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SERVIO SOCIAL & REALIDADE

UNESP Universidade Estadual Paulista UNESP So Paulo State University Reitor Prof. Dr. Marcos Macari Vice-Reitor Prof. Dr. Herman Jacobus Cornelis Voorwald Pr-Reitoria de Ps-Graduao Profa. Dra. Marilza Vieira Cunha Rudge Pr-Reitoria de Pesquisa Prof. Dr. Jos Arana Varela FACULDADE DE HISTRIA, DIREITO E SERVIO SOCIAL Diretor Prof. Dr. Ivan Aparecido Manoel Vice-Diretor Prof. Dr. Fernando Andrade Fernandes Coordenadora do Programa de Ps-Graduao em Servio Social Profa. Dra. Claudia Maria Daher Cosac Vice-Coordenador do Programa de Ps-Graduao em Servio Social Prof. Dr. Pe. Mrio Jos Filho

UNESP Universidade Estadual Paulista UNESP So Paulo State University

SERVIO SOCIAL & REALIDADE

Servio Social & Realidade

ISSN 1413-4233 Franca v.16, n.2 p.1-338 2007

SERVIO SOCIAL & REALIDADE Comisso Editorial

Profa. Dr Claudia Maria Daher Cosac (Presidente) Prof. Dr. Pe. Mrio Jos Filho Profa. Dr Maria ngela Rodrigues Alves de Andrade Prof. Dr. Jos Walter Canas Profa. Dr Raquel Santos SantAna Profa. Dr Neide Aparecida de Souza Lehfeld Prof. Dr. Paolo Nosella (Universidade Federal de So Carlos) Profa. Dr Lizete Diniz Ribas Casagrande (USP) Profa. Dr Luzia Aparecida Martins Yoshida (UNICAMP) Profa. Dr Elosa Cerdan Del Lama (Traduo CERDAN) Prof. Dr. Frederico A. Alem Barbieire (FEI/S. Bernardo do Campo/SP) Prof. Dr. Clifford Andrew Cliff Welch (State University Allendare/EUA)Publicao Semestral/Semestral publication Solicita-se permuta/Exchange desired

Correspondncia e artigos para publicao devero ser encaminhados a: Correspondende and articles for publicacion should be addressed to:Faculdade de Histria, Direito e Servio Social Rua Major Claudiano, 1488 CEP 14400-690 - Franca SP Endereos Eletrnico / email [email protected]

SERVIO SOCIAL & REALIDADE (Faculdade de Histria, Direto e Servio Social UNESP) Franca, SP, Brasil, 1993 1993 2007, 1 29 ISSN 1413-4233

APRESENTAOO Servio Social neste incio de milnio, vem passando por inmeras transformaes, que instigam a profisso sob mltiplos aspectos a buscar a compreenso das expresses e manifestao da questo social, para a leitura da realidade social. Novas temticas e desafios postos aos sujeitos sociais so apresentados pelos autores desta edio. Os artigos trazem reflexes sobre o papel do profissional em lidar com as questes do cotidiano, com discusses sobre o mundo do TRABALHO SADE SEGURIDADE SOCIAL CIDADANIA, bem como a fundamentao terica acerca da compreenso da realidade na contemporaneidade. Queremos aqui destacar a importncia dos diversos autores na conduo de suas reflexes, na direo de, a partir de uma determinada realidade eminentemente interventiva, buscarem atravs de suas pesquisas enveredar pelo caminho da construo do conhecimento do e em Servio Social. Todos os textos tangenciam como pano de fundo as relaes sociais no mundo do trabalho e a dimenso tericometodolgica do Servio Social na efetivao dos direitos da populao, enfatizando o compromisso da profisso. Podemos ainda dizer que os artigos aqui apresentados desencadeiam a discusso e o processo de reestruturao orgnica da poltica pblica da Assistncia Social, levando os leitores reflexo para construrem um lcus privilegiado de interveno; aproximando-se ao mximo do cotidiano da vida das pessoas.

Por ltimo queremos parabenizar os autores pela abertura e disposio em socializar seus conhecimentos na perspectiva da interdisciplinariedade, gerando novos conhecimentos. Prof. Dr. Pe. Mrio Jos Filho

Vice-Coordenador do Programa de Ps-Graduao em Servio Social UNESP Franca

SUMRIO/CONTENTS Perda da Identidade Civil: o resgate cidadaniaLoss of the civil identity: the rescue to the citizenship.

Adalina Duarte de FREITAS; Maria Isabel Silva APARECIDO; Silvana Cunha KOHN; Silvana Helena Balthazar GAUDNCIO ...................................................... A percepo dos cuidadores sociais de crianas em abrigos em relao ao processo do cuidar Cludia Maria Leal MARQUES; Maria Aparecida Tedeschi CANO; Telma Sanchez VENDRUSCOLO ........... Continuo preocupada... (10 anos depois): aspectos psicossociais de mulheres com dupla jornada de trabalho Clria Maria Lobo Bittar Pucci BUENO .............................. A (des)proteo social do trabalhador: os casos de acidente de trabalhoThe social (dis) protection of the worker: the cases of labor accident

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The perception of the social caretakers of children in shelters in relation to the process of taking care.

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I remain concerned... (10 years later): psychosocial aspects of women with a double day of work

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Gisele Aparecida BOVOLENTA; Silvana Cunha KOHN; Maria Aparecida Mendes SOARES .................................... Trabalho e qualidade de vida de pessoas com fissura labiopalatina inseridas no mercado profissional em Bauru

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Work and quality of life of people with labiopalatine cleft inserted at the professional market in Bauru

Lvia Ribeiro Silva dos SANTOS; Maria Ins Gndara GRACIANO; Regina Clia Arruda de Almeida Prado VALENTIM ........................................................................... Os agentes multiplicadores e representantes de Associaes do Brasil na rea de anomalias craniofaciais: a incluso digital em pautaThe multiplier and representative agents of associations of brazil in craniofacial anomalies area: the digital inclusion on the agenda

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Michelle Karen de Brunis FERREIRA; Silvana Aparecida Maziero CUSTDIO; Eliana Fidncio de OliveiraServio Social & Realidade, Franca, 16(2): 1-338, 2007

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MENDES ................................................................ A responsabilidade social empresarial: em busca da eficinciaThe business social responsibility: in search of the efficiency

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Patrcia Rachel Pisani MANZOLI; Claudia Maria Daher Cosac ..................................................................................... As polticas municipais de apoio ao estudante de ensino superior e seus benefcios sociaisThe municipal politics of support to the student of higher education and their social benefits

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Regina Maura REZENDE; Paulo Henrique Miotto DONADELI ............................................................................ O papel do CRAS na efetivao da seguridade social enquanto 195 sistema de proteo socialThe hole of CRAS in effectveness of the social security while a system of social protection

Edilene ......................................................................

LOPES 207

Direitos humanos e pobreza na sociedade contempornea: no h equao possvel

Human rights and poverty in the contemporary society: there is no possible equation.

Denise Freitas DORNELLES ............................................... 235 Por uma abordagem contemporaneidade sistmica na compreenso da 263

For a systemic approach in the understanding of contemporaneity

Dimas dos Reis RIBEIRO; Claudia Maria Daher COSAC .. Determinismo e prxis: o dualismo do mtodo de MarxDeterminism and praxis: the dualism of marx's method

Gustavo .......................................................

MENEGHETTI 283

A organizao poltica do Servio Social no Brasil: de Vargas a Lula

The political organization of the social service in brazil: from Vargas to Lula. Servio Social & Realidade, Franca, 16(2): 1-338, 2007

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Maria Izabel da SILVA ......................................................... 299 RESENHA/REVIEW 305 329 ALMEIDA 331 333 SOCIALIZANDO ................................................................................... ndice de Assuntos .............................................................................. Subject ........................................................................................ Index 335

MORIN, Edgar. Dilogo sobre o conhecimentoMarcelo de ..........................................................

ndice de Autores/Authors Index ....................................................... Normas para Apresentao de Original ............................................

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PERDA DA IDENTIDADE CIVIL: O RESGATE CIDADANIA Adalina Duarte de FREITAS* Maria Isabel Silva APARECIDO* Silvana Cunha KOHN* Silvia Helena Balthazar GAUDNCIO* RESUMO: Pela especificidade do atendimento de urgncia e emergncia e alta rotatividade, o Servio Social da Unidade de Emergncia Referenciada, se depara com uma grande demanda de pacientes que chegam sem identificao, vtimas de violncia urbana, ou com distrbios psiquitricos. Esses pacientes, devido ao impacto, sofrem a perda de conscincia por perodo indeterminado, bloqueando sua prpria identidade, tornando difcil o resgate sua rede de relacionamento familiar e social. Cabe ao Servio Social atravs de seu protocolo de atendimento, investigar, a partir de dados imprecisos, confusos, pronunciados pelo paciente num momento de alterao comportamental, afetivo, ou ideativo inespecfico resgatar a sua condio de cidado. PALAVRAS-CHAVE: Servio Social; Urgncia/Emergncia; Resgate; Cidadania; Identidade.

Introduo A poltica de sade brasileira, que avanou a partir da Constituio Federal de 1988, preconiza a sade como direito do cidado e dever do Estado, prevendo o acesso universal e igualitrio s aes e servios de sade, sendo planejada e sistematizada pelo SUS (Sistema nico de Sade), o qual implanta aes em diferentes esferas, atribuindo responsabilidade aos governos Federal, Estadual e Municipal, embasado no eixo da descentralizao, municipalizao e no controle social que se d via conselhos. A Unidade de Emergncia Referenciada da UNICAMP (antigo Pronto-Socorro) realiza seus atendimentos baseando-se nas diretrizes da Poltica Nacional de Sade Pblica, e na SUAS (Sistema nico de Assistncia Social) o que remete ao atendimento mdico e social em grande escala e diversidade de provenincias e*

Assistentes Sociais da Unidade de Emergncia Referenciada. INSTITUIO: Servio Social Unidade de Emergncia Referenciada Hospital de Clnicas/ UNICAMP. Servio Social & Realidade, Franca, 16(2): 11-22, 2007 11

casos. Pela especificidade do atendimento de urgncia e alta rotatividade da Unidade de Emergncia Referenciada, o Servio Social desta instituio se depara com uma grande demanda de indivduos que chegam sem identificao e que, como todos os outros pacientes, tm os mesmos direitos ao tratamento mdico e cidadania. Esta demanda sem identificao, genericamente, so vtimas da Violncia Urbana: Acidente Automobilstico, Acidente de Moto, Atropelamento, Acidente de Bicicleta, Espancamentos, Ferimentos com arma de fogo, Ferimentos por arma branca; Agresses, Quedas, etc. Sade Mental: Sndrome de abstinncia, Tentativas de suicdio, Transtorno Mental, etc. E alguns problemas clnicos: Convulses, Infarto, Perda da memria, Mal estar sbito, etc. Estes indivduos, pelo impacto do choque, sofrem perda de conscincia por perodo indeterminado, bloqueando sua prpria identidade e tornando difcil descobrir quais os componentes essenciais e quais os secundrios de sua personalidade. Os desvios na busca da identidade podem ser dolorosos, sendo assim, cabe ao assistente social envolvido no processo de atendimento de emergncia desvendar, ir a busca de uma investigao que, muitas vezes, inicia-se com dados imprecisos e confusos pronunciados pelo paciente num momento de alterao comportamental, afetiva ou ideativa inespecfica. Todo paciente ao ser admitido na Unidade de Emergncia12 Servio Social & Realidade, Franca, 16(2): 11-22, 2007

