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1 SEQUÊNCIA DIDÁTICA III. O método científico e seus críticos III.1. O método científico Duração: 04 a 05 aulas. Objetivo: discutir os métodos e a autoridade da ciência através de seus princípios e de sua história. Sensibilização: Uma boa maneira de introduzir as questões trabalhadas na presente sequência didática é através da série House 32 , onde um médico com métodos pouco ortodoxos tenta desvendar diagnósticos com sua equipe. No episódio 18 da quinta temporada intitulado: “vem cá bichano”, pacientes sempre morrem após uma gata sentar em suas camas, estaria o animal prevendo a morte desses pacientes? Como em outros episódios, House desvenda o mistério usando o método científico de uma maneira muito interessante. Após o episódio, pode ser discutido com os alunos, questões relativas à “fé” e ao desenvolvimento científico. Conceitualização e Problematização dialógica. O conhecimento técnico científico está presente em todos os aspectos de nossas vidas no século XXI, mas o que faz dessa forma de conhecimento superior? É possível que apesar de tudo, trata-se de algo que não podemos confiar totalmente? Para responder a essas questões, vamos entender o que exatamente é o método científico: 32 SHORE, D. House “vem cá bichano”, Universal, 2008, DVD, T 5, episódio 18. http://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_episódios_de_House,_M.D.#Temporada_5:_2008- 2009 acesso em 22/11/2014.

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SEQUÊNCIA DIDÁTICA III. O método científico e seus críticos

III.1. O método científico

Duração: 04 a 05 aulas.

Objetivo: discutir os métodos e a autoridade da ciência através de seus

princípios e de sua história.

Sensibilização:

Uma boa maneira de introduzir as questões trabalhadas na presente

sequência didática é através da série House32, onde um médico com métodos

pouco ortodoxos tenta desvendar diagnósticos com sua equipe.

No episódio 18 da quinta temporada intitulado: “vem cá bichano”,

pacientes sempre morrem após uma gata sentar em suas camas, estaria o

animal prevendo a morte desses pacientes?

Como em outros episódios, House desvenda o mistério usando o

método científico de uma maneira muito interessante.

Após o episódio, pode ser discutido com os alunos, questões relativas à

“fé” e ao desenvolvimento científico.

Conceitualização e Problematização dialógica.

O conhecimento técnico científico está presente em todos os aspectos

de nossas vidas no século XXI, mas o que faz dessa forma de conhecimento

superior? É possível que apesar de tudo, trata-se de algo que não podemos

confiar totalmente?

Para responder a essas questões, vamos entender o que exatamente é

o método científico:

32

SHORE, D. House – “vem cá bichano”, Universal, 2008, DVD, T 5, episódio 18. http://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_episódios_de_House,_M.D.#Temporada_5:_2008-

2009 acesso em 22/11/2014.

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O método científico constitui uma série de passos a seguir para

desenvolver e confirmar uma teoria causal, ou seja, a causa de determinado

fenômeno.

Para ilustrar esse método, Dwyer e Rainbolt no livro “Critical Thinking: the art of argument”33 , apresentam um exemplo desses passos em uma situação no cotidiano: imagine que seu computador parou de funcionar:

Passo 1.identificar a questão a ser respondida:

Imagine que você tem que fazer um trabalho para o dia seguinte e seu computador parou de funcionar, o método cientifico começa com a questão a ser respondida, começar identificando a específica questão causal é o mais importante e também a forma mais rápida de resolver a questão: Qual é a causa primária do problema ?

Passo 2.Formule uma teoria experimental:

Uma teoria experimental é uma hipótese a ser testada, primeiro deve pensar na causa do problema, depois, como resolvê-la da maneira mais rápida.

Nesse passo é fundamental o conhecimento prévio, se você não conhecer profundamente de computadores e chamar um técnico, porque ele tem um maior conhecimento prévio sobre o assunto, pode desenvolver teorias com probabilidade de estar corretas muito maiores do que as suas.

Quanto maior nosso conhecimento prévio aumenta, melhores nossas teorias.

Vamos imaginar que nossa teoria para o mau funcionamento do computador esteja relacionado a algum problema com a ventoinha.

Passo 3.Procure por correlações.

Uma vez que você formulou uma teoria, você precisa procurar por evidencias de sua validade ou falsidade, ou seja, significa buscar por correlações, o que os cientistas chamam de “deduzindo as consequências de uma teoria” ou o que os autores preferem chamar de “inferindo as consequências de uma teoria”, por se tratar de um exemplo de raciocínio indutivo.34

Uma vez que você parte do pressuposto que uma teoria é verdadeira então correlações precisam existir, a esse ponto, você deve usar o método de Mill, que consiste em testar se o computador apresenta os mesmos problemas com e sem a ventoinha supostamente danificada.

Se o problema for resolvido com uma nova ventoinha, então a teoria está correta, evidências confirmam uma teoria quando uma correlação que foi inferida na teoria experimental existe, e a desconfirma ou a derruba se a experiência mostra que essa correlação não está presente.

Mas devemos tomar cuidado com a falácia da generalização apressada, não podemos pular a conclusão sem considerar outras possibilidades e teorias, o que nos

33

RAINBOLT & DWYER , 2014, p.326. 34

Para alguns, trata-se também de uma inferência abdutiva, ver texto 4.

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leva aos passos 4 e 5.

Passo 4.Se necessário, formula uma nova teoria.

Geralmente, a primeira teoria não funciona, e devemos criar outra teoria, no que os autores chamam de “giro do método cientifico” (loop), onde até que alguma teoria seja confirmada, sempre se retorna ao passo 2 e 3.

Passo 5.porcurando por causa reversa , causação da terceira-parte e correlação coincidente.

O passo 5 pode ser chamado de “evitando a generalização precipitada” , um argumento com a seguinte forma:

P1- A está correlacionado com B.

C- Logo, A é a causa de B.

Para evitar essa falácia, você deve procurar pela causa reversa: se você encontrou uma correlação entre x e y, verifique se x causa y ou se y é que causa x.

Para concluir uma relação causa-efeito, você deve estabelecer que o reverso não é possível.

Causação da terceira-parte: dada uma relação de causa entre A e B, C está excluído, também chamado de “controle de variáveis.”.

Correlação coincidente: também conhecido como a falácia “post hoc ergo propter hoc” (depois disso, por causa disso), ou seja, certifique-se de que a relação causal não passa de uma mera coincidência, testando: 1: se o evento não ocorreria mesmo sem a suposta causa e 2-que o efeito foi causado por outra causa que não a primeiro formulada.35

Ao encontrar qualquer um desses problemas, deve-se retornar ao passo 3, o “segundo giro” do método científico.

Assim, se, por exemplo, você encontrou uma correlação entre o mau funcionamento de seu computador a vírus escondidos no Pen drive de seu amigo, outros computadores onde esse pen drive foi usado devem ter sido infectados e não que o seu computador esteja infectando o pen drive, outras causas também devem ser consideradas e nunca devemos concluir sem teorias alternativas.

Passo 6.Desenvolva novas questões.

Pode ser que provar sua hipótese até o passo 5, já tenha resolvido o seu problema, mas se você quer saber mais sobre o assunto, é fundamental levantar novas questões.

Áreas como Física, Química e Biologia entre outras , lidam com fenômenos complexos que exigem teorias cada vez mais abrangentes e intricadas, quanto mais queremos saber, mais questões terão de ser desenvolvidas para melhor entender os problemas que nos cercam.

Todo esse processo é necessário porque nós, seres humanos temos

diversas falhas psicológicas, não somos tão racionais quanto queremos muitas

vezes acreditar.

35

http://onegoodmove.org/fallacy/posthoc.htm acesso em 20/11/2014, tradução nossa.

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Ao longo da história da Filosofia, vários pensadores36 procuraram

mostrar o quanto nossa racionalidade é tendenciosa e o que devemos fazer

para evitar esses erros de raciocínio.

Para Hume e Kant, por exemplo, nossa mente já vem “programada” e

aquilo que percebemos da realidade passa por um “filtro” moldando nossa

maneira de interpretá-lo.

