Semânticas da violência - guerra, território e poder na África mandinga

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  • Varia Historia

    verso impressa ISSN 0104-8775 Varia hist. v.22 n.35 Belo Horizonte jan./jun. 2006 doi: 10.1590/S0104-87752006000100008 ARTIGOS

    Semnticas da violncia - guerra, territrio e poder na frica mandinga1

    The meanings of violence - war, territory and power in mandinga's Africa

    Angelo Turco

    Professor do Departamento de Culturas Comparadas da Universidade de L'Aquila

    Facolt di Lettere e Filosofia]p.zza S. Margherita 2, 67 100 L'Aquila

    [email protected]

    RESUMO

    Este artigo aborda o grande tema da guerra na frica bsica o qual apresenta

    articulaes mltiplas. A tradio mand, da frica ocidental permite compreender

    os modos de constituio do significado da violncia organizada, e em especial da

    guerra justa, com particular ateno s configuraes do poder em relao

    territorialidade.

    Palavras-chave: frica, mandinga, violncia

    ABSTRACT

    This article treats the great theme of war in Africa, which permits multiple

    articulations. The mand tradition of West Africa permits the understanding of the

    ways the meaning of organized violence are constituted, especially the just war, with

    particular attention to the forms of power in relation to territoriality.

    Key words: Africa, mandinga, violence

  • Complexo e ainda pouco estudado, o grande tema da guerra na frica bsica

    apresenta articulaes mltiplas. Quero aqui referir-me a uma tradio da frica

    ocidental que tenho podido estudar repetidamente no curso de muitos anos,2 aquela

    mand, raciocinando sobre os modos de constituio do significado da violncia

    organizada, e em especial da guerra justa, com particular ateno s configuraes

    do poder em relao territorialidade. Na tradio mand o tema da guerra,

    estreitamente entrelaado com a poltica e da ao perfil civil do homem mandingo,

    bastante presente e sutilmente elaborado. O fato blico declinado nas suas muitas

    lapidaes e por isso se desenvolve no s como discurso sobre a "arte da guerra" e

    a tipologia dos conflitos com as relativas tcnicas defensivas e ofensivas,3 mas

    prope ainda o mais amplo quadro da funo social da atividade guerreira4 e dos

    relacionamentos entre kel e hera, a guerra e a paz. Um relevo particular assume,

    nesta rica perspectiva, o horizonte ideolgico da autoridade, niyamokoya: niyamoko

    aquele - moko, a pessoa - que vem antes, que est diante. Esse se repercute em

    cheio sobre as problemticas polemolgicas e, a partir da reflexo sobre "esprito

    guerreiro", constri um verdadeiro e prprio "discurso sobre a guerra" que se coloca

    frente ao cerne da natureza do conflito armado e explora as condies de

    possibilidades da sua legitimao.

    1. A tradio mand

    "Tradio mand" significa neste estudo o conjunto dos traos culturais, materiais e

    simblicos, relativos ao povo mandingo, espalhados sobre uma vasta rea da frica

    ocidental estendida sobre as bacias da Gmbia, do Alto Senegal, do Alto e Mdio

    Nger (fig. 1). Os critrios de definies de tal tradio so necessariamente fluidos.

    Sem dvida se podem assinalar os dois resumos mais recentes realizados por J.

    Jansen,5 quer dizer a lngua6 e uma produo narrativa (oral) concernente

    Sundiata e a sua epopia. A estes critrios se acrescenta aqui um outro, referente

    territorialidade mand, e mais precisamente as lgicas que inspiraram e sustentaram

    a transformao material, simblica e organizativa do territrio hoje habitado pelos

    mandingas. A formao de uma territorialidade mand repousa sobre princpios e

    prticas bastante complexas, mas fazem distino entre si - e so neste local de

    importncia central - os processos de construo poltica do espao, que indicamos

    com o termo resumido de mansaya (da mansa, soberano). O espao poltico

    mandingo tem o seu modelo auroral no reino de Sundiata (Mand, Manden,

  • Manding) que as fontes rabes medievais indicam como Mall, Mali, Melli, 7 do qual

    origina a denominao de "Imprio do Mali". j no seio daquele que as tradies

    indicam como duguba, a grande (ba) casa de todos os mandingas,8 que venham

    articular-se os canais institucionais voltados assegurar a circulao legtima do

    poder, ordenveis em duas grandes famlias (Tab. 1). A primeira, regida por

    princpios hierrquicos, diz respeito ao conjunto dos dispositivos que atribuem

    autoridade um valor decrescente de um vrtice a uma base. As principais

    instituies hierrquicas do Mand dizem respeito esfera familiar (fasiya), com a

    esfera poltica (mansaya), com a esfera escravista (jonya) e por fim com a esfera de

    casta (nyamakalaya). Sobre as trs primeiras temos meios de retornar a seguir;

    quanto nyamalakaya, ela codifica o ordenamento da sociedade de castas,

    marcadas por graus de distino, especializao profissional, endogamia.9

    A homologia indica por sua vez o conjunto dos dispositivos que organizam a

    sociedade a partir da de instncias de igualitarismo. A ordem homolgica, que se

    exprime em diversas instituies sociais, tem as funes essenciais de amenizar as

    tendncias particularistas e, por tabela, as lenticularizaes territoriais, que a ordem

    hierrquica impulsiona ao contrrio de afirmar. Nas diversas formas que pode

    assumir, o particularismo ressalta a prevalncia dos interesses econmicos,

    polticos, ideolgicos de um grupo ou de uma instituio sobre outras. Tudo isso traz

    consigo o perigo grave de uma exploso do Mand que, trado nos valores

    comunitrios que lhe h proporcionado a gnese e inspirado o desenvolvimento, 10

    vem confiado s foras destrutivas da violncia e da guerra, e deixa por fim de existir

    como duguba, quer dizer como construo geogrfica unitria.

    Ao modelo auroral do Mand malins, conectam-se experincias hist ricas

    multiformes que esto a testemunhar em sntese dois eixos de desenvolvimento do

    pensamento e da prtica poltica mand, caracterizadas de uma forte tenso

    dialtica.

    i. O primeiro eixo coloca em jogo a dupla fasiya/mansaya, o que quer dizer a

    legitimao das prticas concretas de governo atravs de princpios de carter

    exclusivamente poltico (mansaya) ou por meio do exerccio de uma autoridade do

    tipo familiar (fa, pai). O percurso de legitimao fasiya visa a disciplinar a aprovao

    e o uso da terra (e por extenso, de todos os recursos naturais: contudo, no s

  • agrcolas, mas tambm pastorais, cinegticas, haliuticas, florestais). Trata-se de

    uma instncia reguladora voltada a afirmar um direito originrio sobre o espao

    natural, entendido este como superfcie que contm, de forma efetiva ou potencial,

    os meios destinados a garantir a subsistncia e a reproduo fsica e social da

    coletividade estabelecida. um direito originrio, no sentido que ele no depende de

    nenhum outro direito precedente ou superior, mas se fundamenta pura e

    simplesmente sobre a ocupao primitiva do espao o qual, todavia, deve fazer

    imperativamente em seguida a uma prtica qualquer de transformao, seja ela

    material ou simblica.11 Enquanto originrio, portanto, o direito fasiya imprescritvel

    e exclusivo, isto , no usurpvel; alm disso, ele passa a fazer parte integrante dos

    mecanismos de controle social, que obrigam a conservao do bem fundirio em

    benefcio da coletividade - familiar ou tambm de cada aldeia (tabanca em crioulo

    bissau-guineense); so (em malink) ou tabanc reticular (sokun) - excluindo a norma

    livre. O percurso de legitimao mansaya, visa por seu lado a dotar o territrio de

    qualidade poltica e a garantir-lhe a organizao. Este percurso no ignora os

    valores da fasiya, ao contrrio os atrai: alm disso, reconhece-lhes o estatuto de

    corpus regulativo pr-existente e, de algum modo, eminente, como acabamos de

    ver. Contudo, a mansaya exige uma sua autonomia prpria que realiza, parece, em

    virtude de dois procedimentos fundamentais. O primeiro diz respeito com a criao

    ex novo de um direito que tem por objeto qualquer coisa que antes no existia: a

    fundao do lugar poltico, o mara propriamente dito, em virtude da guerra - como a

    mido na experincia mandingo - ou por outra via (aliana, submisso, protetorado).