Referenciada, na situao de desconhecido, encontra-se em atendimento de emergncia e com uma sbita desorganizao em nvel de comportamento, humor ou pensamento, levando-o a incapacidade, mesmo que momentnea, de controlar suas atividades usuais, pessoais e sociais, sendo necessrio que o Servio Social aguarde o retorno do coma deste paciente, de modo que este possa fornecer dados mais convincentes e claros que daro suporte para o intermdio junto aos recursos da rede, possibilitando o retorno do paciente ao seu convvio familiar. Justificativa O Programa de Desconhecidos desenvolvido pelo Servio Social da Unidade de Emergncia Referenciada da UNICAMP torna-se imprescindvel, tendo em vista a forma de atendimento caracterizado por urgncias e emergncias, a alta rotatividade e a demanda significativa. Sendo o acesso sade preconizado pela Poltica de Sade brasileira a todos os cidados e, considerando que, as aes e servios de sade so devidas em carter de necessidade bsica, a Unidade de Emergncia Referenciada, no atendimento de pacientes com perda, mesmo que momentnea, de sua identidade civil, desenvolve um trabalho multidisciplinar, contando com a equipe mdica, de enfermagem, e do servio social, as quais atuam no processo sade-doena, utilizando as mais variadas teraputicas e tecnologias para o sucesso do atendimento. Porm, especificamente ao profissional de Servio Social, cabe o resgate da identidade civil do paciente que, ao ser admitido, apresenta-se como protagonista de uma realidade que quebra subitamente o cotidiano, tornando toda e qualquer ao uma misso, que envolve, alm do acolhimento e responsabilizao, um intenso trabalho de carter investigativo e mobilizador, buscando oferecer respostas resolutivas e eficientes que reflitam positivamente na realidade social do paciente e na efetivao de sua cidadania. A eficcia deste programa alcanada principalmente pelo comprometimento dos Assistentes Sociais no atendimento dos pacientes que so admitidos sem identificao e sem referncias. O trabalho exige uma ao rpida, logo na chegada, com o preenchimento do protocolo de desconhecidos e entrevista com o paciente, quando possvel, levantando dados, muitas vezesServio Social & Realidade, Franca, 16(2): 11-22, 2007 13

confusos, mas que auxiliam na busca de suas referncias familiares e sociais. Tambm de grande valia os dados fornecidos pelos socorristas (SAMU, Resgate, ambulncias de concessionrias das rodovias, ambulncias de outras localidades, Polcia Militar, Guarda Municipal e outros...), esclarecendo a possvel situao causadora, local onde o paciente fora encontrado e demais fatos, para a agilizao da interveno social, do atendimento mdico e um retorno seguro do paciente para sua rede social quando na alta. Somando-se a esta realidade, a Unidade de Emergncia Referenciada, como parte de um hospital de nvel tercirio, o Hospital de Clnicas da UNICAMP, supera as expectativas quanto ao nmero de atendimentos em nvel regional e at mesmo nacional, ao receber pacientes vtimas de todos os tipos de violncia, das quais as de maior ocorrncia so os acidentes de trnsito devido estar localizado nas imediaes de trs grandes rodovias do estado de So Paulo (Via Anhanguera, Bandeirantes e Dom Pedro) e outras rodovias que cortam a Regio Metropolitana de Campinas, bem como, recebe pacientes encaminhados pela rede, para continuidade e complementao do tratamento, que, no primeiro atendimento, no fora possvel por ausncia de recursos tecnolgicos e teraputicos especializados. Objetivo O Programa de Desconhecidos desenvolvido pelo Servio Social da Unidade de Emergncia Referenciada tem como objetivo/meta atingir todos os pacientes que forem admitidos na condio de desconhecido, oferecendo suporte, para que tenham garantido um atendimento humanizado, oportunizando, em um menor espao de tempo, seu resgate sociedade. Agilizar o atendimento mdico, buscando recursos nas instituies que possam auxiliar na identificao do paciente; Investigar casos sociais, sem famlias e sem residncia fixa; Contatar e discutir casos com a equipe multiprofissional, quando requer acompanhamento social de maior especificidade, exigindo permanncia por um tempo maior na Unidade de Emergncia Referenciada; Trabalhar e oferecer apoio scio-assistencial ao paciente e/ou famlia, principalmente se constatada rejeio familiar. Metodologia14 Servio Social & Realidade, Franca, 16(2): 11-22, 2007

Levantar a trajetria do paciente Unidade de Emergncia Referenciada, verificando quem o socorreu, localizao, condies em que foi encontrado; Manter-se prximo ao paciente, na tentativa de colher dados que reforcem a situao social; Esclarecer e informar equipe multiprofissional, as providncias sociais que esto sendo tomadas para o estabelecimento de critrios de ao; Estabelecer parcerias junto aos recursos da rede; Entrevistar e acompanhar os familiares; Possibilitar o retorno do paciente junto famlia e/ou sua rede de relacionamentos; ou a incluso em outros recursos sociais. Estratgias de Ao Todo paciente ao ser admitido na Unidade de Emergncia Referenciada na condio de desconhecido ser includo no programa, onde estabelecer-se- parcerias com setores afins, reconhecendo a vital importncia da mobilizao e agilizao nas buscas que facilitaro a identificao e origem do paciente, utilizando como diretriz os contatos telefnicos com instituies que forneam acesso a registros de entrada, sada e permanncia de indivduos, tais como: Setor de Pessoas Desaparecidas; Hospitais e Centros de Sade de Campinas; PA (Pronto Atendimento) de Campinas e regio; Hospitais e Centros de Sade das localidades que os pacientes foram encaminhados; Hospitais e Clnicas psiquitricas; Secretrias de aes sociais; CAPs (unidades de referncia secundria e intermedirias de sade mental, com equipe multiprofissional e tem como misso tratar de forma intensiva os portadores de transtorno mental grave com idade superior a 14 anos); SAMIN (Albergues Noturnos de Campinas e regio); Delegacias, Distritos Policiais, Polcia Rodoviria; Assessoria de Imprensa e Jurdica do Hospital de Clnicas da UNICAMP; Mdia, imprensa escrita, falada e televisionada; Operadoras de telefonia; Igrejas; Sociedade de Amigos do Bairro; ONGs; Outros. Trajetria do Atendimento Hospitalar Em sua totalidade, todo paciente que acessa a Unidade de Emergncia Referenciada na situao de desconhecido, ser submetido avaliao de vrias especialidades mdicas, como: clinica mdica, cirurgia geral, neurocirurgia, neuroclnica, psiquiatria, ortopedia. Tais especialidades encontram-se em atuao direta na Unidade de Emergncia, as demaisServio Social & Realidade, Franca, 16(2): 11-22, 2007 15

especialidades que se fizerem necessrias sero bispadas, permitindo diagnosticar o distrbio orgnico e possibilitando a conduo adequada do caso. Referencial Prtico do Servio Social durante a permanncia do paciente na Unidade de Emergncia Referenciada O paciente que estiver: confuso desorientado ou no contatando: Relacionar, nos casos imediatos relativos ao programa, dados de identificao do paciente, providncias, horrios, identificao das pessoas com as quais se manteve contato telefnico, identificao dos assistentes sociais que esto acompanhando o caso, bem como, identificao da equipe de apoio que est intervindo (mdicos, enfermagem, recepo, transporte, etc); Abrir Pronturio de Atendimento Social, em impresso prprio do Servio Social da UNICAMP, notificando todas as providncias, informaes, contatos telefnicos, entrevistas, discusses com a equipe de apoio, fazendo-o de forma clara, contendo nomes, horrios e datas, o que facilita o andamento e acompanhamento do atendimento por outro profissional da rea que venha a incumbir-se; Manter-se prximo ao paciente o maior tempo possvel, na tentativa de colher dados que reforcem a investigao social; Levar ao conhecimento da equipe multiprofissional as providncias sociais que esto sendo encaminhadas para o estabelecimento de critrios de ao; Dar continuidade investigao social, contatando setores afins. O paciente quando contatando: Entrevistar o paciente e fornecer apoio scio-assistencial; Providenciar o preenchimento do Boletim de Atendimento de Urgncia, atravs do repasse de informaes colhidas com o paciente para a recepo da instituio; Contatar e convocar famlia e/ou colateral; Entrevistar famlia e/ou colateral; Orientar quanto aos benefcios previdencirios (se16 Servio Social & Realidade, Franca, 16(2): 11-22, 2007

necessrio); Intermediar contato mdico/famlia; Acompanhar famlia e/ou colateral fornecendo apoio scioassistencial e orientaes quanto s rotinas da Unidade de Emergncia Referenciada e atividades do Servio Social. Diante de Condutas Mdicas: Internao em enfermarias do Hospital de Clnicas da UNICAMP Passar o relatrio do atendimento social realizado com o paciente ao Servio Social da enfermaria para o devido acompanhamento; avisar famlia e/ou colateral; Transferncias para hospitais de Campinas, Hospitais da localidade de origem ou hospitais para tratamento especfico Certificar vaga, endereo do hospital e o mdico com o qual manteve contato; convocar e interar a famlia e/ou colateral sobre a necessidade da transferncia; orientar e esclarecer a famlia e/ou colateral quanto s normas da transferncia; dar suporte para a remoo do paciente atravs de transporte, equipamento especial (se necessrio), acompanhamento familiar e/ou da equipe de enfermagem; atentar para os encaminhamentos e documentao do paciente. Resultados Nos ltimos cinco anos de 2003 a 2007 atendemos 385 pacientes que deram entrada na UER como Desconhecidos, com mdia anual de 77 casos. Prevalecendo o gnero masculino com 75% e o feminino com 25%. A faixa etria predominante de 21 a 40 anos com 47% dos casos. De Campinas atendemos 55%, Regio Metropolitana de Campinas 27%, de outras cidades 7%, Sem residncia fixa 6% e 5% sem dados. Deste total, 26% retornaram s suas famlias, 36% foram a bito, 20% ficaram internados no HCUNICAMP, 14% encaminhados para internao em Hospital Psiquitrico, 4% transferidos para outros hospitais. Destes, apenas 11% ocorreram procura espontnea da famlia, sendo que 84% dos casos foram equacionados diretamente pela ao profissional do Assistente Social e 5% no foram identificados por envolvimento policial. O trabalho mostra a importncia da ao voltada ao resgate da cidadania da populao vtima de violncia urbana ou que apresentam transtornos mentais e clnicos, na perspectiva voltadaServio Social & Realidade, Franca, 16(2): 11-22, 2007 17

humanizao do atendimento em sade, no acolhimento, na responsabilizao e resolutividade como princpios ticos que devem fazer parte do iderio profissional.FREITAS, A. D.; APARECIDO, M. I. S.; KOHN, S. C.; GAUDNCIO, S. H. B. Loss of the civil identity: the rescue to the citizenship. Servio Social & Realidade (Franca), v. 16, n. 2, p. 11-22, 2007. ABSTRACT: For the specificity of the urgency and emergency and high rotation service, the Social Service of Referenced Emergency Unit faces a great demand of patients that arrive without identification, victims of urban violence, or with psychiatric disturbances. Those patients, due to the impact, suffer the loss of conscience for an uncertain period, blocking his/her own identity, turning difficult the rescue to his/her net of family and social relationship. It depends on the Social Service through its service protocol, to investigate, starting from imprecise, confused data, pronounced by the patient in a moment of unspecific behavior, affectionate or idea alteration to rescue his/her citizen condition. KEYWORDS: Social Citizenship; Identity. Service; Urgency/Emergency; Rescue;