Para Francis Bacon( 1561-1626), existem diversos fatores que

atrapalham a nossa compreensão da realidade que ele chamou de ídolos e

estabeleceu princípios para nos ajudar a chegar no conhecimento verdadeiro,

como a navalha de Ockham.

Mais recentemente, diversas pesquisas em psicologia cognitiva e

neurociências apontam que possuímos os chamados vieses cognitivos

(cognitive bias), padrões e tendências de raciocínio que muitas vezes nos

levam a erros de julgamento, alguns exemplos:

O viés de confirmação (confirmation Bias) que é a tendência de que

uma vez comprometido com uma visão, ver apenas evidências positivas a seu

favor e ser psicologicamente resistente a evidências negativas.

O pensamento mágico (wishfull thinking) que é a tendência de tomar

decisões e formar crenças baseando-se no que é mais confortável para a

pessoa em detrimento das evidências racionais e não imaginativas.

Uma maneira de evitar esses vieses que todos estamos sujeitos é

tornando-se consciente deles e se precaver, sempre procurando por evidências

e erros de raciocínio em nossas crenças e argumentos.

Mas é claro que o método científico possui pressupostos importantes,

um deles é designado pelo termo naturalismo metodológico que é a ideia de

que fenômenos naturais , tem causas naturais, ou seja, não é possível invocar

mágica ou eventos sobrenaturais para explicar fenômenos da natureza.

Mas como a partir de meados do século XVIII a ciência se desenvolveu

excluindo qualquer interferência ou necessidade de uma entidade criadora que

influencia no mundo, isso quer dizer que todos os cientistas precisam ser

36

Mais detalhes na investigação textual.

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ateus? Não necessariamente, pois o ateísmo metodológico é um recurso

usado por alguns, para que embora suas crenças religiosas não influenciem

em suas pesquisas e em seu trabalho, possam seguir acreditando em Deus.

Outro pressuposto é o de que as leis e teorias cientificas seriam

“descobertas” e corresponderiam em algum grau à realidade, uma postura

conhecida como realismo científico.

Mas nem todos os filósofos e cientistas são realistas, alguns defendem

que a ciência cria apenas representações úteis da realidade, mas não a

alcança como ela realmente é, uma posição conhecida como nominalismo ou

antirrealismo.

Questionário Socrático: Isso significa que não somos racionais? Discuta com

os alunos exemplos de situações onde o método científico pode ajudar e onde

os vieses cognitivos podem ser uma característica positiva ou negativa, a

ciência é uma forma de autoridade? Sempre foi?

Investigação textual e leitura crítica:

Texto 1: Toda crença justificada é conhecimento?

(VAUGHN, Lewis; SCHICK, Theodore. How to Think About Weird Things: Critical Thinking for a New Age by. (Mountain View, Calif: Mayfield, 1999.p.121, tradução nossa.)

Nós vimos que se nós temos conhecimento, então temos crenças verdadeiras justificadas, mas o contrário também funciona? Se nós temos crenças verdadeiras justificadas então temos conhecimento? Pesquisas recentes sugerem não considerar esse caso.

Vamos supor que em um dia claro você vai até um campo onde uma ovelha está pastando, como resultado você forma uma crença de que há uma ovelha no campo. Agora vamos supor que o que parecia ser uma ovelha é na verdade um cão-pasto, mas que estando atrás de um pedra dá a impressão de se tratar de uma ovelha. Nessa situação, sua crença de que há uma ovelha no campo é verdadeira, e desde que você não tem razão para duvidar de sua percepção, sua crença é justificada. Mas você sabe que há uma ovelha no campo? Não seria o caso, porque apesar de você ter uma crença verdadeira baseada em evidência adequada, sua evidência não é apropriadamente relacionada com o que faz sua crença verdadeira. Então nem todas as crenças justificadas podem ser consideradas conhecimento.

Algumas pessoas tem sugerido que uma crença verdadeira justificada é

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conhecimento com tanto que tenha sido causada ( de maneira apropriada) por aquilo que a torna verdadeira.

Outros têm sugerido que crença verdadeira justificada é conhecimento contanto que n seja invicto ( undeafeted, não derrubado) e é invicto se não já evidências contrárias. Nenhuma dessas sugestões (ou qualquer outra) recebeu aceitação universal. Qualquer que esteja correta essas análises do que seja conhecimento, no entanto, o critério de Platão permanece: “Conhecimento é crença verdadeira apropriadamente fundamentada”. Se você tem isso, então tem conhecimento.

Texto 2:A navalha de Ockham.

(Sterling,Grant A navalha de Ockham in IN BRUCE, Michael, BARRONE, steven (org.), Os 100 argumentos mais importantes da Filosofia ocidental, 79-8,1ed.São Paulo, Cultrix, 2013.)

A pluralidade não deve ser postulada sem necessidade (commentary on the Sentences of Peter Lombard, Parte I, dist.1 q.1 e 2.)

Pois nada deve ser postulado sem uma razão dada, a menos que seja sabido por meio de si mesmo, sabido por experiência ou provado pela autoridade da escritura sagrada (comentary on the Sentences os Peter Lombard, Parte I, dist, 30 Q.1)

A “Navalha de Ockham” como é comumente empregada:

P1.Duas teorias, Ti e T2, explicam igualmente bem os fatos observados ( e melhor que todas as teorias rivais), e T1 rquer que postulemos a existência de mais entidades ( ou mais tipos de entidades) do que T2.

P2.”A Navalha de Ockham”: se duas teorias explicam igualmente bem os fatos observados (e melhor do que as teorias rivais), acredite na teoria que postula menos entidades do que uma teoria rival sem perda de força explanatória.

C1.Devemos acreditar em T2 e não acreditar em T1(modus ponens, P1,P2)

Ou

P1.Não precisamos postular a existência do objeto x para explicar qualquer fenômeno que estejamos tentando explicar.

P2.A “navalha de Ockham”: se não precisamos postular a existência de um determinado objeto para explicar qualquer fenômeno que estejamos tentando explicar, não devemos acreditar na existência de qualquer objeto que não seja necessário para expicar fenômenos.

C1.Não acredite na existência de X (modus ponens,P1,P2)

“A Navalha de Okham” como o próprio Ockham a empregaria:

P1.A existência deum objeto X não é auto evidente, nem temos evidências empíricas de sua existência, nem é ela requerida pela Bíblia.

P2.A Navalha de Ockham: se a existência de um objeto X não é auto evidente, nem temos evidências empíricas de sua existência, nem ela é requerida pela Bíblia, então não devemos acreditar na existência do objeto X.

C1.Não acredite na existência do objeto X (embora seja possível que X exista) (modus ponens,P1,P2).

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Texto 3:Putnam e o argumento que exclui Milagres.

(Swan, Stillwaggon,Liz, Putnam e o argumento que exclui milages, IN IN BRUCE, Michael, BARRONE, steven (org.), Os 100 argumentos mais importantes da Filosofia ocidental, 411-412,1ed.São Paulo, Cultrix, 2013.)

O argumento positivo a favor do realismo é que é a única filosofia que não faz do sucesso da ciência um milagre (Putnam,73).

Seria um milagre, uma coincidência numa escala quase cósmica, se uma teoria fizesse tantas predições empíricas corretas como, por exemplo, a teoria geral da relatividade ou a teoria dos fotos de luz, sem o que essa teoria diz sobre a estrutura fundamental do universo estivesse “essencialmente” ou “basicamente” correto. Mas não devemos aceitar milagres, pelo menos se houver uma alternativa não milagrosa. Se o que essas teorias dizem estar acontecendo “por trás” dos fenômenos é verdadeiro ou “aproximadamente verdadeiro”, então não é de admirar que compreendam os fenômenos. Por isso, é plausível concluir que as teorias atualmente aceites são de fato “essencialmente” corretas. (Worrall,101)

P1.Se uma teoria cientifica produz predições observacionais precisas, então deve ser (pelo menos aproximadamente) verdadeira.

P2.muitas de nossas teorias científicas produzem predições observacionais precisas.