    Afirma-se assim uma espcie de correspondncia funcional entre dois atos

    originrios: um concerne apropriao da terra em um espao natural,

    substancialmente anecumnico, como veremos no pargrafo sucessivo; o outro diz

    respeito instaurao da territorialidade poltica a partir de uma geografia

    substancialmente pr-poltica.12 O segundo procedimento, consecutivo ao primeiro,

    consiste no entender e no praticar a autonomia no j como desunio, renegamento,

    oposio e de qualquer modo competio com a fasiya, porm como proclamao

    de independncia e de intangibilidade das duas esferas de legitimidade. Nestas

    condies, a fasiya vem no s respeitada, mas verdadeiramente garantida nas

    suas exigncias da nova ordem institucional: no por acaso, em uma tradio

    proveniente diretamente do mand malins, o novo mansaya presta uma

    homenagem simblica ao dugukolotigi, o "senhor da terra", para marcar a diferena

  • dos papis.13 De fato, a coexistncia destes dois percursos de legitimao fundase

    sobre o mtuo reconhecimento de mbitos de regulao que no possam

    reciprocamente insidiar-se porque os campos sociais ao qual se aplicam so

    constitutivamente diferentes e, por assim dizer, no comparveis.14

    ii. O segundo eixo de desenvolvimento coloca em jogo a dupla farinya/ faamaya, o

    que significa um exerccio do poder poltico baseado sobre a sabedoria (fa, padre)

    ou ento sobre a fora (fanga).15 Com efeito, a autoridade do mansaya, com o seu

    poder especfico exercitado pelo mansa, instaura por excelncia a dimenso poltica

    na vida social: a prerrogativa real, plena e autnoma, que consagra o Senhor (ma,

    como senhor) no entrecruzamento de evocaes legitimadoras ambivalentes, cujo

    alvo em direo ao conjunto das qualidades que a pessoa deve reunir para poder

    aspirar ao altssimo cargo (ma, como homem), e por outro em direo referncia

    suprema das responsabilidades e dos poderes, ou seja Deus (make, o Ser

    Supremo). E, todavia, a autoridade mansaya pode sofrer derivaes ao longo da

    evoluo da histria, como repetidamente dito, e assumir conotaes controversas.16

    Aquela farin descende dos ancestrais (fa, pai) e o cdigo que a identifica a

    sabedoria, prpria dos avs. A autoridade faama, ao contrrio, associando-se

    fora (contrao de fangama, aquele que dotado de fora) fia-se mais na eficcia

    do despotismo do que na virtude do consenso, fruto de uma persuaso gerada do

    agir de acordo com a justia.

    A dissoluo do Mali (sculo XVII) contribuiu para criar um perodo de graves

    perturbaes na frica Ocidental, vinculado, sobretudo, ao progressivo sucesso do

    trfico de escravos de matriz europia e ao conseq ente deslocamento dos fluxos

    mercantis que abandonam os circuitos meridianos e se organizam geograficamente

    no sentido dos paralelos. 17 No extremo Oeste do Mand, digamos entre os

    contrafortes setentrionais do Fouta Djalon e as bacias dos rios Casamance e

    Gmbia, a nova situao leva consolidao do Gabu,18 um reino que parece reunir

    e defender a hereditariedade da cultura mansal produzida e custodiada pelo Mali,

    preservando-a o quanto possvel de vestgio oposto, quer dizer, do tipo faamaya e

    do tipo farinya.19 (Fig.2)

    No restante do Mand, ao contrrio, observa-se uma regresso em direo a

    situaes de tipo decididamente faamaya, como a Segu qual retornaremos, ou

  • ento, no oposto, em direo a formas pr-polticas de organizao social e

    territorial. Esta tendncia ao retorno na direo da fasiya no coloca porm de tudo

    fora do jogo as dinmicas de tipo mansaya: de fato, emergem apesar disso

    estruturaes mais francamente polticas ainda que de modesto valor, seja em

    termos de populao, que de superfcie (confederaes de aldeias, chefferies).

    Neste contesto de reorganizao econmico-mercantil em escala sub-continental, na

    qual a violncia organizada si afirma como forma privilegiada da produo de

    escravos para o trfico, nasce e se difunde o kafo, quer dizer a estrutura poltica

    mais caracterstica do Mand ps malins.20 A opinio de Y. Person sobre a

    natureza do kafo motivada e convincente: trata-se de um verdadeiro Estado.21 Esta

    estrutura territorial, todavia, tanto no plano interno quanto no externo, apresenta

    aspectos equivocados. No plano interno, sobretudo, seja o nascimento seja o

    funcionamento realizam-se no rastro de um indeslindvel emaranhado

    fasiya/mansaya.22 O kafo surge sobre base familiar, da hegemonia de uma linhagem

    ou de um cl sobre outros. Neste sentido, ele um jamana.23 De fato, na percepo

    e na expresso comum os dois termos terminam por serem usados

    indiferentemente. Basta pensar, pelo que diz respeito ao Alto Nger, que todos os

    jamana especificados na nossa pesquisa de campo,24 figuram na lista do capito

    M.E.Peroz quais kafo existentes na poca do primeiro imprio de Samory, digamos

    na assinatura do tratado de Bisandugu entre a Frana e o Almami (1887). De resto,

    a emergncia da funo poltica no kafo comporta necessariamente a passagem do

    sistema regulador fasiya quele mansaya. Este ltimo, todavia, freqentemente

    muito frgil para reivindicar uma completa autonomia, motivo pelo qual condenado

    a conviver, de formas variveis, com o primeiro. S quando, de vez em quando, um

    lder, um keltigi particularmente valoroso, arrojado e s vezes visionrio, como no

    caso do Samory (Fig.3), reafirma com a guerra e a conquista territorial os valores da

    poltica e as suas instncias de funcionamento, mansaya e fasiya reassumem os

    papis distintos que so prprios deles.25

    2. Estatutos ambguos da violncia organizada: a donsoya

    No Mand a violncia organizada atinge a sua importncia social e o seu perfil

    cultural na marca geral da ambigidade. Esta pode ser enxergada como pistas de

    uma mimese, um jogo tenaz de refrao entre o exerccio brutal e o exerccio

    disciplinado da fora. Como primeiro exemplo, citarei sem dvida aquele do donso,

  • figura social estratgica do Mand que condensa uma ambivalncia entre o mais

    arcaico, historicamente persistentes e espacialmente difusos. O donso o caador,

    um cone universal e elevado da prtica social e tambm do imaginrio coletivo

    mandingo, sem dvida pr-existente ao duguba e, alis, essencial protagonista da

    sua constituio. Ele apresenta alguns traos caracter sticos: forte, corajoso,

    sabe manejar as armas, um personagem consciente das suas habilidades e da

    sua fora que, todavia - ou talvez prprio por isto - no as pratica gratuitamente, dir-

    se-ia, mas as endere a obteno de um resultado. A fora e a habilidade no se

    exprimem em uma violncia cega e destrutiva, mas se conjugam para dar curso a

    operaes reflexivas e por princpio moral realizar qualquer coisa de benfico.

    Parece isto o nervo de uma construo axial da cultura mand, com uma faceta

    dupla. A primeira diz respeito conscincia que existe qualquer coisa que se pode

    chamar "mal absoluto" - encarnado, por exemplo, por criaturas no humanas, pr-

    humanas ou sobrenaturais - e que este mal absoluto se exprime freqentemente

    como violncia cega, como subjugao injustificada, como castigo excessivo,

    desproporcional culpa. A segunda faceta, por seu lado, entrelaa-se com a

    primeira e apresenta um contedo eminentemente geogrfico. O mal absoluto, de

    fato, em seguida o exerccio irrefletido da fora que configura a violncia bruta, reina

    sobre um mundo que anecumnico, sobre o espao selvagem. esta uma das

    conotaes do wula, designador bastante complexo que encerra no seu horizonte

    semntico a idia central que se trata da superfcie terrestre ainda no marcada pela

    ao humana, ainda fora da atividade domesticadora do homem e por isso em

    definitivo ainda no investida do processo de territorializao. Na realidade wula

    sim um espao natural, mas o seu estatuto conceitual e jurdico varia em funo da

    localizao. Integrado no dugu (o assentamento), wula apropriado: pertence ao so,

    aldeia, submetido a um controle simblico serrado ( reconhecido, denominado),

    investido de prticas de uso tambm mais intensas, ainda que debilmente

    reificadoras. Pensa-se a wula como o espao que circunda a aldeia onde so

    localizados os locais dos rituais (floresta sagrada, por exemplo), aonde se vai caa

    e a pesca, onde se procura as ervas medicinas, onde se vai colher os frutos da mata

    e da submata, onde se leva os animais para pastar, enfim onde se vai buscar a

    lenha, sem a qual a vida do so no seria nem mesmo concebvel. Em suma, wula

    como parte do nodu26 um territrio para todos os efeitos, que constitui, entre

    outros, essencial garantia para a estabilidade do so enquanto superfcie de reserva

  • para o crescimento demogrfico e as expanses agrrias. Contudo, se ao contrrio

    est localizado fora do nodu, Wula acaba sendo simples espao, pura extenso

    natural. necessrio distinguir ainda aqui dois significados semnticos do

    designador. O primeiro prope wula como espao limtrofe de indeterminada

    jurisdio, que poderia ser por isso integrado no nodu ou ento apropriado no

    quadro da criao de um novo dugu e, p fim, da criao de um sokun. O segundo

    evoca wula como grande extenso vazia, como natureza hostil, impenetrvel: o

    espao verdadeiramente selvagem, sentido como longnquo, sombrio, temvel.27

    No momento em que o homem se achega ao wula para transform-lo atravs de

    operaes de tipo simblico, material ou ento organizativo, a violncia muda seus

    traos, sofre o mesmo efeito do processo civilizatrio pelo qual o espao se

    transforma em territrio, e se torna um fator da metamorfose de wula em dugu (lugar

    habitado, assentamento, e, por extenso, territrio). Neste contexto, a habilidade e a

    fora do caador resultam perfeitamente inseridas no projeto de domesticao do

    mundo selvagem do qual o homem mandinga se sente investido. E mais: o donso

    representa a parte mais consistente daquele processo civilizatrio do mundo que o

    destino histrico do povo mandinga e que Sudiata exprimir ao seu nvel mximo

    com a criao do Imprio. ao caador, de fato, que nas pegadas do Mansa Ba,

    cabe explorar os novos espaos, impelir-se nas temveis profundidades do wula,

    entrar corajosamente em contato com as foras obscuras que levam o mal

    (incompreensvel e injustificvel) e tornar-se sabiamente forte, com o fito de no

    deixar-se derrotar por ele e, pelo contrrio, distanci-lo, construindo uma espcie de

