Sérgio Buarque de Holanda Raízes do...

23
Sérgio Buarque de Holanda Raízes do Brasil edição crítica organização Pedro Meira Monteiro Lilia Moritz Schwarcz estabelecimento de texto e notas Mauricio Acuña Marcelo Diego

Transcript of Sérgio Buarque de Holanda Raízes do...

Page 1: Sérgio Buarque de Holanda Raízes do Brasilimg.travessa.com.br/capitulo/COMPANHIA_DAS_LETRAS/RAIZES_DO_BRASIL... · meridionais do Brasil — André Botelho e Antonio Brasil ...

Sérgio Buarque

de Holanda

Raízes do Brasiledição crít ica

organização

Pedro Meira MonteiroLilia Moritz Schwarcz

estabelecimento de

texto e notas

Mauricio AcuñaMarcelo Diego

Raizes do Brasil 6a prova.indd 3Raizes do Brasil 6a prova.indd 3 20/07/16 15:4020/07/16 15:40

Page 2: Sérgio Buarque de Holanda Raízes do Brasilimg.travessa.com.br/capitulo/COMPANHIA_DAS_LETRAS/RAIZES_DO_BRASIL... · meridionais do Brasil — André Botelho e Antonio Brasil ...

Copyright © 1936, 1947, 1955, 1995 by herdeiros de Sérgio Buarque de Holanda

Copyright de “Documentos Brasileiros” © 1936 by herdeiros de Gilberto Freyre

Copyright de “Prefácio”, “O signifi cado de Raízes do Brasil” e “Post-scriptum” © 1963, 1967, 1986 by Antonio Candido

Copyright de “Variações sobre o homem cordial”© 1948 by herdeiros de Cassiano Ricardo

Grafi a atualizada segundo o Acordo Ortográfi co da Língua Portuguesa

de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Capa e Projeto Gráfi co: Victor Burton

Foto de capa: Abaporu, de Tarsila do Amaral, 1928, óleo sobre tela, 85 x 73 cm. Museo de Arte Latinoamericano de Buenos Aires — Fundación Costantini, Buenos Aires. Reprodução de Romulo Fialdini. © Tarsila do Amaral Empreendimentos.

Preparação: Cacilda Guerra

Índice remissivo: Luciano Marchiori

Revisão: Viviane T. Mendes, Huendel Viana, Carmen T. S. Costa

[2016]Todos os direitos desta edição reservados àeditora schwarcz s.a.Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 3204532-002 – São Paulo – spTelefone: (11) 3707-3500Fax: (11) 3707-3501www.companhiadasletras.com.br

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Holanda, Sérgio Buarque de, 1902-1982.Raízes do Brasil / Sérgio Buarque de Holanda; organização

Pedro Meira Monteiro, Lilia Moritz Schwarcz; estabelecimento de texto e notas Mauricio Acuña e Marcelo Diego — São Paulo : Com panhia das Letras, 2016.

Bibliografia.isbn 978-85-359-2761-0

1. Brasil — Civilização i. Monteiro, Pedro Meira. ii. Schwarcz, Lilia Moritz. iii. Acuña, Mauricio. iv. Diego, Marcelo. v. Título.

16-04248 cdd-981

Índice para catálogo sistemático:1. Brasil : Cultura : Civilização : História 981

Raizes do Brasil 6a prova.indd 4Raizes do Brasil 6a prova.indd 4 20/07/16 15:4020/07/16 15:40

Page 3: Sérgio Buarque de Holanda Raízes do Brasilimg.travessa.com.br/capitulo/COMPANHIA_DAS_LETRAS/RAIZES_DO_BRASIL... · meridionais do Brasil — André Botelho e Antonio Brasil ...

Sumário

Introdução — Uma edição crítica de Raízes do Brasil: o historiador lê a si mesmo

Pedro Meira Monteiro e Lilia Moritz Schwarcz

11

Nota sobre o texto da presente ediçãoMauricio Acuña e Marcelo Diego

27

raízes do brasil

1. Fronteiras da EuropaMundo novo e velha civilização. — Personalismo

exagerado e suas consequências: tibieza do espírito de organização, da solidariedade, dos privilégios hereditários. — Falta de coesão

na vida social. — A volta à tradição, um artifício. — Sentimento de irracionalidade específi ca dos privilégios

e das hierarquias. — Em que sentido anteciparam os povos ibéricos a mentalidade moderna. — O trabalho manual

e mecânico, inimigo da personalidade. — A obediência como fundamento de disciplina.

37

2. Trabalho & aventuraPortugal e a colonização das terras tropicais. —

Dois princípios que regulam diversamente as atividades dos homens. — Plasticidade social dos portugueses. — Civilização agrícola? —

Carência de orgulho racial. — O labéu associado aos trabalhos vis. — Organização do artesanato; sua relativa debilidade na América

Raizes do Brasil 6a prova.indd 5Raizes do Brasil 6a prova.indd 5 20/07/16 15:4020/07/16 15:40

Page 4: Sérgio Buarque de Holanda Raízes do Brasilimg.travessa.com.br/capitulo/COMPANHIA_DAS_LETRAS/RAIZES_DO_BRASIL... · meridionais do Brasil — André Botelho e Antonio Brasil ...

portuguesa. — Incapacidade de livre e duradoura associação. — A “moral das senzalas” e sua infl uência. —

Malogro da experiência holandesa. — Nota ao capítulo 2: Persistência da lavoura de tipo predatório.

59

3. Herança ruralA Abolição: marco divisório entre duas épocas. —

Incompatibilidade do trabalho escravo com a civilização burguesa e o capitalismo moderno. — Da Lei Eusébio à crise de 64. O caso de Mauá. — Patriarcalismo e espírito de facção. —

Causas da posição suprema conferida às virtudes da imaginação e da inteligência. — Cairu e suas ideias. —

Decoro aristocrático. — Ditadura dos domínios agrários. — Contraste entre a pujança das terras de lavoura e a mesquinhez

das cidades na era colonial.117

4. O semeador e o ladrilhadorA fundação de cidades como instrumento de dominação. —

Zelo urbanístico dos castelhanos: o triunfo completo da linha reta. — Marinha e interior. — A rotina contra a razão abstrata.