C1.muitas de nossas teorias cientificas devem ser (pelo menos aproximadamente) verdadeiras, caso contrário, o sucesso da ciência seria miraculoso (modus ponens,P1,P2)

Texto 4: A INFERÊNCIA ABDUTIVA E O REALISMO CIENTÍFICO.

(CHIBENI, Silvio Seno. A inferência abdutiva eo realismo científico. Cadernos de História e Filosofia da Ciência, v. 6, n. 1, p. 3, 1996.)

1. Introdução: A inferência abdutiva

O debate contemporâneo acerca do realismo científico trouxe à tona os problemas da natureza e do valor de uma forma de inferência que tradicionalmente tem recebido pouca atenção dos filósofos. Charles S. Peirce, um dos primeiros a reconhecer explicitamente sua importância na prática argumentativa da ciência e do dia-a-dia, denominou-a inferência abdutiva. Em artigos da década de 1960, Gilbert Harman deu um novo enfoque à questão, e renomeou a inferência de inferência da melhor explicação (Harman 1965, 1968).

Um exemplo típico ajuda a introduzir o assunto. Ao adentrarmos uma sala, vemos sobre uma mesa um saco com feijões brancos e, ao seu lado, um punhado de feijões brancos. Diante disso, estimando que a hipótese de que os feijões do punhado vieram do saco representa a melhor explicação para o fato (e, além, disso, é uma boa explicação para ele), inferimos abdutivamente que essa hipótese é, muito provavelmente, verdadeira. O poder explicativo da hipótese parece fornecer bases para crermos em sua verdade. Nas palavras de Peirce (5.189):

O fato surpreendente, C, é observado.

Mas se A fosse verdade, C seria um fato natural.

Logo, há razões para suspeitar que A seja verdade.

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De modo simplificado, o esquema geral dos argumentos abdutivos, tais quais aparecem nas discussões contemporâneas, consiste no enunciado de uma evidência (um fato ou conjunto de fatos), de hipóteses alternativas para explicar tal evidência, e de uma apreciação do valor dessas explicações. A conclusão é a de que a melhor explicação provavelmente é verdadeira se, além de comparativamente superior às demais, for boa em algum sentido absoluto.

Percebe-se imediatamente que, em contraste com os argumentos dedutivos, a conclusão não segue logicamente das premissas e depende de seu conteúdo. E que, em contraste com os argumentos indutivos, ela não necessariamente consiste na extensão uniforme da evidência. Nos artigos mencionados, Harman defende que, na realidade, os argumentos indutivos podem e devem ser entendidos como casos especiais de argumentos abdutivos. Não nos ocuparemos aqui da avaliação dessa tese (ver Ennis 1968 para uma crítica relevante), bastando-nos reconhecer a existência e a especificidade das inferências abdutivas, e sua larga aplicação nos raciocínios do homem comum, do cientista e do filósofo. Vejamos mais alguns exemplos.A conclusão do conhecido detetive de que o autor do crime foi o mordomo é obtida abdutivamente: a hipótese de que foi o mordomo representa a melhor explicação dos fatos averiguados, em comparação com a de que foi o vizinho, por exemplo. De igual modo, diante de certos sintomas e ocorrências de contágio, de tais e tais reações químicas e imagens na tela de um microscópio eletrônico, um biólogo eventualmente concluirá, abdutivamente, que existe um vírus de tal tipo, se sua existência explicar bem essa evidência, de modo mais satisfatório do que hipóteses rivais, como as de que existe uma certa bactéria ou um certo humor morbífico. Esse último exemplo, típico de um contexto científico, evidencia a conexão entre a abdução e o realismo científico.

Aplicação:

Debate:

Temas:

1-“realismo x nominalismo: a ciência produz conhecimento real acerca

da natureza?”.

2-“A ciência é totalmente racional?”.

Avaliação:

Exercícios.

1-Em grupo ou individualmente, pesquise outras formas de vieses

cognitivos e sob orientação do professor, apresente um seminário para a

classe.

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2- Faça uma Pesquisa sobre uma grande descoberta científica e as

teorias alternativas que não “funcionaram”, explicando quais foram os erros

cometidos dentro do método científico.

3-Por que para Putnam não deve haver milagres na ciência? O que é

seria um milagre?

4-O que é realismo e nominalismo? Quais os argumentos de cada

posição?

5-Por que Bacon coloca a Bíblia como autoridade? A ciência já teve

algum envolvimento com a religião ou misticismo?

6-De acordo com o texto 1, o que é uma crença verdadeira justificada?

III. 2. Critérios de demarcação da Ciência.

Duração: 5 a 6 aulas.

Objetivo: Discutir os critérios de demarcação da ciência através de seus

críticos e qual o papel da ciência na sociedade.

Sensibilização:

Filmes de ficção científica são especialmente bons para esse tema, pode

ser usado qualquer um que aborde temas como os limites do conhecimento

humano, o poder da tecnologia, entre outros, para orientar o professor na

escolha de filmes pode ser lido o livro: “Sci-filo: a Filosofia explicada pelos

filmes de Ficção cientifica” 37.

37

ROWLANDS, M. Scifilo. São Paulo: Relume Dumará, 2005.

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Outra sugestão é fazer uma demonstração do efeito Barnum/Forer38

para a sala.

Conceitualização e Problematização dialógica.

O que pode ser considerado “boa ciência” ou “ciência de verdade”?

Seria o seu método o único traço distintivo da ciência? Ele se aplicaria

igualmente a todas as disciplinas chamadas científicas, da Física à Biologia?

Essas são as questões que perpassam o problema da demarcação na

ciência: como distinguir ciência da pseudociência? Uma questão importante,

porque da medicina à maneira como vivemos, fazem muitas escolhas

influenciadas por esse critério.

Acreditamos em algum tratamento médico por se tratar de algo

“cientificamente confiável”, deixamos de comprar determinado produto por que

ficou “cientificamente provado” que faz mal e investimos tempo e recursos em

pesquisas que sejam cientificamente viáveis.

Uma das maneiras de distinguir pode ser através do conceito de

previsibilidade, cientistas sabem quando uma teoria funciona quando são

capazes de fazer previsões com sucesso, então, a ciência procura entender

o mundo através da identificação de princípios gerais que são ambos

explanatórios e preditivos.

Outra característica distintiva da ciência é de que ela está baseada na

ideia de que o mundo é publicamente compreensível, ou seja:

(1) de que o mundo tem certa estrutura,

(2) Nós podemos conhecer essa estrutura

(3) esse conhecimento é disponível a todos.

38

Pode ser encontrado em http://magicaemcena.blogspot.com.br/2011/10/efeito-forer-ou-efeito barnum.html, acesso em 26/11/2014, e http://brazil.skepdic.com/leiturafria.html acesso em 26/11/2014.

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O princípio é de que todo o conhecimento científico da realidade é

aberto a todos, pode ser questionado e conferido, bastando para isso o método

adequado, vejamos isso em contraste com o chamado conhecimento esotérico,

frequentemente chamado não por acaso de ciências ocultas.

Nesses sistemas, o mundo é ordenado segundo forças não acessíveis a

todos, podendo ser conhecidos ou por revelação divina ou iniciação mágica,

quando esse conhecimento deve quase sempre ser mantido em segredo,

diferente da pesquisa cientifica cujos critérios de validação passam também

pelo escrutínio público, publicações, críticas, revisões etc .

No entanto, existem críticas à ciência e a seu método, algumas delas

dizem que a ciência é uma ideologia imperialista que carrega uma visão de

mundo materialista, atomística e mecanicista chamada cientismo.

O cientismo, segundo esses críticos, trataria a humanidade e a natureza

como máquinas, tirando nossa dignidade e diminuindo a importância dos

sentimentos e desejos, em contraposição, seria necessária uma ciência mais

orgânica e holística.

Para Vaughn e Schick (1999) essas críticas não procedem porque

embora possa ser verdade que por vezes exista uma visão dominante na

comunidade científica, não há na ciência uma visão de mundo particular.

A Ciência seria um método de discernir a verdade e não um corpo

particular de verdades. É um modo de resolver problemas e não uma solução

particular.

