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COLEÇÃO PROTESTANTISMO E LIBERTAÇÃO SERVOS LIVRES Missão e unidade na perspectiva do Reino Emílio Castro 1986 CEDI Centro Ecumênico de Documentação e Informação Programa de Assessoria à Pastoral Protestante & Edições Liberdade (Imprensa Metodista) SUMÁRIO PREFÁCIO A SITUAÇÃO América Latina - o peso da história Ásia — opções variadas África — a busca da autenticidade As Igrejas mais antigas Novas teologias: departamentos diferentes O Reino e sua liberdade O DEBATE Bangcoc, 1973 O ataque a Bangcoc Valores ameaçados O debate evangélico A posição católica Nairóbi, 1975— em busca da convergência Melbourne, 1980—os pobres “Missão e Evangelização—Uma Afirmação Ecumênica” O local e o universal na missão Unidade e integridade na missão O REINO NA BIBLIA O Reino no ensino de Jesus O Reino no Antigo Testamento O Reino no Novo Testamento A missão do Reino A Igreja e o Reino

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COLEÇÃO PROTESTANTISMO E LIBERTAÇÃO

SERVOS LIVRES

Missão e unidade na perspectiva

do Reino

Emílio Castro

1986

CEDI Centro Ecumênico de Documentação e Informação Programa de Assessoria à Pastoral Protestante & Edições Liberdade (Imprensa Metodista)

SUMÁRIO

PREFÁCIO A SITUAÇÃO América Latina - o peso da história Ásia — opções variadas África — a busca da autenticidade As Igrejas mais antigas Novas teologias: departamentos diferentes O Reino e sua liberdade O DEBATE Bangcoc, 1973 O ataque a Bangcoc Valores ameaçados O debate evangélico A posição católica Nairóbi, 1975— em busca da convergência Melbourne, 1980—os pobres “Missão e Evangelização—Uma Afirmação Ecumênica” O local e o universal na missão Unidade e integridade na missão O REINO NA BIBLIA O Reino no ensino de Jesus O Reino no Antigo Testamento O Reino no Novo Testamento A missão do Reino A Igreja e o Reino

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O TEMA DO REINO COMO PREOCUPAÇÃO TEOLÓGICA A base trinitária Missão extraordinária e regular? Conversão ao Rei, pessoal e coletiva O prêmio do Reino Oferecendo o “agora” da história “Venha o teu Reino” LIBERDADE NA MISSÃO DO REINO A invasão do amor na história Liberdade no ministério do amor O testemunho da Igreja sobre o Reino A liberdade da Igreja em sua missão A liberdade de obediência Os riscos da liberdade Missão e liberdade

Prefácio

Qual é a missão da Igreja? Que objetivo deve ter? Que espécie de programas e prioridades deve a Igreja adotar para perseguir esse objetivo?

Essas perguntas não são novas. Na verdade, são tão antigas

quanto a própria Igreja. Mas têm sido formuladas com mais propriedade do que nunca nas últimas décadas, e também respondidas com maior diversidade e às vezes de forma mais veemente.

As respostas têm variado do crescimento da Igreja e da

evangelização do mundo em nossa época até a presença cristã e a humanização.

O debate sobre a missão tem prosseguido dentro das Igrejas

e entre elas. Tem continuado a nível local e nacional, bem como em âmbito regional e internacional. Esse debate tem provocado controvérsias infelizes e divisões tristes.

Estou convencido de que a missão da Igreja é a missão do

Reino de Deus. Dentro da perspectiva do Reino, acredito que somos enviados em liberdade para sermos os sinais do Reino, testemunhando a sua presença em nosso meio e esperando a sua vinda no futuro.

Essa é uma ampla perspectiva e dentro dela temos inúmeras

possibilidades de servir ao Reino e ao Rei Servo que o governa, participando da sua proclamação e manifestando-o nas diversas situações em que nos encontramos.

Essas situações são realmente diversas, como procuro

demonstrar no primeiro capítulo deste livro. As Igrejas se defrontam com opções variadas, quando tomam suas decisões no campo missionário e as opções variam de lugar para lugar e de situação para situação. Mas essas opções diversas não levam

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necessariamente ao conflito ou à competição. Elas refletem a riqueza do Reino e esse reconhecimento pode resultar numa unidade da missão.

Estou consciente do fato de que “Reino” não é uma palavra

abrangente. Em um livro intitulado “Anunciando o Reino de Deus - a Evangelização e a Memória Subversiva de Jesus”, Mortimer Árias deu a seguinte explicação para o emprego que faz do termo “Reino de Deus” e eu concordo inteiramente com ele:

”O termo Reino é uma expressão infeliz no mundo de hoje: é seriamente questionado por muitos em virtude de sua conotação política com a monarquia e de suas associações com a linguagem e as estruturas patriarcais. É uma expressão que sensibiliza particularmente os que estão questionando as implicações da linguagem sexista e tentando traduzir as escrituras de uma forma que expresse sua fé numa linguagem não-sexista. Sugeriu-se a expressão Reinado de Deus como uma alternativa melhor e ela já está sendo empregada. Em minha língua materna — o espanhol — usamos a palavra reino que abrange os significados de reino, reinado e domínio. Como falo outra língua, não tenho a pretensão de entender todas as nuances da língua inglesa, nem tentaria resolver uma questão tão delicada. Gostaria, entretanto, de manifestar essa preocupação e de expressar minha solidariedade com os que se sentem discriminados ou oprimidos pela língua. Aceito o fato, porém, de que Reino de Deus se tenha tornado um termo técnico em teologia e na linguagem religiosa, e um símbolo tão intimamente ligado à mensagem de Jesus, que não podemos evitá-lo. Espero que nosso estudo do significado que Jesus deu a esse termo especial nos mostre precisamente que o Reino de Deus põe sob julgamento não só as velhas monarquias e os valores patriarcais, mas também qualquer sistema que negue a liberdade e a dignidade conferidas por Deus a todo ser humano. “

