Sentido Trabalho Cooperativismo

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Psicologia & Sociedade; 19, Edição Especial 1: 75-83, 2007 75 OS SENTIDOS DO COOPERATIVISMO DE TRABALHO: AS COOPERATIVAS DE MÃO-DE-OBRA À LUZ DA VIVÊNCIA DOS TRABALHADORES Fábio de Oliveira Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, Brasil Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil RESUMO: O artigo, síntese de pesquisa apresentada como tese de doutorado, discute os sentidos do cooperativismo a partir de observações e de relatos de trabalhadores sobre suas vivências, sobre as relações de trabalho estabelecidas em suas cooperativas e procura construir uma crítica de viés psicossocial às cooperativas de mão-de-obra. Foram realizadas observações, conversas informais e 14 entrevistas semi-estruturadas em diversas cooperativas. Os aspectos mais impor- tantes de diferenciação presentes nas entrevistas referem-se a: formas distintas de participação nas diferentes coope- rativas; relação entre gestão da cooperativa e gestão do trabalho. Conclui que o sentido do cooperativismo nas coopera- tivas industrial e populares estudadas é marcado pelos dilemas próprios da autogestão, enquanto, na cooperativa de mão-de-obra, pela precarização do trabalho em relação ao vínculo empregatício tradicional. PALAVRAS-CHAVE: psicologia social; cooperativismo; produção de sentidos; relações de trabalho; autogestão; economia solidária. THE SENSES OF LABOR COOPERATIVISM: MANPOWER COOPERATIVES FROM THE STANDPOINT OF THE WORKERS’ LIVING EXPERIENCE ABSTRACT: This article, synthesis of a research presented as doctoral thesis, discusses the senses produced about the cooperativism taken from observations and the descriptions from workers about their living experiences on work rela- tions present in their cooperatives and tries to build a psychosocial critic concerning manpower cooperatives. It is based on observations, informal talks and 14 semi-structured interviews with cooperators from various cooperatives. The most important elements of differentiation in the interviews are: different ways of participation in different coope- ratives; cooperative management and work management relationship. It concludes that the sense of cooperativism from the industrial and popular cooperatives that were studied is marked by self-management dilemmas, while, at man- power cooperatives, it is marked by precarious conditions of work in relation to the traditional employment contract. KEYWORDS: social psychology; cooperativism; sensemaking; work relations; self-management; solidarity economy. Cooperativas de Trabalho e Cooperativas de Mão-de-Obra Temos assistido desde meados da década de 90 ao grande crescimento do número de empreendimentos econômicos denominados como cooperativas. Dentre os diversos tipos de novas cooperativas surgidas nesse período no Brasil (sejam elas de consumo, de crédito, de produção, de ser- viços etc.), destacam-se aquelas em que pessoas se reúnem para obter renda através da fabricação de produtos, de sua comercialização, da oferta de serviços ou, ainda, da venda da mão-de-obra de seus sócios a terceiros. Esse verdadeiro “surto”, nas palavras de Paul Singer (2004), de cooperativas é resultante das transformações da economia mundial e de suas decorrências para a dinâ- mica dos mercados de trabalho. Dentre essas decorrências, destacam-se a crescente demanda empresarial pela flexi- bilização dos vínculos de trabalho e o desemprego (Dowbor, 2002; Singer, 1998). As cooperativas que proliferam pelo país representam respostas de diferentes setores sociais às transformações que vivemos na economia e na sociedade. Se as empresas, na busca pela diminuição dos custos da aplicação do tra- balho humano, lançam mão, dentre outras coisas, da ter- ceirização, 1 inclusive por meio de cooperativas de mão-de- obra, os trabalhadores, por sua vez, tomam suas próprias iniciativas de luta pela sobrevivência, incluindo também a constituição de cooperativas, seja por meio da recupe- ração de empresas falidas ou em crise, seja pela reunião em torno de cooperativas populares no contexto da eco- nomia solidária (Singer, 2004; Singer & Souza, 2000). Embora abrigados sob a mesma denominação, esses empreendimentos apresentam diferenças que nos fazem pensar se é adequado considerá-los como fenômenos equi- valentes. Somam-se a isso as críticas que têm sofrido as cooperativas de mão-de-obra (Carelli, 2002; Lima, 2004; Singer, 2004) e a necessidade crescente de criação de cri- térios para identificar as cooperativas que efetivamente ferem a legislação trabalhista. Tanto o Ministério Público, quanto o Ministério do Trabalho e Emprego têm voltado suas atenções para as ge- nericamente chamadas cooperativas de trabalho. A com-

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O artigo, síntese de pesquisa apresentada como tese de doutorado, discute os sentidos do cooperativismo a partir de observações e de relatos de trabalhadores sobre suas vivências, sobre as relações de trabalho estabelecidas em suas cooperativas e procura construir uma crítica de viés psicossocial às cooperativas de mão-de-obra. Foram realizadas observações, conversas informais e 14 entrevistas semi-estruturadas em diversas cooperativas. Os aspectos mais importantes de diferenciação presentes nas entrevistas referem-se a: formas distintas de participação nas diferentes cooperativas; relação entre gestão da cooperativa e gestão do trabalho. Conclui que o sentido do cooperativismo nas cooperativas industrial e populares estudadas é marcado pelos dilemas próprios da autogestão, enquanto, na cooperativa de mão-de-obra, pela precarização do trabalho em relação ao vínculo empregatício tradicional.

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    OS SENTIDOS DO COOPERATIVISMO DE TRABALHO:AS COOPERATIVAS DE MO-DE-OBRA LUZ

    DA VIVNCIA DOS TRABALHADORESFbio de Oliveira

    Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, So Paulo, BrasilInstituto de Psicologia da Universidade de So Paulo, So Paulo, Brasil

    RESUMO: O artigo, sntese de pesquisa apresentada como tese de doutorado, discute os sentidos do cooperativismo apartir de observaes e de relatos de trabalhadores sobre suas vivncias, sobre as relaes de trabalho estabelecidas emsuas cooperativas e procura construir uma crtica de vis psicossocial s cooperativas de mo-de-obra. Foram realizadasobservaes, conversas informais e 14 entrevistas semi-estruturadas em diversas cooperativas. Os aspectos mais impor-tantes de diferenciao presentes nas entrevistas referem-se a: formas distintas de participao nas diferentes coope-rativas; relao entre gesto da cooperativa e gesto do trabalho. Conclui que o sentido do cooperativismo nas coopera-tivas industrial e populares estudadas marcado pelos dilemas prprios da autogesto, enquanto, na cooperativa demo-de-obra, pela precarizao do trabalho em relao ao vnculo empregatcio tradicional.PALAVRAS-CHAVE: psicologia social; cooperativismo; produo de sentidos; relaes de trabalho; autogesto; economiasolidria.