Referncias APOSTILA: Gesthos, Gesto Hospitalar. Mdulo-I: Os Sistemas de Sade e as Organizaes Assistenciais. Ministrio da Sade, Braslia/DF: Projeto Reforsus, 2002. BOTEGA, N. J. Prtica Psiquitrica no Hospital Geral: Interconsulta e Emergncia. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2006. BRASIL, Presidncia da Repblica. Lei Orgnica da Assistncia Social, n. 8.742, de 7 de dezembro de 1993, publicada no DOU de 8 de dezembro de 1993. CAMILO, M. V. R. F. A Universalidade de acesso enquanto expresso do direito sade: A trajetria histrica do hospital das Clnicas da UNICAMP 1996-1997. 166 f. Dissertao (de Mestrado em Servio Social) -Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo. So Paulo. CAMILO, M. V. R. F. Trajetria do direito sade: a experincia de um hospital-escola. Revista Servio Social & Sociedade, So Paulo: Cortez, n. 59, p. 152-164, 1999. ______; TERRA, S. R. A. M. Servio Social do Hospital de18 Servio Social & Realidade, Franca, 16(2): 11-22, 2007

Clnicas da UNICAMP: Uma trajetria Histrica de Legitimidade. Revista Servio Social e Sade da Universidade Estadual de Campinas. Ano I, n. 1. Campinas: Oficinas grficas da UNICAMP, p. 13-40, 2002. CARVALHO, G. I.; SANTOS, L. Sistema nico de Sade (Comentrios Lei Orgnica da Sade, Lei n. 8.080/90 e Lei n. 8.142/90). 2. ed. So Paulo: Hucitec, 1995. DIRETORIA DO SERVIO SOCIAL DE CLNICAS. Documento interno: diretrizes do Servio Social do Hospital das Clnicas da UNICAMP. Campinas, 1986. FREITAS, A. D.; CAMPOS, A. C. M.; CESCHINI, M.; Andrade, M. L. O.; FRATTINI, M. S. T. S.; KOHN, S. C.; BALTHAZAR, S. H. A Evoluo do Servio Social no Pronto Socorro do Hospital de Clnicas/ UNICAMP: da ateno ao emergencial em direo cidadania. Trabalho apresentado no V Simpsio de Servio Social Nacional. Rio de Janeiro 1991. KOHN, S. C. Servio Social na Unidade de Emergncia Referenciada: espao construdo e legitimado. Revista Servio Social e Sade da Universidade Estadual de Campinas. Ano V, n. 5. Campinas: Oficinas grficas da UNICAMP, p. 35-48, 2006. MINISTRIO DA SADE, Portal da Sade, Manual e Cartilhas da Poltica Nacional de Humanizao Humaniza SUS. http://portal.saude.gov.br/saude/. MINISTRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE FOME, SUAS Sistema nico de Assistncia Social. http://www.mds.gov.br /suas/.

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SERVIO SOCIAL /UER PROTOCOLO DE DESCONHECIDOSData de Admisso: ___/___/___ Horrio: Nome: Pr-matrcula: MASC: FEM: COR: Estatura: Obeso: Mdio: Idade aproximada: Cabelos: Curto: Barba: Olhos: Longo: Bigode: Magro:

Quando trazido na UER Condies de higiene:

Aspectos ps e mos: Vestimenta: Aspectos Marcantes:

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Local onde foi encontrado: ---------------------------------------Chegou na UER atravs de: SAMU: Resgate: Dersa: Auto-Ban: Viatura Policial: Guarda Municipal: Ambulncia da cidade: Outros:

Identificado atravs de: Procura espontnea da famlia: Quem trouxe o pcte na UER Mobilizao de Recursos da comunidade:

Divulgao na Imprensa: Polcia: Outros:- --------------------------------------------------------------------------Assistente Social:

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A PERCEPO DOS CUIDADORES SOCIAIS DE CRIANAS EM ABRIGOS EM RELAO AO PROCESSO DO CUIDAR Cludia Maria Leal MARQUES* Maria Aparecida Tedeschi CANO** Telma Sanchez VENDRUSCOLO*** RESUMO: Esta pesquisa foi desenvolvida no municpio de UberlndiaMG, em um Abrigo no governamental, que recebe crianas de 0 a 4 anos de idade, vtimas da violncia e misria social. O objetivo desta pesquisa foi o de conhecer a percepo dos cuidadores sociais com relao ao crescimento e desenvolvimento infantil e os cuidados que so oferecidos por eles s crianas institucionalizadas. O referencial terico embasou-se em autores que discutem a evoluo histrica da assistncia criana, o abandono e as leis de proteo. Foi utilizada a metodologia qualitativa, baseada na tcnica de livre narrativa dos sujeitos a partir de uma questo norteadora: Como para voc trabalhar aqui no Abrigo cuidando de crianas. A anlise dos dados foi feita atravs da anlise de contedo, modalidade-anlise temtica. Os resultados da anlise do contedo evidenciam quatro ncleos de sentido: A CHEGADA; O COTIDIANO, que se sub-divide em: a rotina, a recreao e os cuidados; A ESPERA e ADOO. Pode-se perceber a ligao direta entre o trabalho domstico das cuidadoras, com a atuao com as crianas; a relao de gnero no cuidar e a falta de percepo das cuidadoras quanto s questes trabalhistas e o preparo profissional para o cuidado. PALAVRAS-CHAVE: Cuidadores Sociais; Crianas; Abrigos.

Introduo As crianas institucionalizadas em Abrigos so vtimas da misria social, que envolve a violncia, a ignorncia e negligncia de suas famlias e esta uma realidade presente nas famlias brasileiras. A vulnerabilidade das famlias encontra-se diretamente associada situao de pobreza e ao perfil de distribuio de renda no Brasil. Os Abrigos so instituies governamentais (ou no governamentais) responsveis por zelar pela integridade fsica eEnfermeira. Mestre pela Universidade de Franca. Enfermeira, Professora Doutora Livre Docente da rea Materno Infantil e Sade Pblica da Universidade de Franca. *** Assistente Social, Professora Doutora da rea de Fundamentos do Servio Social na Universidade de Ribeiro Preto. CEP: 14025-220.** *

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emocional de crianas que necessitem temporariamente, se afastarem do convvio familiar. Na institucionalizao em Abrigos estas crianas passam a viver sem a referncia do que ter uma famlia, acolhimento, segurana, relao afetiva me-filho e rompem os laos de convivncia familiar e comunitria. Suas necessidades bsicas so atendidas por profissionais denominados Cuidadores Sociais. Existe um acolhimento provisrio da criana abandonada e h uma preparao e acompanhamento para que retornem futuramente famlia de origem ou faam parte do processo de adoo dentro de um dispositivo jurdico-tcnico que tem o objetivo de proteger a infncia (WEBER, 2005). Estas crianas institucionalizadas necessitam de uma famlia para receb-las dentro de um tempo menor possvel, oferecendo toda assistncia e vnculos que s a famlia pode oferecer; toda a sociedade encontra ou deveria encontrar na famlia o seu ponto de partida. O ncleo familiar de significativa e de incomensurvel importncia para o ser humano, principalmente as crianas que esto em fase de crescimento e desenvolvimento bio-psico-social. O vnculo um aspecto to importante no desenvolvimento das crianas que garantido pelo Estatuto da Criana e Adolescente no Captulo III-Do Direito a Convivncia Familiar e Comunitria-Art. 19: Toda criana tem direito de ser criado no seio de sua famlia e, excepcionalmente, em famlia substituta, assegurada a convivncia familiar e comunitria (BRASIL, ECA, 1990, p. 20). Em nossa vivencia profissional como profissional de sade de uma equipe multidisciplinar da rede de atendimento integral a sade da criana, dentro da nossa competncia tcnica entendemos que a criana um ser em desenvolvimento fsico, emocional, social, cultural e portanto o eixo norteador de todo o cuidado sade o acompanhamento do crescimento e desenvolvimento. O acompanhamento do crescimento e desenvolvimento da criana o principal indicador de suas condies de sade, compete ao enfermeiro no s acompanhamento e avaliao, mas atuao junto famlia, aos cuidadores sociais orientando-os promovendo aquisio de competncias para atender as necessidades das crianas que incluem: comunicao, higiene,24 Servio Social & Realidade, Franca, 16(2): 23-42, 2007

imunizaes, sono, nutrio, afeto, segurana sexualidade, sade bucal, disciplina e auto-estima. Por outro lado, percebemos que apesar da boa vontade, os cuidadores dos Abrigos no esto capacitados dentro da rea da sade para acompanhar o crescimento e desenvolvimento das crianas. Diante do exposto o nosso objeto de estudo nesta pesquisa, ser o cuidado que oferecido pelos cuidadores sociais, s crianas institucionalizadas nos Abrigos. Com esta pesquisa, esperamos estar contribuindo para que as crianas que esto abrigadas, aguardando o retorno convivncia familiar e comunitria ou sendo encaminhadas para adoo, tenham uma melhor qualidade de vida, uma vez que entendemos que o processo de cuidar um processo interativo entre quem cuida e quem cuidado. Objetivo Conhecer a percepo dos cuidadores sociais com relao ao ingresso das crianas nos Abrigos e os cuidados oferecidos durante o processo de institucionalizao. Metodologia Para desenvolvermos esta pesquisa, buscamos como referencial metodolgico, a abordagem qualitativa, entendendo que esta facilitaria a compreenso de um aspecto social, influenciado por fatores polticos, culturais e morais que em uma abordagem quantitativa perderia muito seu significado. Segundo Trivios (1994, p. 120) muitas informaes sobre a vida no podem ser quantificadas e precisam ser interpretadas de forma muito mais ampla que circunscrita ao simples dado objetivo. A pesquisa foi realizada na cidade de Uberlndia, localizada na regio nordeste do Tringulo Mineiro, considerada a terceira maior cidade do estado de Minas Gerais. Fizeram parte deste estudo, trs cuidadores sociais do Abrigo que mantido por uma ONG e supervisionado pela Vara da Infncia e da Juventude do municpio. Todos foram esclarecidos previamente sobre os objetivos da pesquisa e tambm sobre a necessidade de gravao das mesmas. Assinaram o Termo de Consentimento Livre e esclarecido. Fomos recebidos no abrigo, em dia e horrio previamente agendados e houve clima informal e descontrado. Para Cruz Neto (1994), a apresentao da proposta doServio Social & Realidade, Franca, 16(2): 23-42, 2007 25