O espírito da expansão portuguesa. A nobreza nova do Quinhentos. — O realismo lusitano. — Papel da Igreja. —

Notas ao capítulo 4: 1. Vida intelectual na América espanhola e no Brasil. — 2. A língua geral em São Paulo. — 3. Aversão às virtudes

econômicas. — 4. Natureza e arte.161

5. O homem cordialAntígona e Creonte. — Pedagogia moderna e as virtudes antifamiliares. —

Patrimonialismo. — O “homem cordial”. — Aversão aos ritualismos: como se manifesta ela na vida

Raizes do Brasil 6a prova.indd 6Raizes do Brasil 6a prova.indd 6 20/07/16 15:4020/07/16 15:40

Page 5: Sérgio Buarque de Holanda Raízes do Brasilimg.travessa.com.br/capitulo/COMPANHIA_DAS_LETRAS/RAIZES_DO_BRASIL... · meridionais do Brasil — André Botelho e Antonio Brasil ...

social, na linguagem, nos negócios. — A religião e a exaltação dos valores cordiais.

243

6. Novos temposFinis operantis. — O sentido do bacharelismo. —

Como se pode explicar o bom êxito dos positivistas. — As origens da democracia no Brasil: um mal-entendido. —

Etos e Eros. Nossos românticos. — Apego bizantino aos livros. — A miragem da alfabetização. — O desencanto da realidade.

271

7. Nossa revoluçãoAs agitações políticas na América Latina. — Iberismo e americanismo. —

Do senhor de engenho ao fazendeiro. — O aparelhamento do Estado no Brasil. — Política e sociedade. —

O caudilhismo e seu avesso. — Uma revolução vertical. — As oligarquias: prolongamentos do personalismo no espaço e no tempo. —

A democracia e a formação nacional. — As novas ditaduras. — Perspectivas.

299

textos para e sobre raízes do brasil

Documentos Brasileiros, Gilberto Freyre341

Prefácio da 2a edição347

Nota da 3a edição349

Raizes do Brasil 6a prova.indd 7Raizes do Brasil 6a prova.indd 7 20/07/16 15:4020/07/16 15:40

Page 6: Sérgio Buarque de Holanda Raízes do Brasilimg.travessa.com.br/capitulo/COMPANHIA_DAS_LETRAS/RAIZES_DO_BRASIL... · meridionais do Brasil — André Botelho e Antonio Brasil ...

Prefácio — Antonio Candido351

O signifi cado de Raízes do Brasil — Antonio Candido355

Variações sobre o homem cordial — Cassiano Ricardo371

Carta a Cassiano Ricardo399

posfácios a esta edição

Um livro entre duas Constituintes — Elide Rugai Bastos405

Primos entre si? Rural e urbano em Raízes do Brasil e Populações

meridionais do Brasil — André Botelho e Antonio Brasil Jr.411

A “eterna juventude” de um clássico — Conrado Pires de Castro419

Entre totem e tabu: O processo de Raízes do Brasil — João Kennedy Eugênio

431

Contraponto e revolução em Raízes do Brasil — Luiz Feldman439

Mudanças em ritmo próprio — Alfredo Cesar Melo449

Raizes do Brasil 6a prova.indd 8Raizes do Brasil 6a prova.indd 8 20/07/16 15:4020/07/16 15:40

Page 7: Sérgio Buarque de Holanda Raízes do Brasilimg.travessa.com.br/capitulo/COMPANHIA_DAS_LETRAS/RAIZES_DO_BRASIL... · meridionais do Brasil — André Botelho e Antonio Brasil ...

Um conceito ou um baixo contínuo? Venturas e desventuras do homem cordial — João Cezar de Castro Rocha

457

Raízes do Brasil: Inércia e transformação lenta — Leopoldo Waizbort465

Doze anos que abalaram as raízes do Brasil — Robert Wegner471

Cronologia de Raízes do Brasil479

Créditos das imagens

487

Índice remissivo

489

Raizes do Brasil 6a prova.indd 9Raizes do Brasil 6a prova.indd 9 20/07/16 15:4020/07/16 15:40

Page 8: Sérgio Buarque de Holanda Raízes do Brasilimg.travessa.com.br/capitulo/COMPANHIA_DAS_LETRAS/RAIZES_DO_BRASIL... · meridionais do Brasil — André Botelho e Antonio Brasil ...

11

Uma edição crítica de

Raízes do Brasil:

o historiador lê a si mesmo1

Pedro Meira Monteiro

Lilia Moritz Schwarcz

S e os autores mudam, também os livros podem se alterar. Até mesmo os “clássicos”. Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, é um dos exemplos mais evidentes de um livro

feito de voltas e reviravoltas, muitas delas fundamentais. Estamos diante de um texto que não descansa, que foi várias vezes revis-to, aumentado e recortado por seu autor, sempre em diálogo com seus diferentes contextos de publicação. Além do mais, foi lido a partir de perspectivas distintas pelas muitas gerações que apren-deram a entender o Brasil com Raízes nas mãos, e que foram lhe adicionando novos sentidos e interpretações.

A editora José Olympio havia surgido em 1931 na cidade de São Paulo, com o mesmo espírito que já marcava toda uma geração: a busca por entender o país e suas especifi cidades. Não se trata-va de acumular apenas aspectos negativos da formação nacional — traço maior da geração realista de 1870 —, mas, nesse caso, ir ao encontro de particularidades que de alguma maneira distin-guiriam o Brasil no concerto das nações. Outras editoras também andavam realizando projetos assemelhados, como a Companhia

1. Os autores agradecem a Javier Uriarte e Paul Firbas, que em fevereiro de 2015 organizaram um colóquio em Nova York para comemorar o cinquente-nário da visita de Sérgio Buarque de Holanda a Stony Brook, o que permitiu que formulássemos uma primeira versão desta introdução.

Raizes do Brasil 6a prova.indd 11Raizes do Brasil 6a prova.indd 11 20/07/16 15:4020/07/16 15:40

Page 9: Sérgio Buarque de Holanda Raízes do Brasilimg.travessa.com.br/capitulo/COMPANHIA_DAS_LETRAS/RAIZES_DO_BRASIL... · meridionais do Brasil — André Botelho e Antonio Brasil ...

12

Editora Nacional, que em 1931 lançou a coleção Brasiliana, com textos clássicos acerca da história brasileira. Em 1932 nasceu a Coleção Azul, da Schmidt, e em 1940 surgiria a Biblioteca Histó-rica, da Martins.

