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ELISETE DIOGO Motivações e Experiências

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ELISETE DIOGO

Motivações e Experiências

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Uma criança nasce…Para ser amada e viver

Ser flor e ser pássaroDesabrochar

E ser livre para crescer.Esta semente plantada

Necessita ser regadaCom carinho e amparada

Em regaços de amor.

E quando a criança não temNo ninho donde provém

Quem a cuide e a proteja,Anjos há:

Com olhar que acaricia e Um colo que acolhe,

Longos braços que envolvemEm abraços que confortam…

Almofadas que protegem osPulos ou as quedas

Os pinos e as cambalhotasDo crescimento.

António Castel-Branco, 2017(Poeta e professor.

Sempre educador e provedor da criança)

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Índice

Siglas 9Agradecimentos 10

Em tom de prefácio 11Dr. Paulo Guerra, juiz desembargador

Introdução 17

PARTE I – Enquadramento do acolhimento familiar 23Capítulo 1Modelos de bem-estar social, família e sistemas de proteção da criança 24Modelos de bem-estar social 24Políticas públicas e família 29Sistemas de proteção da criança 35

Capítulo 2Famílias e famílias de acolhimento 52

PARTE II – O acolhimento familiar de crianças 77Capítulo 3Acolhimento familiar de crianças 773.1. Conceito de acolhimento familiar 773.2. Evolução social e jurídica 783.3. Características do acolhimento familiar em Portugal 813.4. Dimensão da implementação do acolhimento familiar 833.5. Instituições de enquadramento 88

Capítulo 4Famílias de acolhimento de crianças 924.1. Famílias de acolhimento em Portugal 924.2. Motivações das famílias de acolhimento 964.3. A experiência das famílias de acolhimento 99

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PARTE III – Estudo empírico 108Capítulo 5Análise e interpretação dos resultados 1085.1. Famílias de acolhimento: uma galeria de retratos 1085.2. O processo de construção da motivação para ser família de acolhimento 1295.3. A experiência de ser família de acolhimento 1465.4. Famílias de acolhimento e serviços de acompanhamento 174

5.4.1. A motivação das famílias de acolhimento: a visão dos serviços 1755.4.2. A experiência das famílias de acolhimento: a visão dos serviços 1785.4.3. A renovação da disposição para o acolhimento: a visão dos serviços 182

Capítulo 6Discussão dos resultados 185Desafios, limites e pistas da investigação 202Considerações finais 205

Bibliografia 211

Índice de figuras, quadros e tabelas

Figura 1 – Influências cibernéticas entre o sistema familiar e social 60Figura 2 – Processos-chave da resiliência familiar (Walsh, 2002: 132) 67Figura 3 – Diagrama: fatores produtores da motivação para ser família de acolhimento 146Figura 4 – Diagrama: fatores produtores da renovação da disposição para

ser família de acolhimento 173Quadro 1 – Crianças em acolhimento familiar em 2015, por distrito e escalão etário 84Quadro 2 – Crianças em acolhimento familiar em 2015, por distrito e escalão

de duração do acolhimento 85Quadro 3 – Distribuição geográfica das famílias de acolhimento portuguesas 93Tabela 1 – O papel do Estado perante o mau-trato da criança: a orientação para

o serviço à família e a orientação para a proteção da criança 39Tabela 2 – O papel do Estado perante o mau-trato da criança: a orientação para

o serviço à família, a orientação para a proteção da criança e a proposta «foco na criança» 40

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Em tom de prefácio

«Demorei quatro anos para pintar como Rafael;uma vida para pintar como uma criança.»

Pablo Picassopintor

1. Quero aqui falar delas – de crianças («menor» é palavra malcheirosa, a extirpar definitivamente do nosso léxico e legislação).

Das que me fizeram suar nos tribunais.Daquelas que, com nome, viveram histórias sem nome.O meu desejo é que elas, as crianças deste país, possam dizer: «O meu

passado familiar não tem necessariamente de determinar o meu futuro».Mas quem não recordar o passado está condenado a repeti-lo! Porque, embora ninguém possa voltar atrás e fazer um novo começo, qual-

quer um pode começar agora e fazer um novo fim…Torna-se, por isso, necessário que todos os atores implicados, direta

ou indiretamente, no processo de crescimento do ser humano (família, escola, comunidades educativas, religiosas, etc.) providenciem um sistema de ações de apoio ao desenvolvimento da criança.