trabalho aos participantes da pesquisa importante, uma vez que os mesmos devem ser esclarecidos sobre aquilo que se pretende investigar e as possveis repercusses da investigao. Priorizamos neste trabalho a entrevista semi-estruturada, como instrumento de coleta de dados, pois permite que se capte a informao desejada, alm de possibilitar que o entrevistado possa se expressar livremente sobre o tema proposto. Elaboramos um roteiro com dados sobre o estado civil, grau de escolaridade, nmero de filhos e tempo de atividade no Abrigo. A seguir apresentamos o seguinte questionamento: Como para voc trabalhar aqui no Abrigo cuidando das crianas. Anlise dos Dados Para esta etapa da investigao, seguimos os passos propostos por Gomes (1994) de ordenao dos dados, que realizamos atravs da transcrio das entrevistas gravadas e leitura dos textos transcritos. Aps vrias leituras, classificamos os dados organizando os ncleos de sentido e a seguir realizamos a anlise final, utilizando os fragmentos das falas do atores sociais, estabelecendo articulaes destas com a teoria. A anlise dos dados foi feita atravs da analise de contedo, na qual utilizamos os pressupostos da anlise temtica, mtodo que se prope a enxergar o mundo e compreender o seu contexto (BARDIN, apud MINAYO, 1996). Resultados e Discusso Fizeram parte da pesquisa, trs cuidadores sociais do Abrigo, com idade entre 20 e 42 anos, grau de escolaridade nvel mdio, somente uma delas no tem filhos e o tempo de atuao profissional na instituio variou de um ano e um ms a um ano e seis meses. Os resultados da anlise do contedo das falas destas cuidadores sociais evidenciaram os seguintes ncleos de sentido: 1A Chegada e os maus tratos; 2- O Cotidiano, que sero apresentados a seguir. A chegada e os maus tratos Neste Ncleo de sentido vamos retratar o ingresso das crianas no Abrigo, percebemos pelas falas dos atores sociais, sujeitos da nossa pesquisa, que a violncia e os maus tratos no26 Servio Social & Realidade, Franca, 16(2): 23-42, 2007

ncleo familiar so alguns dos fatores, percebidos por eles na chegada a instituio, como podemos ver a seguir:C-1- Voc v muita coisa assim revoltante... chegou um aqui que foi espancado... nossa dolorido. C-2- Tem crianas que vieram pra c por causa dos maus tratos.

A violncia contra as crianas um grave problema em nosso pas, deixando de ser somente em nvel social-jurdico incluindo-se tambm no universo da sade pblica. Violncia esta gerada pelas condies de misria em que vivem as famlias brasileiras que vivenciam no cotidiano, a desigualdade social, desemprego, analfabetismo, ambiente conflituosos; exposto ao abuso de drogas, baixa auto-estima, transtornos de conduta neste contexto que as crianas so vtimas em potencial. O tipo mais freqente de maus tratos contra as crianas a violncia domstica e que muitas vezes se prolonga por muito tempo uma vez que a famlia o lcus privilegiado que protege as crianas, e onde se propicia o seu desenvolvimento, porm h um silncio, um acobertamento da violncia ai praticada assim como do agressor, muitas vezes por cumplicidade ou medo. Para o Centro de Referncia, Estudos e Aes sobre Crianas e Adolescentes (CECRIA, 1997) so das condies estruturantes materiais e de poder da sociedade humana que decorre a possibilidade ou no da violncia contra a criana e adolescente. Pela excluso que comportam, pela falta de condies da famlia, como pela forma como esta se estrutura para sobreviver e relacionar-se. Sobrevivncia e relacionamento familiar esto intimamente ligados. Para Iossi (2004) muitos problemas tm dificultado o dimensionamento da violncia no Brasil, desde as diferentes definies do problema, a diversidade de fonte de inqurito, at a inexistncia de informaes populacionais. As relaes de poder desfavorecem as crianas, pois os valores culturais definem o papel do adulto como sendo de fora, dominao, superioridade e poder social da criana como sendo de submisso, passividade, respeito, fraqueza e inferioridade (IOSSI, 2004). O ser humano complexo e contraditrio, ambivalente em seus sentimentos e condutas, capaz de construir e de destruir. EmServio Social & Realidade, Franca, 16(2): 23-42, 2007 27

condies sociais de escassez, de privaes e de falta de perspectivas, as possibilidades de amar, construir e de respeitar o outro ficam ameaadas. Este estado de privao de direitos ameaa a todos na medida em que se produz uma desumanizao generalizada (KALOUSTIAN, 2002, p. 55).C-1- No comportamento de algumas crianas por ter visto as brigas dos pais, so agressivas, arredias, no conversam at se acostumarem com a convivncia aqui no abrigo, com as funcionrias e as crianas.

O impacto dos maus tratos sobre as crianas influenciado por fatores como a idade, grau de desenvolvimento, tipo de abuso fsico sofrido, freqncia durao, gravidade do abuso e relao existente entre a vtima e o agressor (PIRES, 2005). Segundo Roque (2006), no municpio de Jardinpolis-SP, entre 1995 e 2005, as aes que tramitaram na Instncia da Justia da Infncia e da Juventude apontaram que dos 2977 processos, 8,21% foram de violncia domstica, aproximadamente 245 casos, dos quais 23,51% foram de violncia sexual, 62,9% de negligncia e 113,58% de violncia fsica. Em nossa pesquisa os atores sociais apenas citaram a violncia fsica, ou seja, aquela que h uso da fora fsica, geralmente do adulto contra a criana, causando-lhe desde leva dor, podendo passar por danos e ferimentos graves, deixando seqelas. De certa forma os danos fsicos e emocionais tambm podem ser irreversveis e se manifestarem em idades mais adiantadas. O Cotidiano Este ncleo retratado nas falas dos atores sociais configurou-se em trs subtemas que foram construdos a partir das significaes dos discursos dos atores envolvidos: Rotina, Recreao e Cuidados, que passaremos a discutir a seguir. Rotina As crianas atendidas no Abrigo tm idade de zero a quatro anos, uma entidade de ao filantrpica, educativa e social, com objetivo de atender as necessidades das crianas carentes, tem28 Servio Social & Realidade, Franca, 16(2): 23-42, 2007

orientao de base crist, mas sem vnculo com nenhuma religio especfica. Na fala dos atores sociais a rotina simples e se desenvolve normalmente.C-1 Bom os cuidados a gente chega de manh d o banho nos menores de zero a dois anos e depois a mamadeira, enquanto os maiores continuam dormindo, depois a gente volta d o banho nos maiores e o lanche deles. C-2 Cuido deles noite, pe para dormir, escovar os dentes, rezo com eles e mais cuidar deles.

As rotinas deveriam ser organizadas, sistematizadas, buscando garantir condies peculiares e direitos ao desenvolvimento, direito a convivncia familiar e comunitria, direito a liberdade, respeito e dignidade. A submisso s rotinas e o convvio restrito as mesmas pessoas, comprometem o desenvolvimento da criana alm de limitar suas possibilidades e oportunidades de desenvolver relaes sociais amplas e diversificadas. As crianas institucionalizadas sofrem uma rotina artificial de relaes estereotipadas que fala por elas, privando-as de seu espao subjetivo, de seus contedos individuais e da possibilidade de construo de vnculos afetivos (WEBER, 1995, p. 36). Na fala dos atores sociais eles retratam:C 1- O rodzio por turno, cria muitas confuses na cabecinha deles. Aps algum tempo eles acostumam e at sabem a hora da gente de ir embora. Se vem substituir, as crianas perguntam se no est cansada.

Nos Abrigos, a mudana dos cuidadores primrios da criana, as oscilaes tcnicas no atendimento, a falta de consenso sobre o processo educacional a ser adotado, a transferncia da criana de uma instituio para outra so fatores que ocorrem comumente e que acarretam a descontinuidade dos laos afetivos. A criana, dependendo de sua faixa etria e de suas vivncias pretritas, apresenta necessidades distintas, e o mtodo empregado pelo programa de abrigamento nem sempre atende de forma personalizada essa demanda. O retardo no desenvolvimentoServio Social & Realidade, Franca, 16(2): 23-42, 2007 29

cognitivo e o afetivo de uma criana abrigada por longa data denotam malefcios da institucionalizao prolongada. Se a ruptura dos vnculos iniciais prejudicial, a continuidade dessas rupturas ainda pior. Os laos construdos nas instituies revelam-se frgeis e inconsistentes. A criana abrigada demora em demonstrar sinais de formao de apegos sociais especficos (TJRGS, 2006). Na relao cuidadores sociais e as crianas as tarefas do dia a dia, o nmero de crianas atendidas dificultam o comportamento de apego, no d para atender todas as crianas da mesma forma com o mesmo carinho, ateno e afeto, dificultando a formao do vnculo afetivo. A criana precisa de ateno diferenciada para satisfazer suas necessidades individuais por afeto e estimulao. O mtodo empregado pelo programa de abrigamento dificilmente garante o atendimento a essa demanda de forma personalizada. Recreao A recreao, o divertir-se, entreter-se, gracejar, faz parte do universo infantil, do ser criana. A recreao retratada nas falas dos atores sociais ocorre no cotidiano das crianas de maneira bastante diversificada pelos horrios e cuidadoras e com certa dificuldade:C-1 Quando no est frio a gente leva para fora dar banho de sol e quando est frio ficamos brincando na sala de televiso. A gente no tem um projeto pra fazer com eles porque so duas cuidadoras de manh e uma enfermeira, ento difcil, arrumar um projeto pra brincar com eles.