Mas foi a Coleção Documentos Brasileiros, idealizada por José Olympio, quando sua editora já havia se mudado para o Rio de Ja-neiro, a que mais se destacou no cenário intelectual, por conta de dois motivos básicos: primeiro, chama a atenção o caráter mais evidentemente “nacional”, já que ela publicava livros de intelec-tuais do eixo São Paulo-Rio, mas também do Nordeste; segundo, devido ao prestígio que trazia para o autor que dela fi zesse parte.2 Entrar nesse “clube” representava por si só uma espécie de consa-gração. E outros motivos não faltavam: tal coleção, com capas de-senhadas por Tomás Santa Rosa, era dirigida por Gilberto Freyre, já famoso naquele contexto pela publicação de Casa-grande &

senzala em 1933, que “fi cou um bichão de bom aspecto que está fi cando conhecido como o ‘Ulisses de Pernambuco’”. A observa-ção é de Manuel Bandeira, em carta a Freyre, referindo-se a uma brincadeira atribuída a Murilo Mendes.3

Por essas e por outras é que a série Documentos Brasileiros passou a signifi car e legitimar “o novo”, uma nova casaca para o país, atraindo a atenção de intelectuais e leitores. Raízes do Bra-

sil sai em outubro de 1936, como primeiro volume da prestigiosa coleção, que seria dirigida por Freyre por mais dois anos, até que

2. Cf. Fábio Franzini, À sombra das palmeiras: A Coleção Documentos Brasi-

leiros e as transformações da historiografi a nacional (1936-1959) (São Paulo: ffl ch-usp, 2006, pp. 11-6, 89-120. Tese [Doutorado em História]). Ver ainda Gustavo Sorá, Brasilianas: José Olympio e a gênese do mercado editorial bra-

sileiro (São Paulo: Edusp, 2010).3. Carta de Manuel Bandeira a Gilberto Freyre, de 10 de janeiro de 1934. Cf. Silvana Moreli Vicente, Cartas provincianas: Correspondência entre Gilber-

to Freyre e Manuel Bandeira (São Paulo: ffl ch-usp, 2007, p. 237. Tese [Dou-torado em Letras]).

Raizes do Brasil 6a prova.indd 12Raizes do Brasil 6a prova.indd 12 20/07/16 15:4020/07/16 15:40

Page 10: Sérgio Buarque de Holanda Raízes do Brasilimg.travessa.com.br/capitulo/COMPANHIA_DAS_LETRAS/RAIZES_DO_BRASIL... · meridionais do Brasil — André Botelho e Antonio Brasil ...

13

Otávio Tarquínio de Sousa assumisse a posição, sendo substituí-do, após sua morte, por Afonso Arinos de Melo Franco. Pensando em termos estritamente editoriais, a escolha do título inaugural foi coerente com a vocação que seria seguida na série. A ideia era publicar o primeiro livro do professor assistente das cadeiras de Literatura Comparada e de História Moderna e Econômica da nova e efêmera Universidade do Distrito Federal: Sérgio Buarque de Holanda.

Parcialmente concebido no exterior, quando Sérgio Buarque passou quase dois anos na Alemanha, entre 1929 e 1930, o texto foi fi nalizado no Brasil, onde seria publicado na forma de livro em 1936 e depois consideravelmente alterado ao longo de mais de três décadas, como mostram os aparatos desta edição crítica e os pe-quenos estudos que seguem. Só para se ter uma ideia, a segunda edição, de 1948, recebeu acréscimos que estão longe de ser ape-nas cosméticos. Pode-se dizer que o ensaio foi varrido de passa-gens ou expressões que pudessem causar desconforto nos leitores mais simpáticos a uma visão liberal e democrática da política. A sombra da Segunda Guerra Mundial fez com que o livro pendesse decididamente para o lado da democracia, fechando-se a uma so-lução autoritária.

Em 1956 sairia sua terceira edição, cuja principal mudança foi o célebre parágrafo de abertura: ainda éramos uns “desterrados em nossa própria terra”, mas agora o transplante da cultura ibéri-ca aos trópicos parecia ser um problema mais complicado, menos resolvido, como se a sinfonia da nova civilização americana esti-vesse a ponto de desafi nar. A ideia de desajuste, de descompasso, fi cava mais evidente e até acentuada. É também nessa edição que se incorpora ao livro a polêmica entre Sérgio Buarque de Holanda e Cassiano Ricardo, poeta e intelectual orgânico do Estado Novo (1937-45) de Getúlio Vargas. Em Apêndice, explicitavam-se as divergências dos dois autores na interpretação do “homem cor-dial”, expressão que se celebrizou a partir de Raízes do Brasil, que Ribeiro Couto já utilizara em sua correspondência com o escritor

Raizes do Brasil 6a prova.indd 13Raizes do Brasil 6a prova.indd 13 20/07/16 15:4020/07/16 15:40

Page 11: Sérgio Buarque de Holanda Raízes do Brasilimg.travessa.com.br/capitulo/COMPANHIA_DAS_LETRAS/RAIZES_DO_BRASIL... · meridionais do Brasil — André Botelho e Antonio Brasil ...

14

e diplomata mexicano Alfonso Reyes, no início da década de 1930, e que data pelo menos do fi m do século xix.4

Desde que o ensaio de Sérgio Buarque de Holanda fora publi-cado em 1936, Cassiano Ricardo vinha lendo a cordialidade como uma “técnica da bondade”, que teria sido desenvolvida durante a colonização portuguesa na América. Sérgio Buarque reagiu, no próprio livro, em sua segunda edição, e depois numa “carta” ao poeta, publicada na revista Colégio, em 1948, mais tarde incorpo-rada à terceira (1956) e à quarta (1963) edições de Raízes do Brasil, e que reapareceria ainda em diversas edições posteriores. Nela, ele esclarecia que a cordialidade tinha tanto a ver com a bonda-de quanto com a inimizade. O homem cordial era o contrário do homem polido, por ser avesso aos rituais e por cultivar um alto grau de intimidade nas relações políticas, que assim se tornavam aparentemente mais próximas, ainda quando fundamentalmente assimétricas. Com a urbanização, no entanto, a sociedade brasi-leira perdia suas raízes rurais, e o homem cordial se revelava, no dizer do historiador, nada além de um “pobre defunto” (p. 401).