A visão de mundo dos cientistas mudou radicalmente com o passar dos

anos. A visão de mundo da mecânica quântica está longe da visão mecanicista

do séc.XVII, são comuns hoje no meio científico, por exemplo, disputas e

teorias conflitantes.

O famoso cosmólogo e divulgador da ciência Carl Sagan em seu livro “O

mundo assombrado pelos demônios” apresenta um kit de detecção de

mentiras (Baloney Detection Kit) pelo qual as pessoas podem separar o que é

científico de mitos, bobagens e pseudociências:

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Eis algumas das ferramentas:

• Sempre que possível, deve haver confirmação independente dos fatos” .

• Devemos estimular um debate substantivo sobre as evidências, do qual participarão

notórios partidários de todos os pontos de vista.

• Os argumentos de autoridade têm pouca importância as autoridades” cometeram

erros no passado. Voltarão a cometê-los no futuro.

Uma forma melhor de expressar essa idéia é talvez dizer que na ciência não existem

autoridades; quando muito, há especialistas.

• Devemos considerar mais de uma hipótese. Se alguma coisa deve ser explicada, é

preciso pensar em todas as maneiras diferentes pelas quais poderia ser explicada.

Depois devemos pensar nos testes que poderiam servir para invalidar

sistematicamente cada uma das alternativas. O que sobreviver, a hipótese que resistir

a todas as refutações nesta seleção darwiniana entre as múltiplas hipóteses

eficazes” , tem uma chance muito melhor de ser a resposta correta do que se

tivéssemos simplesmente adotado a primeira idéia que prendeu nossa imaginação.

• Devemos tentar não ficar demasiado ligados a uma hipótese só por ser a nossa. É

apenas uma estação intermediária na busca do conhecimento. Devemos nos

perguntar por que a idéia nos agrada. Devemos compará-la imparcialmente com as

alternativas. Devemos verificar se é possível encontrar razões para rejeitá-la. Se não,

outros o farão.

• Devemos quantificar. Se o que estiver sendo explicado é passível de medição, de

ser relacionado a alguma quantidade numérica, seremos muito mais capazes de

discriminar entre as hipóteses concorrentes. O que é vago e qualitativo é suscetível

de muitas explicações. Há certamente verdades a serem buscadas nas muitas

questões qualitativas que somos obrigados a enfrentar, mas encontrá-las é mais

desafiador.

• Se há uma cadeia de argumentos, todos os elos na cadeia devem funcionar

(inclusive a premissa) e não apenas a maioria deles.

• A Navalha de Occham. Essa maneira prática e conveniente de proceder nos incita a

escolher a mais simples dentre duas hipóteses que explicam os dados com igual

eficiência.

• Devemos sempre perguntar se a hipótese não pode ser, pelo menos em princípio,

falseada. As proposições que não podem ser testadas ou falseadas não valem

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grande coisa. Considere-se a ideia grandiosa de que o nosso Universo e tudo o que

nele existe é apenas uma partícula elementar. Um elétron, por exemplo, num Cosmos

muito maior. Mas, se nunca obtemos informações de fora de nosso Universo, essa

ideia não se torna impossível de ser refutada? Devemos poder verificar as

afirmativas. Os céticos inveterados devem ter a oportunidade de seguir o nosso

raciocínio, copiar os nossos experimentos e ver se chegam ao mesmo resultado.

Além de nos ensinar o que fazer na hora de avaliar uma informação, qualquer bom kit

de detecção de mentiras deve também nos ensinar o que não fazer. Ele nos ajuda a

reconhecer as falácias mais comuns e mais perigosas da Lógica e da Retórica.

Muitos bons exemplos podem ser encontrados na religião e na política, porque seus

profissionais são frequentemente obrigados a justificar duas proposições

contraditórias. Entre essas falácias estão:

• Ad hominem. Expressão latina que significa ao homem, quando atacamos o

argumentador e não o argumento (por exemplo: A reverenda Dra. Smith é uma

conhecida fundamentalista bíblica, por isso não precisamos levar a sério suas

objeções à evolução);

• Argumento de autoridade (por exemplo: O presidente Richard Nixon deve ser

reeleito porque ele tem um plano secreto para pôr fim à guerra no Sudeste da Ásia .

mas, como era secreto, o eleitorado não tinha meios de avaliar os méritos do plano; o

argumento se reduzia a confiar em Nixon porque ele era o presidente; um erro, como

se veio a saber);

• Argumento das consequências adversas (por exemplo: Deve existir um Deus que

confere castigo e recompensa, porque, se não existisse, a sociedade seria muito mais

desordenada e perigosa. talvez até ingovernável.* Ou: O réu de um caso de homicídio

amplamente divulgado pelos meios de comunicação deve ser julgado culpado; caso

contrário, será um estímulo para os outros homens matarem as suas mulheres);

• Apelo à ignorância . a afirmação de que qualquer coisa que não provou ser falsa

deve ser verdade, e vice-versa (por exemplo: Não há evidência convincente de que

os UFOs não estejam visitando a Terra; portanto, os UFOs existem . e há vida

inteligente em outros lugares do Universo. Ou: Talvez haja setenta quasilhões de

outros mundos, mas não se conhece nenhum que tenha vida.

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• Alegação especial, frequentemente para salvar uma proposição em profunda

dificuldade teórica (por exemplo: Como um Deus misericordioso pode condenar as

gerações futuras a um tormento interminável, só porque, contra as suas ordens, uma

mulher induziu um homem a comer uma maçã?). Alegação especial:

Você não compreende a doutrina sutil do livre-arbítrio. Ou: Como pode haver um Pai,

um Filho e um Espírito Santo igualmente divinos na mesma Pessoa? Alegação

especial: Você não compreende o mistério da Santíssima Trindade. Ou: Como Deus

permitiu que os seguidores do judaísmo, cristianismo e islamismo, cada um

comprometido a seu modo com medidas heróicas de bondade e compaixão

tenhamperpetrado tanta crueldade durante tanto tempo? Alegação especial: Mais

uma vez você não compreende o livre-arbítrio. (E, de qualquer modo, os movimentos

de Deus são misteriosos);

• Petição de princípio, também chamada de supor a resposta (por exemplo:

Devemos instituir a pena de morte para desencorajar o crime violento).

Mas a taxa de crimes violentos realmente cai quando é imposta a pena de morte? Ou:

A bolsa de valores caiu ontem por causa de um ajuste técnico e da realização de

lucros por parte dos investidores. Mas há alguma evidência independente do papel

causal do .ajuste. e da realização de lucros? Aprendemos realmente alguma coisa

com essa pretensa explicação?

• Seleção das observações, também chamada de enumeração das circunstâncias

favoráveis, ou, segundo a descrição do filósofo Francis Bacon, contar os acertos e

esquecer os fracassos.

• Estatística dos números pequenos. Falácia aparentada com a seleção das

observações (por exemplo: Dizem que uma dentre cada cinco pessoas é chinesa.

Como é possível? Conheço centenas de pessoas e nenhuma delas é chinesa.

Atenciosamente.. Ou: Tirei três setes seguidos. Hoje à noite não tenho como perder);

• Compreensão errônea da natureza da estatística (por exemplo: O presidente

Dwight Eisenhower expressando espanto e apreensão ao descobrir que metade de

todos os norte-americanos têm inteligência abaixo da média);

• Incoerência (por exemplo: Prepare-se prudentemente para enfrentar o pior na luta

com um potencial adversário militar, mas ignore parcimoniosamente projeções

científicas sobre perigos ambientais, porque eles não são comprovados.