    THE SENSES OF LABOR COOPERATIVISM: MANPOWER COOPERATIVESFROM THE STANDPOINT OF THE WORKERS LIVING EXPERIENCE

    ABSTRACT: This article, synthesis of a research presented as doctoral thesis, discusses the senses produced about thecooperativism taken from observations and the descriptions from workers about their living experiences on work rela-tions present in their cooperatives and tries to build a psychosocial critic concerning manpower cooperatives. It isbased on observations, informal talks and 14 semi-structured interviews with cooperators from various cooperatives.The most important elements of differentiation in the interviews are: different ways of participation in different coope-ratives; cooperative management and work management relationship. It concludes that the sense of cooperativism fromthe industrial and popular cooperatives that were studied is marked by self-management dilemmas, while, at man-power cooperatives, it is marked by precarious conditions of work in relation to the traditional employment contract.KEYWORDS: social psychology; cooperativism; sensemaking; work relations; self-management; solidarity economy.

    Cooperativas de Trabalhoe Cooperativas de Mo-de-Obra

    Temos assistido desde meados da dcada de 90 ao grandecrescimento do nmero de empreendimentos econmicosdenominados como cooperativas. Dentre os diversos tiposde novas cooperativas surgidas nesse perodo no Brasil(sejam elas de consumo, de crdito, de produo, de ser-vios etc.), destacam-se aquelas em que pessoas se renempara obter renda atravs da fabricao de produtos, desua comercializao, da oferta de servios ou, ainda, davenda da mo-de-obra de seus scios a terceiros.

    Esse verdadeiro surto, nas palavras de Paul Singer(2004), de cooperativas resultante das transformaesda economia mundial e de suas decorrncias para a din-mica dos mercados de trabalho. Dentre essas decorrncias,destacam-se a crescente demanda empresarial pela flexi-bilizao dos vnculos de trabalho e o desemprego (Dowbor,2002; Singer, 1998).

    As cooperativas que proliferam pelo pas representamrespostas de diferentes setores sociais s transformaes

    que vivemos na economia e na sociedade. Se as empresas,na busca pela diminuio dos custos da aplicao do tra-balho humano, lanam mo, dentre outras coisas, da ter-ceirizao,1 inclusive por meio de cooperativas de mo-de-obra, os trabalhadores, por sua vez, tomam suas prpriasiniciativas de luta pela sobrevivncia, incluindo tambma constituio de cooperativas, seja por meio da recupe-rao de empresas falidas ou em crise, seja pela reunioem torno de cooperativas populares no contexto da eco-nomia solidria (Singer, 2004; Singer & Souza, 2000).

    Embora abrigados sob a mesma denominao, essesempreendimentos apresentam diferenas que nos fazempensar se adequado consider-los como fenmenos equi-valentes. Somam-se a isso as crticas que tm sofrido ascooperativas de mo-de-obra (Carelli, 2002; Lima, 2004;Singer, 2004) e a necessidade crescente de criao de cri-trios para identificar as cooperativas que efetivamenteferem a legislao trabalhista.

    Tanto o Ministrio Pblico, quanto o Ministrio doTrabalho e Emprego tm voltado suas atenes para as ge-nericamente chamadas cooperativas de trabalho. A com-

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    preenso do Ministrio Pblico de que a venda demo-de-obra pelas cooperativas de trabalho caracterizaburla legislao trabalhista, pois a relao estabelecidacom o comprador equivale relao de assalariamento.Por sua vez, o Ministrio do Trabalho e Emprego temprocurado criar critrios para diferenciar as cooperativasexistentes e evitar que cooperativas efetivamente geridaspelos prprios trabalhadores sejam perseguidas injusta-mente. Segundo Singer (2004):

    A fiscalizao e o ministrio pblico, na verdade,tentam distinguir entre cooperativas de trabalho ecooperativas que chamam de mo-de-obra. As coope-rativas de trabalho seriam as que vendem o produtodo trabalho dos membros, desde que seja feito commeios prprios de produo e em recinto da coope-rativa. As cooperativas de mo-de-obra seriam asque vendem o produto do trabalho (servio) feitocom meios de produo e no local do comprador(p. 2).

    Na diferenciao sugerida acima entre cooperativas detrabalho e cooperativas de mo-de-obra, Paul Singer (2004)toma como ponto de partida o modo como a atividade detrabalho realizada e enfatiza o maior ou menor grau dedependncia dos cooperados em relao ao compradordos produtos ou dos servios da cooperativa. Em outrostermos, refere-se ao maior ou menor grau de autonomiae de controle dos trabalhadores sobre seu prprio trabalhoe sobre a gesto da cooperativa.2

    Lima (2004) faz, por sua vez, a distino entre doisgrupos de cooperativas, dividindo-as entre pragmticase defensivas:

    No primeiro grupo, esto as cooperativas pragmti-cas (que podem incluir as chamadas falsas coopera-tivas ou cooperfraudes), que funcionam terceirizadaspara empresas e, em geral, foram organizadas poressas mesmas empresas, ou ainda, integram progra-mas estatais de gerao de renda, desvinculadas dosprincpios do movimento cooperativista. No segundogrupo, as cooperativas defensivas, formadas apartir de movimentos de trabalhadores para manu-teno do emprego em fbricas em situao falimentar,ou de programas governamentais de gerao de ren-da para populaes pobres. Estas so apoiadas porsindicatos, ONGs e instituies da sociedade civil eenquadram-se na proposta de economia solidria,na qual os valores da autogesto dos trabalhadores,o combate ao desemprego e o desenvolvimento sus-tentvel so norteadores (p. 46).