    "terra sem mal" onde a violncia vem dominada e onde, em seguida, a disciplina da

    fora vem atravs do seu emprego justificado.28

    Nota-se um ulterior complexo de valores que conota o caador. Este, de fato, no

    s exmio no uso das armas, no s pratica a arte da guerra, mas encarna tambm

    o esprito dela. O donso na verdade o depositrio da antiga e nobre arte

    cinegtica: um donko, um saber fazer, uma tcnica. Mas ele ainda o depositrio de

    um valiosssimo donni, o conhecimento profundo, que se conecta novamente

    enquanto tal s formas codificadas da palavra malinesa, a lada, e talvez ainda mais

    quelas esotricas da kuma koro ba, a grande palavra (kuma) antiga. Estas formas

    de conhecimento no so evidentemente dizveis e aparecem ligadas a dois

    aspectos do comportamento e da vida mesma do donso. O primeiro diz respeito,

  • ainda uma vez com a territorialidade, da qual o caador um artfice. Ele conhece

    wula, o perscruta, o percorre, apropria-se dos seus segredos, o organiza em

    localidades que cadastra nas caractersticas deles e consigna a uma denominao

    completa, ou seja, que nomeia o campo referencial, simblico e performativo. A

    atividade cognitiva na verdade comea com o fixar as referncias que consentem o

    mapeamento mental do wula, e portanto os discurso sobre o wula, e os

    deslocamentos no seu interior. No domnio simblico, ademais, ela recolhe os

    segredos das entidades sobrenaturais que habitam o wula e preserva o inventrio

    dos lugares de culto. Enfim, a apropriao intelectual do espao produz as

    informaes prticas necessrias caa. Em suma, retirando-o do estado selvagem,

    o donso consegue integrar wula no s no universo dos cultos, mas igualmente nas

    atividades produtivas e nos circuitos da reproduo social. assim que se desenha

    uma verdadeira geografia cinegtica na qual os lugares entrelaam a trama dos

    movimentos dos homens e dos animais, associados a tcnicas e instrumentos caso

    a caso apropriados:29 bal, s margens dos rios e em geral os locais de bebedouros

    dos animais; binyoro e fu, clareiras com relvas mais ou menos cerradas (bow em

    pular) onde os animais caados vo se refugiar; tu, a floresta densa; kotu, a floresta

    com tneis formados pelas rvores ao longo dos cursos de gua e nas depresses

    midas; yeren, o manto florestal ralo. Graas ao donso, o territrio conquista um

    novo significado semntico, torna-se um "operador social", e a geografia codifica a si

    mesma no s denotativamente, como fundo e suporte da atividade humana, mas

    tambm conotativamente como dispositivo capaz de mudar "a natureza da natureza"

    e em seguida, por isso mesmo, de mudar a natureza da violncia.30

    O segundo aspecto diz respeito a dimenso cooperativa da atividade cinegtica pela

    qual, alm do valor individual, a estabilidade institucional e a durao no tempo

    que contam. E aqui que se insere a funo da ton. Em vias de princpio no Mand

    a ton um "corpo regulamentado", para usar a expresso de Delafosse,31 estranho

    parentela, que age sobre a competncia. Esta pode ser de tipo mgico-sagrado e

    dar corpo a verdadeiras e prprias sociedades secretas.32 Ela pode ser tambm de

    um tipo que por apresentar contedos iniciticos, poder-se-ia dizer profissional.

    Neste caso o saber fazer no se conquista por direito de nascimento, como no

    sistema nyamakala evocado mais acima, mas nele ingressa atravs do livre

    aprendizado ao qual todos, em linha geral, possam participar, desde que dotados

  • das necessrias qualidades. Instituio universal do Mand, a donsoton apresenta

    caractersticas localmente diferenciadas. No Alto Nger guineano, por exemplo, ela

    organizada ao nvel de dugu, mas s vezes tambm ao nvel de sokun, e contm

    aspectos iniciticos que justificam de qualquer modo o termo com o qual vem

    usualmente indicada em lngua francesa: confrrie (confraria). Tornam-se caadores

    depois de um perodo de aprendizado, durante o qual o aprendiz, donso karand,

    no pode caar s, mas acompanhado do seu mestre, o caador experimentado

    donso karamo. A aprendizagem pode durar um longo tempo e encerrada a critrio

    do mestre. Os donso karamo escolhem entre os seu pares o donso kun, o chefe da

    ton, caador particularmente hbil, generoso, capaz de evitar os conflitos de

    interesses, imparcial e, sobretudo, dotado de um poder mstico que ele exercita

    sobre o wula para propiciar a caa e afastar os perigos do espao anecumnico. O

    donso kun fica na funo enquanto a assemblia dos donso karamo reconhecer-lhe

    as qualidades pelas quais foi originariamente escolhido. Ele exercita as suas

    prerrogativas de vrios modos: aconselha, concede permisso para sair caa,

    assegura com a sua orao e os seus poderes sobrenaturais a prosperidade para a

    ton e para cada um de seus membros. Em roca, tem direito ao respeito dos donso e

    a uma parte da caa, em geral o pescoo do animal. O donso kun, enfim, guia a

    cerimnia anual de abertura da caa, da qual s podem participar os membros da

    ton. A cerimnia dedicada ao irmo de Sundiata, Manden Bori, o primeiro e mais

    eminente dos donso, a quem se pede ajuda e proteo.33 Uma ulterior figura do

    donsoton alto-nigerino o donso kemo, representante da confraria junto aldeia e

    seu portavoz nas reunies que concernem ao wula. Finalmente, alguns donsoton

    possuem o seu srwa, que pode ser ou no caador, encarregado de narrar as

    crnicas da ton e os feitos de cada um dos caadores, de cantar os louvores da

    donsaya, de animar as viglias fnebres em honra de um donso karamo.

    Atravs da iniciao aos mistrios da caa, aprendizagem das tcnicas,

    participao na vida da ton, ao compartilhamento dos valores da donsaya34 e,

    naturalmente, concreta prtica cinegentica, o donso conquista conscincia do seu

    status social, cujas razes aprofundam-se seja na tradio mtica, seja na histrica.

    Os grandes do Manden, a comear pelo Bori, so heris de caa: Sundiata pode

    exaltar entre os seus muitos ttulos, aquele prestigioso de simbon, grande caador,

    sem dvida, pertecente ordem instituda por seu av, Mamadi-Kani; Tiramanghan,

  • o mtico fundador do Gabu, um Traor, o cl dos caadores, um dos dezesseis

    que do origem ao Mand malins; Biton Kulibaly, o fundador do mais tardio reino

    de Segu, por sua vez um donso, destinado a tornar-se ma fa donso, caador de

    homens e, isto , guerreiro.35 Mas o donso no tem somente um ponto de referncia

    mtico. Ele tem sido o elemento mais eficaz e incisivo dos exrcitos mand, elite

    guerreira forjada atravs da fidelidade incondicional ao mansa, no menos que

    atravs da honra no combate, valores que o consideram toti, homem livre, valente e

    leal, incomparavelmente superior ao sofa, ainda que fiel e destemido soldado,

    porm, escravo.

    3. Estatutos ambguos da violncia organizada: dunya-mara, uma cosmopolis mandinga?

    A metamorfose da violncia acompanha, portanto, a transformao do espao em

    territrio e a passagem de Wula para dugu. Mas antes ainda, ela parece um fator

    constitutivo de dunya - o mundo terrestre como tal36 - o elemento que acompanha o

    seu nascimento, a parteira que permite a individualizao de wula, o mundo dos

    homens, de qualquer coisa que o precedeu e que era evidentemente um universo

    pr- humano.37

    Em sua pesquisa sobre kumaba mandinga, S. Camara enfrenta o tema da gnesi

    deste mundo que no certamente humano, mas que , no entanto, disposto para

    acolher o homem secundando-o e, alis, exigindo dele ao. No seu ltimo livro,38

    referente aos percursos iniciatrios do mand senegals-guineense, o nascimento

    do mundo visto no tanto como uma "criao",39 mas antes como um parto: as

    foras presentes so difceis de definir-se, nem se sabe em realidade porque nunca

    as dinmicas da mudana se ativam para unir-se s formaes do mundo humano

    sub specie de dunya, cujas entranhas tocar depois de proceder individualizao

    dos vrios espaos: wula, dugu, mara. Mas aquilo que a cosmogonia descrita por

    Camara relata justamente um sofrimento que acompanha o parto do mundo, no

    qual parecem entrela-ar-se os percursos instituidores da ordem de uma parte

    atravs da palavra e de outra exatamente atravs da violncia.

