadeamento no real de certos significantes da sua história familiar. Isto teve o efeito de ordenar a desordem do seu mundo, de extraí-lo desse lugar de dejeto em que ele gozava de sua própria decadência, e de reduzir, uma a uma, suas certezas delirantes. Ele havia de fato seduzido uma brilhante jovem mulher com sua promoção. Ela se chamava Céline, nascera de uma família rica no exílio e seu pai era um banqueiro internacional. O idílio deles devia permanecer secreto por causa do pai; nenhuma promessa, nenhum compromisso entre eles, mesmo seus amigos não deviam saber. Lucas aceitou essa colocação de distância, pois acreditava que ela estava apaixonada. No mais, eles eram feitos um para o outro. Nada nem ninguém podia separá-los; seus destinos estavam ligados, os outros quisessem ou não. Surgiu a idéia de que Deus queria assim. Bastava então conseguir dobrar o pai para fazer sua a filha, que ele já possuía, mas queria toda sua. Céline recusava-se ainda a apresentá-lo a seu pai, mas ele lhe demonstrou que isso era inelutável: quem ousaria impunemente opor-se aos desígnios de Deus? Uma missão lhes fora confiada; através de sua união, tratava-se de reunificar seu país de origem, e de trabalhar numa nova Constituição para esse país dividido; desse modo, Céline recuperaria sua pátria e poderia dar a luz a um filho que encarnaria a reunificação do país. Céline cedeu e apresentou-o a seu pai, que não o levou a sério. Seus projetos de casamento o fizeram sorrir. Ele mostrou-se arrogante, impondo-lhe duras provas. Fez com que sua filha lhe prometesse romper para dedicar-se aos estudos. Nesse momento produziu-se uma alucinação, anunciando o desencadeamento no real que se seguiu. Ele ouviu um ruído estranho, um zumbido que parecia rasgar o céu: «Era uma espécie de bumerangue, em forma de cruz suástica, que fendia o céu e me ameaçava diretamente…». Céline o deixou. Ele partiu à deriva, agarrando-se às suas certezas delirantes e dedicando-se a cálculos complicados. Precisava saber a data na qual ela lhe daria um filho: estava escrito, então bastava saber decifrar os sinais da vontade divina. Já que ela era sua princesa, ele devia contar mil e uma noites desde sua primeira noite de amor para obter a data fatídica, e a partir dela definir sua estratégia amorosa. No seu retorno, ela mostrou-se fria e esquiva. Quanto mais tentava reatar com ela, mais ela o rejeitava com desprezo e humilhava-o em público. Ele a insultava, depois rastejava a seus pés, tornando-se então, como ele próprio dizia, «o cachorro de Céline». Estava atormentado pela idéia de que ela o enganava com um rapaz do qual ela fizera seu cavaleiro servil (chevalier servant) NT3

. Ele avistou-os juntos: diante do choque da evidência, foi projetado no chão, «como fulminado por um raio». Fora excluído, enganado, feito de bobo. Idéias de assassinato assaltaram-no, seguidas de idéias de suicídio. Com o agravamento do seu estado, ele refugiou-se na casa de sua mãe. Durante três meses, permaneceu prostrado diante da idéia da falta suprema que fora a sua: traíra o amor que estava no cerne de sua missão e que fundava seu ser, e devia pagar por isso.

Progressivamente ele renunciou a Céline, considerando ter ido muito longe nesse amor louco e ter se colocado em perigo. Ele encontrou uma mulher que era enfermeira e o amava. Resolveu partir e viver com ela no interior, a fim de adquirir uma sólida formação de contabilidade. Confessou, no entanto, que manteria sempre um sonho, trabalhar numa estação de rádio que emitia do alto mar, e que se chamava … «Rádio-Céline».

NT3 Chevalier servant (no original). Segundo o Robert, é “o cavaleiro que presta serviços assíduos a uma mulher”. É sinônimo de sigisbée, termo usado, atualmente, de maneira irônica para referir-se ao acompanhante que faz assiduamente a corte a uma mulher, acompanhando-a para toda a parte.

4

Justo antes de partir, ele depositou na escrivaninha da analista um cartão de visita que acabara de mandar imprimir: «Lucas X, homem do mundo». Parece ter conseguido sustentar-se duradouramente nesse semblante. Isso nos mostra como o ato operou sobre o gozo do sujeito para separá-lo do pior, até fazê-lo produzir uma invenção que o amarra ao semblante, uma escrita que faz objeção à relação sexual e ao desencadeamento da pulsão de morte. «Para sustentar um mundo humano, é preciso um grampo», sublinha Jacques-Alain Miller. «Não é possível sustentar-se no mundo sem que, entre o significante e o significado, haja em algum lugar um grampo»4

.

O interesse desses dois casos reside na maneira como o amor, privado do limite fálico, pode, no entanto, ser declinado de diferentes modos: devastação inicialmente, transferência a seguir até obter uma escrita que remedeie a ausência da significação fálica, tudo isso sublinhando ao mesmo tempo um modo de gozar singular. Um encontro fatal conduziu-os à beira do abismo, porém o ato analítico é o que vai operar sobre o desencadeamento no real do gozo mortífero. É o que permite a cada um produzir uma invenção singular e aceder, finalmente, a uma possível relação com uma mulher que não seja uma mulher de exceção, mas sim uma mulher comum. Tradução: Elisa Monteiro

4 Miller J.-A.., op. cit., aula de 26/02/92, inédito. A tradutora acrescenta: em “De la naturaleza de los semblantes”, op. cit., esta citação está na p. 175.