Políticas educativas uniformizadas ou comparáveis exigiriam uma de-finição clara, objetiva e operacional (UNESCO, 2002) dos serviços para a primeira infância, bem como a sua interligação com os restantes serviços e instituições educacionais e sociais especialmente dedicados às crianças que, em última análise, constituiria o verdadeiro sentido de Educar.

Este estatuto «maior» que a primeira infância tem de conquistar é de-fendido por investigadores tão conceituados como Brazelton e Greenspan (2002), que afirmam:

«A primeira infância é simultaneamente a fase mais crítica e a mais vulnerável no desenvolvimento de qualquer criança. A nossa investi-gação, bem como as de outros, demonstram que é nos primeiros anos de vida que se estabelecem as bases para o desenvolvimento intelectual,

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emocional e moral. Se não for nessa fase, é certo que a criança em de-senvolvimento pode ainda vir a adquiri-las, mas a um preço muito mais elevado e com hipóteses de sucesso que vão diminuindo à medida que decorre cada ano. Não podemos negligenciar as crianças nesses seus pri-meiros anos de vida».

A construção de um projeto educativo para os espaços onde se educa uma criança exige, assim, «que se considere as crianças e seus profissionais como seres históricos, criadores de cultura e sujeitos de direito. É preciso enfrentar a realidade. Mascará-la ou ignorá-la é fugir ao compromisso e continuar com medidas paliativas».

A forma como a infância é definida num determinado momento histó-rico influencia a forma como se entende o que é ou não abusivo.

Como diria Loyd De Mause, «a história da infância é um pesadelo do qual só recentemente começamos a acordar. Quanto mais longe vamos na história, mais baixo e deficiente é o nível de cuidados para com a infân-cia, maiores são as probabilidades de morte, abandono, espancamento e abuso sexual…»

2. Ora, todas as crianças precisam de colo.De muito colo.Mesmo contra a opinião de muitas avós que, do alto das suas experiên-

cias maternas e avoengas, vão opinando que colo a mais faz mal.É da natureza humana a precisão de vinculação.A um outro.A alguém que tem de ser capaz de amar e cuidar de uma criança como

ela merece, de acordo com os cânones expostos nas Magnas Cartas da infância, todas iluminadas pelo espírito generoso e terno da Convenção dos Direitos da Criança, aprovada pela ONU em 1989 e logo ratificada pelo Estado Português no ano seguinte, fazendo, assim, e por isso, parte do cotejo de legislação que pode e deve ser diretamente aplicada a todas as crianças portuguesas ou residentes em Portugal.

Nem sempre a biologia é sinónimo de vinculação. O sangue não é uma sina para a vida. E assim, por vezes, haverá que entregar uma criança ao laço adotivo, completamente similar ao biológico, a partir do momento em que existe uma sentença judicial constitutiva da providência tutelar cível em causa – a adoção.

E, quer numa quer noutra, os pais vão ter de ser adotados pelo filho que lhes foi entregue pela placenta ou por vontade soberana de um juiz

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– e, como diz Laborinho Lúcio, que bom seria que todos os filhos fossem adotados, até os biológicos!

Mas uma criança pode viajar para o colo de outras pessoas sem ser pela adoção – existem outros caminhos, menos radicais, que podem até coexistir com alguma parte do exercício das responsabilidades parentais nas mãos da progenitura biológica.

E esses caminhos são trilhados pela legislação portuguesa – podemos estar a falar de limitações do exercício das responsabilidades parentais, de tutelas, de apadrinhamentos civis ou de medidas de promoção e proteção à luz da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (LPCJP, doravan-te), datada de 1999 mas revista, em grande espectro, em 2015.

O acolhimento familiar de crianças, a que esta obra rende homenagem e a cujo conceito dá guarida, está previsto como uma das medidas pro-tetivas aplicáveis pelas comissões de proteção e pelos tribunais aquando da constatação de quem criança está em perigo, lido sob a égide do artigo 3.º, n.º 2 da LPCJP.

E sabemos que este é um momento charneira neste país – a lei quer que as crianças até aos seis anos vivam em famílias de acolhimento se tiverem de ser separadas de seus pais, de forma provisória.

Temos lei, temos norma, queremos ação!