A sentença de morte dada ao homem cordial, incorporada ao livro em 1956, em sua terceira edição, ganhava um sentido

4. Em 1898, ao pregar a unidade do continente latino-americano contra a gula imperialista dos Estados Unidos, o poeta nicaraguense Rubén Da-río utilizou a expressão “hombre cordial” para referir-se a Roque Sáenz Peña, futuro presidente da Argentina. Cf. Rubén Darío,“El triunfo de Caliban”, em Los raros (Buenos Aires: Espasa-Calpe, 1952, pp. 86-7). A mesma expressão, em espanhol, reapareceria numa carta de Ribei-ro Couto a Alfonso Reyes, datada da época em que este era embaixador do México no Brasil, no início da década de 1930, e publicada no seu Cor-

reo Literario. Sobre Ribeiro Couto, ver Elvia Bezerra, “Ribeiro Couto e o homem cordial” (Revista Brasileira, Academia Brasileira de Letras, n. 44, pp. 123-30, jul./set. 2005). Ver ainda Rui Ribeiro Couto, “El hombre cordial: Producto americano”, em Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do

Brasil (org. de Ricardo Benzaquen de Araújo e Lilia Moritz Schwarcz; São Paulo: Companhia das Letras, 2006, pp. 397-8).

Raizes do Brasil 6a prova.indd 14Raizes do Brasil 6a prova.indd 14 20/07/16 15:4020/07/16 15:40

Page 12: Sérgio Buarque de Holanda Raízes do Brasilimg.travessa.com.br/capitulo/COMPANHIA_DAS_LETRAS/RAIZES_DO_BRASIL... · meridionais do Brasil — André Botelho e Antonio Brasil ...

15

especial no momento em que o desenvolvimentismo da era Jus-celino Kubitschek convidava a imaginar a modernização do país, reclamando a renovação de suas práticas políticas. Mas se o “homem cordial” era apenas um defunto, ele logo se tornaria um fantasma, voltando ainda muitas vezes para assombrar os vivos. Avesso à esfera pública, o homem cordial expressava não exatamente uma qualidade, mas antes um entrave para a entra-da na modernidade.

A edição seguinte, a quarta, foi publicada em 1963 na coleção Biblioteca Básica Brasileira, da Editora da Universidade de Brasí-lia, a UnB, recém-fundada por, entre outros, Darcy Ribeiro e Aní-sio Teixeira. Raízes do Brasil se enlaçava mais uma vez à história, agora que o país se via diante dos desafi os de uma utopia mais in-clusiva, sob o governo de João Goulart. Saía também com a chan-cela de uma universidade, da nova capital do país. Não era pouco.

A quinta edição, de 1969, já no contexto da ditadura, foi pu-blicada novamente pela editora José Olympio, e seria a última a ser revista pelo autor. Nela, as alterações são mínimas, mas a obra aparecia agora com um prefácio escrito dois anos antes, em 1967, por Antonio Candido, que por sua vez já redigira uma pequena nota ao livro na sua edição anterior, de 1963, e lhe adicionaria um “Post-scriptum”, em 1986. O prefácio se tornaria a partir de então peça fundamental de Raízes do Brasil, selando a noção de que ele fora um “clássico de nascença”, e que seu autor pertencia ao universo do pensamento “radical” no Brasil. O radicalismo, no caso, era parte de um círculo de ideias que Candido estudava com grande interesse, empenhado em encontrar, na história do pensamento social e político brasileiro, um contrapeso para a predominância do pensamento conservador. “Radical” vinha de raízes, e da solução de compromisso assumida por boa parte da intelectualidade brasileira, que, segundo o crítico literário, tinha difi culdades em separar-se do Estado.

Candido também apontava para uma verdadeira trilogia dos anos 1930 e 1940, que encontrara no ensaio social sua forma de

Raizes do Brasil 6a prova.indd 15Raizes do Brasil 6a prova.indd 15 20/07/16 15:4020/07/16 15:40

Page 13: Sérgio Buarque de Holanda Raízes do Brasilimg.travessa.com.br/capitulo/COMPANHIA_DAS_LETRAS/RAIZES_DO_BRASIL... · meridionais do Brasil — André Botelho e Antonio Brasil ...

16

inserção literária. Ao lado de Sérgio Buarque de Holanda, esta-riam Gilberto Freyre e Caio Prado Jr., cada um com seus temas e aportes teóricos específi cos, mas todos identifi cados com uma tentativa de interpretar e dar conta do país. Portanto, na quinta edição da obra, no fi nal dos anos 1960, num contexto político de grande apreensão para as esquerdas, quando o ensaísmo produ-zido na década de 1930 era visto com desconfi ança por muitos de seus intelectuais, Raízes do Brasil era relido por Antonio Candido como um livro engajado, totalmente livre das tentações autoritá-rias, e pouco ou nada comprometido com uma visão adocicada das relações sociais no Brasil.5

A leitura radicalizante marcaria o livro de tal forma que, em tom provocativo, Wanderley Guilherme dos Santos chegou a dizer que o Sérgio Buarque de Holanda de Raízes do Brasil era “uma invenção do Antonio Candido”.6 Descontados os “radicalismos”, dessa vez quiçá do próprio Guilherme dos Santos, que destacava a importância de outros autores tradicionalmente afastados de cer-to cânone literário, o fato é que o prefácio se vinculou à obra feito cicatriz: durante muito tempo não havia como citá-la sem mencio-nar a apresentação de Antonio Candido como o caminho natural para compreendê-la. Não à toa, a partir da nona edição, de 1976, a frase de Candido, “Livro que se tornou um clássico de nascença”,

5. O “radicalismo” atribuído a Sérgio Buarque de Holanda e a outros inte-lectuais apareceria em vários textos de Candido produzidos ao longo das décadas de 1980 e 1990, entre eles “Radicalismos” e “A visão política de Sér-gio Buarque de Holanda”. Cf. Antonio Candido, “Radicalismos” (Estudos

Avançados, v. 4., n. 8, pp. 4-18, jan./abr. 1990), e Antonio Candido, “A visão política de Sérgio Buarque de Holanda”, em Sérgio Buarque de Holanda e o

Brasil (São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1998, pp. 81-8).6. Cf. Elio Gaspari, “Uma cabeça que bate contra a maré: Wanderley Guilher-me dos Santos, elitista e marginal, vencedor de causas perdidas” (Veja, pp. 40-3, 18 maio 1994).