O brincar facilita o crescimento e, portanto a sade, o brincar conduz aos relacionamentos grupais, o brincar como experincia criativa na continuidade espao-tempo, uma forma bsica de viver (WINNICOTT, 1975). As cuidadoras reconhecem essa necessidade da criana, mas tambm sabem que so muitas crianas, muitas atividades essenciais como alimentao, por exemplo, sobrando pouco tempo para brincar com as crianas, alm do nmero insuficiente de30 Servio Social & Realidade, Franca, 16(2): 23-42, 2007

profissionais por planto. Outro aspecto que chama ateno nesta fala que no existe um projeto de recreao, lazer a ser desenvolvido no dia a dia. No nosso entendimento ele to necessrio quanto se alimentar. Devido sua importncia a recreao deve ser inserida nas atividades do dia a dia das crianas, em vez de ser considerado somente como atividade residual. Brincar permite desenvolver percepes sobre as outras pessoas e compreender as exigncias de expectativa e tolerncia. Brincando aprende-se a conciliar de forma efetiva a afirmao de si mesmo criao de vnculos afetivo e duradouro. A importncia do brincar aparece na fala de outra cuidadora:C-3 Tem a hora do lazer deles, o espao pouco, mas mesmo neste espao a gente tem pra brincar: pipa, bola, animais brincadeira do dia a dia.

A falta de tempo, de um espao para as brincadeiras tambm aparece na fala desta cuidadora, que se refere ao ambiente externo, a convivncia ao ar livre, com bola, pipa, entre outros. O jogo/brincadeira teraputico em qualquer idade. Ele proporciona um meio para liberar a tenso e o estresse encontrados no ambiente. Atravs do jogo/brincadeira, as crianas so capazes de se comunicar e demonstrar suas necessidades, temores e desejos que elas no conseguem exprimir atravs da linguagem. Entendemos que seu planto noturno, mas a partir das 19h00min possvel elaborar jogos, contar estrias, etc. Cuidado Todos os atributos do cuidar so essenciais no processo de desenvolvimento da criana. Nos Abrigos o cuidado e ateno individual ficam limitados em funo do nmero de crianas que necessitam de atendimento em todas as suas necessidades bsicas e o nmero insuficiente de cuidadores para desempenharem esta funo. Este contexto retratado nas falas dos atores sociais a seguir:C.1- A gente d o carinho tambm na medida do possvel porque no d pra dar para todos de uma Servio Social & Realidade, Franca, 16(2): 23-42, 2007 31

vez e a gente trata eles como se fossem nossos, mas no daquele jeito nosso, porque so muitos e no tem como.

A importncia do cuidado na vida das crianas se faz no nvel de preveno, promoo sade, no seu crescimento e desenvolvimento, no contexto do brigo o cuidado se torna mais abrangente indo alm dos cuidados primrios, o cuidador retrata em sua fala o cuidado envolvendo: carinho, ateno, pacincia, educao, limitando algumas atitudes das crianas no dia a dia e relacionam este cuidar aqueles com os filhos em casa com est apontado nas seguintes falas:C.2- Estas crianas daqui tem que ser mais especiais que em casa, precisa de muito carinho, muita pacincia e muito carinho. C.1- Eu assim, eu me espelho em casa com os meus filhos e tento tratar eles da mesma forma. Passo pra eles o carinho, a hora do educar e tem a hora do castigo porque onde no tem disciplina no tem como ter uma convivncia e ento me espelho em casa e trato eles aqui. C.3- Trabalho com carinho, alm do carinho e do amor, da compreenso temos que dar limites na hora certa, no pode fazer isso, no hora pra isso, hora disso.

O cuidado desenvolvido pelas cuidadoras comparado sempre no cuidado que tem com seus filhos em casa, porm deixam bem claro que so muitos e no tem como, em nossa percepo como pesquisadora, torna-se necessrio redimensionar, o nmero de cuidadores em relao ao nmero de crianas, uma vez que as atividades dos cuidadores em relao aos cuidados com as crianas se organizam nas vinte e quatro horas. Neste contexto faz-se necessrio que o cuidador, conhea a criana nas diferentes faixas etrias e suas peculiaridades tais como: intolerncia alimentar, preferncias, hbitos de sono e de eliminaes, controles especiais com sua sade entre outros o que ir favorecer o atendimento a necessidade da criana de forma individualizada, estabelecendo vnculos afetivos, permitindo o engajamento na relao cuidador-criana. No processo do cuidar percebe-se que os cuidados primrios so fundamentais para o bom crescimento e desenvolvimento da criana e a qualidade dos cuidados32 Servio Social & Realidade, Franca, 16(2): 23-42, 2007

dispensados as crianas so de extrema relevncia para nossa pesquisa. Pensamos que neste aspecto as cuidadoras se desdobram para oferecer o melhor de si mesmas, embora lhes falhe alguns conhecimentos bsicos de alimentao de crianas. A criana necessita estabelecer relaes afetivas com os cuidadores e precisam deles para se estruturar como sujeito, com identidade prpria, so os cuidadores que os escutam, os entendem; que cuidam deles atendendo suas necessidades na medida do possvel, que lhes do carinho, afeto, que lhes proporcionam oportunidades seguras de explorar e conhecer o mundo que as rodeiam, condies essenciais ao adequado crescimento e desenvolvimento destas crianas. A espera Neste ncleo de sentido, os atores sociais fragmentam em dois subtemas: Retorno ao Lar e Adoo. A contextualizao deste ncleo de alta complexidade, pois os subtemas retrataram a reintegrao familiar e o processo de adoo, neste sentido envolvem fatores e situaes que muitas vezes requer estudos familiares e processos judicirios que so mais demorados. Retorno ao lar Compreender e cumprir o ECA um grande desafio para Abrigos, o carter dos abrigos em ser uma medida provisria e excepcional e de promover a reintegrao social processo complexo. As maiores dificuldades para se alcanar esse objetivo so relacionadas resistncia dos dirigentes e demais funcionrios dos abrigos quanto funo social do abrigo no contexto das polticas pblicas atuais (IPEA/CONANDA, 2004, p. 374). Incluir os Abrigos em um compromisso com a desinstitucionalizao um desafio. A reintegrao social deveria ocorrer desde o ingresso da criana na instituio, perceber, conhecer a histria da famlia constituio dinmica, interao, as razes da institucionalizao so essenciais para se promover a reintegrao social, pois h necessidade de um trabalho de reorganizao da famlia de origem. A criana abrigada por direito deve ter possibilidade de retornar a sua famlia de origem ou conviver em famlia substituta. O livro-relatrio O direito convivncia familiar eServio Social & Realidade, Franca, 16(2): 23-42, 2007 33

comunitria: os abrigos para crianas e adolescentes no Brasil retratam o perfil das crianas abrigadas em relao famlia: 58,2 % das crianas e adolescentes abrigados tm famlia e mantem vnculo, 22,7% tem famlia e sem vnculo, 5,8% tem famlia, porm por impedimento judicial no mantm vnculo, num total de 86,7% crianas abrigadas com famlia, diante deste quadro possvel promover a reintegrao social possibilitando a criana de usufruir o convvio com sua famlia de origem mesmo vivendo em um abrigo, manter estar convivncia diante de possurem famlia uma realidade e direito constitudo pelo ECA. Neste relatrio segundo o Comit para Reordenamento de Abrigos alguns fatores so determinantes para permanncia prolongada de crianas e adolescentes nestas instituies, entre os quais podem ser citados: o acolhimento de crianas e adolescentes nos abrigos sem deciso judicial; a escassez de fiscalizao das Instituies de Abrigos por parte do Judicirio, do Ministrio Pblico e dos Conselhos Tutelares; a inexistncia de profissionais capacitados para realizar intervenes no ambiente familiar dos abrigados, promovendo a reinsero deles; a existncia de crianas e adolescentes colocados em Abrigos fora de seus municpios, o que dificulta o contato fsico com a famlia de origem, o entendimento equivocado por parte dos profissionais de abrigos de que a instituio o melhor lugar para a criana; a ausncia de polticas pblicas de apoio s famlias; a demora no julgamento dos processos por parte do Judicirio; e a utilizao indiscriminada da medida de abrigamento pelos Conselhos Tutelares, antes de terem sido analisadas as demais opes viveis para evitar a institucionalizao de crianas e adolescentes (IPEA/ CONANDA, 2004, p. 60 e 65). Alguns desses fatores vm retratados na fala dos atores sociais da nossa pesquisa:C.1- Alguns vem para o abrigo e so adotados outros a justia d uma chance para os pais, a assistente social vem acompanhando at certo tempo, a conforme for reagindo a criana e os pais, a o juiz devolve, mas demora um pouco.

O impacto de um perodo de institucionalizao prolongado34 Servio Social & Realidade, Franca, 16(2): 23-42, 2007

afeta a criana no seu crescimento e desenvolvimento e sua sociabilizao um fator importante que merece reflexo, retratado na fala dos atores sociais desta pesquisa:C.3- Uns ficam aqui, a famlia tem problemas com a justia e tem que resolver antes, outros so adotados e outros vo para outros abrigos.

A desinstitucionalizao um processo bastante complexo, h necessidade da realizao de um trabalho com a famlia de origem objetivando sua reorganizao, o comprometimento dos pais em quererem o retorno da criana ao lar prioritrio no cotidiano dessas crianas. Este contexto vem relatado nas falas dos atores sociais desta pesquisa:C.2- Alguns tem que esperar o pai entrar para pedir a guarda de volta, o pai, a famlia, um parente ou av, e tem os que aguardam adoo.

Torna-se necessrio a interveno do trabalho da equipe tcnica que dever ser dinmico, interdisciplinar, atitude dever ser de escuta atenta, compreensiva, analtica e avaliativa buscando meios adequados para alcanar o objetivo de desinstitucionalizar a criana definitivamente, ressaltando neste estudo que a criana a maior interessada em retornar ao seu lar, conhecer suas idealizaes, referncias de famlia: como viveu, sentimentos em relao ao abandono,do abrigo e perspectivas de futura para sua vida so essenciais para que ocorra a sada do abrigo com uma preparao gradativa e o menos traumtica possvel (MOTTA, CECIF, 2002). Porm para esta pesquisadora, torna-se necessrio que o desenvolvimento deste trabalho seja o mais precoce possvel, para que o abrigo cumpra com seu papel de proteo e em carter temporrio dessas crianas. O acompanhamento de crianas no processo de desinstitucionalizao se faz de forma isolada e fragmentada, cada situao em particular avaliada conforme a necessidade do momento o que no possibilita um parecer tcnico efetivo, h ausncia de uma poltica de desinstitucionalizao daServio Social & Realidade, Franca, 16(2): 23-42, 2007 35