    A diferenciao feita por Lima (2004) enfatiza as ori-gens e as razes que levaram formao dos empreendi-mentos. De um lado, cooperativas que visam facilitar aterceirizao da mo-de-obra e s quais se adere pragma-ticamente, de outro, cooperativas que enfatizam os valoresda autogesto e representam a defesa de interesses emcomum dos trabalhadores.

    Como Singer (2004), Lima (2004) tambm aponta parao risco da dependncia das cooperativas, pragmticas oudefensivas, em relao s empresas contratantes (p. 57).Se, de acordo com Singer, possuir meios prprios deproduo e realiz-la em recinto da cooperativa garantemaior independncia dos trabalhadores em relao aosseus clientes, um nmero restrito de clientes e a dife-rena de poder econmico entre estes e a cooperativa,por exemplo, tambm podem ser um elemento limitadorda defesa de seus interesses legtimos no momento dasnegociaes (Lima, 2004).

    Deve-se ainda acrescentar a essa discusso, mesmo quebrevemente, uma distino entre a comercializao deservios e a venda de mo-de-obra. Prestar servios sig-nifica oferecer uma atividade pontual com comeo, meioe fim (um corte de cabelo, a manuteno de um jardimetc.) a um cliente. Comprar mo-de-obra significa dispordas horas de trabalho de algum, mesmo que essas horassejam utilizadas ou no para a finalidade contratada. Poresse caminho, os trabalhadores que produzem no local docontratante e com os meios fornecidos por este no estovendo os produtos que fabricam. Tambm no esto ven-dendo um servio, pois o contratante dispe de seu tempo,quer o trabalho acontea ou no. O que vendem to so-mente a sua fora-de-trabalho, mercadoria que, porsinal, tem sua comercializao rigorosamente reguladapela Consolidao das Leis do Trabalho (CLT). Uma coope-rativa de servios no pode, portanto, ser equiparada auma cooperativa de mo-de-obra. E esta ltima se dife-rencia das outras cooperativas de trabalho (produo, ser-vios) justamente pelas razes expostas.

    Embora as distines entre as cooperativas de trabalhode um modo geral e as cooperativas de mo-de-obra pare-am significativas, h ainda poucos estudos que detalhemessas diferenas e que discutam suas implicaes para ostrabalhadores e para as relaes cotidianas de trabalhoconstitudas no interior desses empreendimentos.

    A partir de um olhar da psicologia social preocupadacom os processos cotidianos (Sato, 2002a; P. K. Spink,1996) e com a produo de sentidos (M. J. P. Spink, 1999,2004) caberia perguntar: o que a vivncia dos trabalha-dores cooperados e as relaes cotidianas de trabalho po-dem nos revelar sobre os tipos de cooperativas que vmse construindo no Brasil? No caso especfico das coope-rativas de mo-de-obra, o que dizer do tipo de trabalhoque oferecem em comparao com o trabalho assalariadodas empresas tradicionais? Em que condies o cooperati-vismo pode significar emancipao dos trabalhadores edemocratizao do direito de empreender? E, afinal, quetipo de cooperativismo queremos?

    Considerando-se as diferentes origens das cooperativasem atividade no pas, os vrios interesses envolvidos emsua criao, a necessidade de formulao de critrios que

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    identifiquem distores da legislao trabalhista e as impli-caes dessa discusso para o campo da economia solid-ria e do cooperativismo, empenhamo-nos, assim, em iden-tificar os elementos de diferenciao das cooperativas detrabalho e refletir mais especificamente sobre as peculia-ridades, dentro desse quadro, das cooperativas de mo-de-obra.

    Metodologia

    A interrogao pelos sentidos localmente construdosconvida o olhar para os modos pelos quais diferentes ele-mentos so articulados no interior de situaes materiaise sociais especficas (Latour, 2005), interessando muito aparticularidade dessa articulaes.3 Conforme M. J. P.Spink (2003):

    A ateno assim fixada nas conexes parciais: osmateriais, as socialidades e as histrias que conta-mos sobre eles so como retalhos costurados em umacolcha; como h muitas linhas possveis e muitastramas, a ateno se desloca para os modos locaisde costura (p. 4).

    Seguindo esse caminho terico-metodolgico, pro-curou-se compreender o sentido que assume cada tipo decooperativa em razo do contexto em que se inserem e dasrelaes cotidianas de trabalho estabelecidas em seu inte-rior a partir da perspectiva dos prprios trabalhadores.

    Para essa finalidade, foi realizado trabalho de campoque envolveu a insero do pesquisador no contexto docooperativismo,4 envolvendo contato com associaes einstituies de fomento de cooperativas, anlise de do-cumentos, visitas a cooperativas e conversas informaiscom seus scios. Como parte desse trabalho de campotambm foram realizadas 14 entrevistas com cooperadosde trs tipos de empreendimentos cooperativos: uma coope-rativa de mo-de-obra (quatro entrevistas), uma coopera-tiva industrial (trs entrevistas) e sete cooperativas popu-lares (sete entrevistas). Desse modo, a anlise apresentadaa seguir, embora dedique sua ateno s conversas grava-das, faz isso no contexto de um conjunto maior de relatose de experincias.

    As entrevistas foram semi-estruturadas, isto , foramorientadas por questes abertas que versavam sobre ohistrico da insero do entrevistado na cooperativa, asatividades de trabalho, a gesto da cooperativa, as relaescotidianas de trabalho e a comparao com as empresastradicionais. Elas foram orientadas pela busca de exem-plos do cotidiano, vividos pelos entrevistados e recons-trudos pela memria.5

    A partir dessas conversas e observaes, apresentadaa sntese a seguir, na qual se cotejam elementos de diver-sas ordens, materialidades e socialidades (Latour, 2005;P. K. Spink, 2003), que concorreram para a montagemdas diferentes verses do cooperativismo.

    As categorias de anlise foram definidas a partir dacomparao das entrevistas e visam, atravs do contraste,evidenciar as diferenas entre os sentidos localmente pro-duzidos. No pretendemos, de modo algum, esgotar nesteartigo essas diferenas e tampouco fazer generalizaesindevidas, o que significa que no se afirmar a seguirque as cooperativas em geral so de uma ou de outra ma-neira, mas que, atravs dos casos estudados, encontramoselementos que tm alguma chance de entrar na composi-o peculiar de arranjos locais de outras cooperativas(Becker, 1999; Yin, 2001). A pergunta que se tenta res-ponder : que elementos podem concorrer para a composi-o de diferentes arranjos locais ou de diferentes modoslocais de costura?