Este livro tem como base o primeiro capítulo da dissertação que escrevi, como parte dos requisitos para doutoramento pela Universidade de Lausanne. O título da dissertação era “Liberdade na Missão: a Perspectiva do Reino de Deus”*. Minha tese era exatamente a de que a missão, entendida pela perspectiva do Reino de Deus, permite — e até mesmo requer — total liberdade para servir a esse Reino, participar de sua proclamação e de sua manifestação. Sugeri que um reconhecimento dessa liberdade cristã poderia gerar, nas Igrejas, recursos de imaginação e energia insuspeitadas; poderia também poupar-nos de discussões frustrantes a respeito de questões de importância secundária e propiciar unidade às mais diversas formas de vocações missionárias da Igreja a serviço de Jesus, o Rei Servo.

A fim de adequar o manuscrito original a esta publicação foi

preciso abreviar o texto, omitir citações e eliminar boa parte das notas de rodapé. Minhas idéias e convicções, devo-as a muitos amigos, e o livro, tal como se apresenta agora, não o reconhece devidamente. Quero, pois, aproveitar esta oportunidade para expressar minha profunda gratidão a muitos colegas e amigos cujas idéias utilizei e cujas posições, mesmo quando diferentes das minhas, ajudaram-me em minha jornada de fé.

Sou especialmente grato à minha esposa Gladys, cuja

solidariedade e apoio irrestrito significaram tanto para mim, durante a realização deste projeto.

Emílio Castro

Montpellier, França - Outubro de 1984 ______________________________________________________ * A dissertação foi publicada na íntegra e pode ser obtida na Editora

do Conselho Mundial de Igrejas.

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A Situação Durante anos um missionário americano pregou o Evangelho

a uma comunidade de religião animista num país da África Ocidental. Trata-se de um cristão comprometido com uma orientação evangelística. No momento, encontra-se de volta aos Estados Unidos. Diz ele que sua missão atual é ajudar, na medida do possível, as famílias cujo fornecimento de gás é cortado no meio do inverno, porque não têm dinheiro para pagar as contas.

Toda assembléia do Conselho Mundial de Igrejas geralmente

abrange os assuntos mais diversos: da genética aos problemas do Afeganistão; do poderio atômico à vida monástica; da liturgia à condenação do racismo. Não admira que algumas pessoas tenham comentado com ironia: “Eles parecem as Nações Unidas fazendo orações!”

Como é que os cristãos e as Igrejas descobrem e definem e

definem sua obediência ao exercício missionário? Existe, por acaso, uma série de leis canônicas ou um livro de disciplina que prescreva nossas tarefas e responsabilidades missionárias? Qual é a vocação específica dos cristãos e das Igrejas? O que torna uma igreja diferente de outras comunidades humanas engajadas no serviço da humanidade?

Estas são questões de vital importância para as Igrejas em

todo lugar. São questões de vida e morte para os cristãos em muitas partes do mundo. As igrejas e os cristãos remetem sua vocação missionária ao mandamento de Jesus, que disse: “Fazei discípulos em todas as nações, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado” (Mt 28.18-20). Há, porém, grandes divergências na avaliação do que se deve entender por missão em

determinados lugares e épocas. Há até mesmo críticos que questionam a própria relevância da missão no mundo, especialmente a possibilidade de sua implementação através de missões transculturais.

Essas diferenças e reservas são basicamente expressões da diversidade de opções e prioridades missionárias. Mas são geralmente consideradas como opções conflitantes e abordagens irreconciliáveis. Não será possível, entretanto, que elas sejam complementares e não contraditórias?

São complementares no sentido de que cada uma de nossas

prioridades poderia, ou deveria, tornar-se uma porta de acesso à missão total do amor de Deus. Nossa afirmação de liberdade na missão refere-se especificamente às ilimitadas possibilidades que têm as Igrejas e os cristãos de se unirem na luta pelo Reino de Deus.

Examinemos algumas das situações do mundo de hoje, em

que as Igrejas tentam definir sua missão, enquanto enfrentam circunstâncias diversas e respondem a diferentes desafios.

AMÉRICA LATINA — O PESO DA HISTÓRIA

A América Latina é chamada de continente cristão. Temos

quase cinco séculos de presença cristã e de evangelização. O padre veio com os soldados, a Igreja com os conquistadores. Uma estranha mistura de cruz e espada realizou a cristianização da América Latina. É talvez o melhor exemplo de conversão total de um continente à fé cristã. Estatisticamente, mais de noventa por cento da população da América Latina se considerariam cristãos, sendo a maioria católica romana. Assim sendo, se nossos critérios básicos fossem a implantação da Igreja, o seu crescimento e o batismo de todo o povo, poderíamos realmente ficar muito satisfeitos com a situação da América Latina.

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Esses séculos, porém, também foram de dominação e exploração, e de opressão das populações nativas, negras e pobres da América Latina. Poderemos nessas circunstâncias, sentir-nos satisfeitos porque quase todo mundo é cristão? Que parâmetro do Reino usamos para medir a situação da América Latina?

Hoje em dia temos perfeita consciência dessa situação

ambígua e pecaminosa. Através de dados fornecidos pelas ciências sociais sobre as relações de poder na sociedade latino-americana, compreendemos agora como a economia trabalha contra os pobres. Não mais podemos alegar ignorância; sabemos como o povo é oprimido, como as forças políticas e econômicas se juntam contra ele.