3. Temos por assente que é FUNDAMENTAL para uma criança o di-reito de viver numa família como privilegiada forma de realização pessoal e de consolidação da sua autonomia crescente.

E, por isso, é essencial ter-se presente que uma família deve ser apoiada pelo Estado nessa suprema tarefa de educação de um filho.

Só quando a sua família biológica não cumpre os seus deveres funda-mentais para com a criança – não aproveitando as ajudas que o Estado lhe lança ou não tendo objetiva e subjetivamente condições para as usufruir – é que se deve cogitar a hipótese da sua residencialização, no âmbito do sistema protetivo português.

Sendo que o processo de promoção e proteção deve subordinar-se ao princípio da prevalência da família – não podendo esquecer-se que o princípio da prevalência da família, tantas vezes afirmado em textos internacionais, deve ser interpretado no sentido da preferência por uma solução que implique a inserção da criança numa família funcional, seja ela a biológica, próxima e alargada, a do apadrinhamento civil ou a adoti-va –, não é, porém, defensável levar ao absoluto tal princípio, quando as

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circunstâncias concretas o exijam, pois que não são os laços sanguíneos que determinam nos visados as aptidões para cuidar e amar crianças, aju-dando-as no seu crescimento emocional e integração social.

Ou seja:– Viver numa casa de acolhimento não é viver no seio de uma família;– A criança em perigo deve sair da casa de acolhimento o mais rapidamente

possível:• Ou regressando ao seio da sua família biológica, próxima ou alargada, e

sempre melhorada; • Ou sendo encaminhada para os circuitos do apadrinhamento civil, do aco-

lhimento familiar ou da adoção;• Ou autonomizando-se no exterior da dita casa de acolhimento.Ora, a nossa jurisprudência tem avançado nessa linha, colocando a

medida tutelar de acolhimento residencial, outrora institucional, como o último recurso da política de proteção da infância em perigo, levando à aplicação célere e em tempo útil para a criança de medidas que a colo-quem, com algum grau de estabilidade, no seio de uma FAMÍLIA.

4. Em 2015, assistiu-se, assim, a uma explícita mudança de paradigma:– Privilegiar o acolhimento familiar, em particular até aos seis anos de

idade (venham as bolsas de famílias, para a construção das quais será preciso uma política de captação das mesmas, nisso comprometendo a tutela e a comunidade);

– Do acolhimento institucional ao acolhimento residencial;– Especialização dos acolhimentos residenciais de acordo com as ca-

racterísticas da população que integra.Ernesto Candeias Martins, na obra As infâncias na história social da

Educação – fronteiras e interceções sócio-históricas opina sabiamente que «o futuro da sociedade impõe que seja concretizado o respeito pela auto-nomia das famílias e, em especial, o respeito pelos direitos das crianças, considerando-as o futuro da família em que se inserem e da sociedade em que vivem e daí ser fundamental prosseguir uma política de família que proporcione o seu crescimento e desenvolvimento saudável e harmonio-so», adiantando depois que «é óbvio que todas as crianças têm direito a ter uma família, a crescer nela condignamente e, antes de tudo, que a família tenha a capacidade de proporcionar-lhe afeto».

Esta obra que ora se prefacia é também absolutamente crente da ideia de que a criança cada vez mais tem direito ao convívio com quem a ama

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verdadeiramente, merecendo vincular-se a adultos de referência afetiva para si, sejam progenitores, sejam outros seres que tenham um significado rele-vante na sua vida e que povoem os seus afetos e a sua margem de ternura.

A lei e a jurisprudência dão colo a esta ideia.Mas, mais do que mudar a lei, há que, muitas vezes, mudar as práti-

cas… Ainda a tempo de evitar que haja janelas opacas, mais ou menos transpa-

rentes, entre a criança e as pessoas com significado afetivo para ela.Porque a criança nos dirá…– Dizem que tenho direitos. Mas eu sei que também tenho deveres.

E tenho direito aos deveres.– Quero firmeza, cuidado, bom trato e ternura. Nem sempre os tenho,

nem sempre os tive.– Acredito que o futuro não será feito através das descobertas da ciên-

cia mas depende essencialmente da descoberta dos mecanismos dos afetos.