criana o que dificulta o processo de reintegrao familiar. Torna-se de extrema importncia buscar solues que apiem os abrigos, para que possam promover e manter o direito a convivncia familiar, a integrao de vrias entidades de apoio para que atuando conjuntamente implementem medidas que atendam o direito dessas crianas reintegrao familiar, a interveno da Vara da Infncia e da Juventude no pode exercer o papel somente de fiscalizador h necessidade de ter o papel de parceiro, estreitando as relaes com as instituies e trazendo o Poder Pblico para uma discusso sobre a atuao em relao s polticas pblicas que podero ser implementadas visando atender o direito das crianas de reintegrao familiar. Adoo As crianas institucionalizadas so acolhidas provisoriamente em abrigos como medida de proteo em curto prazo, porm a realidade retrata que as crianas ficam por longo tempo nos abrigos, at que as autoridades competentes da Vara da Infncia e Juventude deliberem judicialmente para que possam ser adotadas. No so todas as crianas institucionalizadas que esto inseridas no processo de adoo, somente aquelas cujos pais sejam desconhecidos ou que tiveram decretado a perda do poder familiar por sentena judicial, poder familiar constitui um conjunto de direitos e deveres dos pais em relao aos seus filhos (PERNAMBUCO, 2004, p. 11). A adoo garantida pelo ECA Art.-41: atribui a condio de filho adotado, com os mesmos direitos e deveres, inclusive sucessrios, desligando-o de qualquer vnculo com os pais e parentes, Art.-46: ser precedida de estgio de convivncia com a criana ou adolescente, pelo prazo que a autoridade judiciria fixar, observadas as peculiaridades do caso e Art.-48: irrevogvel. (BRASIL, ECA, 1991). Por mais que o poder judicirio se esforce, nem sempre consegue atender as demandas que lhe chegam e o que se observa uma demora no processo de adoo, desde seu incio at sua concluso. Existem crianas para serem adotadas nos abrigos, apesar do processo de adoo visar a criana como o maior interessado, no ocorre um cadastramento das crianas que esto aptas para serem adotadas, ocorre um cadastramento dos casais,36 Servio Social & Realidade, Franca, 16(2): 23-42, 2007

porm muitas delas no tm o perfil das preferncias dos casais que pretendem adot-las. Segundo Relatrio da Vara da Infncia e Juventude de Belo Horizonte em 2003 dos 176 casais inscritos o perfil das crianas pleiteadas em relao: Faixa etria de zero a um ano-61,9%; Sexo-feminino-46%; Cor - optaram exclusivamente por crianas de cor branca-35,2%. Diante desta realidade percebemos que as crianas que no esto contempladas neste perfil tero muitas dificuldades de encontrarem uma famlia que as adote e acredito este seja um dos fatores que contribua para a demora do processo de adoo das crianas abrigadas. Na fala dos atores sociais desta pesquisa tambm se preocupam com a demora do processo:C.1- Eu acho errado, porque medida que vai passando o tempo as pessoas no querem mais adotar as crianas maiores, a elas vo ficando aquelas crianas revoltadas, tristes e at chora e dizem porque minha me no me busca? Porque ningum me quer? triste.

A adoo hoje implica necessariamente em adoes chamadas tardias, de crianas mais velhas, porm os mitos que constituem a atual cultura da adoo no Brasil apresentam-se como fortes obstculos realizao deste tipo de adoo. Em pesquisa realizada com a populao em geral na cidade de Curitiba, indicam alguns determinantes para este desencontro de crianas institucionalizadas e postulantes a adoo, de acordo com as opinies de boa parte da populao encontradas na pesquisa, as pessoas: teriam medo de adotar crianas mais velhas pela dificuldade na educao; teriam medo de adotar crianas que viveram muito tempo em orfanatos pelos vcios que traria consigo; medo que os pais biolgicos possam requerer as crianas de volta; medo de adotar crianas sem saber a origem de seus pais biolgicos, pois a marginalidade dos pais seria transmitida geneticamente; pensam que uma criana adotada, cedo ou tarde traz problemas (WEBER, 2005, p. 77), no relatei todo o teor da pesquisa e procurei relatar algumas opinies que mereceram porServio Social & Realidade, Franca, 16(2): 23-42, 2007 37

parte desta pesquisadora maior relevncia, pois acredito que muitas destas opinies poderiam ser modificadas atravs de esclarecimentos com campanhas, panfletos, participao fruns, que debatessem o tema, estratgias que visassem simplesmente maiores informaes sobre o tema. Neste contexto os atores sociais desta pesquisa percebem que h famlias querendo adotar e crianas para ser adotadas, ento o processo poderia ser mais fcil:C.2- Muito demorado, acho que demora demais a liberar, acho que tinha que ser mais rpido. V a famlia que vai adotar a criana demora muito. Traz conseqncias para as crianas esta demora, porque as crianas vo crescendo e crescem sem o convvio dos pais, chegam aqui novinhas e vo para outra instituio e no foi adotada e tem famlia com ficha querendo crianas, isto atrapalha.

Alguns aspectos so relevantes em relao adoo que subsidiam a posio defendida pelo Plano Nacional de Promoo, Proteo e Defesa do Direito de Crianas e Adolescentes Convivncia Familiar e Comunitria: a adoo seja medida excepcional, realizada apenas quando esgotadas as possibilidades de reintegrao famlia de origem e o encaminhamento para adoo requer intervenes qualificadas e condizentes com os pressupostos legais e o superior interesse da criana e do adolescente (BRASIL, 2006, p. 44). A adoo um processo delicado, os caminhos so tortuosos e cheios de entraves, no podemos coloc-la como a soluo para resolver os problemas das crianas institucionalizadas, mas com certeza representa um dos caminhos para garantir a criana o direito de ser criado e educado por uma famlia. Consideraes Finais No universo do Abrigo as crianas so cuidadas pelos cuidadores sociais, sujeitos da nossa pesquisa, que na nossa percepo desenvolvem suas funes de forma emprica, experienciada na sua vida cotidiana, cuidando-os da forma como cuidam de seus prprios filhos. Considerando que o nmero de crianas que necessitam de cuidados e o nmero de cuidadoras para desenvolv-los, fica difcil38 Servio Social & Realidade, Franca, 16(2): 23-42, 2007

voltar o olhar para o atendimento individual, o cuidado ser desenvolvido de forma coletiva. Os atores sociais da nossa pesquisa se mostraram envolvidos, compromissados em cuidar das crianas, porm percebemos um despreparo no que se refere s etapas do crescimento e desenvolvimento infantil, e neste ambiente os cuidados necessitam serem direcionados buscando perceber que ocorrem numerosas alteraes com as crianas e em diferentes faixas etrias. Torna-se essencial que os cuidadores sociais compreendam que mesmo as necessidades bsicas: de comunicao, higiene, recreao, nutrio, sono, carinho, afeto, so expressas pelas diferentes crianas, em diferentes idades e de formas singulares. O processo do cuidar transcende as necessidades bsicas e para tanto preciso buscar formas de fortalecimento fsico, moral, emocional e psicolgico dessas crianas, uma vez que so vitimadas no corpo e na alma. E independente da finalizao de cada caso, elas retomaro uma nova etapa de suas vidas, necessitando de segurana e autoconfiana para faz-lo. Tais aspectos evidenciam a necessidade de um cuidado voltado para preveno, promoo e manuteno a sade. Consideramos que o processo do cuidar em decorrncia das suas razes femininas se expressa nos discursos analisados e ecoa na prtica da Enfermagem, pois se irmanam em suas origens. O profissional Enfermeiro vivencia em sua prtica todo o processo do cuidar, em vrios contextos, o que o qualifica para ser inserido na equipe tcnica do abrigo, podendo ser um facilitador para o desenvolvimento de um cuidar mais adequado e compartilhado pela equipe, exercitando o seu papel conscientizador, na necessria tomada de conscincia sobre o cuidar por parte de quem cuida. Alm do papel do cuidador, o profissional pode ser tambm um fomentador da cultura de valorizao, respeito e promoo da convivncia familiar e comunitria, reconhecendo a famlia como o ambiente de excelncia para o desenvolvimento de crianas e adolescentes.MARQUES, C. M. L.; CANO, M. A. T.; VENDRUSCOLO, T. S. The perception of the social caretakers of children in shelters in relation to the process of taking care. Servio Social & Realidade (Franca), v. 16, n. 2, p. 23-42, 2007.

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ABSTRACT: This research was developed in the municipal district of Uberlndia-MG, in a non-governmental shelter, that receives children from 0 to 4 years old, victims of violence and social poverty. The objective of this research was of knowing the social caretakers' perception regarding the infantile growth and development and the cares that are offered by them to the institutionalized children. The theoretical referential was based in authors that discuss the historical evolution of the attendance to the child, the abandonment and the protection laws. The qualitative methodology was used, based on the technique of free narrative of the subjects starting from a leading theme: "How it is for you to work here in the Shelter taking care of children". The analysis of the data was made through the content analysis, thematic modality-analysis. The results of the analysis of the content evidence four sense nuclei: THE ARRIVAL; The DAILY, that is separated in: the routine, the recreation and the cares; THE WAIT and ADOPTION. It can be noticed the direct connection between the caretakers' domestic work and the performance with the children; the gender relationship in taking care and the lack of the caretakers' perception concerning the labor subjects and the professional preparation for the care. KEYWORDS: Social Caretakers; Children; Shelters.

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CONTINUO PREOCUPADA... (10 ANOS DEPOIS): ASPECTOS PSICOSSOCIAIS DE MULHERES COM DUPLA JORNADA DE TRABALHO Clria Maria Lobo Bittar Pucci BUENO* RESUMO: Baseado em pesquisa realizada h 10 anos com as operrias do setor coureiro-caladista da cidade de Franca, esta investigao prope escutar o que de fato se alterou nas vidas de algumas daquelas mulheres, que relatavam naqueles idos tempos, uma srie de sintomas e queixas basicamente de origem psicossomticas, que se relacionavam situao vivenciada por elas, e que se explicava pela sobrecarga de atividades e responsabilidades entre o mundo do trabalho, as atividades domsticas e os cuidados com os filhos. Decorrida uma dcada e localizadas seis das 14 entrevistadas, buscou-se saber o que de fato mudara em suas vidas no que diz respeito ao trabalho, quais as estratgias que utilizaram para a conciliao entre o espao privado e o pblico, no que diz respeito s atividades e responsabilidades domsticas, o cuidado com os filhos, a continuidade e os desafios do trabalho remunerado e os cuidados que tomaram em relao sade e bem-estar. Buscar entender se continuavam com as mesmas queixas e sintomas, alm de conhecer suas estratgias de conciliao o que em ltima instncia representa uma sada criativa para o no adoecimento psquico, foi o intuito deste estudo longitudinal com as operrias, utilizando-se a mesma metodologia e localizando-as no mesmo lcus inicial as fbricas e indstrias do parque operrio de Franca. PALAVRAS-CHAVE: Sofrimento psquico; Trabalho; Sade; Subjetividade.