Raizes do Brasil 6a prova.indd 16Raizes do Brasil 6a prova.indd 16 20/07/16 15:4020/07/16 15:40

Page 14: Sérgio Buarque de Holanda Raízes do Brasilimg.travessa.com.br/capitulo/COMPANHIA_DAS_LETRAS/RAIZES_DO_BRASIL... · meridionais do Brasil — André Botelho e Antonio Brasil ...

17

aparece na capa de Raízes do Brasil, sendo posteriormente trans-ferida à quarta capa.

Depois de muita contenda, mais recentemente, e talvez com certa razão, João Kennedy Eugênio sugeriu que o prefácio de An-tonio Candido é que era uma “invenção” de Sérgio Buarque de Holanda.7 Afi nal, com as inúmeras alterações e os esclarecimen-tos feitos ao longo de cinco edições, o próprio historiador foi lim-pando o terreno e construindo um livro mais “radical”, até que o amigo crítico pudesse interpretá-lo como um clássico de nas-cença. O que talvez tenha ocorrido é que o prefácio de Antonio Candido ajudou a estabilizar a obra, como se ela tivesse “nascido” assim: pronta para o pensamento democrático e liberal.

Obras como essa, fundamentais para pensar o país, não sur-gem prontas e acabadas. Dar vida a elas é de alguma maneira resti-tuir-lhes sua história, seu processo e diálogo com o tempo, isto é, com o seu próprio tempo. Esta edição crítica de Raízes do Brasil, contendo agora as variantes do texto, permite compreender que tal “nascimento” de um clássico durou pelo menos três décadas.

Num resumo apertado, pode-se dizer que, quando foi publi-cado na década de 1930, Raízes do Brasil continha uma dose im-portante de desconfi ança em relação às grandes teses liberais. O desconforto de Sérgio Buarque com o caudillismo hispano-ame-ricano, por exemplo, não chegava a fazê-lo acreditar que uma vi-são mais impessoal da política pudesse derrotar o personalismo que atravessava o espaço público latino-americano, e brasileiro em particular. O personalismo, em suma, não seria derrotado por uma democracia liberal, porque o pacto político que ela pressupu-nha não se ajustava completamente aos traços mais profundos da realidade brasileira. Para muitos leitores isso pareceria, nos idos de 1936, uma verdade insofi smável, e Raízes do Brasil era mais um texto, ao lado de Casa-grande & senzala, de Gilberto Freyre, ou

7. Cf. João Kennedy Eugênio, Ritmo espontâneo: Organicismo em Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda (Teresina: edufpi, 2011, p. 399).

Raizes do Brasil 6a prova.indd 17Raizes do Brasil 6a prova.indd 17 20/07/16 15:4020/07/16 15:40

Page 15: Sérgio Buarque de Holanda Raízes do Brasilimg.travessa.com.br/capitulo/COMPANHIA_DAS_LETRAS/RAIZES_DO_BRASIL... · meridionais do Brasil — André Botelho e Antonio Brasil ...

18

mesmo ao lado da obra autoritária de Oliveira Viana, a postular a origem ibérica da civilização no Brasil e imaginar os brasileiros distantes, ou talvez protegidos, das “ilusões da mitologia liberal”. Essa é ao menos a tese geral que se pode ler na versão mais recente do livro de Sérgio Buarque — ou, como se lê na primeira edição de Raízes do Brasil: estávamos ainda longe das muitas ilusões “frau-

dulentas” da mitologia liberal.Mas o adjetivo some, na releitura radical que o historiador faz

de seu próprio livro. Após a Segunda Guerra Mundial, as coisas haviam mudado. Qualquer suspeita em relação ao pacto liberal seria agora colocada, ela mesma, sob suspeita. Em suma, a solu-ção “radical” que Antonio Candido atribuiria a Sérgio Buarque pode de fato ser entendida como uma “invenção”, uma vez que a primeira edição de Raízes do Brasil andava ainda repleta de fl er-tes com uma noção mais orgânica do Estado, em especial no seu último capítulo. E não é necessário grande esforço de imaginação para perceber o que podia signifi car a defesa de um Estado orgâ-nico e sem fi ssuras no imediato pós-guerra. Esquematizando, é possível dizer que um Estado que complementasse perfeitamente as “necessidades específi cas” da sociedade, como se lê já na pri-meira edição de Raízes do Brasil, poderia resultar num Estado forte, enquanto a política liberal pretendia, ao contrário, que se discutisse democraticamente quais seriam essas “necessidades específi cas” a cada local, e as respostas múltiplas a demandas de direitos plurais.

Em outras palavras, quando julgamos conhecer de antemão, e com segurança absoluta, quais são as “necessidades específi cas” do país, a própria política representativa e democrática se tor-naria supérfl ua. Afi nal, diante de um diagnóstico inquestionável sobre as necessidades do país, caberia ao Estado (ou a um líder) simplesmente a tarefa de responder àquelas “necessidades” en-fi m reveladas. Levando o esquema a seu limite lógico, uma vez que os traços nacionais fossem identifi cados e tomados em conta pelo governante, a política já não seria mais necessária — ao menos não

Raizes do Brasil 6a prova.indd 18Raizes do Brasil 6a prova.indd 18 20/07/16 15:4020/07/16 15:40

Page 16: Sérgio Buarque de Holanda Raízes do Brasilimg.travessa.com.br/capitulo/COMPANHIA_DAS_LETRAS/RAIZES_DO_BRASIL... · meridionais do Brasil — André Botelho e Antonio Brasil ...

19

no seu sentido liberal, como um palco em que diferentes forças lutam pelo controle do Estado e pelo direcionamento de suas po-líticas públicas. O que estava em questão, quando Sérgio Buarque escreveu Raízes do Brasil e publicou o livro em 1936, era o alcan-ce e a relativa impotência do pacto representativo do liberalismo no período entreguerras. Crise, aliás, que mal ousamos discutir em nossa contemporaneidade, talvez porque hoje, passadas umas tantas décadas da experiência dos totalitarismos, saibamos bem o que signifi ca apostar todas as fi chas num Estado orgânico.