Não conhecemos os fatos apenas. Também vemos o

despertar do povo. Conscientizados, os pobres esperam que as Igrejas tomem uma posição definida. Os pobres estão descobrindo que a sua desgraça não é uma questão de destino ou de providência divina. Não é a vontade de Deus. É conseqüência das relações de poder e das estruturas dominantes na sociedade, por isso os pobres estão se organizando para desafiar essas estruturas. Essas mesmas pessoas, que tomam consciência de sua injusta situação, são membros de igrejas e participantes fiéis da vida das congregações. As pessoas na América Latina são pobres e são crentes! Como responderão as Igrejas a uma fé que se recusa a aceitar a pobreza como sendo ordenada por Deus?

As Igrejas na América Latina sofreram uma grande renovação

bíblica. Desde o Concílio Vaticano II a atitude geral da Igreja Católica Romana com relação à Bíblia mudou radicalmente. Hoje em dia, em quase todos os países da América Latina, a Igreja Católica colabora com a Sociedade Bíblica Unida na publicação e distribuição da Bíblia. Milhares de Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) reúnem-se para ler a Bíblia, orar e discutir questões práticas: Como podemos trabalhar pela justiça de Deus?

perguntam os participantes. Como podemos mudar nossa situação?

A teologia da libertação desenvolveu-se e promoveu uma

leitura histórica da Bíblia, que procura resgatar o contexto sócio-político e econômico, no qual a Bíblia foi escrita, e tenta interpretar a mensagem bíblica com relação às realidades sociais, políticas, culturais e econômicas de nossos dias.

O conhecimento que adquirimos de nosso passado e de

nosso presente, a crescente consciência histórica dos pobres, a renovação bíblica — tudo isso colocou de forma dramática a seguinte questão para as Igrejas da América Latina: Qual é a nossa vocação cristã? Qual é a nossa identidade cristã? Se o Reino de Deus tem a ver com a vontade de Deus em todos os domínios da vida, questões profundas se colocam inevitavelmente para as Igrejas Cristãs.

E a resposta foi ouvida em todo o Continente: Nós somos a

Igreja do Cristo humilde e destituído de poder, que fez seu o destino dos pobres e dos pequenos. Unicamente a afirmação da “opção preferencial de Deus pelos pobres” e um programa desenvolvido à luz dessa afirmação pode fazer justiça à nossa atual vocação missionária.

Em 1968, em Medellin, na Colômbia e em 1979 em Puebla,

no México, a Conferência dos Bispos da Igreja Católica reafirmou essa solidariedade com os pobres. Os pronunciamentos em ambas as reuniões foram precedidos e seguidos de grandes controvérsias. Confrontaram-se conservadores e progressistas. As diferenças ideológicas estiveram sempre presentes. Mas uma ênfase emergiu com nitidez. Dentro da Igreja Católica há uma mudança radical de prioridades e do que é considerado importante na atividade pastoral. Agora a Igreja está no meio do turbilhão produzido na vida social, política e econômica dessas nações, através dessa mudança radical. A aliança com a espada cedeu

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lugar à solidariedade com os oprimidos e à confrontação com os poderosos.

Esse é o quadro dos quatro ou cinco séculos da presença

católica na América Latina. Os protestantes chegaram à América Latina na segunda

metade do século XIX. Vieram, em sua maioria, a convite de homens de mentalidade mais liberal, maçons, que estavam interessados em combater o controle cultural e político da Igreja Católica. Os protestantes poderiam dizer: “Rejeitamos o cristianismo tradicional que predomina na América Latina e representamos uma perspectiva mais liberal e progressista.”

Devemos, entretanto, considerar essas declarações com certo

ceticismo, pois o protestantismo trouxe o seu próprio neocolonialismo. A expansão das Igrejas Protestantes norte-americanas no exterior acompanhou de forma suspeita a expansão colonial e comercial dos Estados Unidos. Dessa forma, embora seja verdade que, pelo simples fato de sermos pouco numerosos, não podemos, como protestantes, ser acusados da mesma cumplicidade que a Igreja Católica teve com a classe dominante na América Latina, não podemos, por outro lado, pretender ingenuamente ser inocentes da cumplicidade de fato com as forças reais de dominação na vida de nossos países.

As missões protestantes também abrangem novas seitas e

grupos, especialmente na América Central, que proclamam um evangelho que defende os “valores da civilização ocidental”. Em nome da luta contra o comunismo, elas trabalham ativamente contra todas as forças que pretendem efetuar mudanças na sociedade latino-americana.

As Igrejas Protestantes, entretanto, têm sofrido o mesmo

processo de conversão que a Igreja Católica. Também elas se conscientizaram da situação dos pobres e das forças sócio-

políticas por trás da pobreza. Essa consciência veio a expressar-se institucionalmente na conferência do Conselho Latino-Americano de Igrejas (CLAI) em Huampani, no Peru (1981), que representa mais de cem Igrejas protestantes. O CLAI assumiu uma posição clara e convocou as Igrejas a se envolverem na luta para vencer todas as formas de dependência e opressão. “Onde quer que um único ser humano seja impedido de viver humanamente, aí existirá uma situação de pecado. O amor e a justiça devem manifestar-se em todos os aspectos da vida.”

Através de uma “Pastoral da Consolação”, o CLAI tem

tornado as Igrejas cada vez mais conscientes das repetidas violações dos direitos humanos e da situação aflitiva das pessoas deslocadas e dos refugiados políticos. Para as Igrejas Protestantes na América Latina, o evangelismo compreendido como crescimento da Igreja tem sido uma prioridade inegociável. Agora essas Igrejas são obrigadas a ver essa prioridade contra o pano de fundo de uma nova compreensão do passado histórico e da realidade humana total.