Ou: Atribua a diminuição da expectativa de vida na antiga União Soviética aos

fracassos do comunismo há muitos anos, mas nunca atribua à alta taxa de

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mortalidade infantil nos Estados Unidos (no momento, a taxa mais alta das principais

nações industrializadas) aos fracassos do capitalismo. (Ou: Considere razoável que o

Universo continue a existir para sempre no futuro, mas julgue absurda a possibilidade

de que ele tenha duração infinita no passado);

• Non sequitur . Expressão latina que significa não se segue. (por exemplo: A nossa

nação prevalecerá, porque Deus é grande. Mas quase todas as nações querem que

isso seja verdade; a formulação alemã era Gott mit uns.). Com frequência, os que

caem na falácia non sequitur deixaram simplesmente de reconhecer as possibilidades

alternativas;

• Post hoc, ergo propter hoc . Expressão latina que significa aconteceu após um

fato, logo foi por ele causado. (por exemplo, Jaime Cardinal Sin, arcebispo de Manilla:

Conheço [...] uma moça de 26 anos que aparenta sessenta porque ela toma a pílula

[anticoncepcional].. Ou: Antes de as mulheres terem o direito de votar, não havia

armas nucleares);

• Pergunta sem sentido (por exemplo: O que acontece quando uma força irresistível

encontra um objeto imóvel? Mas se existe uma força irresistível, não pode haver

objetos imóveis, e vice-versa);

• Exclusão de meio-termo, ou dicotomia falsa . Considerando apenas os dois

extremos num continuum de possibilidades intermediárias (por exemplo: Claro, tome

o partido dele; meu marido é perfeito; eu estou sempre errada. Ou: Ame o seu país ou

odeie-o.. Ou: Se você não é parte da solução, é parte do problema);

• Curto prazo versus longo prazo. Um subconjunto da exclusão do meio-termo, mas

tão importante que o separei para lhe dar atenção especial (por exemplo: Não temos

dinheiro para financiar programas que alimentem crianças mal nutridas e eduquem

garotos em idade escolar. Precisamos urgentemente tratar do crime nas ruas. Ou: Por

que explorar o espaço ou fazer pesquisa de ciência básica, quando temos tantas

pessoas sem teto?);

• Declive escorregadio, relacionado à exclusão do meio-termo (por exemplo: Se

permitirmos o aborto nas primeiras semanas da gravidez, será impossível evitar o

assassinato de um bebê no final da gravidez. Ou, inversamente: Se o Estado proíbe o

aborto até no nono mês, logo estará nos dizendo o que fazer com os nossos corpos

no momento da concepção);

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• Confusão de correlação e causa (por exemplo: Um levantamento mostra que é

maior o número de homossexuais entre os que têm curso superior do que entre os

que não o possuem; portanto, a educação torna as pessoas homossexuais. Ou: Os

terremotos andinos estão correlacionados com as maiores aproximações do planeta

Urano; portanto , apesar da ausência de uma correlação desse tipo com respeito ao

planeta Júpiter, mais próximo e mais volumoso . o planeta Urano é a causa dos

terremotos)

• Espantalho. Caricaturar uma posição para tornar mais fácil o ataque (por exemplo:

Os cientistas supõem que os seres vivos simplesmente se reuniram por acaso. uma

formulação que ignora propositadamente a ideia darwiniana central, de que a

natureza se constrói guardando o que funciona e jogando fora o que não funciona.

Ou: isso é também uma falácia de curto prazo/longo prazo. os ambientalistas se

importam mais com anhingas e corujas pintadas do que com gente);

•Evidência suprimida, ou meia verdade (por exemplo: Uma profecia.

espantosamente exata e muito citada do atentado contra o presidente Reagan é

apresentada na televisão; mas, detalhe importante, foi gravada antes ou depois do

evento? Ou: Esses abusos do governo pedem uma revolução, mesmo que não se

possa fazer uma omelete sem quebrar alguns ovos. Sim, mas será uma revolução

que causará muito mais mortes do que o regime anterior? O que sugere a experiência

de outras revoluções? Todas as revoluções contra regimes opressivos são desejáveis

e vantajosas para o povo?);

• Palavras equívocas (por exemplo, a separação dos poderes na Constituição norte-

americana especifica que os Estados Unidos não podem travar guerra sem uma

declaração do Congresso). Por outro lado, os presidentes detêm o controle da política

externa e o comando das guerras.

SAGAN, Carl; DE BOLSO, Companhia. Ciência e Esperança. O mundo assombrado pelos

demônios: a ciência vista como uma vela no escuro. São Paulo: Cia das Letras, p. 182-

187, 1996.

Questão Socrática: A ciência seria imparcial? Os críticos tem alguma razão?

Outras críticas são filosoficamente mais profundas e dizem respeito ao

próprio método da ciência e geraram importantes discussões, vamos conhecer

algumas delas:

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Popper e a falseabilidade:

Para o Filósofo da ciência Karl Popper (1902-1994), uma teoria/hipótese

é científica se puder ser falseada, ou seja, tornada falsa e refutada, ao fazer

proposições sobre o mundo, essa proposição precisa ser verificável.

Por exemplo, se eu propuser uma teoria para explicar que todas as

doenças físicas são causadas por distúrbios em uma suposta energia vital das

pessoas, uma vez que essa energia vital não pode ser verificada

empiricamente, quantificada e categorizada (trata-se acima de tudo, de uma

afirmação vaga), não podemos sequer dizer que ela não existe.

Por outro lado, se eu afirmar que uma doença particular é causada por

um vírus, encontrar esse vírus, quantificar, categorizar etc, essa afirmação

pode ser falseada via experimentos.

No caso de uma teoria não fazer proposições verificáveis, não se pode

considerá-la uma ciência.

Além do mais, para Popper que não reconhece o principio da indução na

ciência como algo seguro, uma teoria só poder ser confirmada, nunca provada

totalmente, uma teoria que passe sucessivamente nos testes permanece como

aceitável, enquanto outra que é refutada deve ser substituída.

Argumento (simplificado):

P1.Teorias científicas devem poder ser falseadas (testáveis)

P2.X não é falseável.

C.Logo, X não é uma teoria científica.

Kuhn e a estrutura das revoluções científicas.

Para Khun (1922-1996) a ciência é na verdade um processo de criação

e substituição de “paradigmas”, de acordo com o Pequeno Dicionário de

Filosofia Contemporâneo, na filosofia de Kuhn:

Um paradigma é composto por premissas teóricas básicas e

resultados fundamentais da pesquisa coletiva, que recebem a

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adesão de uma comunidade científica particular durante um

determinado período de tempo, de modo a construir o fundamento da

atividade cientifica ulterior. A ruptura com os paradigmas constitui

uma transformação que, num dado campo de investigação, instala a

atividade cientifica sobre novas bases, caracterizando aquilo que

kuhn denomina de ciência revolucionária. Aplicado inicialmente por

seu autor às ciências naturais e formais, especialmente à física, o

termo foi adotado em outros domínios do conhecimento científico e

filosófico, sendo atualmente de emprego corrente. (GIACOIA

JUNIOR , p.137, 2006.)

Desse modo, o conhecimento científico passa por uma série de etapas:

1-Período de pré-ciência (ciência imatura): Onde a comunidade cientifica ocupa-se do

debate constante dos fundamentos teóricos.

2-Periodo da ciência normal (Composta por paradigmas): É quando a partir do

estabelecimento de consensos sobre seus fundamentos, atinge-se o status de

paradigmas. Uma ciência madura deve ser governada por um único paradigma,

esforçando-se para aproximar teorias e fatos.

3-Periodo de Crise: Começa com o enfraquecimento das regras que orientavam a

pesquisa normal. Uma teoria que atingiu o status de paradigma só pode ser

considerada inválida quando existe uma alternativa disponível para substituí-la.

3-Revoluções: As revoluções correspondem ao abandono de um paradigma e a

adoção de um novo pela comunidade científica. Para kuhn, a mudança de adesão por

parte dos cientistas é comparável a uma conversão religiosa.

5-Nova ciência normal: É estabelecida a partir da convergência por parte relevante da

comunidade científica a um novo paradigma.

Assim, as teorias científicas amplamente aceitas são resultado de uma

mudança de paradigma por parte da comunidade científica e não

necessariamente representam melhor a realidade do que as anteriores.

Lakatos e os programas de pesquisa.

Para Imre Lakatos (1922-1974) diferente de Kuhn e Popper, um

programa de pesquisa constitui-se de um “núcleo firme” (conjunto de

hipóteses ou teoria irrefutável) de uma Heurística, que instrui os cientistas a

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modificar o “cinturão protetor” (conjunto de hipóteses auxiliares e métodos

observacionais) de modo a adequar o programa aos fatos.