É verdade que Sérgio Buarque estava preocupado, desde 1936, em criticar o modelo de um Estado forte, à esquerda ou à direita, como aliás fi ca claro na nota em que ele se contrapõe a Otávio de Faria, grande baluarte do pensamento autoritário. Mas, ao mes-mo tempo, o Estado deveria ser, se seguirmos a argumentação em Raízes do Brasil, uma forma que viesse ao encontro das “neces-sidades específi cas” da sociedade, ao seu “ritmo espontâneo”. O argumento parece indicar uma cadência própria do corpo social, e que o bom político seria aquele capaz de ouvir tal cadência e agir de acordo com ela. É certo que Sérgio Buarque não vai tão longe, nem chega a propor um curto-circuito que pudesse atar o líder ao povo. Mas não há como esquecer que o livro é escrito na aurora dos populismos na América Latina, quando a representação era um problema espinhoso e dramático, e a emergência do poder simbólico do líder colocava o carisma no centro do debate polí-tico. O leitor de Raízes do Brasil encontrará esta imagem ao fi nal do ensaio: como “compor um todo perfeito de partes tão antagô-nicas”? A pergunta convida a pensar nos impasses da representa-ção política, diante dos quais nem o liberalismo nem o populismo ofereciam respostas de todo satisfatórias.

Sérgio Buarque de Holanda foi assombrado por seu primeiro livro, do qual ele não gostava totalmente, a despeito de seu nome fi car associado de maneira indelével a Raízes do Brasil. Era um texto de juventude para o seu autor, e não vale a pena imaginar que ele prefi gurasse exatamente, sem mais mediações, sua obra

Raizes do Brasil 6a prova.indd 19Raizes do Brasil 6a prova.indd 19 20/07/16 15:4020/07/16 15:40

Page 17: Sérgio Buarque de Holanda Raízes do Brasilimg.travessa.com.br/capitulo/COMPANHIA_DAS_LETRAS/RAIZES_DO_BRASIL... · meridionais do Brasil — André Botelho e Antonio Brasil ...

20

madura, que viria depois. Nada há de “destino” na obra de um autor, e não se pode imaginar tal dose de coerência. Ninguém po-deria prever, nem mesmo seu próprio autor (e sobretudo ele, que sempre viu com suspeitas esse primeiro grande ensaio), o sucesso e a imensa recepção que o livro teria ao longo dos anos.

Mas quem é Sérgio Buarque de Holanda, sem Raízes do Brasil? Um grande crítico literário, um historiador erudito que inovou na pesquisa da cultura material e no apuro dos dados documentais, au-tor de obras do quilate de Visão do paraíso, Caminhos e fronteiras e Do Império à República. Mas sem Raízes do Brasil ele seria outro autor, sem dúvida brilhante, atento aos debates contemporâneos da teoria da história e da literatura, mas ainda assim outro. Nesse sentido, não será exagerado supor que Sérgio Buarque de Holanda é um personagem de Raízes do Brasil, assim como nós mesmos por vezes nos sentimos personagens de uma história que nos ultrapas-sa, e que não podemos controlar. Será que ao relê-lo, anos depois, o autor se sentia assim também, como um refém de seu próprio livro?

A suspeita diante da imparcialidade e da impessoalidade do credo liberal é bastante evidente na primeira edição de Raízes do

Brasil. De acordo com especialistas, alguns deles presentes nos pequenos ensaios que acompanham esta edição crítica, Sérgio Buarque teria apagado, na segunda e na terceira edições de seu livro, traços que poderiam identifi cá-lo como um “antiliberal”. Ao fazê-lo, aproximou-se de uma posição “radical” com que gos-taria de ser identifi cado anos depois, inventando assim um novo livro, num movimento de negociação, e talvez negação, de alguns de seus argumentos originais. Mas essa “invenção”, como mostra João Kennedy Eugênio, é mais do próprio autor que de Antonio Candido. Se o crítico literário foi o “avaliador” que deu o caso do “radicalismo” de Sérgio Buarque por encerrado, poderíamos en-tão dizer que Candido é uma espécie de Pierre Menard que, como no famoso conto de Jorge Luis Borges, rescreve Dom Quixote tal e qual ele foi escrito por Cervantes, embora ao fi m o livro rescrito seja melhor que o original… Nesse caso, porém, é certo que Anto-

Raizes do Brasil 6a prova.indd 20Raizes do Brasil 6a prova.indd 20 20/07/16 15:4020/07/16 15:40

Page 18: Sérgio Buarque de Holanda Raízes do Brasilimg.travessa.com.br/capitulo/COMPANHIA_DAS_LETRAS/RAIZES_DO_BRASIL... · meridionais do Brasil — André Botelho e Antonio Brasil ...

21

nio Candido não rescreve Raízes do Brasil. Ele encontra e destaca um “fermento radical” que já estava ali e o traz para o primeiro plano, sem levar em conta as alterações feitas pelo caminho. Des-sa maneira, e levando a ideia ao limite, ao escrever o seu prefácio, Candido rescreve o livro que Sérgio Buarque gostaria de ter escri-to na década de 1930, mas não escreveu. Mas por que não o fez?

Talvez seja pedir demais de uma edição crítica de Raízes do Bra-

sil que ela responda a tais questões. Talvez nem seja o caso de res-ponder a tais indagações. Na verdade, livros dessa importância são obras vivas, cuja completude só se dá quando seu autor não tem mais como acrescentar algo, ou eliminar um trecho que já não mais o sa-tisfaz. Assim, se não é objetivo desta edição fazer qualquer exercício de futurologia, o que pretendemos é ajudar a esclarecer as metamor-foses de um texto que se manteve inquieto por mais de trinta anos, fundamentalmente porque seu autor queria ainda ver-se refl etido nele, como um personagem de Pirandello em busca de um autor — nesse caso, em busca do autor “certo”, o pensador “radical”, que jamais ouvira o canto das sereias do Estado orgânico. Ou seja, Sér-gio Buarque precisou rescrever, ao menos parcialmente, o seu livro, para reinventar-se a si mesmo como autor, criando outro contexto. Um contexto diverso, que requeria outro livro, e um novo autor.

Se assim for, o último capítulo desse “outro livro” é o pre-fácio de Antonio Candido, do qual Sérgio Buarque de Holanda emerge como um autor engajado e radical. Mas Candido não es-creveu apenas um prefácio. Ele é o autor de diversos pequenos prefácios e estudos sobre Sérgio Buarque, escritos entre as déca-das de 1980 e 1990.