Nosso desafio ecumênico hoje em dia, quer sejamos católicos

ou protestantes, é enfrentar a seguinte questão: Qual é a obediência missionária que corresponde ao nosso passado histórico, faz justiça à nossa conscientização atual e satisfaz as exigências do Reino, quando lemos a Bíblia hoje? Na presente era ecumênica, enfrentamos juntos a questão do futuro.

Gostaria de ilustrar esse ponto com algumas situações

concretas. O papa João Paulo II visitou a Nicarágua em 1983. Passou

oito ou nove horas no país. Celebrou uma missa, em que a mensagem focalizava a autoridade da Igreja.

O papa queria que o povo na Nicarágua, especialmente o

clero nicaragüense, reconhecesse a autoridade central dos bispos.

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Achou ele que a unidade da Igreja estava ameaçada pela participação de sacerdotes no governo sandinista!

Um episódio, em particular, durante a visita, ilustrou de forma

dramática a situação. Na chegada do papa, o padre Ernesto Cardenal, Ministro da Cultura, ajoelhou-se diante do Pontífice, que o recriminou, dizendo: “Você deve pôr em ordem a sua relação com a Igreja.” Na opinião do papa, a opção de trabalhar a nível político, no atual momento da história do país, era a opção errada para um padre.

Naturalmente, isso poderia ser interpretado como uma

simples diferença de opinião política ou ideológica. O papa e seus assessores não estão convencidos de que o governo sandinista possa realizar o que prometeu; os padres pensam o contrário. É uma questão de julgamento político. Mas esse não é o ponto central da discussão, ela diz respeito ao que é a vocação ou a prioridade fundamental da Igreja.

Quais são os argumentos que justificam o fato de os padres

irem além da observância tradicional das funções sacerdotais em paróquias locais e assumirem responsabilidades no governo de um país? O papa parece estar dizendo: “O Reino de Deus deve manifestar-se através do trabalho na paróquia.” Os padres respondem: “O Reino de Deus deve também manifestar-se através da construção de uma nova organização social em nosso país.”

Tomemos um dilema semelhante, mas num contexto

protestante. Em 1981, deu-se um golpe militar na Guatemala e um novo general, Efraim Ríos Montt, subiu ao poder. Montt anunciou que era um cristão “nascido de novo”, pertencente a uma pequena igreja da Califórnia, chamada Verbo. Apoiou um grande número de atividades protestantes no país. Vários grupos, nos Estados Unidos, propuseram aos jovens o desafio de uma vocação missionária; seu objetivo era enviar mil missionários americanos à Guatemala, para aproveitar essa oportunidade oferecida por Deus

para evangelizar um país com quatrocentos ou quinhentos anos de cristianismo! Enquanto muitos novos missionários chegavam à Guatemala e muitas campanhas evangélicas se desenvolviam, o genocídio dos índios nas montanhas prosseguia e os que clamavam por justiça continuavam a ser eliminados.

Para alguns cristãos, o Reino de Deus na Guatemala exigia o

desafio dos poderosos, esses cristãos optaram por sofrer com os pequenos, mesmo com risco da própria vida. Para outros, a prioridade era “salvar” tantas almas quantas fosse possível. Por trás desse dilema, está a mesma questão de sempre: “Qual é o objetivo da missão cristã? Estamos empenhados em salvar indivíduos que receberão um passaporte para a bem-aventurança no céu ou somos chamados a anunciar o domínio de Deus, clamando por justiça em defesa dos “pequenos”? Estamos empenhados em “converter” indivíduos ou somos chamados, como cristãos, a servir à causa do Reino de Deus, que envolve a transformação de toda a realidade”?

Ou será que estamos formulando as perguntas erradas?

Precisamos aceitar isso ou aquilo? Qual é a interação entre uma experiência religiosa e a participação cristã na luta global da humanidade?

ÁSIA — OPÇÕES VARIADAS

Crescimento da Igreja e justiça social Na Coréia do Sul, um país de tradição budista, o cristianismo

está crescendo muito depressa. Atualmente, cerca de 22 ou 23 por cento da população professam a fé cristã. O aumento do cristianismo na Coréia é um fenômeno recente e a taxa de crescimento não dá sinais de diminuir. Mas a preocupação

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fundamental das Igrejas ali não é a evangelização. Esta simplesmente acontece!

O governo militar está interessado em promover e apoiar o

trabalho da Igreja, na medida em que dá às massas uma sensação de realização, de sucesso e de felicidade. Pelo fato de pertencerem a movimentos de Igreja bem-sucedidos, as pessoas poderiam alienar-se dos problemas de uma sociedade que está crescendo economicamente depressa demais, seguindo linhas neocapitalistas. Os cristãos se defrontam com a seguinte questão: Devemos ficar satisfeitos com esse ritmo de crescimento, tornando-o nosso único objetivo ou devemos também enfrentar a situação dos humildes, dos pobres, que são vítimas de salários mínimos e longos horários de trabalho, e são sacrificados para promover o desenvolvimento econômico da sociedade?

Por um lado, há histórias de êxitos no crescimento da Igreja e,

por outro, histórias de pessoas ligadas à missão industrial urbana, que estão pagando o preço por organizar a luta dos pobres pelos seus direitos. Mas o crescimento da Igreja e as preocupações com a justiça social não se contradizem. Vários dos que são presos são pastores de congregações cada vez maiores!

O crescimento da Igreja é um instrumento social de grande

utilidade; torna as igrejas ainda mais úteis, na medida em que vivem a solidariedade com os pobres. Não podemos dizer não à evangelização e ao crescimento da Igreja, porque todos têm o direito a um conhecimento pessoal de Jesus Cristo. Quem sou eu para decidir quem deve ser convertido ou não?

Teologicamente, não há contradição nenhuma. Mas aqui

existe uma situação em que nos defrontamos com a tentação de nos contentarmos com o fato do rápido crescimento da Igreja e ignorarmos questões como, por exemplo, onde o Reino de Deus está sofrendo violência.