Introduo O presente trabalho pode ser compreendido como um estudo longitudinal que reflete a situao atual de vida de algumas trabalhadoras do parque industrial da cidade de Franca, que foram ouvidas h 10 anos, por ocasio de pesquisa de campo no programa de Mestrado em Servio Social realizado na UNESP (BUENO, 1998), sendo que, algumas destas foram localizadas e entrevistadas 10 anos depois, para conhecer o que de fato mudou em suas vidas. Naquele ano (1997) foram ouvidas 14 operrias de trs*

Psicloga, Doutora em Servio Social (UNESP). Ps-doutorado pelo Instituto Universitrio de Estudos de Mulheres (Valncia/Espanha). Docente do programa de Mestrado em Promoo de Sade, da Universidade de Franca (UNIFRAN) e do curso de Psicologia. [email protected]. 43

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importantes indstrias do setor coureiro-caladista da cidade, e seus discursos foram registrados e transcritos, utilizando-se a forma de entrevista semi-dirigida, a metodologia qualitativa e dialtica (MINAYO, 1992), e a anlise do discurso para a interpretao dos dados obtidos junto s operrias (FIORIN, 2000). O interesse principal da pesquisa era compreender sobre o sentimento de culpa que relatavam algumas mulheres ao deixarem seus filhos pequenos para adentrarem o universo do trabalho, e como este sentimento afetava suas vidas tanto no mbito do trabalho, como no pessoal. Estas operrias carregavam todo o nus do trabalho domsticos e suas responsabilidades como mes e chefes de famlia, o que lhes trazia uma situao de constante preocupao, fadiga e estresse. As queixas principais tinham relao direta com a estrutura familiar patriarcal que confere s mulheres a responsabilidade direta e praticamente exclusiva com os cuidados com os filhos e com a casa, agravados pela rotina cansativa e extenuante de uma dupla jornada, e s vezes tripla, no caso das operrias, uma questo, portanto, de desigualdade na diviso do trabalho domstico. Algumas das perguntas que nortearam a investigao naquele dado instante tinham o intuito de conhecer as queixas principais, de origem psicossomtica ou no, relatadas pelas mulheres, queixas estas provenientes da tentativa de conciliar os afazeres domsticos, o trabalho e a maternidade, sendo que algumas destas queixas variavam entre sintomas psicossomticos tais como, nuseas, dores de cabea, constipao intestinal, crises de ansiedade (taquicardia, sudorese, diminuio da ateno) aos puramente emocionais propriamente ditos, como o sentimento de angstia, tristeza, raiva e revolta. H exata uma dcada estas mulheres me relatavam seus sofrimentos em equilibrar a vida domstica com o trabalho remunerado, e me contavam das dificuldades acrescidas para aquelas que tinham filhos pequenos, pois alm da ineficincia de creches para acolherem os filhos, ainda tinham que lidar com a culpa de terem que abandon-los aos cuidados de terceiros, geralmente as avs ou algum outro parente. O pronunciamento mais comum era de que viviam sempre preocupadas entre os afazeres e as obrigaes maternas. Dentre as 14 entrevistadas, dez tinham filhos, sendo uma delas mesolteira. Eram mulheres entre 22 a 37 anos de idade, e a maioria44 Servio Social & Realidade, Franca, 16(2): 43-56, 2007

proveniente de trabalhos domsticos anteriores (babs, faxineiras), iniciados quando muito jovens (12 anos de idade em mdia). Algumas trabalhavam nas mesmas indstrias h muitos anos, havendo aquelas que passavam de duas dcadas, sem mesmo terem sido contempladas com algum tipo de promoo ou cargo de chefia. A escolaridade em mdia, era o curso ginsio incompleto, e a nica que tinha um cargo de chefia naquele momento, era justamente a que tinha mais escolaridade e tempo de experincia em setores administrativo, sendo solteira e sem filhos aos 40 anos. Uma dcada depois voltei s mesmas indstrias no encalo destas mulheres, conseguindo localizar apenas seis delas para este trabalho, embora tenha tido notcias das outras, por parte destas sobreviventes. A metodologia utilizada foi a mesma do trabalho anterior, e a seguir comento sobre o reencontro. Consideraes Preliminares Quando cheguei s indstrias que visitei dez anos antes fiz o mesmo ritual anterior perguntando pelas mulheres que ali trabalhavam. Consegui localizar seis das quatorze entrevistadas, sendo uma no curtume, trs na indstria de calados e as outras duas na indstria de artefatos para calados. Todas as seis mulheres disseram lembrar-se daquele momento em que a pesquisa de campo fora feita, e aps as devidas explicaes iniciais, disse-lhes o motivo para minha volta quele local de trabalho, no intuito de saber delas o que havia mudado em suas vidas. As que foram reencontradas: Neusa, Elaine, Vilma, Rosngela, Roseli e Araci (todos os nomes fictcios). Aproveitei para perguntar-lhes sobre as companheiras que no mais estavam presentes, e me relataram que algumas se aposentaram (uma inclusive por hrnia de disco), outras haviam tido outros filhos (e uma teve um neto de filha adolescente), algumas trabalhavam em outras localidades, outras trocaram a fbrica pela costura de sapato manual em casa, pois com o aumento da prole havia ficado mais difcil ainda conciliar a lida domstica e o cuidado com os filhos, com o trabalho remunerado. Duas delas A. e S. haviam sumido, ningum sabia destas, e Neuza chegou a comentar que M. havia mudado da cidade, voltando sua de origem. Outras foram demitidas e tiveram muita dificuldade de se reinserirem no mercado de trabalho em funo da recesso econmica que assolou a cidade, sobretudo entre 2004 e 2005, algumas sendoServio Social & Realidade, Franca, 16(2): 43-56, 2007 45

admitidas tempos depois, em outras fbricas, e s vezes em funes diferentes das que faziam. Uma delas confirmou que S. hoje, trabalha em uma empresa que terceiriza manuteno e limpeza. E quanto a estas seis mulheres, o que mudou em suas vidas ao longo destes dez anos? foi a pergunta inicial para que elas pudessem relatar suas biografias. Resumidamente apresento-lhes alguns recortes de seus discursos e biografias: Neuza, a nica que ainda trabalha no curtume, hoje aos 49 anos de idade, av de uma menina, seu filho engravidou uma namorada, assumiu a criana, mas no se casou com a me desta, foi um perodo difcil, pois o marido estava doente, e o filho fazendo bicos pouco pode contribuir para o sustento da criana, e ela teve que assumir todo o encargo e os gastos com a neta, que hoje est com dois anos. O filho est agora empregado, e tambm o seu segundo filho, que est fazendo um curso tcnico. Neuza a trabalhadora que h mais tempo est na mesma indstria, completar 30 anos em 2008, fazendo exatamente o que faz, h mais de quinze anos, sem promoo a nenhum cargo de chefia. Ela se mostrou muito lcida de sua condio de inamovibilidade do lugar onde fora colocada:Parece que tem cola aqui! Me pregaram neste posto, e acho que aqui que vou bater as botas (rindo). Engraado que vi muita gente entrar depois de mim, sem saber de um nada (sic), e hoje t a, , mandando, pousando de chefe. Acho que eles (sic) contra mulher mand... orque se for ver por ver, sei muito mais e fao muito mais que muito homem...s que eles que manda (sic).

Elaine est com 33 anos e hoje tem trs filhos, dois nascidos nestes dez anos. Enfrenta as dificuldades em conciliar o trabalho com as atividades domsticas, o que lhe preocupa muito, mas conseguiu trocar de turno, de modo que, de manh permanece em casa, cuidando da vida, como ela disse, e, ao encaminhar os meninos tarde para a escola, vem para o trabalho. Sua me ou seu pai quem buscam os meninos, e seu marido os recolhem nos sogros,46 Servio Social & Realidade, Franca, 16(2): 43-56, 2007

mais a tarde, levando-os para casa, onde Ela regressa depois das 22 horas. Foi uma concesso que fizeram para conciliar seus afazeres, embora ela diga que nunca vai dormir antes da uma da manh, pois a noitinha que ela pe muita coisa em ordem. Vilma est com 48 anos, seus dois filhos trabalham e estudam, a mais tranqila de todas, e a que, j h dez anos, dizia ter a colaborao de seu marido para algumas funes domsticas e com a lida com os filhos, um deles lhe deu muito trabalho com bronquite, e era motivo de desgaste e de ir muitas vezes trabalhar cheia de conflitos, mas isto agora est superado. Espera ansiosamente o momento em que poder se aposentar, para montarem, ela e o marido um pequeno comrcio, e vem economizando recursos para isto, com muitas dificuldades, e no sem alguma preocupao caso no se realize seu sonho. Rosngela, 44 anos de idade, na poca tinha um beb, hoje com dez anos e uma menina de seis. Foi a que mais trouxe dados sobre a culpa que sentia, naquele momento, em t-lo abandonado (tinha 5 meses quando da entrevista), para voltar a trabalhar, mas com o tempo aprendeu a se organizar:Quando no se tem outra soluo, n, a gente tem que fechar os olhos do corao e continuar vivendo, seno fica doida! Foi muito difcil no comeo, mas aos poucos fui perdendo esta tristeza, fui ficando mais forte e confiando no que estava acontecendo. Se no fosse minha me e uma irm, na poca solteira, e que me ajudaram muito com o Raul (filho), no sei se tinha conseguido. A fui vendo que no era a ltima, e nem seria a primeira, e as outras mulheres aqui me ajudaram muito a ver isto.

Araci a que melhor se saiu em termos profissionais. A nica com escolaridade completa, nestes dez anos passou de chefia a gerente, morou fora da cidade por uns tempos para implantar uma filial, voltou, cursou Economia na Faculdade Municipal, fez uma especializao em Gesto e Controladoria, e aos 50 anos est somente ficando, como ela mesma diz, com um companheiro, h cerca de cinco anos, mas por ser ele oito anos mais novo que ela, no fundo teme que, estabilizar esta relao esfrie e faa com que ele perca o interesse, embora seja ele quem queira oficializar a relao:Servio Social & Realidade, Franca, 16(2): 43-56, 2007 47

Oficializar para que? Nesta altura da minha vida, juntar escova de dente? (rindo). Tive que engolir muito sapo para chegar onde estou abrir mo de muita coisa, de ter tido uma vida pessoal, filhos, marido, sei l... e agora voltar para trs para ter o que no tive no momento, mais nova? Ah, no, prefiro assim, pelo menos cada um com seu andor, cada um com sua dor, cada um com suas conquistas...

Roseli est com 41 anos de idade e seus filhos, hoje com 12 e 15 anos. Naquele momento, sua fala mais marcante foi a de dizer que, apesar do cansao e muitas vezes da culpa que sentia, no abriria mo do trabalho, pois o trabalho domstico no fonte de satisfao e reconhecimento para a mulher. Est separada do pai de seus filhos h seis anos, e segundo ela, teve uns rolinhos mas nada srio, mesmo porque, segundo sua opinio: difcil um homem querer uma mulher que j tem dois filhos de outro, a no ser que ele tambm venha de um casamento desfeito, com mais filhos, o que quase sempre mais trabalho pra gente, lgico! Ou seno rapaz muito mais novo que ...voc sabe, n, como diz aquela msica panela veia que faz comida boa (rindo-se muito). Mas no pretendo ficar sozinha. Tambm no estou procura, se aparecer, se pintar, pintou, seno, vou levando, tenho meus filhos pra criar. Procuro no pensar muito sobre isto, porque seno fico preocupada em terminar meus dias sem ser feliz.