Um programa é progressivo quando prevê fatos novos e essas previsões

são corroboradas e é regressivo quando não prevê fatos novos, ou as

previsões não são corroboradas.

A história da ciência segundo Lakatos é a história dos programas em

concorrência: as chamadas “revoluções científicas” constituem-se em um

processo racional de superação de um programa por outro, e que só através de

um critério racional na elaboração, estruturação e seguimento do método de

pesquisa é que nos levam a um conhecimento maior da verdade.

Entre suas principais críticas ao falseacionismo de Popper estão:

-Inadequado se considerarmos a história da ciência

-Falsear uma teoria logo no inicia impediria o avanço da ciência

-Não existe falsificação conclusiva.

Desse modo, se considerarmos a história da ciência, segundo Lakatos,

veremos que muitas teorias cientificas respeitáveis tiveram origens pouco

científicas, a química, por exemplo, remete á um desenvolvimento da alquimia

um tipo de conhecimento esotérico medieval não verificável.

E entre as críticas a Kuhn está a ideia de que uma teoria é substituída

por outras quando estas obtém um maior sucesso em fazer previsões e

explicações da realidade, daí a importância de um bom método e não uma

escolha política ou cultural.

Tudo vale?

Essa introdução a Popper, Kuhn e Lakatos constituem uma pequena

amostra das discussões envolvendo a Filosofia e a Ciência, se por um lado

existem filósofos que defendem que a ciência é o mais próximo que temos de

uma explicação da realidade possível, como Lakatos , mas existem outros que

levam o relativismo as últimas consequências como Feyrabend (1924-1994)

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que afirma que a ciência não é melhor do que qualquer outra forma de

conhecimento e que basicamente tudo vale.

Assim, existem disciplinas que se esforçam cada vez mais para ganhar o

rótulo de “boa ciência” e que estão de certa maneira na fronteira dos critérios

de demarcação discutidos aqui, como algumas teorias em Psicologia,

Economia entre outras e áreas consideradas já bem estabelecidas como a

Física (como as diversas teorias sobre a natureza do universo) e a Biologia

(como a espinhosa definição de vida) que vez ou outra enfrentam problemas

com seus métodos e em gerar consensos.

Em todo caso, é importante entender o conhecimento científico não

como um conjunto de Dogmas, de verdades imutáveis, mas como algo

que permite a discussão e a possibilidade de revisão de nossas visões

de mundo.

Questão Socrática: será que a ciência não tem dogmas?

Investigação textual e leitura crítica:

Texto1 : Entrevista com Richard Dawnkins.

(http://www.revistaforum.com.br/frivoloeprofundo/2013/07/29/entrevista-com-richard-

dawkins-pop-star-do-ateismo/ acesso em 25/11/2014)

Nós não levamos a sério a existência do deus nórdico Thor, ou de Zeus, ou de

Dionísio ou de Shiva. Por que deveria ser diferente com o Deus cristão?”

RONALDO RIBEIRO, DA FILADÉLFIA (EUA)

Richard Dawkins, talvez o ateu mais famoso do mundo, biólogo renomado, tipo raro

de intelectual híbrido que comunica bem com o grande público e com os eruditos dos

centros de pesquisa de ponta ao redor do globo. Dawkins alcançou notoriedade tanto

nos círculos acadêmicos dos departamentos de Biologia quanto no delicado debate

público sobre o papel das religiões no mundo contemporâneo.

“Não devemos respeitar crenças que influenciam a vida de crianças e que vão contra

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conhecimento dado como consenso na comunidade científica”

Com The God Delusion (Deus, um Delírio) o cientista se tornou best-seller ao ampliar

suas criticas às religiões em geral e defender que não há nenhuma necessidade de

se conhecer o pensamento religioso ou de se ter qualquer conexão com entidades

divinas para se viver uma vida moralmente digna e eticamente responsável.

“Encontrar códigos morais e referenciais éticos são tarefas da sociedade como um

todo, e não privilégio das autoridades religiosas”

Como figura polêmica que é, Dawkins tem provocado a admiração da comunidade

leiga ao pregar o entusiasmo pelo pensamento livre e não dogmático; e também a ira

de muitos líderes religiosos por sua critica impiedosa do Criacionismo e ao mesmo

tempo sua apologia do ateísmo.

“A dúvida requer mais inteligência e coragem do que a certeza”

Apesar do pensamento sofisticado, agudo e ferino, Dawkins pareceu-me bastante

áfavel, brincalhão e interessado nas idéias alheias. Foi numa pequena sala sala da

Universidade da Pensilvânia, que me encontrei com este Pop Star do ateísmo e da

biologia evolucionária no mundo para a seguinte entrevista:

Fórum – Deus existe?

Richard Dawkins - Nós não sabemos se fadas existem. Nós não levamos a sério a

existência do deus nórdico Thor, ou de Zeus, ou de Dionísio ou de Shiva. Até que

tenhamos sérias evidências de que algum deles tenha existido ou que exista, nós não

perdemos tempo com isso. Por que deveria ser diferente com o Deus cristão, ou com

o judeu ou com o muçulmano?

Fórum – Mesmo que alguém concorde com o que o senhor acaba de dizer, há

milhares de fiéis pelo mundo. Pelo viés da biologia evolucionária, é possível

explicar essa enorme propensão à fé? Haveria nesta propensão qualquer

função evolutiva adaptativa?

Richard Dawkins – Há experimentos em psicologia infantil que demonstram que

crianças quando perguntadas sobre a existência de uma pedra pontiaguda em um

ambiente preferem a explicação que tenha uma causa e uma consequência claras.

Em outras palavras, preferem acreditar que a pedra é pontiaguda para que os animais

daquele ambiente possam usá-la para se coçarem. Não aceitam que a pedra

pontiaguda se formou a partir de processos geológicos e da erosão através do vento

e da água. Talvez muitos dos fiéis de hoje ainda retenham esta atitude infantil ao

pensarem sobre o mundo em que vivemos. Um outra hipótese é que a propensão à fé

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seja simplesmente um resquício do medo de se ficar só em um ambiente hostil. Como

sabemos, por exemplo, um coelho selvagem vive a constante ameaça de ser caçado

por uma onça. Ele precisa encontrar um equilíbrio entre a cautela para se esconder e

a coragem para buscar alimentos. De forma semelhante, os nossos ancestrais viviam

sobre constante ameaça de serem atacados e mortos por outros animais selvagens.

Pode ser que nossa necessidade de criar fantasmas e divindades que vão nos punir

esteja conectada com este traço evolutivo presente em nossos primórdios.

Fórum – O senhor diz que há uma tendência ao silêncio em relação às doutrinas

religiosas dos outros, que as pessoas evitam debater sobre as suas próprias

crenças, e que este fato é nocivo à sociedade. De onde surge tal silêncio? Não

seria necessário simplesmente respeitar as diferentes crenças das pessoas?

Richard Dawkins - Não. Não devemos respeitar crenças que influenciam a vida de

crianças e que vão contra conhecimento dado como consenso na comunidade

científica. Uma coisa é uma pessoa dizer que acredita em Papai Noel e manter esta

crença dentro de sua família – ainda que eu considere uma pena para os filhos desta

pessoa. Acho que as pessoas tem o direito de acreditar em qualquer invenção que

quiserem. Quando algumas pessoas, contudo, começam a ensinar que a terra tem

apenas cerca de dez mil anos, aí eu acho um absurdo, e quero lutar contra isso. Não

podemos simplesmente respeitar as crenças dessas pessoas quando elas vão

diretamente contra dados demonstrados pela ciência.

Fórum – O senhor se refere ao Criacionismo e o seu ensino em escolas

americanas.

Richard Dawkins - Sem dúvida. Se eu entrar em uma universidade para uma

discussão e declarar que a terra não é redonda, eu serei imediatamente acusado de

ignorante ou chamado de lunático. As teorias de Darwin são consenso no meio

acadêmico, e o fato de que a terra tem bilhões de anos de idade não está em

discussão.