Para as Igrejas na Coréia o desafio é pôr todos os dons da Igreja, inclusive o seu crescimento, a serviço dos pobres. É ver o crescimento das Igrejas não como um processo que afasta as pessoas dos reais dilemas da sociedade, mas como um convite para participar do esforço total para moldar a sociedade mais de acordo com a vontade de Deus e o padrão do Reino de Deus.

Conversão ou renovação? Com a única exceção das Filipinas, o cristianismo é , na Ásia,

uma religião de minorias e convive com sistemas religiosos altamente desenvolvidos. Poder-se-ia dizer que de um ponto de vista puramente numérico, a missão cristã na Ásia tem sido um fracasso. Mas, por mais importantes que os números possam ser, eles não contam a história toda. Os valores do Reino têm sido partilhados e o Evangelho tem tido o seu impacto sobre as culturas asiáticas.

Devemos, entretanto, enfrentar a realidade da história

missionária. Não podemos ignorar o renascimento generalizado de antigas religiões. Tampouco podemos ignorar a necessidade de trabalhar por uma possibilidade de vida decente para as grandes massas de pobres nos países asiáticos. Não admira que os cristãos e as Igrejas estejam levantando questões cruciais e repensando a natureza e o futuro da atividade missionária.

C.S. Song, um teólogo de Formosa, escreve sobre o

chamamento dos cristãos e das Igrejas para participarem na renovação e na reanimação das culturas asiáticas. Eles não devem ser embaixadores das culturas ocidentais. São chamados a partilhar o Evangelho dentro das culturas asiáticas, a participar integralmente na renovação da vida cultural das nações asiáticas — até mesmo na renovação e reanimação das religiões asiáticas 1. 1 “Christian Mission in Reconstruction”, Nova Iorque, Orbis, 1977

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Os teólogos da Índia têm trabalhado com realidades semelhantes. Devemos batizar as pessoas nas comunidades cristãs? Com freqüência, o batismo simboliza romper os laços com a família e a comunidade; assim sendo, devem os “convertidos” ser instados a permanecer em suas famílias e comunidades e tentar descobrir o significado do Cristo dentro dos valores culturais e religiosos da nação? Há alguma chance de que um casamento semelhante ao que houve entre o Evangelho e a cultura helenística possa acontecer entre a cultura da Índia, moldada pela religião, e o Evangelho cristão? M.M. Thomas dessa forma fala a respeito de um sincretismo centrado no Cristo! 2

Tissa Balasuriya, teólogo católico do Sri Lanka, assim

expressa essa busca apaixonada por uma autenticidade cristã asiática: “Como asiático, não posso aceitar como divino e verdadeiro qualquer ensinamento que parta do pressuposto de que todos os meus antepassados — por incontáveis gerações — sejam condenados por Deus, a não ser que tenham sido batizados ou tenham tido alguma ligação com uma Igreja cristã. A teologia deve respeitar, com honestidade, esses milhões e milhões de ancestrais meus, assim como os seres humanos ainda por nascer, para que eu possa aceitá-la como uma interpretação verdadeira da revelação de um Deus de amor, que é Pai de todos.” E acrescenta: ”Temos que repensar basicamente a nossa ‘mentalidade de conversão’. Temos que nos livrar de uma mentalidade competitiva com relação a outras religiões; a desconfiança deve ceder lugar à simpatia e ao desejo de entendimento” 3.

Em janeiro de 1979, realizou-se em Sri Lanka a Conferência Teológica Asiática sobre o tema “A luta da Ásia por uma humanidade plena: por uma teologia relevante”. Nessa reunião emergiram conflitos e tensões, quando as novas e antigas perspectivas se confrontaram. Com grande dificuldade, a Conferência chegou a um acordo sobre uma declaração final. Dizia 2 “Breaking Barriers”, ed. David. M. Paton, Genebra, CMI, 1976, p. 236 3 ”Liberation of Theology in Asia”, Mary Knoll, N.Y., Orbis. 1980, pp. 19-20.

ela:

“Para ser autenticamente asiática, a teologia deve estar inserida em nosso contexto histórico-cultural e desenvolver-se a partir dele. Uma teologia que emergisse da luta do povo pela sua libertação se formularia espontaneamente na linguagem religioso-cultural do povo”.

“Em muitas partes da Ásia, temos que integrar à nossa teologia a visão e os valores das principais religiões, mas a integração deve realizar-se ao nível da ação e do engajamento na luta do povo”.4

Para os cristãos que não vivam na Ásia, tudo isso pode

parecer uma linguagem perigosa. Precisamos ouvir, porém, o que dizem os cristãos que estão em contato diário com pessoas de outras confissões religiosas. Eles nos convidam a travar um diálogo necessário com pessoas de outros credos e não supor que uma visão ocidental agressiva da atividade missionária da Igreja seja o único ponto de vista fiel ao Evangelho. Precisamos levantar com essas pessoas certas questões fundamentais. Por exemplo: quais são os valores do Reino que se promovem quando se chamam as comunidades da Ásia a participar da renovação da sociedade? Quais são os critérios bíblicos fundamentais para que se faça uma opção nesse caso? Poderíamos ter maneiras diversas de expressar nossa obediência cristã, mas precisamos ter a capacidade de justificá-las, uns para os outros, em termos de uma convicção cristã comum, expressa de forma a que possamos inspirar-nos e corrigir-nos mutuamente.