Num deles, o crítico lembra o período que Sérgio passara em Berlim, entre 1929 e 1930, no mesmo momento em que o próprio Candido vivera na Alemanha, ainda criança, com sua família. Era o tempo de grandes teorias sobre tipos sociais ou raciais capazes de defi nir culturas inteiras, num desfi le de morfologias nacionais que engrossavam o caldo da fantasia nazista. Entretanto, nesse ambiente eminentemente regressivo e autoritário, em que se ges-

Raizes do Brasil 6a prova.indd 21Raizes do Brasil 6a prova.indd 21 20/07/16 15:4020/07/16 15:40

Page 19: Sérgio Buarque de Holanda Raízes do Brasilimg.travessa.com.br/capitulo/COMPANHIA_DAS_LETRAS/RAIZES_DO_BRASIL... · meridionais do Brasil — André Botelho e Antonio Brasil ...

22

tava a ideia do Terceiro Reich, Sérgio Buarque de Holanda teria reagido à altura:

Sérgio respirou nesse ambiente e conheceu alguns dos seus as-pectos negativos, inclusive a duvidosa caracteriologia de Ludwig Klages. Mas a retidão do seu espírito, a jovem cultura já sólida e os instintos políticos corretamente orientados levaram-no a algo surpreendente: desse caldo cultural que podia ir de conservador a reacionário, e de místico a apocalíptico, tirou elementos para uma fórmula pessoal de interpretação progressista do seu país, combinando de maneira exemplar a interpretação desmistifi ca-dora do passado com o senso democrático do presente. A “em-patia”, o entendimento global que descarta o pormenor vivo, a “visão orgânica”, a confi ança em certa mística dos “tipos”, tudo isso foi despojado por ele de qualquer traço de irracionalidade, moído pela sua maneira peculiar, e desaguou numa interpretação aberta, extremamente crítica e radical.8

Talvez o autor e o crítico estivessem juntos inventando um novo livro. A proximidade e a amizade de Antonio Candido e Sér-gio Buarque de Holanda foram fundamentais, inclusive para a compreensão e a releitura da obra de Sérgio. Também o contex-to intelectual é da maior importância para entender os embates que o autor enfrentava no momento. O quanto essa releitura e os novos enquadramentos que ela promove de fato alteram o texto escrito na juventude é uma questão aberta, que esta edição crítica pretende debater, sobretudo a partir dos pequenos ensaios críti-cos que acompanham este livro. Não é casual que essas interpreta-

8. Antonio Candido, “Sérgio em Berlim e depois”. Novos Estudos, n. 3, pp. 7-8, jul. 1982. O ensaio de Candido serviria depois de prefácio à porção “ale-mã” da coletânea de textos de Sérgio Buarque de Holanda anteriores a Raízes

do Brasil, organizada por Francisco de Assis Barbosa. Cf. Raízes de Sérgio

Buarque de Holanda (org. de Francisco de Assis Barbosa; Rio de Janeiro: Rocco, 1989, pp. 119-29).

Raizes do Brasil 6a prova.indd 22Raizes do Brasil 6a prova.indd 22 20/07/16 15:4020/07/16 15:40

Page 20: Sérgio Buarque de Holanda Raízes do Brasilimg.travessa.com.br/capitulo/COMPANHIA_DAS_LETRAS/RAIZES_DO_BRASIL... · meridionais do Brasil — André Botelho e Antonio Brasil ...

23

ções variem tanto, como poderá observar o leitor. Afi nal, pedimos que os seus autores sondassem a história desta obra tantas vezes citada, mas raras vezes entendida como um ensaio em movimen-to. Mas seria irônico, ao fi m, se o mais conhecido livro de um dos nossos mais conhecidos historiadores continuasse a ser lido como um texto sem sua própria história.

No Brasil, ao menos desde a década de 1980, quando morre Sér-gio Buarque de Holanda, muitos falam a respeito, citam e comentam Raízes do Brasil: acadêmicos, é claro, mas também estudantes do ensino médio, professores de todos os níveis, jornalistas, políticos, atores, presidentes e jogadores de futebol. Raízes do Brasil se tornou o livro necessário para se falar do Brasil. Um livro essencial.

A recepção de Raízes do Brasil continuaria transformando as “raízes” do título nas verdadeiras “raízes” do país, como se de sua leitura pudesse emergir a essência do Brasil: sua seiva submersa. Mas é importante lembrar que nesse processo de canonização o livro pode ter perdido sua história interna, suas próprias ambi-guidades e ambivalências. Mais ainda, ele é lido a partir de um de seus capítulos: “O homem cordial”. Subitamente, os brasileiros se tornam “cordiais” — uma espécie de verdade coletiva, última e incontornável — e ao invés de analisar a obra com lentes críticas, isto é, ao invés de lembrar que o “homem cordial” podia ser um obstáculo e não uma saída para nossa entrada num Estado liberal e democrático, muitas vezes venceu a interpretação risonha do conceito, otimista e alvissareira, como se a cordialidade fosse um destino compartilhado: uma solução para todos os males.

O que signifi ca, ainda, que boa parte dos leitores não se repor-ta ao livro inteiro, mas principalmente, se não exclusivamente, a uma única parte dele: a do “homem cordial”, ora percebido como traço positivo, ora como problema, mas muitas vezes como uma autodefi nição conclusiva.

É importante ressaltar, portanto, a recepção crescente do livro. Depois da edição “defi nitiva” de 1969 — como destaca a “Cronolo-gia de Raízes do Brasil”, ao fi m deste volume —, ele teria ainda di-

Raizes do Brasil 6a prova.indd 23Raizes do Brasil 6a prova.indd 23 20/07/16 15:4020/07/16 15:40

Page 21: Sérgio Buarque de Holanda Raízes do Brasilimg.travessa.com.br/capitulo/COMPANHIA_DAS_LETRAS/RAIZES_DO_BRASIL... · meridionais do Brasil — André Botelho e Antonio Brasil ...

24

versas edições pela José Olympio, até que a Companhia das Letras o incorporasse a seu catálogo, em 31 de março de 1995. Desde então, e até o início de 2016, foram vendidos mais de 250 mil exemplares, em duas edições, com 43 reimpressões, além da edição comemora-tiva dos setenta anos, organizada por Ricardo Benzaquen de Araújo e Lilia Moritz Schwarcz em 2006, e cujos 9 mil exemplares esgota-ram-se rapidamente. Mais de 250 mil exemplares impressos em vin-te anos, portanto, num país onde uma obra acadêmica raramente vende mais que 3 mil cópias, e que é considerada um grande suces-so quando atinge a vendagem de 9 mil exemplares.