    Se verdade que o campo da vida (balokena) vem inseminado da palavra, ele,

    todavia, produz atos (p.35 e s.). assim que, no arcano depsito das possibilidades

  • que precedem o mundo, um movimento gerado pela capacidade de sentimento (a

    compaixo, o amor sincero...) enquanto abre a extenso na sua vacuidade

    primordial, coloca a distino crucial entre o universo dos "smbolos", que traz

    consigo a luz, e aquele das "coisas", marcado pela opacidade e, portanto, falso. No

    formar-se da extenso - um termo geogrfico primordial40 - acompanham as

    primeiras articulaes entre a vila celeste (santosu), a vila terrestre (dugumasu) e a

    vila de meio (talanteemasu). Mas a denominao, a enunciao dos

    dugurentogolu, os nomes verdadeiros e secretos, que "irrigam o lugar vago das

    existncias que viro" e preparam balokena.

    A palavra , portanto, o no giratrio princpio ordenador da extenso que se dispe

    a tornar-se dunya e, portanto, wula. Permanece, no entanto, neste percurso, o

    inaudito sofrimento do parto do mundo que ser humano, a enfrentar-se desditoso

    das pulses, a angustiante, a incessante refrao dos estados emotivos nos quais

    se materializa (a compaixo, o amor, a luz, a gua...). De qualquer maneira, a

    violncia da gnese prefigura aquela que acompanhar os eventos que ocorrero no

    novo mundo e as configuraes que ele vir a assumir - ou seja, a histria e a

    geografia do homem - j que elas sero, em ltima instncia, os resultados de uma

    ingente "luta dos desejos", destinada a subverter incessantemente cada poder

    mundano.

    A tradio apenas evocada sugere que a violncia uma necessidade

    cosmognica, inerente ao nascimento do mundo terrestre. Do mesmo modo, poder-

    se-ia dizer, ela acompanha cada nascimento e, particularmente, cada determinao

    geogrfica destinada a articular dunya e a refletir e manter o agir humano, a ao

    social. O problema apresenta-se com particular acuidade quando se trata de

    instaurar a mansaya e, com ela, o que a reflete e lhe d substncia, ou seja mara, o

    lugar poltico. Reapresenta-se aqui o problema que j foi dos esticos, de realizar

    cosmospolis, estabelecendo uma conexo entre a ordem do universo (cosmos) e

    aquela da polis, ou seja, o espao poltico.41 Tentarei indicar como dunya-mara esta

    cosmpole mande, convocando ainda a violncia como instrumento deste novo

    disciplinamento geogrfico do mundo. de novo a epopia de Sundiata que oferece

    a chave de leitura mais cngrua a respeito do raciocnio que estamos aqui

    desenvolvendo. E a belssima tradio de Wa Kamisoko, traduzida e apresentada

    por Y.T. Ciss, que explica a necessidade da poltica, como observa perspicazmente

  • C. Maillassoux.42 Sundiata enfrenta o problema da segurana do Mand pr-

    malins, onde portanto vigoram os procedimentos legitimadores da ao pblica de

    tipo fasiya. A questo espinhosssima a partir do momento que se trata de um lado

    de preservar a liberdade do Mand das perseguies de Somaoro Kant, soberano

    dos Sosso, de outro de extirpar o flagelo do banditismo. Este ltimo se direciona no

    tanto aambarcagem de bens, mas de preferncia captura de pessoas para

    venderem como escravas no quadro do trfico transaariano. O fato que, conforme

    um processo registrado pelo Sudo desde o sculo X,43 o rapto e a venda de

    prisioneiros feito no contra "estrangeiros", mas mesmo no interior do Mand e

    tambm, anonimamente, entre habitantes da mesma aldeia e membros da mesma

    famlia. Sundiata realiza uma aliana entre todas as dugutigiya mandingas

    (confederao de aldeias, chefferies pr-mansais) - tradicionalmente especificadas

    em trinta - e d combate a Samaoro, destroando-lhe os exrcitos na batalha de

    Kirina (1235). O Mand mansal, ou seja, a constituio poltica do espao mandinga

    nasce de um ato de violncia organizada, e est a o sentido da expresso "Kel l

    ka Mand lo" : sobre a guerra que se edificou o Mand. as, como j na

    domesticao de wula, trata-se no de uma viol ncia cega, mas sim de um uso

    refletido da fora para fins positivos: Sundiata o lder de uma horoya kel, de uma

    guerra defensiva e por isso justa. em seguida se-nko (a vitria) contra Somaoro,

    precisamente, que Sundiata pede aos seus pares de elege-lo soberano de uma

    federao estvel de dugutigiya, com a finalidade de garantir a paz e de eliminar o

    banditismo escravista, ou seja a forma mais odiosa de siakel (a guerra tnica, a

    guerra civil), de dugulenkel (a guerra entre coletividades estabelecidas, entre

    aldeias), ou at mesmo de fadenkel (a guerra intestina).44 "Voc afastou a guerra

    de nossas casas, por isto renunciamos ao nosso poder e te proclamamos

    niyamoko": assim Kamisoko (p.42) narra os propsitos dos dugutigi. o ato de

    nascimento do Mand mansal e, com ele, do mara. Mara in primis uma forma de

    poder. Ele evoca no somente uma capacidade, mas tambm um direito e um

    compromisso responsvel, intimamente ligado educao, quanto um poder de

    comando consciente das suas prerrogativas e dos seus limites. No pensamento

    poltico mandinga mara exprime a idia de poder certo mais complexa, tanto mais

    que o termo no s evoca uma qualidade pessoal ou institucional, mas torna-se um

    designador geogrfico no momento no qual indica um territrio poltico: mais

    especificamente, o territrio poltico de Sundiata e, por extenso, do mansa. Mara,

  • portanto, o poder poltico na sua expresso institucional mais alta, cujas condies

    de exerccio so por isso mesma aquelas mais disciplinadoras. Ao mesmo tempo,

    ele identifica-se com o mbito espacial do seu prprio exerccio, o que produz dois

    efeitos importantes. O primeiro consiste no afirmar uma qualidade especificamente

    poltica do territrio independentemente da existncia de outros poderes que

    eventualmente se exeram sobre o mesmo: a essncia mesma da dialtica

    fasiya/mansaya da qual falamos no primeiro pargrafo. A segunda diz respeito

    quilo que com uma expresso ratzeliana chamarei o Raumsinn, o senso do espao

    mand. Este confia-se de boa vontade na sua expresso pr-imperial (e, portanto,

    de muitas maneiras pr-poltica), a uma figurativizao por pontos (os so, as

    aldeias), mais ou menos nitidamente ligados por linhas que conduzem as relaes

    mais variadas (confederaes, alianas, trocas), mas privado de extenso

    superficial: de incio, como disse Wa Kamisoko, o reino de Sundiata vai "do rio

    Woyo-Wayan-Ko, ao p do fromager di Kouroussa" (p.281-3). Configura-se pura e

    simplesmente como um espao vetorializado, percorrido por uma linha de fora que

    o representa e o descreve: do curso d.gua arvore. Com a criao do imprio o

    espao deixa de ser puramente linear e conquista a rea de sua consistncia. Por

    um lado, trata-se de uma rea istropa, investida na sua integridade do poder

    mansal. Por outro lado, assume o aspecto de uma extenso delimitada por toda

    parte - ao Norte, ao Sul, a Leste e a Oeste, ressalta ainda Kamisoko - denominado,

    organizado em estruturas que tm status diferentes e diferentes funcionalidades:

    domnios da coroa, provncias, estados vassalos. Permanece intacta a alta funo

    do rio Nger como fator simblico de estruturao do Mand: il Mansa Ba no

    somente um matigi, senhor dos homens, mas tambm um jitigi, senhor da gua.45

    A mansaya concretizando-se no mara exprime o poder na sua plenitude poltica: ele

    hereditrio e distingue-se por sua moderao, a sua sensibilidade s tradies e a

    sua preocupao pela justia. O Mansa Ba, respeitoso da legitimidade fasiya e das

    prerrogativas a ela associadas impregna-se do Mand e confere-lhe o status de

    mara, um territrio superdotado, de algum modo, uma vez que no sofre mas usufrui

    da autoridade do soberano. De fato, o mara um espao de paz e de securana,

    mas tambm a substncia de uma geografia prspera, um lugar onde o trfico de

    escravos que afligia a sociedade pr-malins no existe mais ( e isto considerado

    como um elemento decisivo de civilizao), onde os circuitos comerciais foram

  • reativados e estabilizados, e onde, enfim, pode-se dedicar quela que por

    excelncia a atividade mand, ou seja, o cultivo da terra. assim que Sundiata, que

    reina do alto de seu trono sobre um imprio rico e forte, sabe escutar a humilde

    exortao de um velho sbio que lhe diz: "Mande derrubar as rvores, transforme a

    floresta em campos cultivados, e s ento tornar-se- um verdadeiro rei".46 a

    essncia mesma da passagem do estado de natureza ao artificial humano, em

    virtude do qual um rei torna-se autntico rei porque derrota a precariedade, cria as

    condies de estabilidade para o seu povo e pode instituir derrota a os

    ordenamentos que acompanharo o desenvolvimento civil. Sobre esta que

    representa a mais importante forma de reificao na geografia subsaariana, se fecha

    a fisionomia conceitual do mara. A restaurao das prticas culturais o sinal

    definitivo de uma grandeza que pode ser somente de quem reina sobre o espao

    poltico:47 aquele que afasta a carncia, o desastre da fome, colocandose como um

    construtor de perenidade. Se o Mand eterno, porque il maratigi faz-se seu

    guardio.