África — a busca da autenticidade

Qual é a prioridade missionária cristã na África atualmente? Passo a citar o Bispo anglicano Desmond Tutu, Secretário Geral do

4 lbid. p. 157

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Conselho de Igrejas da África do Sul. Escrevendo sobre ás igrejas cristãs e a teologia cristã na África, diz ele:

“A teologia africana não conseguiu produzir um instrumento suficientemente cortante. Ela parece defender o distanciamento da agitação da vida quotidiana, porque muito pouco foi oferecido que tenha relação, por exemplo, com a teologia do poder em face da epidemia de golpes e regimes militares, com o aumento da pobreza, da doença e de outras questões atuais igualmente urgentes. Creio que é aí que a contundente teologia negra dos Estados Unidos tem algumas lições a ensinar à teologia africana. Ela pode ajudar a chamar a teologia africana de volta à sua vocação de se preocupar com os pobres e oprimidos, com as necessidades das pessoas se libertarem de todas as espécies de servidão para conseguirem uma autêntica individualidade, constantemente minada pela religiosidade patológica e pela autoridade política, que reduziu muito a liberdade pessoal sem grande oposição da igreja.” 5

Examinemos a sua lista de prioridades das opções missionárias para a Igreja: a consideração da questão do poder sob uma perspectiva cristã, em face de todos os golpes militares que ocorrem na África; uma clara posição sobre a pobreza e a doença; a libertação de todas as espécies de servidão. Desmond Tutu é bispo da Igreja Anglicana. Naturalmente está interessado em todos os aspectos da vida da Igreja, mas afirma que na situação da África do Sul, em particular, ou da África em geral, não se pode levar a vida como se nada estivesse acontecendo. Os cristãos não em ficar à margem: são obrigados a enfrentar todas as fronteiras missionárias nas quais a presença e o testemunho cristãos se fazem necessários.

Muitos cristãos na África acompanham o Bispo Tutu em sua 5 Citação em “African Theology in Route”, Mary KnoII, N.Y., Orbis, 1979, p. 182

apaixonada defesa da participação cristã nas lutas pela libertação. Nesse aspecto, estão unidos aos cristãos de todas as regiões do mundo, que compreendem a natureza histórica do Evangelho cristão e o desafio ao propósito amoroso de Deus, representado pelas injustiças existentes. As Igrejas e teólogos africanos, entretanto, realmente enfrentam problemas específicos e estão levantando questões teológicas concretas. Fundamentalmente, estão tentando resgatar uma identidade africana, um sentido de autenticidade em suas respostas ao Evangelho. E o fazem mediante a confirmação dos valores da cultura e das religiões da África, não apenas como um meio de facilitar a penetração do Evangelho, mas para contribuir para a completa riqueza espiritual da Igreja Cristã. Diz M. Oduyoye:

“Devemos observar que assim como a vida “tradicional” era permeada pela religião em todos os seus aspectos, assim qualquer apelo que façamos aos valores e práticas tradicionais é, em última análise, religioso. Devemos também lembrar-nos de que o elemento básico na religião não consiste em práticas em lugares de culto nem em pessoas, mas nas crenças que se manifestam através delas. Desse modo, quando a modernização modifica as cerimônias e outras práticas litúrgicas, os seres humanos continuam a depender das crenças como de uma rocha sobre a qual constroem. Assim, por exemplo, a crença nos mortos-vivos, na existência de espíritos, na magia e na feitiçaria fazem parte do reconhecimento dos africanos de que a vida não é só matéria. Essas crenças expressam a sua ânsia de uma vida depois da morte. Como crêem que o Ser Supremo é a Fonte da Vida, a busca pela força da vida é, em si mesma, uma tentativa de estabelecer uma relação mais íntima e pessoal com esse ser.”

Para contribuir com mais eficiência para o desenvolvimento

religioso do povo, os teólogos cristãos africanos têm o dever de fazer teologia a partir desse contexto e incorporar a linguagem

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africana autêntica à teologia cristã. A utilização das crenças religiosas africanas pela teologia cristã não é uma tentativa de ajudar o cristianismo a capturar e domesticar o espírito africano e sim de assegurar que o espírito africano revolucione o cristianismo em benefício de todos os que a ele aderem. 6

Os teólogos africanos também exploram as muitas ligações existentes entre a história bíblica e a África.

O Professor Kroesi A. Dickson estende-se sobre a continuidade entre o Antigo Testamento, e a vida e o pensamento africano.7 Em toda a África os pregadores referem-se à história do Ëxodo, à Rainha de Sabá e ao Rei Salomão, e muito especialmente ao refúgio proporcionado pelo Egito ao Menino Jesus e seus pais. As Igrejas independentes da África enfatizam essa ligação como uma afirmação de sua participação na tradição bíblica sem qualquer intermediação ocidental. Talvez a mais importante ilustração dessa busca de raízes e identidade seja fornecida pela “Confissão de Alexandria”, emitida pelo Comitê Geral da Conferência Pan-Africana de Igrejas (AACC), no Cairo, em 1976:

Tornamo-nos conscientes do fato de que somos herdeiros

de uma rica tradição. Nossa presente preocupação com questões relacionadas com a justiça econômica, a total libertação de homens e mulheres de todas as formas de opressão e exploração, e a paz na África, bem como nossa busca atual de respostas autênticas ao Cristo como Senhor de nossa vida total levou-nos a uma compreensão mais profunda da herança que nos foi deixada pelos Pais da primeira Igreja no Norte da África... É essa herança que nos leva a confessar que é o mesmo Cristo encarnado que nos está chamando para responder-lhe em termos que são

6 ibid. p. 116 7 Ibid. pp. 95— 107

autênticos, fiéis e relevantes para os homens e mulheres na África de hoje. 8

Devemos também lembrar-nos de que o debate missiológico

sobre a moratória*, desenvolveu-se na África, a princípio através do Dr. John Gatu, do Quênia, e mais tarde, na Assembléia da Conferência Pan-Africana. “A idéia da moratória permitiu aos africanos perguntar se foi desígnio de Deus fazer de seu continente um campo de missão para europeus e povos de ascendência européia. A moratória fecha a porta a idéias testadas em outros lugares e abre caminho para a auto-revelação de Deus aos povos de cada nação, raça ou tribo e ao desenvolvimento de programas adequados às reais necessidades do povo.”