Não devemos ser ingênuos, porém. Não há magia aí. Acontece que Raízes do Brasil se tornou um símbolo de prestígio, uma espé-cie de capital simbólico fundamental, e também uma marca. Uma forma de nos apalparmos e nos reconhecermos na diferença que deixa de ser histórica e passa a ser essencial.

Em sites de turismo, os brasileiros são defi nidos como “cordiais”. Em programas de tv, sambas-enredo, até em novelas voltaríamos ao homem cordial como nossa melhor promessa. O conceito entrou no vocabulário do pensamento conservador, mas também recebeu aval da interpretação mais liberal. Inspirou sambas no Carnaval, e Sérgio Buarque de Holanda se tornaria o nome de um enorme navio da Petrobras, lançado ao mar pelo presidente da República, e capaz de transportar 56 milhões de litros de combustível. Como se sabe, e como bem se pode imaginar, quando um autor ou um livro ganham essa visibilidade, ninguém pode controlar sua repercussão.

Mas por que Raízes do Brasil tem sido percebido de maneiras às vezes tão diversas, inclusive distantes, muitas vezes, da forma que o próprio Sérgio Buarque parece ter desejado atribuir ao li-vro, em sua edição “defi nitiva”? Talvez porque a maioria de nós pretenda estar em paz consigo mesma, capaz de dizer, fi nalmente, “somos assim mesmo”: bons de samba, de capoeira e de cordiali-dade. Ou talvez seja essa a forma de mostrar como desconfi amos de nós mesmos, nos autoatribuindo uma fórmula suspeita, que não é capaz de dar respostas defi nitivas.

Raizes do Brasil 6a prova.indd 24Raizes do Brasil 6a prova.indd 24 20/07/16 15:4020/07/16 15:40

Page 22: Sérgio Buarque de Holanda Raízes do Brasilimg.travessa.com.br/capitulo/COMPANHIA_DAS_LETRAS/RAIZES_DO_BRASIL... · meridionais do Brasil — André Botelho e Antonio Brasil ...

25

De toda maneira, mesmo o resgate da história do livro, e de seu making of, não será capaz de resolver o problema. Talvez seja melhor manter o mistério e reconhecer que todo bom livro tem vida própria. Nesse caso, uma vida própria e longa, que ainda nos diz respeito, e muito.

* * *

Raízes do Brasil, como se verá aqui, é um livro em mutação constante. Há bastante tempo os críticos que se especializam na obra de Sérgio Buarque de Holanda vinham reclamando da falta de uma edição crítica, que introduzisse de forma discriminada trechos excluídos e incluídos pelo autor, no decorrer dos vários anos de pu-blicação. Aproveitando os oitenta anos de lançamento desse livro (1936), esta edição dedica-se a suprir essa lacuna. Ao mesmo tempo, optou-se por uma edição crítica que não fosse acadêmica em dema-sia, sendo nossa intenção manter essa obra, que já faz parte do jargão de muitos brasileiros, acessível aos leitores não especializados; isso sem abrir mão do rigor necessário a esse tipo de empreitada.

Encontram-se aqui o texto atual de Raízes do Brasil e as suas variantes entre as cinco primeiras edições, precedidos de uma nota em que se explicam os critérios usados na organização e na anotação. Essa tarefa fi cou a cargo de Mauricio Acuña e Marcelo Diego e contou com nossa supervisão. Em seguida, vêm os “tex-tos para e sobre Raízes do Brasil”, isto é, prefácios e apêndices que acompanharam as cinco primeiras edições e que com o tem-po, devido à sua importância, passaram como que a fazer parte da própria obra. Há também um conjunto de posfácios especialmen-te preparados para esta edição. Por isso mesmo, eles se atêm, mui-to particularmente, aos ecos e às ressonâncias de Raízes do Brasil no tempo, desde 1936. Um pequeno caderno de imagens traz algu-mas evidências a serem interpretadas, revelando como o livro vai se transformando de forma às vezes dramática. Dele fazem parte capas de Raízes do Brasil, retiradas de suas várias edições brasi-

Raizes do Brasil 6a prova.indd 25Raizes do Brasil 6a prova.indd 25 20/07/16 15:4020/07/16 15:40

Page 23: Sérgio Buarque de Holanda Raízes do Brasilimg.travessa.com.br/capitulo/COMPANHIA_DAS_LETRAS/RAIZES_DO_BRASIL... · meridionais do Brasil — André Botelho e Antonio Brasil ...

26

leiras e também estrangeiras. Incluímos também fotos da inquieta marginália e das anotações deixadas por Sérgio Buarque de Ho-landa num exemplar da primeira edição, que foi enviado à editora José Olympio para a composição da edição seguinte, em 1948.9

Fecha esta edição uma cronologia de Raízes do Brasil, com in-formações mínimas sobre seu autor e mais detalhadas acerca da for-tuna do próprio livro, incluindo-se suas várias edições e traduções.

Princeton e São Paulo, abril de 2016

pedro meira monteiro é professor titular de literatura brasileira na Universidade Princeton. É autor e organizador, entre outros, de Mário

de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda: Correspondência (Companhia das Letras/Edusp/ieb, 2012), A primeira aula: Trânsitos da literatura

brasileira no estrangeiro (Itaú Cultural/Hedra, 2014) e Signo e desterro:

Sérgio Buarque de Holanda e a imaginação do Brasil (Hucitec, 2015).

lilia moritz schwarcz é professora titular do Departamento de An-tropologia da Universidade de São Paulo, global scholar e professora visitante desde 2011 na Universidade Princeton. Curadora adjunta para histórias do Masp, é autora, entre outros, de As barbas do imperador (Companhia das Letras, 1998) e Brasil: Uma biografi a (com Heloisa Starling; Companhia das Letras, 2015).

9. Tal exemplar pertence hoje a Carlos Marigo Filho, a quem agradecemos pela autorização para reproduzir aqui as fotos. Agradecemos também a Rui Moreira Leite, que gentilmente construiu a ponte que nos levou ao precio-so exemplar que pertenceu a Sérgio Buarque. Somos gratos ainda à equipe da Coleção Sérgio Buarque de Holanda, da Unicamp, especialmente Tereza Cristina Oliveira Nonatto de Carvalho, Isabella Nascimento Pereira e Fer-nanda Cristina Festa Mira, que nos ajudaram na localização de edições e tra-duções do livro.

Raizes do Brasil 6a prova.indd 26Raizes do Brasil 6a prova.indd 26 20/07/16 15:4020/07/16 15:40