Fórum – Com alguma frequência os seus debatedores se referem ao senhor

como ríspido. Minha primeira impressão não…

Richard Dawkins - Discutir as crenças religiosas dos outros se tornou um tabu tão

grande que qualquer um que pede uma explicação, independentemente do tom

educado, é visto como desagradável. Quando pergunto a alguém por que é que ela

acredita em espíritos que se reencarnam, estou querendo genuinamente saber o

porquê. Estou interessado na troca de idéias.

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Fórum – O novo papa é argentino. Um brasileiro e um mexicano tinham sido

seriamente cotados para vencerem as eleições. É possível dizer que isso

representa um avanço em termos políticos da fé no mundo em

desenvolvimento?

Richard Dawkins - Se pensarmos que haverá uma menor centralização política

daqueles que determinam o futuro da Igreja Católica, sim, sem dúvida.

Fórum – Um ponto de vista que parece-me central na sua obra não acadêmica é

a ênfase que o senhor dá à possibilidade de qualquer um rejeitar crenças

religiosas ou vivências espirituais e ainda assim viver uma vida plena e ética.

Sem as religiões, onde é que nós encontraríamos códigos morais? Não seria

necessário buscar um referencial ético em algum lugar?

Richard Dawkins - Suspeito que não encontramos regras morais nos ensinamentos

religiosos. Se fosse esse o caso, nossa conduta moral não se alteraria praticamente a

cada década, seria estanque. Pense que até bem recentemente nós considerávamos

a escravidão como algo normal, e que também as mulheres não deveriam participar

dos processos democráticos. Os textos “sagrados” não dizem nada a este respeito

porque essas são questões mais atuais. E o todo da sociedade tem repensado

conjuntamente como encarar tais problemas. Encontrar tais códigos morais e

referenciais éticos seriam tarefas da sociedade como um todo.

Fórum – E quanto àquilo que não conseguimos explicar? Não vem daí uma das

“necessidades” da religião e da crença no “supernatural”?

Richard Dawkins - Esta talvez seja uma das explicações que mais me aborrecem

para se crer em uma deidade. Eu gostaria que as pessoas não fossem preguiçosas,

covardes e derrotistas o suficiente para dizer “eu não consigo explicar, portanto isto

deve ser algo supernatural.” A resposta mais correta e corajosa seria a seguinte: “eu

não sei ainda, mas estou trabalhando para saber.”

Fórum – O dramaturgo novaiorquino John Patrick Shanley, autor da peça

Dúvida que deu origem ao filme homônimo com Merryl Strip, esteve aqui

também, falando para uma série de alunos e professores. Na ocasião ele

parafraseou um de seus escritos e disse: “a dúvida requer mais inteligência e

coragem do que a certeza.” Como o senhor se relaciona com essa idéia?

Richard Dawkins - De forma simples. Concordo plenamente.

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Texto 2: Sir Karl Popper e o Argumento da Demarcação.

(SWAN, Stilwagon,Liz, Sir Karl Popper e o Argumento da Demarcação.IN IN BRUCE, Michael,

BARRONE, steven (org.), Os 100 argumentos mais importantes da Filosofia ocidental, p.406-

407,1ed.São Paulo, Cultrix, 2013.)

O problema que me incomodava na época não era nem “quando uma teoria é

verdadeira?” e nem “Quando uma teoria é aceitável?”. Meu problema era diferente.

Eu queria fazer a distinção entre ciência e pseudociência, sabendo muito bem que a

ciência muitas vezes erra, e que a pseudociência pode tropeçar por acaso na

verdade. (conjecturas, 44)

Quanto a Adler, fiquei muito impressionado com uma experiência pessoal. Uma vez,

em 1919,relatei a ele um caso que não me parecia particularmente adleriano, mas

que ele não encontrou dificuldade para analisar em termos de sua teoria do

sentimento de inferioridade, sem ter nem mesmo visto a criança.Um pouco chocado,

perguntei como podia ter tanta certeza. “ por causa da minha experiência , já tive mil

casos assim”, respondeu ele. Depois disso, não pude deixar de dizer: “E agora,

suponho, sua experiência aumentou para mil e um casos”.

(conjecturas,368)

A história da ciência, como a de todas as ideias humanas, é uma historia de sonhos

irresponsáveis, de obstinação e de erro. Mas a ciência é uma das pouquíssimas

atividades humanas-talvez a única- em que os erros são criticados de modo

sistemático e, com bastante frequência, corrigidos a bom tempo. É por isso que

podemos dizer que, em ciência, muitas vezes aprendemos com nossos erros, e é por

isso que podemos falar de forma clara e sensata sobre fazer progresso. (conjecturas,

293)

P1.Se uma teoria é cientifica, então faz afirmações ou previsões que podem ser

refutadas.

P2.Uma teoria que garante apenas a confirmação(e ignora evidências refutáveis) não

pode ser refutada.

C1.Uma teoria que só pode ser confirmada e não refutada não é cientifica, mas

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pseudocientífica.

Texto 3: Feyerabend contra o método (excertos)

(FEYERABEND, Paul. Contra o método: tradução de Octanny S. da Mota e Leônidas Hegenberg. Rio de

Janeiro: F. Alves, 1977.)

INTRODUÇÃO : p.17

A ciência é um empreendimento essencialmente anárquico: o anarquismo teorético é

mais humanitário e mais suscetível de estimular o progresso do que suas alternativas

representadas por ordem e lei.

I p. 7

Isso é demonstrado seja pelo exame de episódios históricos, seja pela análise da

relação entre idéia e ação. O único princípio que não inibe o progresso é: tudo vale.

Qualquer idéia, embora antiga e absurda, é capaz de aperfeiçoar nosso

conhecimento. A ciência absorve toda a história do pensamento e a utiliza para o

aprimoramento de cada teoria. E não se respeita a interferência política. Ocorrerá que

ela se faça necessária para vencer o chauvinismo da ciência que resiste em aceitar

alternativas ao status quo.

V p.77

Nenhuma teoria está em concordância com todos os fatos de seu domínio,

circunstância nem sempre imputável à teoria. Os fatos se prendem a ideologias mais

antigas, e um conflito entre fatos e teorias pode ser evidência de progresso. Esse

conflito corresponde, ainda, a um primeiro passo na tentativa de identificar princípios

implícitos em noções observacionais comuns.

Texto 4: A torre de Babel científica.

(MARTINS, Roberto de Andrade. A Torre de Babel científica. Scientific American–Os Grandes Erros da

Ciência Especial História, v. 6, p. 6-13,Dueto editora, 2006.)

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Em busca de um conhecimento que está além do alcance humano, a ciência

incorre reiteradas vezes em erro. E aprende, a duras penas, a diferença

existente entre o território e o mapa.

Por Roberto de Andrade Martins

Segundo o relato bíblico, houve um tempo em que os homens resolveram construir

uma enorme torre, maior do que as montanhas, que chegasse até o céu.

Por causa do seu excesso de orgulho, Deus confundiu as línguas dos que tentavam

construir a Torre de Babel: eles se desentenderam e não conseguiram atingir seu

objetivo.

Esse mito tem sido utilizado para simbolizar o fracasso diante de tarefas

excessivamente ambiciosas. A humanidade tem tentado, ao longo dos séculos,

edificar um conhecimento sólido, que abranja todas as áreas e atinja o nível supremo

- a verdade. De tempos em tempos, as mais elaboradas construções científicas caem

por terra. Será que fomos amaldiçoados também por nossa vaidade e auto-

suficiência? É importante compreender os limites da ciência e a natureza dos erros

em que ela incorre.

O legado da Antiguidade.

A RELIGIÃO, A FILOSOFIA E A CIÊNCIA procuram atingir a verdade por caminhos

diferentes. Mas tentar é uma coisa, chegar lá é outra. Na antiguidade, povos que

permaneciam relativamente isolados, do ponto de vista cultural podiam acreditar que

sua religião, suas crenças e suas leis fossem as únicas válidas. Admite-se que a

grande atividade comercial dos gregos, acompanhada de contatos com diversas

culturas, tenha sido um dos fatores que fizeram com que seus melhores cérebros

começassem a indagar: afinal de contas, onde está a verdade?