– Com o respeito pela humana vida e pelos direitos fundamentais de cada homem e de cada criança, quase-homem, invocados na convic-ção, na voz, na pena, na intenção, na vocação e na prática de cada magistrado, de cada trabalhador social, de cada homem e mulher que trabalha a infância e a juventude.

– Ainda a tempo de apanhar a alma das coisas…Ainda a tempo de a salvar…E de responder NÃO a esta questão posta por ela: «Não sei se me queres

como sombra dos teus dias ou apenas como mais um lugar à tua mesa».No fundo, ainda a tempo de constatar a diferença entre uma mãe que

teve 16 filhos e outra que, afinal, teve um filho 16 vezes…

5. Toda a criança caminha sobre as águas.Porque tem um afeto correspondido – conhecem a sua alma, as suas

birras, os seus anseios. Pode ter uma mãe e um pai. Ou qualquer outra combinação de afeto. Não quer viver residencializada mas larizada – em lar, em lareira acesa,

em família, seja qual for a cor ou o credo de que se revista. Quer acreditar que o que diz o artigo 46.º da nova LPCJP vai ser ver-

dade – não vai ter de conhecer uma casa de acolhimento até aos seis anos de idade, caso seja retirada do convívio com os seus pais.

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Ela acredita no verde da água, na alma das coisas e das pessoas que não se servem dela para credos políticos.

Quer estar na agenda dos políticos mas não a qualquer preço! E isto tem a ver com a dignidade da pessoa chamada CRIANÇA!

Dignidade da criança que é o apelido desta obra de Elisete Simões Diogo, que, de forma exemplar, nos aproxima deste conceito de «família de acolhimento», dando-nos pistas para o dia de amanhã.

Elisete Simões Diogo, o sistema de promoção e proteção agradece-lhe.As crianças agradecem-lhe.Temos todos de estar permanentemente acordados pois essa é a sua

luz, aquela que ilumina os casarios e vigia as crianças portuguesas ou aqui residentes no seu sono.

O sistema tem a sua porção de poder na mão, mesmo trabalhando com consensos e consentimentos bem expressos.

Mas não tenhamos ilusões – o poder só é necessário para fazer o mal. E não esqueçam o principal – para fazer todo o resto, muitas vezes,

basta o AMOR (um outro nome para o afeto, um valor jurídico constitu-cional em Portugal)!

Porque uma obra sobre a INFÂNCIA e sobre as desejáveis famílias de acolhimento também pode ser – e é – um ato de AMOR…

Coimbra, 9 de setembro de 2018

Paulo Guerra, juiz desembargador

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Introdução1

A problemática em estudo: propósito

O acolhimento familiar de crianças, enquadrado no Sistema de Pro-moção e Proteção de Crianças, constitui um tema na ordem do dia, acen-tuado pela segunda alteração à Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, aprovada pela Lei n.º 147/99, de 1 de setembro, por conseguinte, a Lei n.º 142/2015, de 8 de setembro. Volvidos quase três anos, os dados do relatório CASA (2017) mostram que, em 2016, das 8175 crianças em si-tuação de acolhimento, apenas 3,2% estavam em famílias de acolhimento. Verificando-se algumas reservas provenientes de diversos intervenientes sociais sobre esta medida, importa densificar a investigação e o conhe-cimento da realidade. Percebe-se que o estudo do acolhimento familiar está ainda fracamente desenvolvido ao nível científico em Portugal (cf. Delgado, 2007; 2008; 2013), à semelhança do que é igualmente assinalado nomeadamente por autores brasileiros e espanhóis, pois, como assinalam Del Valle et al. (2008:24), «Apesar de ser uma medida tão utilizada, os estudos espanhóis sobre o acolhimento familiar como recurso de prote-ção à infância começaram muito recentemente e são ainda escassos, assim como a implementação de programas específicos dirigidos a eles». O co-nhecimento da perspetiva e da experiência das famílias de acolhimen-to contribuirá para aumentar a compreensão, melhorar a qualidade do acompanhamento técnico e eventualmente o seu desempenho, com vista ao alargamento do número de famílias a acolher e, por via desse caminho, também aumentar o número de crianças, acolhidas, a crescer em família, consideradas as vantagens que lhe são apontadas. Delgado (2013: 112), em linha com um vasto conjunto de literatura internacional, defende que «o Acolhimento Familiar é descrito como um contexto apropriado para pro-mover o desenvolvimento adequado da significativa maioria das crianças, no ambiente escolar, ao nível do comportamento e no campo da saúde».