    4. Segou: da tgereya keltigya

    luz de tudo isso que foi dito, se pode avaliar plenamente o significado cultural,

    histrico e geogrfico do reino de Segu (fig. 4). Digamos que, j a partir do sculo

    XVII e, alm disso, em medida crescente no curso do sculo XVIII, a demanda

    praticamente inexaurvel por escravos para o comrcio atlntico cria em toda a frica

    ocidental uma regresso da vida poltica e, em especial, uma degradao do espao

    poltico com o afirmar-se da violncia organizada, seguida da guerra real, como

    instrumento central da produo escravagista para o trfico.48 No Mand ps

    malins, composto no vale central do Nger por aldeias isoladas (so) e por pequenas

    dugutigiya, o trfico escravista europeu criou uma condio geral de instabilidade e

    de insegurana para os mandigas, em singular correspondncia com o que ocorria

    no Mand pr-mansal com o trfico transaariano de matriz rabe-islmica. Tanto em

    um como no outro caso, os fins da captura de seres humanos para vender,

    desencadeiam o banditismo (tgereya)49 nas suas duas formas de jodoya e de

    soboli.50 A primeira diz respeito ao pequeno banditismo, individual ou de grupos

    isolados que se formam por uma ao e depois se dissolvem. A segunda, ao

    contrrio, obra de uma ton, como se designa a Segu, um bando consistente

    (algumas dezenas) de bandidos s ordens de um chefe (tontigi) que exercitam

  • permanentemente a atividade predatria. Maamari Kulibali, apelidado Biton, uma vez

    solitrio donso, trona-se exatamente um tontigi que, graas ao sucesso das suas

    aes violentas e astcia das quais d prova,51 v crescer a sua fora (trata-se de

    fanga, a fora bruta, a mera capacidade de coero) e acaba estabelecendo um

    poder estatal (fanga ke): Biton assume o ttulo de faama e estabelece a sua

    residncia em Segukoro (a velha Segu). Nasce assim, em torno de 1720, o reino de

    Segu, do qual Mungo Park descrever alguns traos caractersticos por volta do fim

    do Setecentos.52 Um sculo depois, a fase expansiva se detm: os exrcitos de

    Segu so batidos por Peul do Maasina, que sprimem o reino dos seus territrios

    orientais. Uma nova dinastia, com o chefe Ngolo Jar, assume o poder e o manter

    at a chegada das armadas jihadistas tuculeur de Omar, em 1861.53

    A afirmao da faamaya de Biton, conquanto "regulamenta" o problema da tgereya

    - e veremos de que modo especialssimo - no faz mais que afastar para o exterior a

    atividade predatria, instaurando uma condio blica contnua, uma kel

    permanente que justifica para Segu, segundo J. Bazin a denominao de "Estado

    guerreiro".54 A famaya de Segu qualquer coisa de bastante diverso da mansaya de

    Sundiata. No entanto, como observa Meillassoux, Biton - e depois dele Ngolo -

    chegam cena pblica do nada, no tm uma afiliao de cl que os nobilitem ou

    ao menos que os legitimem de alguma forma s pretenses de comando. Ser sem

    passado condena, de qualquer maneira, a ser sem futuro: como observa S.

    Bagayogo,55 se a mansaya hereditria (recebe-se e pode-se transmitir), a faamaya

    conquistada: isto faz com que as dinastias de Segu tenham dbeis fontes de

    legitimao, porque na morte de cada faama o pretendente sucesso deve

    demonstrar a prpria sebbaya (potncia).

    Alm disso, este vir do nada representa de per si uma ruptura da tradio, uma

    derrota a princpio socialmente forte da ancianidade. O primado de moba (ancio,

    sbio) vem substitudo por novos valores: aquele da fora fsica e do ardor no

    combate, que no so certamente os velhos a possurem, mas os kamalen, os

    jovens reunidos na ton.

    Biton, de outra parte, no combate o banditismo, mas o pratica. Se o elimina no o

    faz da maneira de Sundiata, decreta-o pura e simplesmente ilegal, mas obtendo dos

    so e das dugutigiya que desejem ser protegidas das incurses dos seus tonden (os

  • pertencentes do seu bando) um direito de compensao, nisongo. o medo da ao

    predatria que compele, portanto, as coletividades mandingas a reconhecerem a

    autoridade do faama; e este medo ser jogado contra eles, uma vez que a ameaa

    de um ato predatrio sempre possvel serve para impedir cada veleidade de

    insubordinao. Com o passar do tempo, os tributos pagos s dinastias de Segu a

    ttulo de nisongo tornam-se sempre menos consistente. Em compensao,

    aumentam outros tipos de obrigaes, entre estas o envio de efetivos em caso de

    guerra. E aqui que se insere a questo crucial dos jon, e do peso que no todo a

    jonya assume no reino. A passagem, se assim se pode dizer, do banditismo interno

    ao banditismo internacional, comporta a institucionalizao da kel como

    fundamento de um especfico modo de produo estatal em Segu. A guerra feita

    para fazer prisioneiros a se transformar em escravos. Segundo a reconstruo de J.

    Bazin, cada keltigya (expedio guerreira) "produz" certa (importante) quantidade

    de escravos:56 Estes vo ao faama em um nmero varivel de dois teros (2/3)

    metade, enquanto o restante permanece com aqueles que participaram da

    expedio blica. Os jon que vo abastecer o tesouro real tomam por sua volta trs

    destinaes principais: i) a venda, efetuada diretamente pelo faama a mercadores

    de passagem (Jula, Mauri, os habitantes da Mauritnia), ou ento nas aldeias

    maraka, que funcionam como centros mercadores,57 ou ento enviam atravs de

    rios grupos em direo s grandes praas comerciais como Bamako, Kangaba e

    Kankan; ii) a redistribuio, que segue canais diversos (o grupo familiar, a rede

    clientelista - sobretudo jali, conselheiros, mori, ou seja sbios islmicos

    encarregados de cuidar da baraka do soberano) - enfim, a unidade encarregada de

    assegurar a produo agrcola destinada a satisfazer as exigncias das cortes e,

    mxime, dos foroba-jon, os escravos pblicos, ou seja aqueles a servio das coroa;

    iii) por fim, os escravos atribudos exatamente ao foroba-jon. Destinados a reforar

    os exrcitos reais, eles constituem na realidade a verdadeira fora do faama,

    tornado assim a nova ton, a ton-jon que substitui a originria ton bandida. Entre os

    foroba-jon vem afinal escolhidos os temveis sofa, o corpo especial encarregado da

    guarda do palcio.

    O Estado guerreiro e o modo de produo que o substancia, projetam-se no solo

    com uma especfica organizao territorial. No entanto, as fronteiras do reino so

    indeterminadas e mveis, em relao fora da qual o faama pode dispor para

  • assegurar o seu poder. No interior do reino ento, mais que uma estruturao de

    tipo administrativo, afirma-se um ordenamento funcional das aldeias. Se o corao

    da bamanaya (a sociedade bambara) o faama, o eixo geogrfico do sistema

    obviamente Segu, a sede do soberano. Em redor da capital encontram-se aldeias

    onde so aquarteladas as guarnies dos escravos, e por isso, chamadas ton-jon.

    Cada um destas aldeias ton-jon circundada de pequenas aldeias de cultura

    (cikdugu), habitadas da horon e da jon (incluindo as mulheres, jonmuso),

    encarregados dos aprovisionamentos. Vem tambm as aldeias maraka, j

    mencionadas, algumas das quais, particularmente importantes como Sansanding,

    tm marakadugu como satlites (Togu, Busen) e tm tambm os seus especficos

    cikdugu. Aldeias mais destacadamente polticas, alm disso, e disseminadas em

    todo o corao do reino, so os dendugu (literalmente: aldeias dos filhos) onde so

    estabelecidos os princpios da linhagem real. Lembramos enfim as aldeias cujos

    chefes so especificamente designados pelo faama como seus representantes e

    que exercem assim certo poder sobre assentamentos circundantes.

    A importncia crescente dos jon no mbito da bamanaya, o aperfeioamento da kel

    como mquina produtiva que pode contar com dispositivos territoriais sempre mais

    funcionais, no fazem seno aumentar o mal-estar coletivo e a desagregao das

    instituies mandingas. Em um reino no qual a guerra "o destino de cada cfarin",

    de cada homem corajoso, livre ou escravo que seja, o soberano torna-se Kel

    Mansa, um polemarco;58 o espao poltico declina no mbito da exibio e de

    exerccio de um poder exclusivamente fanga. A legitimao fasiya, frente a qual at

    mesmo Samory mostrar respeito, vem colocada de fato fora do jogo da faamaya

    bambara que negligenciando o mtuo reconhecimento das fontes de legitimao,

    esvazia o cdigo mansal do ncleo mais resistente que por sculos garantiu a fora

    e a durabilidade da poltica.