    Comecemos por conhecer as cooperativas estudadas.

    Pragmtica e DefensivasA cooperativa de mo-de-obra estudada fornece fun-

    cionrios para vrias instituies de sade. Os entrevista-dos dois auxiliares de enfermagem, uma psicloga e umaterapeuta ocupacional trabalham todos em um mesmohospital (objeto de diversos estudos e projetos de nossaequipe). Nesse estabelecimento, a maioria dos trabalha-dores so scios dessa mesma cooperativa.

    A adoo de mo-de-obra terceirizada foi resultado dacrise financeira do hospital. O ingresso em uma grandecooperativa de mo-de-obra pr-existente e estranha aostrabalhadores foi a condio para que mantivessem suacondio de empregados. A cooperativa, em seu papel,limita-se a fazer essa mediao.

    A cooperativa industrial (objeto de vrias visitas, mui-tas conversas informais e trs entrevistas gravadas) umaempresa do ramo metalrgico, cujo comando foi assu-mido pelos trabalhadores aps uma longa crise. A trans-formao da empresa em cooperativa contou com o apoiodo poder pblico e do movimento sindical local. Parte dopatrimnio da metalrgica foi entregue aos trabalhadorescomo pagamento de encargos trabalhistas.

    O destino da empresa durante a crise foi objeto delongas discusses e assemblias. Foram consideradas v-rias possibilidades, das quais saiu vitoriosa a tomada decontrole da fbrica atravs da sua posse por uma coope-rativa formada pelos trabalhadores, os quais, passado oprimeiro momento de incertezas, tm feito investimentose expandido a produo.6

    As sete cooperativas populares estudadas so empreen-dimentos formados a partir de um conjunto de polticasde gerao de emprego e renda da Prefeitura Municipalde So Paulo e amparados por incubadoras universitriasou outras entidades dedicadas ao fomento da economiasolidria.7 Elas surgiram a partir da reunio de bolsistasem torno de um curso de cidadania e economia solidriarealizado ao longo de seis meses.

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    A deciso sobre a diviso dessas pessoas em coopera-tivas de diferentes ramos de atuao foi tomada por elasprprias, considerando-se suas experincias de trabalho,seus interesses e as possibilidades de qualificao profis-sional oferecidas pela prefeitura municipal. Desse pro-cesso surgiram os empreendimentos populares estudados,que englobam cooperativas de alimentao, de costura, deservios diversos e de reciclagem, reunindo, em torno deatividades de produo artesanal ou de prestao de ser-vios, pessoas em situao de pobreza.

    A prosperidade encontrada na cooperativa industrialno foi constatada aqui, ao contrrio, essas cooperativaspopulares ainda no eram capazes de constituirem-secomo a principal fonte de renda de seus scios. Essa nonecessariamente a realidade de outras cooperativas popu-lares formadas pela mesma poltica municipal. Alm dasvisitas e das conversas informais, foram gravadas entre-vistas com um cooperado de cada um dos sete empreen-dimentos estudados.

    Em maior ou menor grau, o ingresso em uma coope-rativa significou a constituio de um projeto coletivo ede um negcio prprio para os scios da cooperativa in-dustrial e para os das cooperativas populares. Ao passoque o ingresso dos trabalhadores do hospital na coopera-tiva de mo-de-obra revelou-se como apenas um meio paramanterem uma condio semelhante anterior, a de fun-cionrios em um empreendimento pertencente a outrem.O carter defensivo das primeiras e o carter pragmticoda ltima j se esboam nesse momento.Gesto da cooperativa e gesto do trabalho

    Um aspecto essencial na comparao dos empreendi-mentos estudados foi a relao existente entre, de um lado,a cooperativa e, de outro, o espao de trabalho ou, dito deoutro modo, a relao entre a gesto da cooperativa em sie a gesto das atividades de trabalho. Nos relatos dos tra-balhadores da cooperativa de mo-de-obra, observa-se aseparao entre a vivncia como scios de uma coopera-tiva e a vivncia como trabalhadores de um hospital, sejapela separao espacial, seja pelo fato de a condio descio da cooperativa no interferir diretamente nas rela-es que estabelecem como funcionrios e como subor-dinados no dia-a-dia de trabalho. O hospital gerido hierar-quicamente maneira de um hospital tradicional e a coope-rativa, sempre distante de seus scios, objeto de umagesto profissional da qual a grande maioria dos sciosno participa. O depoimento abaixo ilustra a vivncia dessaseparao:

    Mas a cooperativa fica muito de fora, muito dis-tante do nosso dia-a-dia, tanto que eu no me sintocooperativa, sabe? Eu sou como se fosse funcion-ria, no me sinto fazendo parte das decises (Priscila).

    Ao contrrio, nas outras cooperativas (a industrial e aspopulares), o espao da cooperativa confunde-se com o

    espao de trabalho. Decises relacionadas cooperativamesclam-se quelas relacionadas ao trabalho em si. Mes-mo na cooperativa de servios estudada na qual os tra-balhadores se deslocam at os clientes para realizar servi-os de jardinagem, construo civil etc. , a cooperativa sempre uma referncia para os trabalhadores, pois olocal de onde partem para realizar suas atividades diriase onde os prprios scios negociam com os contratantes.

    A distncia de que se fala aqui, portanto, no apenasa da separao fsica entre o lugar em que se trabalha e olocal onde est estabelecida a cooperativa. Trata-se prin-cipalmente da distncia entre, de um lado, os trabalhado-res e, de outro, a gesto tanto da cooperativa, quanto dotrabalho, a distncia do trabalhadores em relao ao go-verno de cada uma dessas instncias.

    Assemblias e NegociaesAs assemblias tambm so um elemento que reflete

    a maior ou menor distncia entre os trabalhadores e a ges-to, segundo constatamos:

    Na cooperativa industrial e nas cooperativas popu-lares estudadas, as reunies e as assemblias so es-paos importantes de discusso e de deciso, mesmoque nem todos os cooperados participem assidua-mente delas. O eventual esvaziamento depende doteor dos temas que sero debatidos e votados, masas assemblias so sempre soberanas em suas deci-ses, que abarcam, desde a escolha de representantesat decises relativas a negcios, como aprovaode contratos, compra de equipamentos e investimentos(Oliveira, 2005, p. 76).