Seja por esse motivo ou por algum outro desconhecido, ocorreu um despertar do

mundo grego para o debate filosófico no século VI antes da era cristã. Porém, em vez

de ocorrer um trabalho de colaboração para substituir as crenças tradicionais por algo

mais sólido, o que se verificou foi uma verdadeira confusão, em que cada filósofo

defendia uma opinião diferente.

Em meio a todos os debates que sucediam, foram surgindo algumas coisas que

pareciam mais sólidas do que as demais. Existiam conhecimentos como a geometria

e a astronomia, que não apenas permitiam obter resultados práticos' (como a

previsão da posição dos astros e a predição de volumes e áreas úteis para o

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arquiteto), mas pareciam estar bem fundamentados. Durante a antiguidade, essas

duas áreas atingiram um nível espantoso de perfeição. A matemática (com aplicações

como a música, a astronomia e a geografia) parecia o exemplo - de um conhecimento

sólido e que deveria durar para sempre.

No mundo helenístico que herdou o pensamento grego, especialmente em

Alexandria, havia bons motivos para otimismo a respeito do conhecimento humano.

A filosofia de Aristóteles começava a predominar sobre as outras correntes e,

aparentemente, oferecia um caminho seguro para o desenvolvimento de todas as

ciências, além de proporcionar a base que fundamentava os conhecimentos

matemáticos.

A geometria sistematizada por Euclides era uma teoria axiomático-dedutiva, do tipo

prescrito pelo próprio Aristóteles, que permitia demonstrar todos os resultados dessa

ciência com base em poucos pressupostos bastante evidentes.

Os conhecimentos sobre a Natureza haviam atingido um excelente desenvolvimento

com os trabalhos de Aristóteles e seu discípulo Teofrasto. A medicina desenvolvida

por Galeno utilizava a tradição de Hipócrates combinada à filosofia de Aristóteles, que

proporcionou também a base cosmo lógica para o desenvolvimento da astrologia. O

Cosmos era esférico, a Terra estava parada em seu centro, existiam quatro

elementos básicos na Natureza, não havia espaços vazios, e todas essas ideias se

encaixavam e se reforçavam mutuamente.

Formou-se um sólido sistema de pensamento que foi conservado e aperfeiçoado

pelos filósofos, matemáticos e médicos islâmicos durante a Idade Média. Não foi por

simples preguiça ou comodismo que as pessoas aceitaram durante séculos essa

tradição antiga - ela era uma realização notável que parecia destinada a durar para

sempre.

Nessa época - como também em outros períodos da humanidade - as pessoas que

tinham qualquer dúvida mais profunda sobre a ciência até então edificada pareciam

simples excêntricos irritantes. Havia, é verdade, uma corrente filosófica cética

bastante sofisticada, que criticava de forma profunda as bases do conhecimento.

Conhecer os argumentos céticos é muito útil para quem pretende sondar os

fundamentos e os limites da ciência; no entanto, um ceticismo radical é incompatível

com o próprio desenvolvimento científico.

No mundo islâmico medieval, como atualmente, quase todos acreditavam que as

bases do conhecimento eram sólidas e que o trabalho dos pesquisadores seria

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apenas alterar detalhes arquitetônicos e acrescentar novos tijolos à construção.

A revolução científica do século XVII

PORÉM, QUASE TUDO EM QUE SE ACREDITAVA nessa época precisou ser

abandonado. No final da Idade Média e no Renascimento, começaram a aparecer

fendas na magnífica torre. O mundo geográfico e intelectual se ampliou. As grandes

navegações - motivadas, no caso de Colombo, por um erro a respeito do tamanho da

Terra (ver "O engano de Colombo e o descobrimento da América") - despertaram o

interesse pela busca de novidades de todos os tipos, inclusive as intelectuais. Os

europeus tomaram conhecimento de novas terras, novos povos, novos idiomas,

novos animais, novas plantas, novas doenças. Não se sabia distinguir nem mesmo o

real do fantástico, e relatos a respeito de sereias, de homens com um olho na testa ou

uma perna só eram aceitos por quase todos, sem discussão.

Aqui e ali, começaram a ser corrigidos erros milenares, como a anatomia do ser

humano e a circulação do sangue.

Desde Copérnico (1473-1543) até Newton (1642-1727), uma sequência de

pensadores desmontou toda a cosmologia aristótelica, tirando a Terra do centro do

Cosmos, abrindo a "esfera das estrelas" e descobrindo novos mundos celestes.

Porém, a visão que foi desenvolvida naquela época a respeito da estrutura do

Universo continuava equivocada, tendo sido substituída por uma nova concepção no

início do século XX (ver "As 'nebulosas' como nuvens proto-estelares").

Durante a "revolução científica" do século XVII, surgiram vários pensadores que

procuraram entender como a humanidade havia se equivocado tanto e como seria

possível evitar novos erros. Um dos personagens emblernáticos dessa época foi o

filósofo Francis Bacon (1561-1626), cujas propostas inspiraram depois a criação da

Royal Society de Londres.

Sempre há bons motivos para o erro.

O CONHECIMENTO HUMANO É UMA BUSCA SEM FIM, que leva a resultados

provisórios, não à verdade. Não se deveriam utilizar expressões como "verdade

científica" ou "cientificamente provado", que transmitem uma visão deturpada da

natureza da ciência.

Não há um "método científico" capaz de construir um conhecimento livre de falhas.

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Muitos pensadores, como Aristóteles, Bacon, Descartes e outros, acharam que havia,

mas a história se encarregou de mostrar que estavam enga-Sir Francis Bacan, Baron

afVeru/am, Viscount SI. A/bans, de Paul van Somer~ (c.1576.1621). Em uma série de

obras publicadas no início do século XVII, &: Bacon criticou o respeito excessivo aos

antigos pensadores e defendeu um novo método de estudar a Natureza. Mas suas

tentativas de evitar a ocorrência

As versões populares da história da ciência costumam afirmar que a descoberta do

"método experimental" por Galileu resolveu todos os problemas.

Isso não é verdade. Galileu e todos os que o imitaram cometeram inúmeros

equívocos, alguns deles gravíssimos - como a defesa, por Galileu, de movimentos

celestes circulares (negando as elipses de Kepler) e sua crítica à idéia de que os

cometas pudessem ser corpos celestes, defendendo a interpretação de Aristóteles

(ver" A natureza dos cometas e o escorregão de Galileu").

Isaac Newton, considerado durante o século XVIII um modelo de raciona lida de

científica, chegou a algumas de suas mais importantes idéias influenciado por

concepções filosóficas de natureza alquímica - algo rejeitado pela ciência

contemporânea (ver "Os 'poderes ocultos' da matéria e a gravitação universal"). Até

mesmo a geometria antiga, que parecia uma conquista eterna, caiu por terra no

século XIX (ver "As geometrias não-euclidianas e a o fim das 'verdades inabaláveis"').

Nenhum desses erros era tolo. O nível intelectual dos grandes pensadores antigos

não era inferior ao dos mais recentes.

Em cada um dos casos que serão analisados nos artigos seguintes, os equívocos

eram fruto de reflexão, e havia bons motivos para aceitá-los, antes de sua derrocada.

Errar é a regra, não a exceção.

Não se deve pensar que apenas os antigos erravam: grandes erros foram cometidos

por cientistas que respeitamos atualmente. Tal é o caso de Charles Darwin, que

defendeu a herança de caracteres adquiridos (ver "A herança dos caracteres

adquiridos e a 'mutação' dos animais"), e Albert Einstein, que primeiro negou depois

defendeu a existência de um éter (ver "Do éter ao vácuo e de volta ao éter").

A interpretação de Niels Bohr para a mecânica quântica, que é ensinada ainda hoje

por quase todos os professores universitários, assumia a impossibilidade de uma

teoria de variáveis ocultas. No entanto, na década de 50, David Bohm demonstrou

que isso era perfeitamente possível, formulando um modelo alternativo igualmente

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consistente (ver "As interpretações conflitantes da mecânica quântica").

Cometer equívocos, no entanto, não tira o valor deste e de outros pensadores. Errar é

a regra, não a exceção. O único modo seguro de não dizer nada errado é ficar em

silêncio- mas isso significa ficar fora do jogo, não participar da construção da grande

torre.