    5. Entre guerra e poder: a territorialidade como instncia moral

    No horizonte cultural mand, o discurso sobre a guerra impacta-se com uma fora e

    uma complexidade realmente notvel. no signo da violncia, ainda que

    disciplinada, que se produz os grandes eventos e particularmente aqueles

    destinados a criar os quadros territoriais nos quais o homem mandinga pode

    conduzir serenamente a sua existncia individual e desenvolver plenamente o

  • prprio destino histrico. Dunya, o mundo terrestre, especifica-se progressivamente

    como casa do homem em primeiro lugar enquanto wula, depois enquanto dugu,

    finalmente enquanto mara: o Mand o lugar onde, precisamente, estas trs

    configuraes do espao geogrfico fundem-se harmoniosamente.

    Uma problemtica cosmopolitana reverbera-se no pensamento poltico e na concreta

    prtica social mand. No seio desta problemtica define- se processualmente a idia

    que existe um exerccio da violncia, e por extenso uma prtica blica, destinados

    a - e indispensveis para - fundarem uma territorialidade civil. A toro qual esta

    idia vem submetida dupla, ideolgica e histrica. sim verdade, com efeito, que

    existem guerras que podem "facilmente" definir-se "justas" (a guerra defensiva

    horoya kel, a guerra conduzida para prevenir os conflitos civis); igualmente

    verdadeiro, todavia, que tambm uma kel desencadeada por motivos

    expansionistas, do momento que se resolve pela difuso da ordem Mand - e,

    portanto, em uma ampliao daquela precios ssima qualidade geogrfica da

    superfcie terrestre que o mara - acaba por ser ideologicamente legitimada.

    Historicamente de resto - e estamos na segunda toro - viu-se como a autoridade

    faamaya pode erigir a ordem em valor absoluto - e a submisso total no seu

    corolrio eminente.59

    No Mand, uma cesura precisa distingue aquele que detm o poder e aquele que

    dele privado: o primeiro, fangatigi ou maratigi que seja, no s possui um atributo,

    mas sobretudo legitimamente habilitado a exercitar um poder; o segundo, por seu

    lado - fangatan, maratan - certamente desprovido do poder, mas, mais

    radicalmente, no tem ttulo para o seu legtimo exerccio.60 Por outro lado, a

    titularidade do tigi no esgota completamente a instncia profundamente moral

    contida nas express es que indicam o poder. Este ltimo, de fato, pode ser

    exercitado por quem tem direito no "modo justo", ou ento com abuso. Em tal caso o

    poder sancionado por uma marca negativa enquanto diagoya (coercitivo), diugu

    (errado), dialan (estril). Compete poltica, em definitivo, mediar entre os usos mais

    ou menos abertamente instrumentais a que se presta o discurso sobre a guerra,

    para impedir, em ltima instncia, que a territorialidade venha a ser reabsorvida

    alm cosmpole, em direo as configuraes mais primitivas e temveis do mundo

    humano.

  • Artigo recebido em 10/09/2005. Aprovado em 15/11/2005.

    1 Traduo de Francisco Vinhosa, a quem o autor agradece.

    2 TURCO, A. Strutture di legittimit nella territorializzazione malink del'Alto Niger

    (Rep. di Guinea). In: CASTI, E. & TURCO A. (org.). Culture dell.alterit. Il territrio

    africano e le sue rappresentazioni. Milano : Unicopli, 1998; TURCO, A. Legitimit et

    pouvoir: la recherche de l.espace politique dans l.Afrique mandingue. In: PITTE,

    J.R. & SAGUIN, A.L. (org.). Geographie et liberte. Mlanges em hommage Paul

    Claval. Paris: L.Harnattan, 1999. Expresso aqui um agradecimento s muitas

    pessoas que me ajudaram a compreender as concepes mandingas e as estreitas

    conexes que elas desenvolvem com a territorialidade: kumatigi, donso e srwa,

    dugutigi, dugukolotigi, almami (iman de aldeia), moba. Todos os estudiosos, os

    estudantes europeus e africanos que trabalharam comigo nas aldeias, ocupam um

    lugar especial em minha lembrana. Laye Camara, ao meu lado por um decnio no

    Mand, foi um autntico mediador cultural. O fio condutor da jali, a palavra

    musicada, acompanhou esta minha experincia de pesquisa: a partir das gesta de

    Fod Kaba cantadas por griot de Kolda, em Casamance (Senegal, 1983), passando

    por aquelas do reino de Kong interpretadas por msicos jula na longa noite de um

    casamento Senufo a Kohrogo (Costa do Marfim, 1986), para terminar com aquelas

    apocalpticas da destruio de Kansala cantadas por griot de Gabu e por suas duas

    mulheres (Guin Bissau, 2005). Em Kolda estava com Candida Ciaccio; em Kohrogo

    com Miriam Odd Ambrosetti: dedico este estudo s memrias delas e de Falaye

    Oular, dugutigi de Dalafilany (Guin Conakry), mestre de saberes bsicos

    tradicionais.

    3 Merece ateno: BAH, T.M. Architecture militaire traditionnelle et polioctique dans

    le Soudan Occidental du XVII la fin du XIX sicle. Yaound: CLE/ACCT, 1985.

    4 A atividade guerreira, de fato, torna-se o cerne de uma verdadeira formao social

    que, na perspectiva j indicada por J. Goody, atribui poltica um papel de mediao

    entre a atividade de produo e a atividades de destruio (GOODY, J. Technology,

    Tradition and the State in Africa. Cambridge: Cambridge UP, 1971).

    5 JANSEN, J. Epope, histoire, socit. Paris: Karthala, 2001, p.10 e seg.

  • 6 famlia mand pertencem diversas lnguas, entre as quais lembro o Malink, o

    Bambara e o Jula.

    7 Mali equivale linguisticamente a Mand, uma vez que tem o mesmo som do termo

    com o qual os Peul designam o Mand na lngua deles, o pulaar.

    8 Duguba quer dizer ainda "terra me" dado ao duplo significado de "ba" adjetivo

    (grande) e substantivo (me): uma ambivalncia no desprezvel.

    9 No mbito das classes livres, horon, a camada superior (os homens da terra, os

    camponeses: simplesmente bamana - ou seja bambara - em Segu) acompanha-se

    aquela inferior nyamakala, composta em castas destinadas prtica dos ofcios

    (numu, aqueles que trabalham o metal; karank, aqueles que trabalham as peles;

    kul, aqueles que trabalham materiais vegetais; maabo, os teceles) ou ao exerccio

    da palavra: musicada (jali) ou somente dita, cantada (fina). A elas se ope, no

    conjunto, a classe jon, escravos cujas condies, por outro lado, varia com o modo

    de aquisio e com a posio de ascendncia no estado de escravido. Se bem que

    relativamente autnomas no perfil delas, estas classes entretm relaes

    extremamente complexas, seja do ponto-de-vista funcional ou social e poltico. Por

    outro lado, se verdade que a supremacia horon inegvel, e protegida pelos

    valores da horonya, no certo que a liberdade assegure aos nyamakala uma

    posio social superior aos jon se recorda-se que estes ltimos, contrariamente aos

    primeiros, podem fazer tudo aquilo que fazem os horon, e dedicar-se ento, se os

    seus senhores desejarem, no s s atividades agrcolas, mas ainda ao comrcio e

    at mesmo ao ofcio das armas (prtica institucionalizada em grau mximo em Segu,

    como se ver).De qualquer forma, nyamakala e jon participam das caractersticas

    comuns da sociedade mandinga, assumem como referncia superior o horizonte

    axiolgio horon, caracterizado por um conjunto de valores morais entre os quais

    destacam-se o ardor no combate, o sentido da honra, a discrio, o respeito s

    convenes no comportamento em pblico, a altivez do prprio jamu, o nome de cl.

    10 o esprito que regula o Gbara, ou seja, a assemblia constituinte dos cls

    mandingas que se realizou na plancie de Kurukanfuga, nas cercanias de Kangaba.

    importante observar como a fixao mandinga aos valores comunitrios vm

    reafirmada no momento prprio no qual a cultura mansal atinge o seu pice com

  • Sundiata, que no por acaso assume o jamu de Keita, "aquele que pega todas as

    coisas", e, por conseguinte, o senhor de tudo (DIETERLEN, G. Myth e et

    organisation sociale au Sudan franais. Journal de la Socit ds Africanistes, v.1-2,

    p.40, 1955).

    11 Sobre este ponto, bastante delicado, remeto a: TURCO, A. Astres et dsastres:

    voyage dans la conflictualit pastorale autour du Parc Transfrontalier de la W

    (Burkina Faso-Bnin-Niger). Ponts, v.4, 2004.