    Por seu turno, as assemblias, na vida dos cooperadosda cooperativa de mo-de-obra, ocupam um outro lugar.Segundo os entrevistados, elas so pouco freqentes, acon-tecem em local distante do hospital e, em geral, duranteo horrio de trabalho. Alm desses impedimentos, os en-trevistados no encontram muitos motivos para participar,pois as assemblias so um acontecimento distante desuas vidas como trabalhadores. Ldia, uma auxiliar de en-fermagem, relata:

    [Voc fica sabendo como foram as assemblias?] Comoeu te falei, nunca participei, no posso te dizer comofuncionam essas assemblias, eu nunca pude ir at l[Algum que trabalha aqui com voc j participou?]Dos funcionrios, no. Normalmente, a gestora8 par-ticipa. Ela tem que participar todo ms... [E ela re-passa alguma informao de l para vocs?] Pessoal-mente, no. Ela deixa sempre no mural o que foi ditona assemblia, coloca no painel, quem tiver inte-resse vai l e olha.

    Nos depoimentos encontram-se diversos relatos de con-flitos e de processos de negociaes micropolticas (Sato,2002b). Os diferentes planos em que eles acontecem re-velam diferenas importantes entre as cooperativas estu-dadas.

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    Nas cooperativas populares e na cooperativa indus-trial, segundo os relatos, os conflitos e as negociaesocorriam habitualmente nos espaos coletivos de deciso(formais, como as assemblias e as comisses, ou infor-mais), isto , as negociaes ocorriam no plano das rela-es horizontais, as relaes diretas entre os scios. Porsua vez, na cooperativa de mo-de-obra, os conflitos e asnegociaes descritas pelos entrevistados aconteciam noconfronto com uma instncia exterior de poder (Clastres,1978), seja a direo do hospital, seja o grupo de gestoresda cooperativa localizados fora do hospital. No depoi-mento de Priscila essas relaes verticais ficam bastanteevidentes:

    Eu acho que as pessoas acabam tendo um outro chefe,sabe? Tendo dois, na verdade! Tendo o daqui e tendoa cooperativa... no fica uma coisa apropriada. Eusinto assim, acho que no tem muito para falar decomo funciona l, a no ser esse jeito como eu viven-cio a relao com a cooperativa... E, assim, na ver-dade, a gente tem eu no sei se essa coisa de fun-cionrio e seu patro , mas a gente tem uma vivnciacom relao cooperativa que de que se voc no fi-car esperto, voc vai ser passado para trs, entendeu?

    Identificam-se assim nessa anlise dois plos de dife-renciao entre as cooperativas de trabalho (de produoe de servios) e a cooperativa de mo-de-obra estudadas:o das negociaes horizontais (dos trabalhadores entre si)e o das negociaes verticais (dos trabalhadores contrauma instncia exterior de poder). Isso se reflete, por exem-plo, no uso dos pronomes ns e eles entre os traba-lhadores do hospital: a direo do estabelecimento e tam-bm a cooperativa de mo-de-obra so sempre referidascomo eles e em oposio a ns, os funcionrios.

    Autonomia e ResponsabilidadesA idia de autonomia presente nos discursos varia

    segundo o tipo de cooperativa. Nas cooperativas popula-res e na industrial, autonomia aparece mais fortementecom o sentido de trabalhar sem chefe (sem uma instnciaexterior de poder) e de atuar com outros, mesmo que exis-tam dificuldades nesse tipo de funcionamento, ao passoque, na cooperativa de mo-de-obra, o sentido de auto-nomia aponta para outra direo: o cada um por si.

    [P]ois seu sentido refere-se mais falta de vnculoentre o cooperado e a empresa contratante do quea alguma possibilidade de determinar e influenciaro prprio trabalho. Nesse cada um por si que,vale dizer, descarta qualquer apreo pela coopera-o , a autonomia um solitrio desamparo (Oli-veira, 2005, p. 97).

    Temos, assim, de um lado, a autonomia como a supe-rao coletiva da subordinao, sentido prximo ao pro-posto por Castoriadis (1982). De outro, o abandono aosolipicismo e, portanto, um distanciamento do sentido

    de autonomia: nesse contexto ela no significa agir porleis prprias, mas no ter vnculos.

    Os tipos de responsabilidades demandadas dos traba-lhadores em seu cotidiano tambm apresentaram variaesrelevantes. Essas convocaes do grupo em relao aseus membros compareceram s entrevistas de diferentesformas, como, por exemplo, atravs das queixas dos en-trevistados em relao a seus colegas. De um lado, noscontextos em que os cooperados vivenciam a experinciade serem scios de fato, eles so convocados a serem res-ponsveis pelos seus empreendimentos, a no se compor-tarem mais como funcionrios, tendo responsabilida-des para com os outros scios e sendo cobrados por isso.9Note-se que tudo isso no est livre de ambigidades e deconflitos.

    Diferentemente, responsabilidade na cooperativa demo-de-obra estudada aparece, em geral, como algo quepoderamos chamar de responsabilidade pela prpria car-reira, o que decorre do cada um por si descrito acima:o peso que sentem no do compromisso com os outros,dos rumos de seu destino em comum, mas das responsa-bilidades que so forados a assumir sozinhos em virtudeda precariedade de seu vnculo com o hospital.

    Casamento ou DescompromissoUm dos entrevistados da cooperativa industrial descre-

    veu seu vnculo com a cooperativa como semelhante a umcasamento. A comparao refere-se especialmente estabilidade do vnculo entre os cooperados e dificul-dade de expulso de um scio, mas tambm aos conflitosque caracterizariam, em sua opinio, um relacionamentofamiliar. A mesma idia de estabilidade do vnculo de tra-balho apareceu nas outras entrevistas com scios dessa em-presa e com vrios dos membros das cooperativas popu-lares.