A presente investigação visa apresentar a perspetiva das famílias de acolhimento, baseando-se em narrativas. Consistindo em entrevistas em profundidade, ao longo dos discursos emergem processos que aqui estão

1 A tradução das citações das obras foi efetuada pela autora.

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em análise, como predisposições, motivações, experiência, necessidades, impactos nas dinâmicas pessoais e familiares de famílias que acolhem ou acolheram crianças em situação de desproteção social. Estudos se-melhantes foram desenvolvidos em outros países, considerando que «os cuidadores têm uma responsabilidade significante no cuidado de crian-ças vulneráveis. De modo a apoiar e facilitar os cuidadores é importante compreender como percebem e sentem esta responsabilidade» (Blythe et al., 2013: 87). No âmbito internacional, há referência a alguns estudos similares ao que se apresenta, como o que entra no mundo de dez famílias de acolhimento do País de Gales, analisando o que ajuda a promover o sucesso no acolhimento, objetivando «observar o quotidiano e a expe-riência da família de acolhimento e centrar-se nestas práticas que definem este marcante funcionamento» (Rees, 2013: 1). Doyle e Melville (2013: 71) examinaram os «motivos e atitudes das pessoas que se voluntariam a acolher crianças com elevadas necessidades de apoio», também através de um estudo qualitativo, envolvendo 23 cuidadores. O livro The Lives of Foster Carers, de Nutt (2006), sendo focado nos cuidadores, explora as contradições, os conflitos e as ambiguidades enfrentados pelas famílias de acolhimento. Em Espanha foi efetuado um estudo a 673 famílias, sendo 381 famílias de acolhimento (e as restantes acolhedores no âmbito da fa-mília alargada), visando

«Descrever detalhadamente o perfil dos protagonistas diretos do acolhimen-

to familiar […] Estudar os resultados do acolhimento familiar em termos de

cessação e continuação para os meninos e meninas, assim como para a famí-

lia acolhedora, tratando de analisar o tipo de evolução e estabelecer relações

entre a evolução do acolhimento e algumas variáveis do caso. Descrever as

necessidades das famílias de acolhimento (sem laços de sangue)» (Del Valle et

al., 2008: 47 a 48).

O interesse em dar voz às famílias de acolhimento portuguesas, atra-vés das entrevistas narrativas, é sustentado por Delgado (2013: 170), que menciona determinadas pistas de investigação de modo a aprofundar os estudos portugueses já realizados, referindo que «seria interessante reco-lher narrativas dos acolhedores que permitissem aprofundar a compreen-são acerca das suas motivações, […] bem como determinar o seu nível de satisfação […]». No plano nacional, estudos coordenados por Delga-do apresentam uma tipologia de cariz predominantemente quantitativo,

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A problemática em estudo: propósito 19

pelo que a originalidade deste trabalho assenta na abordagem qualitativa, compreensiva e interpretativa que qualifica o conhecimento do Serviço Social. Inequivocamente, o Serviço Social tem aqui a sua marca – note-se que desde a sua emergência intervém no problema da criança e da famí-lia (cf. Ferreira, 2011). Enquanto atividade profissional, percebemos que o assistente social é um profissional presente, quer nas equipas envolvi-das na decisão da medida de proteção infantil a aplicar pelas comissões de proteção de crianças e jovens em risco, equipas multidisciplinares de apoio ao tribunal/equipas de crianças e jovens da Segurança Social, quer nas equipas de acompanhamento de crianças e famílias envolvidas na me-dida. Para o desempenho destes profissionais, e para o aprofundamento desta temática, considera-se que o estudo que se apresenta será uma mais--valia para o Serviço Social, considerando os princípios que lhe estão ine-rentes e o superior interesse da criança, de modo a promover a proteção e o bem-estar da criança e, paralelamente, a mudança social.

Por último, e num plano mais pessoal, existe uma enorme motivação para o desenvolvimento deste tema, por um lado pelo nosso percurso profissional e académico, sempre incidindo na proteção infantil e na in-tervenção familiar, e por outro lado considerando o interesse em futura-mente poder vir a integrar as equipas de acompanhamento destas famílias no terreno.