    12 O "lugar poltico" organiza-se em estruturas que possam assumir fisionomias

    estatais ou imperiais e, portanto, mais ou menos complexas do ponto de vista

    administrativo. A estas formaes geogrficas antes inexistentes que marcam

    exatamente a qualidade poltica do territrio - se bem que de maneira no exclusiva

    - ,se conectam estreitamente com outras, de natureza econmica: trata-se dos

    circuitos de troca, que dizem respeito seja ao comrcio de curta-mdia, ou de mdia-

    longa ou de longussima distncia (transaariano, transocenico). Na realidade, as

    estruturas mercantis so em certa medida a origem mesma do processo que

    impulsiona no sentido de tornar autnoma a funo poltica na sociedade mandinga.

    Elas se alimentam dos influxos do Islam e tornam-se fundamentais para o

    funcionamento e a reproduo das estruturas mansais. Pode-se ver a este respeito

    os grandes afrescos de: MAUNY, R. Tableau gografique de l.Ouest africain au

    Moyen Age. Dakar: IFAN, 1961; PERSON, Y. Samory. Une rvolution dyula. Dakar:

    IFAN, 1968-1975 (principalmente T. I. cap. III e IV.). Mudando de perspectiva, temos

    uma breve sntese em: STEWART, M.H. The role of the manding in the hinterland

    trade of the Western Sudan: a linguistic and cultural analysis. Bulletin de l.I.F.A.N., T.

    41, sr.B, 2, 1979.

    13 PERSON, Y. Samory, p.85; o A. lembra como as vezes o prprio .senhor da

    terra. que preside a cerimnia de entronizao (p. 67).

    14 Se tivermos em conta as vrias e, s vezes, contrastantes tendncias que

    caracterizaram a geografia poltica do Mand a partir da crise do Mali, compreende-

    se como na realidade as coisas no so assim simples e as relaes entre fasiya e

    mansaya nem sempre so ntidas e cooperativas. assim que as duas fontes de

    legitimidade hierrquica devem ser consideradas como arqutipos entre os quais,

  • nas circunstncias locais e histricas, se estabelece um equilbrio que se nutre de

    ambigidade e amide de livres misturas. A autoridade fasiya, assim, pode ser

    invocada para reforar uma legitimidade mansaya sempre afligida pela precariedade

    institucional. Por sua vez, a autoridade mansaya pode servir para enfraquecer uma

    fasiya que, sendo muito forte, tende a fazer coincidir as duas ordens de legitimao

    em seu exclusivo benefcio. Fica, todavia, sublinhado como ambas as ordens de

    legitimao no so monolticas; ao contrrio, cada uma delas apresenta

    internamente fortes potencialidades flutuantes. Em particular quando estas

    assumem a forma do conflito, criam-se as condies tpicas nas quais fasiya e

    mansaya perdem as suas respectivas caracterizaes e tendem a anular-se uma a

    outra.

    15 No tomo aqui em considerao a conotao almamial da autoridade que, no

    ltimo Mand pr-colonial, indica uma componente religiosa do poder de matriz

    islmica (al-iman, o guia): Samory recebe sucessivamente o ttulo de keltigi (lder),

    faama e por fim lalmami. Daquele momento em diante (1874), tornando-se o chefe

    supremo dos exrcitos jula, ele no toma mais parte diretamente dos combates.

    (PEROZ, M.E. Au Sudan franais: souvenirs de guerre et de mission. Paris: Calmann

    Lvy, 1889, p.398 seg.

    16 CISSOKO, S.M. Formations sociales et Etat en Afrique pr-coloniale: approche

    historique. Prsence Africaine, v.127/128, 1983.

    17 Sobre esta diverso e os seus efeitos econmicos polticos e territoriais pode-se

    ver: TURCO, A. Geografie della complessit in frica. Interpretando il Senegal.

    Milano: Unicopli, 1986 (Em especial cap. 5 e 7).

    18 Que a tradio diz fundado em torno de 1240 por Tiramaghan, primo de Sundiata

    e certamente o mais poderoso entre os chefes (keltigi) do Mansa.

    19 Da robusta bibliografia sobre o Gabu quero realar ao menos: CARREIRA, A.

    Mandingas de Guin Portuguesa. Bissau: CEGP, 1947; CAROO, J.V. Monjur o

    Gabu e sua histria. Bissau: CEGP, 1948; MAN, M. Contribuition l'histoire du

    Kaabu ds origines au XIX s. Bulletin de l.IFAN, T. 40, ser. B, 1, 1978; Ethiopiques,

    28, 1981 (Nmero especial dedicado ao .Colloque international sur les traditions

    orales du Gabou.); NIANE, D.T. Histoire des mandingues de l'Ouest. Paris: Karthala,

  • 1989. Sobre as formaes polticas mand do extremo oeste africano veja-se:

    QUINN, C.A. The mandingo kingdoms of Senegambia. Evanston: Northwestern

    University Press, 1972. Entre os trabalhos em lngua italiana sobre o Mand

    ocidental ressalto: BELLAGAMBA, A. Ricordati di ieri. Torino: L.Harmattan Italia,

    2000.

    20 Kafo significa reunio, conselho e, por extenso, rea submetida a uma nica

    autoridade poltica.

    21 PERSON, Y. Samory, T. 1, especialmente cap. II.

    22 Ver, para se ter uma idia, a anlise de: SAMAK, M. Kafo et pouvoir lignager

    chez les Banmana. L.hgmonie gonkrbi dans les Cendugu. Cahiers d.Etudes

    Africaines, p.331-354, 1988.

    23 Jama significa grupo, multido, aglomerao de pessoas, reunies, assemblia,

    no dissociadas do lugar ocupado: por extenso, portanto, gente, povo, mas

    tambm regio, pas. Jamana indica, por conseqncia, o territrio sobre o qual

    vivem reunidas as gentes de..., o povo de...: quer dizer famlias e linhagens

    pertencentes ao mesmo cl ou a outros cls aliados com aquele dominante. Os

    membros deste ltimo como aqueles dos cls aliados, reconhecem-se pelo

    respectivo jamu, por isso mesmo o nome de origem do cl: Keita, o jamu de

    Sundiata e, portanto, do cl real, evidentemente o mais prestigioso.

    24 TURCO, A. Strutture di legittimit nella territorializzazione malink del'Alto Niger.

    25 Como observa Y. Person, "o conquistador no tinha em mira a subverso da

    ordem antiga... [a sua obra] dirigia-se, sobretudo, aos Mandinga e ele queria edific-

    la respeitando os valores tradicionais que se encarnavam no kafo" (PERSON, Y.,

    Samory, T. II, p.1018). Os mesmos dugukunnasigi, representantes dos keltigi

    instalados (sigi) nas novas unidades submetidas, no tinham poder algum na gesto

    poltica dos kafo, mas se limitavam a garantir algumas especficas competncias

    imperiais (ordem pblica, liberdade das relaes comerciais) e a fiscalizar o correto

    cumprimento dos compromissos assumidos pelos kafotigi no ato da submisso (por

    exemplo, cultivo do "campo do Almami" e contribuio alimentar, envio dos

  • contingentes militares anuais, organizao do recrutamento em massa no caso de

    invaso).

    26 Nodu o territrio externo aldeia sobre o qual esta ltima exercita a sua plena

    jurisdio: no nodu que, entre outros, desenvolve-se a agricultura, principal

    atividade mandinga, sobre o sn, quer dizer o conjunto dos campos cultivados ou

    em repouso.

    27 Nas diversas zonas do Mand encontram-se no posto de wula (wa) ou ao lado

    dele, outras designaes como: dan, fodo (foro), kongo (e derivados, como kongo-

    kolo, o espao selvagen, e kongo-kolo-ba).

    28 De fato, tudo aquilo que externo ao dugu permeado de uma fora misteriosa,

    .mgica., razo pela qual no se pode afastar da aldeia sem possuir de alguma

    forma o princpio desta energia (JOHNSON, J.W. The epic of Son-Jara, a West

    African Tradition. Bloomington: 1986, p.9 e seg. este o grande reconhecimento

    que Nar Maghan Konat, o padre de Sundiata, tributa aos mok Traor, os

    caadores por antonomsia, dizendo-lhes: .I Dansoko, I Dansoko. (Vs, que

    percorreis dan, o epao selvagem!). J. JANSEN. Epope, histoire, socit, p.114.

    Mok o antepassado legendrio da origem do jamu.

    29 No Alto Nger, os tipos de caas mais freqentes tm nomes giralisi e karobemasi

    (de curto raio de ao), watama e lampanatama (de longas distncias), fel (a

    grande expedio de caa).

    30 Os Traor so os primeiros ocupantes das regies de Kiri, Gagara, Do, que se

    tornaro em seguida o centro do imprio de Sundiata. Como lembra Y.T. Ciss, isso

    vale ao cl ttulos como o j lembrado dan soko (aqueles que penetram no espao

    selvagem: dan, como dito, a brousse), dan sira (caminho), dan suba

    (taumaturgos), dan ba (mes). CISS, Y.T. Notes sur ls socits de chasseurs

    malink. Journal de la Socit ds Africanistes, p.175, 1964.

    31 DELAFOSSE, M. Haut-Sngal-Niger. Paris: Maisonneuve et Larose. T. III,

    p.119.

    32 Sobre este tema remeto a: ZAHAN, D. Socits d.initiation bambara. Le N.domo,

    le Kor. Paris: Mouton, 1960.