    Por sua vez, os trabalhadores da cooperativa de mo-de-obra, que se reconhecem como trabalhadores autno-mos, como veremos a seguir, descreveram um tipo derelacionamento com a cooperativa que seria melhor no-meado como descompromisso (algo bem diferente daimagem de um casamento). A fala de Ldia esclareceesse tipo de desprendimento:

    Se est me agradando, eu fico, se no est me agra-dando tambm, eu pego e vou embora, como muitagente faz... nem d uma satisfao: no vem mais apartir de amanh. [Porque no tem um contrato de...]No tem nada que te prenda e nada que nos prendaa eles tambm. Isso eu digo, com os hospitais. Masse eu quiser me desligar da cooperativa, simplesmenteeu chego l e falo olha, eu, a partir de hoje, noquero mais ser scio-cooperado de vocs e eles medevolvem a cota-parte... eu me desligo da coopera-tiva e eu no tenho mais vnculo nenhum com ela.

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    A idia de casamento deriva do exerccio pleno dacondio de scio e do envolvimento do trabalhador como funcionamento da cooperativa. A impossibilidade dedemisso de um cooperado e a partilha tanto do valorproduzido, quanto dos prejuzos reforam a idia de esta-rem no mesmo barco e, ao mesmo tempo, apresentamsua condio como muito diferente da condio de em-pregado. O descompromisso descrito na cooperativa demo-de-obra, por sua vez, aponta para o sentido oposto.

    Repdio subordinao ou... saudades da CLTNas cooperativas populares com que tivemos contato

    e, especialmente, na cooperativa industrial mesmo le-vando-se em conta as nuances com que isto se apresenta pode ser reconhecido um forte sentimento de repdio subordinao. Os entrevistados, quando perguntados sevoltariam a trabalhar como assalariados em empresas tra-dicionais, responderam, no caso da cooperativa industrial,que prefeririam trabalhar por conta prpria a retornar aocabresto (nas palavras de um dos entrevistados), isto ,negam-se a voltar ao trabalho heterogerido, vivncia desubordinao, ao vnculo empregatcio; os trabalhadoresdas cooperativas populares, em geral, tambm se ressen-tiam das figuras do patro e do chefe, mas, em algunscasos, admitiram a possibilidade de retornar ao trabalhoassalariado, tendo em vista que suas cooperativas aindano lhes garantiam o sustento.

    Algo bem diferente foi enunciado pelos trabalhadoresda cooperativa de mo-de-obra. Sua maior aspirao erajustamente retornar ao trabalho assalariado com carteiraassinada e com todos os direitos garantidos pela CLT. Caio,um auxiliar de enfermagem que trabalha em dois hospi-tais, com vnculos diferentes em cada um, exemplificaessa aspirao:

    claro que eu vou escolher outra CLT... do que ficartrabalhando numa cooperativa, entendeu? Eu traba-lho, assim, porque no momento estou em outro CLT,entendeu? Eu no arranjei outro, n, no conseguioutro CLT, ento, estou na cooperativa.

    A enunciao dessa preferncia acompanhada pordiversas queixas em relao ao trabalho no hospital atra-vs da mediao da cooperativa de mo-de-obra: no hfrias, no h dcimo terceiro salrio, no h fundo degarantia, falta a segurana oferecida pela carteira assinada.

    Se, na primeira situao, o modo como o mundo seapresenta aos cooperados permite uma vivncia de supe-rao da subordinao e a construo gradual da conscin-cia de ser parte de um empreendimento coletivo no qualtm voz, na cooperativa de mo-de-obra, a semelhanaentre o trabalho como cooperado e o trabalho assalariadocria uma outra situao: ser cooperado na cooperativa demo-de-obra s no equivalente a ser trabalhador assa-lariado por ser pior. O trabalho na cooperativa de mo-de-

    obra vivido como mais precrio que aquele regido pelaCLT.

    Scios-trabalhadores e empregados precriosOs relatos dos entrevistados permitiram reconhecer

    diversas nuances nos sentidos do cooperativismo presen-tes nos empreendimentos estudados. Apesar das peculia-ridades de cada cooperativa e sem negar as referidasnuances, no entanto, um claro contraste foi constatadoentre, por um lado, as cooperativas populares e a coope-rativa industrial e, de outro, a cooperativa de mo-de-obra.O que pode ser depreendido dos elementos discutidosacima.

    Essa oposio evidencia-se em vrios aspectos e podeser sintetizada quando so comparadas duas vivnciasmuito distintas, apreendidas das falas dos entrevistados:a de scio-trabalhador e a de, em nossas palavras, empre-gados precrios.

    Enquanto scios-trabalhadores,10 condio que carac-teriza o trabalho associado,11 os entrevistados da coopera-tiva industrial e das cooperativas populares se reconhecemduplamente, com maior ou menor intensidade e clareza,como empreendedores (sentem-se scios em um negciocoletivo e ao mesmo tempo seu) e como produtores, isto, como trabalhadores. Vivenciam isso pela proximidadecom a gesto e pelas preocupaes que tm que ter simul-taneamente com o negcio e com o cotidiano da produ-o, gostem disso ou no.

    Por sua vez, os trabalhadores da cooperativa de mo-de-obra, como j vimos, no vivem como uma unidadeessas duas dimenses de suas vidas. A experincia de scioda cooperativa separada da experincia de ser trabalha-dor. Na falta de melhor designao, os trabalhadores dohospital estudado referem-se ao seu vnculo de trabalhocomo semelhante ao do trabalhador autnomo. Mas asemelhana est unicamente na inexistncia de vnculoempregatcio entre o scio, de um lado, e a cooperativa ouo hospital, de outro. Ldia esclarece esse aspecto ao conta-nos sobre sua entrada na cooperativa:

    Eles fazem voc assistir uma palestra, voc participapara saber quais so os direitos numa cooperativa que no so muitos a nosso favor... e explicamum pouco o que um sistema de cooperativismo... Emprimeiro lugar, eles deixam bem claro que voc notem nenhum vnculo empregatcio com eles, voc tra-balha como autnomo. E, sendo autnomo, voc notem direito a fundo de garantia, dcimo terceiro,frias, nenhum dos outros benefcios que um CLTteria. Benefcios como vale-transporte, cesta bsica,licena mdica, voc no tem direito. A no ser quevoc queira, a paga por fora e eles descontam dasua folha de pagamento porque voc est pagando.