Aspetos metodológicos

O presente estudo foi realizado no âmbito da elaboração de uma tese de doutoramento em Serviço Social, pela Faculdade de Ciências Huma-nas da Universidade Católica Portuguesa, sob orientação do Professor Doutor Francisco Branco. Sendo um estudo de cariz qualitativo, recorre-mos às entrevistas narrativas para a obtenção da perspetiva das famílias de acolhimento, o que nos permitiu recolher dados em profundidade. Paralelamente, foi efetuada uma consulta detalhada aos processos sociais das famílias e das crianças, construídos e gentilmente partilhados pelos profissionais das equipas de acompanhamento.

A amostragem é teórica, constituída por 11 famílias de acolhimento. Sendo que, no momento da realização das entrevistas, duas famílias não estavam a acolher crianças, foram designadas por ex- famílias de acolhimen-to (exFA).

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Previamente à seleção das famílias a participar no estudo, foram apli-cadas entrevistas semiestruturadas aos representantes de duas equipas de acompanhamento que contribuíram para a compreensão da problemática e para a seleção dos casos. Estrategicamente foram ponderadas percenta-gens equilibradas entre famílias acompanhadas por equipas da Fundação Mundos de Vida (à data a única instituição particular de solidariedade social protocolada com o Instituto da Segurança Social, IP) e famílias acompanhadas por um centro distrital de Segurança Social na região nor-te do país. Cerca de cinquenta por cento das entrevistas foram realizadas de forma conjunta a ambos os cuidadores, e a restante percentagem en-volveu a cuidadora principal de cada família. O espaço selecionado para o efeito foi tendencialmente o domicílio dos cuidadores ou a entidade de acompanhamento, espaços privilegiados que nos permitiram observar diversas dinâmicas e facilitar a participação e o envolvimento dos sujei-tos no estudo. A duração média de realização das entrevistas foi de 1:40 hora. As FA participantes iniciaram o seu percurso de acolhimento como famílias nucleares, sendo portanto constituídas por casais com filhos bio-lógicos ou adotivos. Assentes na estratégia de variação máxima, foram inicialmente consideradas as seguintes dimensões e famílias: i) Com filhos biológicos no agregado; ii) Com filhos biológicos autónomos; iii) No pri-meiro acolhimento; iv) No segundo (ou posterior) acolhimento; v) Com uma cessação de acolhimento. Contudo, ao longo do processo empírico, adicionaram-se duas dimensões: vi) Famílias a acolherem crianças com deficiência; e vii) Famílias que não acolhem na atualidade devido ao insu-cesso da colocação.

Não obstante a estrutura invisível das entrevistas narrativas, foram consolidados os pontos de interesse previamente identificados, e aplicada a solicitação generativa para impulsionar a narrativa dos cuidadores, que consistiu em:

«Gostaria que nos contasse a sua experiência como família de acolhimento.

O que vos motivou a ser FA, quais as expectativas, o desenvolvimento, o

impacto na vossa vida pessoal e familiar, o acompanhamento da equipa, etc.

Tudo o que envolve esta experiência é importante para nós».

A análise dos dados obtidos foi efetuada analítica, minuciosa, mo-rosa e exaustivamente no âmbito da Grounded Theory, na sua vertente

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construtivista. Valorizou-se a abordagem de Kathy Charmaz (2006; 2014), efetuando a codificação linha-a-linha e a codificação focalizada, paralela-mente à elaboração de memos iniciais e avançados, de modo a relacionar códigos, categorias e subcategorias emergentes dos dados. A ocorrência de ideias analíticas, correlações e desenvolvimento da lógica analítica realizou-se complementarmente com base em diagramas, alguns represen-tados neste trabalho. Foi conservado o vocabulário dos participantes ex. «toléria», e foram criados códigos in vivo, por exemplo, «um apontar de dedo», mantendo a proximidade aos dados. Como ferramenta de traba-lho, o recurso utilizado foi o programa informático MaxQDA12.