O trabalho, a sade e os sintomas Todas as queixas relatadas naquele ano, referiam-se de maneiras direta com a constante situao de preocupao a que estas mulheres estavam submetidas, tendo que conciliar a realidade do mundo do trabalho extra-lar, com as atividades domsticas e o cuidado com os filhos pequenos. Educadas a se sentirem e assumirem estas responsabilidades desde pequenas, em oposio a educao recebida pelos meninos que os desobrigam aos cuidados com terceiros, estas mulheres se sentiam como se estivessem alterando a ordem natural dos eventos. Desgastadas e cansadas, as mulheres revelariam naquele48 Servio Social & Realidade, Franca, 16(2): 43-56, 2007

momento, estarem em constante situao de estresse, de preocupao e em estado permanente de alerta, o que lhes causava enorme fadiga, ansiedade e sintomas outros tais como; gastrite, insnia, irritao, dermatite, queda de cabelo, tonturas, vertigens. Isso em funo do aspecto da dupla e at tripla jornada de trabalho que muitas delas revelavam viver. Agora com os filhos encaminhados na vida e maiores, quais seriam os sintomas que elas revelariam dez anos depois? Quando lhes fiz esta pergunta, relembrando-lhes de algumas respostas por elas relatadas, estas mulheres comearam por relatar a respeito de suas vidas, e quais mudanas foram as mais sentidas. No tocante sade, interessante registrar que, apesar de se reconhecerem no discurso proferido dez anos antes, quando escutaram de mim o rol de problemas que me relataram, algumas se espantaram, outras riram, e verbalizaram espanto por este dado. Roseli: Nossa! Nem sabia que tinha vivido isto tudo! (rindo) Neuza: No mudou muita coisa no! S os filho cresceu (sic), mas os problema (sic) os mesmo. A diferena que a gente se acostuma com eles e nem percebe mais Elaine: Pra mim foi uma questo de tempo. Isto a tudo que eu disse, eu repito, inda (sic) mais eu que tive trs filhos encarreado (sic) um atrs do outro! Mas a gente aprende a levar e se acostuma O que mais me marcou foi o conformismo nestas falas, como se tivessem jogado a toalha, desistindo da gigantesca luta que teriam e tm-pela frente. No tendo alternativa, acostumaram-se com a situao estressora, naturalizando-a. No muito distinto da naturalizao do discurso social que atribui a homens e mulheres padres de conduta distintos, justificados pela diferena anatmica, e somente por isto, construindo a partir destas diferenas, tudo o que propcio ou no para o seu gnero. Acostumar-se com o sofrimento no o mesmo que querlo. No , como se costuma analisar friamente e linearmente, uma assuno de uma natureza feminina naturalmente masoquista, como entende alguns, mas, a meu ver, uma estratgia de sobrevivncia. como se ousasse afirmar que, encontraram a melhor forma de continuarem a viver: apenas vivendo, e, naturalizandoServio Social & Realidade, Franca, 16(2): 43-56, 2007 49

aquilo que muitas vezes no est ao alcance de suas mos, modificar. Esta aparente e paradoxal situao de comodismo pode nos revelar um movimento de resistncia muda, ainda que imperfeita, mas uma resistncia que as permite caminhar e levar adiante seus projetos de vida. um movimento surdo e contnuo, numa anlise foucaultinana de l onde tem resistncia, tem poder (1987). E isto ficou muito claro, quando no permitiam que seus companheiros assumissem aquilo que elas prprias defendiam, h dez anos, como obrigaes de mulher a educao e o cuidado com os filhos. Fechavam o reduto em torno de si mesmas, e longe de reivindicarem em ajuda aos companheiros em relao aos cuidados com os filhos, chamavam a si a exclusividade com estes. Se os discursos ressentidos, como afirma Giddens, (1993) em relao aos homens se dava quanto a diviso das tarefas domsticas e liberdade que estes outros tm, o mesmo no se verificou quanto ao exclusivismo com os filhos. A meu ver um movimento de resistncia e poder, ainda que num estado paralelo. Mais do que o conformismo em si, a situao de estranheza num primeiro momento, pois embora se vissem e se reconhecessem no discurso, estas trabalhadoras teciam comentrios ora espantadas, ora em tom jocoso, como se tivessem falando de uma realidade que no a sua. Exceo outra vez feita, Neuza, que a meu ver parece ser a que tem mais conscincia de sua tripla condio de excluso e submisso: a de mulher, de pobre e de negra. No podemos nunca negar a dimenso da classe social e da raa e etnia, com a categoria gnero, e devemos salientar que estas duas outras, juntamente com o gnero, so igualmente fatores de excluso e de opresso. Se o patriarcado evoluiu para a degenerao e a desvalorizao de tudo o que se refere ao gnero feminino, o capitalismo veio coroar esta posio, uma vez que, ao reproduzir o status quo das mulheres, que por sua vez so produtoras e reprodutoras, desvaloriza tudo o que delas provm, naturalizando a condio hegemnica masculina. E a forma mais lgica e natural para lidar com esta questo, atribuindo nomes a funes idnticas, aprisionando mulheres a ocuparem cargos e em categorias profissionais cujo piso salarial seja menor, ou mesmo que a ascenso a postos50 Servio Social & Realidade, Franca, 16(2): 43-56, 2007

hierrquicos superiores, seja mais complicado (MADEIRA, 1997; SAFFIOTI, 1976). Esta pesquisa teve o intuito de reconhecer quais seriam os novos sintomas produzidos por estas mulheres, ou se haviam mudado de nome ou de intensidade. Ou se poderiam ter simplesmente desaparecido. Em verdade o trabalho de campo realizado em 1997 e defendido um ano aps, e que fora publicado em 2005 sob outro nome Vivo sempre preocupada 1... tem o seu motivo de ser. Em que pese as inmeras e significativas mudanas scio-econmicas em nosso pas, que reflete na vida dos cidados, alm das mudanas bvias e j citadas aqui, na vida destas mulheres, todas elas, sem exceo, no se livraram da preocupao, que parece ser uma constante em suas vidas. Claro que aqui no defendo ser uma prerrogativa feminina, mas refirome a constante preocupao em aliar famlia, trabalho remunerado, criao dos filhos, cuidados consigo mesma este quase sempre negligenciado. A sade fsica e emocional destas mulheres fica, portanto, comprometida, uma vez que o excesso de atividades domsticas e no domstica, reserva-lhe quase nenhum tempo de cio, de lazer ou de descanso. Agrega-se a isto o fato de que a sade e o bemestar dos filhos e do cnjuge serem, via de regra, prioridade, em detrimento de si prprias. Muitas vezes se atentam s suas sades, quando a mo dura da enfermidade ou do afastamento compulsrio toca-lhes os ombros. No tocante a esta realidade que acredito que, ns profissionais da rea social e da sade, temos muito a contribuir, uma vez que cabe a ns reorganizarmos os arranjos organizacionais e situaes vivenciais, possibilitando o espao da troca de experincias, o ensino e a aprendizagem de novas formas de lidar com velhos problemas, para que estas mulheres possam encontrar um canal aberto para discutir sua situao e apresentar propostas cabveis com sua condio. Isto o que chamamos empoderamento das partes da populao que costumam ser destitudas de voz e poder, e que pode ser viabilizado a partir da interveno profissional no prprio espao organizacional, ou fora dele, em lugares destinados comumente ao cio ou ao encontro de1

BUENO, C. M. L. Vivo sempre preocupada. O dilema em conciliar (sem culpa) o trabalho e maternidade. Franca: UNIFRAN, 2005. 51

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pessoas. Agindo assim estamos de acordo com o que est preconizado em muitos tratados e resolues sociais, de direitos humanos e de sade: A promoo da responsabilidade social com o empoderamento da populao e aumento da capacidade da comunidade para atuar nesse campo (Cartas de Promoo de Sade, p. 16, 2002). Consideraes finais O percurso biogrfico destas mulheres corrobora a idia inicial de que para as mulheres mais difcil tanto a ascenso aos postos hierrquicos, como a volta ao mercado de trabalho, sobretudo quando ela possui baixa escolaridade e pouca qualificao profissional. O exemplo tpico o de Neuza, que apesar dos seus quase trinta anos de dedicao indstria, teve que assistir a muitos passarem sua frente, e todos, diga-se de passagem, homens, sendo inclusive alguns bem mais jovens e inexperientes que ela. No outro extremo est Araci que, continuando solteira e tendo maior escolaridade que todas conseguiu com seu esforo, graduar-se e at cursar uma psgraduao, subindo de posto, alcanando sua independncia financeira; mas aos 50 anos de idade, embora aparentando bem menos, no deixa de transparecer que, apesar da vitria, no consegui concretizar todos os planos que a deixariam completa, e isto inclui famlia e filhos. H por um lado, uma perda afetiva neste plano, o que para ela, consciente e inegvel. Roseli traz outra questo que ainda de certa forma, uma fonte de preconceito contra as mulheres, pois trata da mulher separada, que ainda povoa o imaginrio coletivo. Se antes ela representava uma afronta dignidade da sociedade, hoje ela pode ser vista para alguns, como uma ameaa aos lares daquelas que continuam casadas, ou uma aventura fcil para os homens mais jovens, ou ainda uma tbua de salvao para aqueles muito mais velhos ou ainda com filhos de um primeiro relacionamento, e que, segundo sua tica, sempre uma carga a mais para a mulher. A rede solidria e familiar de ateno s crianas bem a situao que ilustra a vida de Elaine, pois com o aumento de sua prole, e com a escassez crnica de creches nas indstrias, no fosse a colaborao de seus pais, teria que renunciar ao trabalho remunerado, o que seguramente representaria problemas de ordem econmica em sua vida.52 Servio Social & Realidade, Franca, 16(2): 43-56, 2007

Vilma a representante da mulher que, apesar de sua origem humilde, conseguiu com sabedoria, responsabilizar o marido para as atividades tidas como exclusivas da mulher, negociando funes, ambos fazendo concesses e renncias para ser vivel a vida familiar, o trabalho e o relacionamento do casal. No a toa que foi a que se mostrou mais tranqila, descrevendo o relacionamento conjugal como uma importante fonte de crescimento e ajuda. Finalmente Rosngela aprendeu pela prpria experincia, que a culpa que sentira ao deixar o beb Raul, fora minimizada ao dar continuidade prpria existncia, revelando encontrar no auxilio e incentivo recebidos de outras mulheres a possibilidade de ser uma sobrevivente de si mesma, sendo hoje uma testemunha viva da superao do que lhe parecia impossvel. Se naquele momento a preocupao mais evidente era com o filho pequeno, hoje, esses j crescidos lhes trazem outras fontes de preocupao, e no somente estes so o que lhes preocupam, mas igualmente a possibilidade de no serem felizes ou de renunciarem aos sonhos que vm embalando numa gestao sem fim. Perceber-se a si mesmo como lutadora, como combativa e com todos os encargos que a m distribuio dos afazeres domsticos e as responsabilidades com a criao dos filhos, j lugar com