    Sua condio e a de todos os seus colegas , na prtica,a de funcionrios sem vnculos quaisquer com a em-

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    presa, portanto, so como os empregados de outros hos-pitais, mas vivem uma situao mais precria. A mediaoda cooperativa de mo-de-obra apenas legaliza esse tipode vnculo. Todos eles esto muito distantes de se reco-nhecerem como scios de um negcio em comum e daspreocupaes que caracterizam essa condio.

    Consideraes Finais

    No se pretendeu no espao destas pginas esgotar asdiferenas entre as cooperativas estudadas nem ofereceruma descrio exaustiva de cada um dos casos. O con-junto dos elementos apresentados foi bastante para apon-tar, pelo contraste, as diferenas importantes entre os em-preendimentos estudados e seus peculiares modos locaisde costura, o que era justamente o nosso objetivo.

    A pesquisa identificou alguns dos eixos diferenciadoresdas cooperativas estudadas e pesquisas futuras podero nosmostrar se so eles realmente os mais importantes e se sotambm relevantes para a compreenso de outros casos.

    Localizadas em posies opostas em cada um desseseixos, como se procurou demonstrar nos pargrafos aci-ma, parece-nos razovel afirmar que do ponto de vistadas vivncias, das relaes cotidianas de trabalho, do fun-cionamento dos empreendimentos e das suas prticas degesto a cooperativa de mo-de-obra estudada diferen-cia-se substancialmente das cooperativas de trabalho comas quais foi comparada (a cooperativa industrial e as setecooperativas populares analisadas).

    Assim, o estudo dos casos sobre os quais nos debrua-mos reafirma as preocupaes de Lima (2004) e de Singer(2004) em relao necessidade de no se tomar o con-junto das cooperativas que oferecem trabalho a seus asso-ciados como um todo homogneo. luz do presente es-tudo, faz sentido distinguir as cooperativas de mo-de-obradas cooperativas de trabalho sem colocar as primeirascomo um caso particular das segundas , bem como nome-las como pragmticas em oposio s cooperativas de ca-rter defensivo.

    Os eixos que diferenciam esses dois tipos de coopera-tivas, do ponto de vista da anlise psicossocial por nsempreendida e em relao aos casos que estudamos, soaqueles que norteiam a composio de diferentes vivncias,as quais puderam ser agrupadas em dois tipos: as vivnciasde scio-trabalhador e de funcionrio precrio.

    Esses eixos, tomando de emprstimo as idias de Latour(2005),12 referem-se a elementos de diversas ordem quese articulam de modo a produzir a estrutura do mundo talqual se apresenta a cada um desses grupos de trabalhadores.

    A razo de ser da cooperativa de mo-de-obra estu-dada, retomando a conceituao de Lima (2004), decarter pragmtico: ela existe para permitir que o hospi-tal possa contratar funcionrios de forma flexvel e com

    menor custo e no h nessa sua origem qualquer tentativade mudar a forma de gesto do hospital ou de entregar seucontrole aos trabalhadores. A adeso dos trabalhadores igualmente pragmtica: associam-se, no por desejarempertencer a um empreendimento cooperativo e autogeridonem por aspirarem estar frente de um negcio prprio,mas por no terem outra opo e l permanecem at con-seguirem ocupao melhor. Do mesmo modo, desta vezretomando Singer (2004), a realizao do trabalho norecinto do comprador do produto da cooperativa de mo-de-obra coloca os trabalhadores em uma condio de su-bordinao semelhante quela que caracteriza o trabalhoassalariado, com o agravante de tambm estarem subor-dinados, como visto acima, aos gestores da prpria coope-rativa.

    O que permite a esses trabalhadores construrem osentido do cooperativismo como sendo um tipo de traba-lho mais precrio do que o trabalho assalariado a arti-culao de um conjunto de vrios elementos. A experin-cia de ser scio de um negcio, por exemplo, no estpresente na vivncia desses funcionrios, seja pela formacomo se tornaram cooperados, pela distncia que esto emrelao gesto do hospital e da cooperativa, pela poucaparticipao nos processos decisrios, por suas relaescotidianas de trabalho caracterizarem-se pelas negociaesverticais em confronto com um outro que no so os seusprprio pares, o que prprio da heteronomia. A coope-rativa e o trabalho no so algo que lhes parea pertencer,pertencem a outros (a eles). A fragilidade do vnculotambm contribui para isso, pois a qualquer momentopodem no mais fazer parte do quadro de trabalhadores,o que reafirma que no se trata de algo que possam tomarcomo seu. Diante disso, no difcil compreender quesintam saudades do trabalho assalariado tradicional, pois,em sua vivncia, as nicas diferenas substanciais entre otrabalho na cooperativa de mo-de-obra e o trabalho assa-lariado a precariedade do vnculo e a ausncia dos direi-tos trabalhistas. A estrutura de suas vidas no se modificaa ponto de reconhecem essa sua condio de trabalhadorescomo diferente da condio de empregados.

    Se a estrutura do mundo no se modifica, isto , se asrelaes de trabalho estabelecidas no interior dos empreen-dimentos em nada diferem daquelas estabelecidas nasempresas heterogeridas, isso significa que a experinciado cooperativismo de mo-de-obra no representa trans-formao das relaes de trabalho vigentes, mas o apro-fundamento da precarizao do trabalho.

    Quanto s cooperativas de trabalho estudadas isto ,a cooperativa industrial metalrgica e as cooperativaspopulares de alimentao, costura, servios diversos ereciclagem , embora sejam muito diferentes entre si, ossentidos que o cooperativismo assume nesses contextosdefinem-o como uma experincia muito diversa daquelavivida como empregado em uma empresa tradicional.

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    Vrios elementos, que tambm enfatizam o carter defen-sivo dessas cooperativas, articulam-se nessa produo.Isso inclui principalmente a vivncia como scio de fatode um negcio, o que envolve todos os problemas, con-flitos, dilemas, responsabilidades, preocupaes e con-quistas que derivam disso. Impressiona o valor dado aofato de no se ter um chefe, mesmo que alguns colegassejam criticados por ainda agirem como funcionrios.Essa prpria crtica um indicador de que alguma coisamudou, de que nesses empreendimentos, nos quais osprodutores so tambm os empreendedores (scios), asresponsabilidades dessa condio e desse lugar recaiamsobre eles prprios.