Os medos e ansiedades provocados pelo debate sobre a

moratória não devem ofuscar a nossa visão da intenção principal da proposta, que é abrir um espaço, uma área de liberdade para as Igrejas africanas, onde elas possam descobrir sua própria identidade.

As Igrejas mais antigas

Os exemplos que demos da África, Ásia e América Latina

ilustram a diversidade dos dilemas missionários com que se

8 Nairóbi, AACC, 1981 * No início dos anos 70, na África, devido ao trauma das relações colonialistas que estavam sendo rompidas com a independência é que primeiro se falou de Moratória Missionária. John Gatu (secretário geral da Igreja Presbiteriana da África Oriental e também presidente da Conferência Africana de Igrejas) pediu que todos os missionários estrangeiros se retirassem do Continente. Sentia-se que a presença deles tão comprometida com os governos colonialistas estava impedindo que as Igrejas descobrissem sua identidade. A retirada seria por um período determinado. Entretanto a Moratória já tinha sido sugerida na Conferência sobre Missões (Edinburgo, 1910) quando se começava a ter consciência dos problemas criados pelo paternalismo sobre a busca de identidade por parte das Igrejas Jovens (Nota dos Editores).

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defrontam as Igrejas no presente. Mas como esses exemplos dizem respeito à experiência das chamadas “Igrejas mais Jovens” e às áreas que as Igrejas na Europa e nos Estados Unidos consideram como “campo de missão”, é bem possível que sejamos mal compreendidos.

Consideramos ponto pacífico a missão nos seis continentes. Afirmamos que a própria existência da Igreja tem a ver com missão e que em toda a parte as Igrejas são enviadas para proclamar a salvação de Deus a todos os povos e a todas as instâncias da vida. Igrejas muito antigas também se defrontam com antigos e novos problemas. A afirmação da liberdade como o problema missiológico fundamental e a visão do Reino como estrutura e objetivo da missão cristã devem permitir a essas Igrejas novas possibilidades de afirmar sua vocação e fidelidade.

Tomemos, por exemplo, as Igrejas Ortodoxas na África do Norte ou no Oriente Médio, cercadas por poderosas comunidades islâmicas, que controlam o poder das nações em que estão situadas - como o Irã, a Síria, o Iraque, o Líbano e o Egito. Há mais de mil anos não lhes é permitido desenvolver qualquer trabalho evangélico. A conversão ao cristianismo é legalmente proibida e qualquer tentativa para converter pessoas é desestimulada e até punida. Essas Igrejas podem apenas passar a fé de pais a filhos, geração após geração. Dessa forma, desenvolveram uma compreensão da missão cristã que não é geográfica nem se exprime pela expansão da Igreja, mas é cronológica e sacramental.

Pode-se considerar a preservação da Igreja para as gerações futuras e a oração intercessória sacerdotal em favor de toda a comunidade como “missão” segundo o modelo de Abraão? Será essa concentração na vocação cronológica e sacerdotal uma traição do mandamento missionário do Evangelho ou a sua expressão fiel e relevante em circunstâncias peculiares?

Hoje em dia, essas Igrejas enfrentam uma nova situação. Muito dos seus membros emigraram para outros continentes onde estabeleceram Igrejas que servem a seus grupos étnicos. O grande desafio com que se defrontam é descobrir seu novo potencial missionário em situações em que as restrições históricas não existem mais A questão geral da missão da diáspora ortodoxa exige uma consideração ecumênica.

Na Europa ocidental estamos passando da situação de uma “Igreja do Povo” (Volkskirche), onde todos deviam pertencer à Igreja, a um rápido processo de descristianização, ou pelo menos de desligamento da Igreja. Tendo sido outrora Igrejas majoritárias, são agora obrigadas a repensar sua missão à luz das novas circunstâncias que as tornaram minoritárias na sociedade.

Qual deve ser a missão dos fiéis remanescentes em tais situações? Nos dois últimos séculos, missão geralmente significa missão em países longíquos. Atualmente, não só falamos de missão nos seis continentes, como sabemos que ela está em nossa pátria, bem em nossa vizinhança.

W. Visser’t Hoolft considera a situação na Europa como “neopagã”.9 Lesslie Newbigin investiga o surgimento do moderno Weltanschauung* e descreve a sua incapacidade de fornecer as coordenadas adequadas para se lidar com os atuais desafios com que se defronta uma sociedade tecnológica.10 Os dois autores convidam a Igrejas a resgatar a mensagem bíblica numa interação viva com as novas situações históricas.

Na América do Norte, as Igrejas continuam cheias, mas cresce cada vez mais o contingente dos que desacreditam da “religião civil” e questionam a identificação superficial do modo de

9 Veja “International Review of Mission”, Vol. LXVI, N.º 264, 1977 *Visão de Mundo, Cosmovisão. 10 “The Other Side of 1984”, Genebra, CMI, 1983

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vida dos americanos com o Evangelho de Jesus Cristo. Qual a relação entre crescimento da Igreja e fidelidade ao Evangelho, entre o sucesso e a cruz de Jesus Cristo?

As Igrejas norte-americanas enviam mais missionários ao exterior do que qualquer outra Igreja. Processa-se um debate apaixonado na Igreja Metodista Unida entre os que querem enviar mais missionários - e missionários com mentalidade mais evangelística - e os que afirmam a liderança nacional das Igrejas irmãs e a obrigação de assumir um papel de defensores do Terceiro Mundo. O debate não se limita, porém, à Igreja Metodista Unida. Ele levanta questões fundamentais com relação às nossas prioridades missionárias.