  • 33 No universo cultual alto-nigerino reencontram-se, portadoras dos valores de

    unio e de purificao, Sanen e Kontron (Kondolon), as divindades do panteo

    cinegtico estudadas escala do Mand por: CISS, Y.T. La confrrie des

    chausseurs Manlink et Bambara. Ivry: Nouvelles du Sud: 1994.

    34 O juramento de iniciao, entre outros, compromete-se a respeitar a filiao da

    Sanen e Kontron e, portanto, a irmandade da donsoton acima de todas as outras

    (CISS, Y.T. Notes sur ls socits de chasseurs malink, p.182). O donso alto-

    nigerino, por seu lado, compromete-se .a servir Kondolon antes de seu pai.

    35 KESTELOOT, L. Le myth et l.histoire dans la formation de l'Empire de Sgou.

    Dakar: IFAN, 1980, p.527 e 580 seg.

    36 Com outro valor semntico, dunya, "este mundo" que se ope ao alm, lakira, o

    outro mundo.

    37 A elaborao provavelmente mais completa, ao menos na frica Ocidental, do

    conceito de um mundo colocado disposio dos homens, est presente na cultura

    baul onde o espao natural, expresso com o designador blo, vem a exercer um

    papel de interface entre uma anterioridade mundana pr-humana e um "depois" no

    qual o mundo humaniza-se graas ao processo de territorializao (TURCO, A.

    Terra ebrnea. Il mito, il luogo, la storia in frica. Milano: Unicopli, 1999).

    38 CAMARA, S. Les verger de l'aube. Bordeaux: Confluences, 2001.

    39 Como aquela, clebre, do mito narrado por: DIETERLEN, G. Myth e et

    organisation sociale au Sudan franais.

    40 Que, todavia, no mundo pr-humano tem um antecedente no fuulu faala, o

    espao que no ainda expandido (S. Cmara, op. cit., p. 148). No mito narrado por

    G. Dieterlen (p.43,) a expanso orientada pelos quatro pontos cardeais: Klebi

    (Oeste), Koro (Leste), Kanaga (Norte), Worodugu (Sul).

    41 TURCO, A. The Spaces of post-modernity: Reading the Readings. Bollettino della

    Societ Geogrfica Italiana, v.2, 2004.

  • 42 CISS. Y.T. & KAMISOKO, W. La grande geste du Mali des origins la

    foundation de l'Empire. Paris: Kartala, 1988. A citao est em: MEILLASSOUX, C.

    Anthropologie de l'esclavage. Paris: PUF, 1998, p.143 seg., surpreendentemente,

    todavia, parece que o autor aceita a tese que o Mali no tivesse sobrevivido ao seu

    fundador.

    43 CUOQ, J.M. Recueil des sources rabes concernant l'Afrique occidentale du VIII

    au XVIe sicle. Paris: CNRS, 1975, p.69.

    44 Propriamente a guerra dos filhos (den) do mesmo pai (fa): a guerra familiar.

    Evocamos aqui uma dialtica intra-linhagem que se registra tipicamente no quadro

    da senaya (poligamia) mandinga. Trata-se de uma dialtica que acaba por assumir

    um papel de grande importncia nos relacionamentos familiares e, por extenso,

    sociais: aquela entre fadenya e badenya. A primeira faz referncias as relaes

    entre irmos, precisamente filhos (den) de um mesmo pai (fa), mas de mes

    diferentes: trata-se de relaes que evocam competitividade, rivalidade e, por

    extenso, conflito. A segunda, ao contrrio, faz referncia s relaes entre irmos

    filhos de uma mesma me (ba) e de um mesmo pai e so afeioados ao

    entendimento e harmonia. Fica bem evidente, que esta dialtica projeta-se sobre o

    plano geogrfico em uma multiplicidade de escalas e, partindo do lu (a residncia da

    famlia extensa), investe toda a estruturao hierrquica: no s com aquela fasiya,

    portanto, mas tambm com aquela mansaya. Ela portadora de tenses e

    impulses mudana que seriam dever da funo ordenatria das instituies

    mandingas de levarem a cabo na presena de uma certa margem de flutuao.

    Todavia, J. Jansen observou como entre fadenya e badenya nem sempre a

    oposio clara: uma pode transformar-se na outra, por exemplo, quando se trata

    de fazer causa comum contra um parente mais longnquo (primo) (JANSEN, J. The

    younger Brother and the Stranger. Cahiers d.Etudes fricaines, 4, 1996, p. 659-688).

    Por outro lado, a correspondncia entre badenya e harmonia no de maneira

    alguma absoluta, j que o demba (o ncleo familiar formado por uma mulher e os

    respectivos filhos), sempre o lugar onde se manifesta a rivalidade entre kodo

    (primognito) e doko (caula). Cito ainda o fato de que para complicar o quadro

    intervm a biranya, que corresponde parentela por aliana, por ser ela importante

    no desenvolvimento das relaes sociais.

  • 45 atravs de sua autoridade sobre a gua que o Mansa, por no ser um kumatigi,

    um senhor da palavra, acaba sendo intimamente permeado dos poderes desta

    ltima. De fato existe um paralelismo entre a palavra e a gua como grandes

    princpios que modelam o mundo: o Nger, o grande rio que fundamenta a geografia

    dos mandingas, d ao mesmo tempo sentido a histria deles graas ao gnio que o

    habita, Faro, aquele que se enuncia e por isso mesmo senhor do ko, aquilo que vem

    dito.

    46 DELAFOSSE, M. Haut-Sngal-Niger, T. II, 1972, p.182-3.

    47 No por acaso o Mansa enumera entre os seus ttulos aquele de sanogo,

    cultivador, .uma vez que a personalidade daquele que no cultiva ou no sabe

    cultivar incompleta..(KONAR, O. La notion de pouvoir dans l.Afrique traditionnelle

    et l.aire culturelle manden em particulier. In: AKINJOGBIN, I.A. et al. Le concept de

    pouvoir em Afrique. Paris: Unesco, 1986, p.146).

    48 Descrevi este processo relativamente aos estados wolof em: TURCO, A.

    Geografie della complessit in frica, p. 139 seg. e 220 seg.

    49 De tegere, bandido, chamado tambm jado em Segu.

    50 BAZIN, J. Guerre et servitude Segou. In: MEILLASSOUX (dir.) L'esclavage em

    Afrique prcoloniale. Paris: Maspero, 1975, p.146 seg.

    51 Biton provoca de fato elementos de tenso, estende-se em direo a situaes

    de conflito, aps apresentase como pacificador. Veja-se o conto narrado por: BAZIN,

    J. Etat guerrier et guerres d.Etat. In: BAZIN, J. & TERRAY, E. Guerres de lignages et

    guerres d'Etats en Afrique. Editions des Archives Contemporaines, 1982, p.326-7; e

    tambm: BAZIN, J. La production d'un rcit historique. Cahiers d.Etudes Africaines,

    v.1-4, 1979.

    52 PARK, M. Viaggio verso il cuore dell'Africa. Firenze: La Casa Usher, 1990,

    specialmente cap. XXII. (e.o. 1799).

    53 De fato, os prncipes Ngolsi continuaro a inspirar uma resistncia dominao

    de Omar, a ponto que, em 1890, o coronel L. Archinard, ps em fuga as armadas de

  • Madani - filho de Ahmadou e, portanto, neto de Omar - conquista Segu e d um

    efmero poder ao faama bambara Kek Mari.

    54 BAZIN, J. Etat guerrier et guerres d'Etat. E tambm: ROBERTS, R.L. Warriors,

    Merchants and Slaves: The State and the Economy in the Middle Niger Valley, 1700-

    1914. Stanford: Stanford University Press, 1987

    55 BAGAYOGO S. Lieux et thorie du pouvoir dans le monde mand: pass e

    present. Cahiers ds Sciences Humaines, v.4, 1989

    56 So os marfalajon, os "escravos feitos por fuzis".

    57 Os Maraka so propriamente os mercadores (ou intermedirios) muulmanos,

    frequentemente, mas no necess riamente, de etnia Sonink. As suas aldeias -

    chamadas exatamente maraka - funcionam como praas especializadas, sobretudo,

    para venda dos jon.

    58 A frente do qual a faamaya bambara chega a conceber figuras redutivas como o

    delik mansa (suplicante) ou at mesmo como o mansamuso (mulher). (BAZIN, J.

    Etat guerrier et guerres d'Etat, p.325).

    59 por isto que se diz que, com o fim dos Kulibali, no existem mais homens livres

    em Segu e que todos os habitantes do reino so jon do faama. O Estado de Segu

    aparece, portanto, como uma espcie de comunidade familiar imensa, com um

    ncleo de homens livres . a famlia real . e uma massa desproporcional de jon,

    geridos no interesse de todos pelo faama: "a servido de Estado como uma servido

    privada generalizada". (BAZIN, J. Guerre et servitude Segou, p.165-6).

    60 Tigi (que pode contrair-se em ti) o senhor, possuidor, detentor e exprime uma

    indicao geral de comando: tan o despossudo.

    Todo o contedo do peridico, exceto onde est identificado, est licenciado sob

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