    Diante disso, a questo a ser respondida em relao definio de critrios de diferenciao das cooperativas :em que medida as condies de existncia oferecidas poruma cooperativa convidam, permitem, exigem ou impe-dem a participao das pessoas na gesto do negcio e nagesto de seu trabalho? isso, em nossa opinio, que de-fine a diferena fundamental entre a cooperativa de mo-de-obra e as cooperativas de trabalho que foram objetodesta pesquisa, qual seja: a manifestao ou no da auto-gesto enquanto ao coletiva governada pelos prpriosmembros do grupo (Castoriadis, 1982).

    Sendo este um estudo qualitativo, no se pretendeufazer uma epidemiologia dos tipos de cooperativas, isto, no se aspirou poder afirmar que tais e quais caracte-rsticas so prprias de ou so encontradas em determi-nada proporo em um tipo ou outro de empreendimento.Contudo, como prprio deste modo de fazer pesquisa,podemos pensar que os estudos dos modos locais decostura podem apontar para condies ou situaes pos-sveis de aparecerem como elementos em arranjos locaissemelhantes. A separao entre a gesto da cooperativa ea gesto de trabalho um exemplo disso. Trata-se de umacondio que impe certos limites ao funcionamento dacooperativa de mo-de-obra estudada. As formas de lidarcom essa situao apresentadas neste texto so prpriasdas pessoas com quem conversamos e convivemos. Masessa condio, a separao entre o contexto da cooperativae o contexto em que se trabalha se sairmos dos limitesda nossa prpria pesquisa13 e considerarmos o que tam-bm sabemos sobre outras cooperativas (de zeladores,faxineiros, pedreiros, costureiras etc.) , tambm estpresente em outras cooperativas de mo-de-obra. Comotrabalhadores em outros arranjos locais lidam com a sepa-rao entre cooperativa e local de trabalho?

    As interrogaes podem ir alm: ser possvel algumtipo de apropriao da sua condio de scios que favo-rea as negociaes com o comprador da mo-de-obra?Haveria algum relato de levante contra a cooperativa ede tomada de controle de sua gesto? Em que medida possvel esse tipo de rebelio e de que modos poderamoscontribuir com uma tal sabotagem hierarquizao?

    Notas1 Alm da adoo de tecnologias que diminuem a necessidade de

    aplicao de mo-de-obra e das novas formas de organizao dotrabalho, que intensificam o trabalho e, dentre outras coisas, dimi-nuem os custos com chefias ao aplicarem novos modos de exer-ccio de poder (Antunes, 1999; Busnardo, 2003).

    2 Para uma discusso do conceito de autonomia ver: Castoriadis(1982).

    3 Para Becker (1999), a teoria deve ser capaz de compreender aparticularidade e o estudo emprico do acontecer particular temcomo funo rever as prprias formulaes tericas.

    4 O nosso campo-tema, para usar terminologia de P. K. Spink(2003).

    5 Questes norteadoras: (a) Como que voc comeou a trabalharnesta cooperativa? Como voc imaginava naquela poca o que eratrabalhar em uma cooperativa? (b) Qual o seu trabalho nestacooperativa? Como que vocs se organizam para trabalhar?Como vocs se organizam para administrar a cooperativa?Como so as assemblias nesta cooperativa? (c) Quais so asdiferenas entre uma cooperativa e uma empresa tradicional?O que uma coopergato ou uma falsa cooperativa na sua opinio?Como voc entende a autogesto? Perguntas confrontativas(Potter & Mulkay, 1985) deixadas para o final de cada entrevista:Uma cooperativa precisa de algum que mande para que ela possafuncionar? Isto , ela precisa de um chefe? Voc sente que suaopinio ouvida dentro da cooperativa? Voc sente que participadas decises da cooperativa? Voc deixaria de trabalhar em umacooperativa para trabalhar em uma empresa tradicional (comchefe ou patro) ou para trabalhar por conta prpria? Se voc pu-desse mudar alguma coisa na sua cooperativa, o que mudaria?

    6 interessante notar que muitos desses investimentos, decididosem assemblias soberanas, no respondem apenas aos objetivosda produo, mas tambm melhoria das condies de trabalho.

    7 O autor deste artigo acompanhou de perto todo esse processopor atuar em uma incubadora universitria naquela poca.

    8 A gestora uma representante da cooperativa dentro do hospi-tal, mas ela prpria no trabalhadora nesse estabelecimento.

    9 Os scios so, inclusive, no caso da cooperativa industrial, com-pelidos a uma espcie de polivalncia, pois, para garantir aprosperidade de seu prprio negcio, engajam-se em fazeres queescapam do escopo da sua atividade profissional de origem.

    1 0 H uma excelente discusso do conceito em Esteves (2004).1 1 O trabalho associado caracteriza as cooperativas e diferencia-se,

    por definio, do trabalhado assalariado e do trabalho autnomo.1 2 Especificamente a teoria do ator-rede.1 3 Para Becker (1999), a pesquisa sempre um empreendimento

    coletivo, isto , no se espera que uma pesquisa isolada tragasozinha grandes contribuies para uma rea de investigao,mas o conjunto das pesquisas sobre um mesmo tema e baseadasem diferentes casos pode lanar luz sobre muitas questes e trazernovas perguntas.

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    Fbio de Oliveira Docente da PontifciaUniversidade Catlica de So Paulo (PUC-SP) epsiclogo do Centro de Psicologia Aplicada ao

    Trabalho do Instituto de Psicologia da Universidadede So Paulo (USP). Co-editor dos Cadernos de

    Psicologia Social do Trabalho (ISSN 1516-3717).Doutor em Psicologia Social pela PUC-SP e mestre

    em Psicologia Social pela USP. Endereo paracorrespondncia: Rua Prof. Mello Moraes, 1721,

    bloco D, sala 163, Cidade Universitria, So Paulo,SP, 05508-030. Telefone: (11) 3091-4188

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    Os sentidos do cooperativismo de trabalho:as cooperativas de mo-de-obra luz da vivnciados trabalhadoresFbio de OliveiraRecebido: 27/06/20061 reviso: 08/01/2007Aceite final: 06/03/2007