Estrutura

Estruturalmente, a obra que apresentamos encontra-se dividida em três partes. A primeira e a segunda partes alicerçam-se na revisão de lite-ratura nacional e internacional, numa lógica de fundamentação teórico--conceptual. Quanto às fontes, recorremos a cerca de 150 estudos, para-lelamente à consulta do quadro legislativo português e internacional. Na parte I, mobilizamos os modelos de bem-estar social, políticas públicas e mais especificamente os sistemas de proteção da criança. Reflete-se a inexistência de políticas familiares, existindo apenas políticas implícitas ou políticas sociais com dimensão familiar (Portugal, 2000), apesar das recomendações nomeadamente da Constituição da República Portugue-sa. Outros tópicos em discussão assentam nas características das famílias portuguesas, em que se observa nomeadamente a permanência dos filhos até tarde na casa dos pais, aspeto que poderá revelar-se inibidor da pro-liferação de famílias de acolhimento da tipologia de segundas famílias de acordo com Schofield (2000). Alertamos para a necessidade de flexibili-dade laboral, como o regime de part-time ou um regime de faltas diferen-ciado (Branco, 2009). No segundo capítulo, damos atenção ao facto de as FA constituírem uma forma de família considerando a diversidade de famílias existente. Por conseguinte, abordam-se os conceitos de família(s), ciclos da vida familiar, modelo ecológico, teoria sistémica, teoria da vin-culação, entre outros contributos relevantes. Sendo a vinculação um as-peto delicado que não reúne consensos, enfatizamos a importância da qualidade da relação e da adequabilidade das transições.

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Ser família de acolhimento de crianças em Portugal: motivações e experiências22

Segue-se, na parte II, o retrato do acolhimento familiar de crianças, com a caracterização e a evolução nacional e internacional da medida, concluindo com um capítulo referente especificamente às famílias de aco-lhimento.

A parte III aborda a pesquisa empírica, intentando responder às ques-tões de investigação colocadas inicialmente: i) «Como e porquê se tor-nam famílias de acolhimento?»; ii) «Qual a experiência das famílias de acolhimento na aplicação da medida?»; iii) «Que contributos podem as famílias de acolhimento dar para a melhoria da medida do acolhimento familiar?». Esta constitui a parte central da obra, com a apresentação e a análise dos dados empíricos obtidos, e a posterior discussão dos resulta-dos dialogando com autores de referência. No final, apresentamos uma reflexão sobre os desafios encontrados ao longo do percurso do estudo e ainda os limites que este apresenta, podendo dar o mote à sua continui-dade, bem como a futuras investigações. Apontamos algumas sugestões que poderão ser aplicadas no âmbito do planeamento das políticas e da intervenção técnica no acompanhamento da medida.

Para finalizar, há a referir que a expectativa é trazer um pequeno con-tributo para potenciar a medida do acolhimento familiar de crianças em Portugal de modo a que mais crianças tenham o direito a crescer em famí-lia e a ver cumprido o seu superior interesse.

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Page 17: Ser familia de acolhimento - Universidade Católica …...Figura 1 – Influências cibernéticas entre o sistema familiar e social 60 Figura 2 – Processos-chave da resiliência

PARTE I – Enquadramento do acolhimento familiar

Na construção conceptual do acolhimento familiar de crianças e jovens privilegiam-se dois eixos analíticos. Num primeiro movimento, a análise foca-se no enquadramento do acolhimento familiar como resposta social à necessidade de proteção e desenvolvimento das crianças e dos jovens e, nesse sentido, procura-se situar os sistemas de proteção de crianças no quadro mais geral dos regimes de bem-estar que os enquadram e influen-ciam. Num segundo movimento analítico, explora-se a constituição da(s) família(s) de acolhimento como objeto por relação à teorização da família enquanto fenómeno social, recorrendo às contribuições da sociologia e da psicologia da família e à investigação no âmbito do acolhimento fami-liar.

Sendo certo que o foco da presente investigação se centra na dimen-são da experiência de ser família de acolhimento, não privilegiando as-sim diretamente o estudo do acolhimento familiar enquanto programa de política pública, entendemos não ser possível operar uma descontex-tualização da família (e da família de acolhimento) do sistema social mais abrangente, que aqui é sobretudo convocado pela análise dos regimes de bem-estar, eles próprios estreitamente articulados com os modelos de fa-mília historicamente construídos, e dos sistemas mais específicos de pro-teção das crianças.

Neste sentido, damos de seguida conta do labor de construção concep-tual do acolhimento familiar de crianças e jovens, desdobrado em dois ca-pítulos, respetivamente, Modelos de Bem-Estar Social, Família e Sistemas de Proteção da Criança (Capítulo 1), e Família e Famílias de Acolhimento (Capítulo 2).

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