A Europa Oriental enfrenta seus próprios desafios missionários. Ali a vida política, ideológica e cultural é organizada em torno do Partido Comunista. As Igrejas, que eram tradicionalmente o foco de cultura e identidade nacional, estão agora oficialmente marginalizadas. Em tais circunstâncias, as Igrejas devem procurar perspectivas teológicas e opções missiológicas diferentes. J. Hromadka* e sua teologia da diaconia continua a influenciar igrejas na Tchecoslováquia e na Hungria. A busca do povo e a expressão da alma nacional parecem ser a resposta da Igreja Católica da Polônia e das Igrejas ortodoxas na Bulgária, Romênia e União Soviética. A evangelização pessoal, * Jose Hromadka, teólogo tcheco, teve sua formação plasmada por quatro tendências muito fortes entre o povo tcheco: (1) busca constante de liberdade e justiça que o pôs ao lado dos pobres e deserdados; (2) profunda piedade evangélica que lhe recordava sempre que a vida cristã é inseparável da fé em Cristo Libertador e obediência tal que pode levar até ao martírio; (3) o protestantismo militante de outro grande teólogo tcheco, Masarvk, proclamador de que o renascimento nacional se faria dentro da continuidade da Reforma Tcheca cujo humanismo seria a mola-mestra para um programa político; (4) um profundo engajamento na vida do povo tcheco. Hromadka foi o grande teólogo do povo tcheco. Morreu fiel ás suas idéias, acima de tudo, fiel a Jesus Cristo (Nota dos Editores).

sem qualquer referência ou preocupação com o sistema social, parece ser a resposta das Igrejas livres e dos pentecostais.

Novas teologias: departamentos diferentes As Igrejas em nossos dias enfrentam, na verdade, uma

grande variedade de opções missionárias. Essas opções freqüentemente dão origem a controvérsias e conflitos. Também inspiraram inúmeros sistemas teológicos e esquemas organizacionais diferentes.

Há apenas algumas décadas atrás, as Igrejas do Atlântico Norte eram os árbitros da teologia cristã. Hoje em dia, a situação é totalmente diferente. A teologia feminista, a teologia negra, a teologia da libertação, a teologia do diálogo, o minjung ou teologia do povo — cada uma dessas teologias tenta ver a vocação missionária da Igreja num determinado contexto. Elas são basicamente missiologias. Não são explicações sobre a natureza de Deus, mas representam urna busca apaixonada de novas opções para a missão das Igrejas.

Por trás de cada uma dessas teologias — libertação, africana,

negra, feminista, minjung — há uma situação de conflito. Nos últimos vinte anos não emergiu nenhum sistema teológico novo que não condene algum tipo de opressão nem afirme alguma perspectiva específica do Evangelho, que emerge dos problemas enfrentados pelos grupos que desenvolvem o trabalho teológico. De fato, a maioria desses teólogos diz que a sua teologia é uma elaboração, a posteriori, de uma posição assumida em situações de conflito — na verdade estão tentando explicar-se como cristãos e encontrar linhas mestras para a ação.

Essas teologias também refletem a riqueza da Igreja em

nossos dias, a interação de manifestações de fé cristã ligadas culturalmente. Devemos tentar entender até que ponto essas

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tentativas teológicas representam uma utilização responsável da nossa liberdade missionária.

A divisão programática do trabalho dentro da estrutura de nossas Igrejas ilustra outra dimensão do problema. Temos, na maioria de nossas Igrejas ocidentais, departamentos de ação social e departamentos de evangelização, cada um tentando ser fiel ao seu objetivo particular. Isso é útil até certo ponto, mas pode também levar a uma abdicação de nossa responsabilidade cristã global. Há, realmente, dons diferentes na vida da Igreja, que exigem uma divisão lógica de vocações e tarefas. Mas se esses carismas - quer considerados individualmente, quer organizados estruturalmente na vida da Igreja — limitam ou distorcem o testemunho total do Reino, então tornam-se um empecilho à missão da Igreja.

O problema torna-se sério quando as organizações criadas nas igrejas Ocidentais para se relacionarem com Igrejas do Terceiro Mundo desenvolvem estatutos e linhas de ação estranhas às próprias Igrejas. Por exemplo, é evidente sinal de uma triste distorção o fato de que se pode obter ajuda substancial para qualquer coisa que receba o rótulo mágico de “desenvolvimento”, mas que é muito mais difícil obter auxílio para o crescimento da Igreja, a educação teológica, a evangelização, etc...

O fato de que uma Igreja ou um Conselho de Igrejas dedique

a maior soma de suas energias à área de desenvolvimento não significa necessariamente que os cristãos ali estejam todos convencidos de que é através do desenvolvimento que devem testemunhar o Reino neste determinado momento. Significa simplesmente que existem fundos de origem estrangeira disponíveis para esse trabalho, em particular, e não existem para outros tipos de trabalho. A pergunta que se formula é a seguinte: “Como pode cada um de nossos interesses ou dons, em particular, tornar-se uma porta de entrada para a dinâmica total do Reino, sem ficar compartimentados e estratificados”?

O Reino e sua liberdade Dois receios perseguem os teólogos. Um deles é o medo de

ser infiel às exigências do mundo de hoje, o medo de ser irrelevante, o medo de perder o contato. Nos anos 60, ouvia-se com freqüência, em discussões ecumênicas, que “o mundo devia organizar a agenda”. Pensava-se que a Igreja devia responder às prioridades estabelecidas na agenda do mundo. A Igreja é realmente enviada ao mundo para responder a situações em que os seres humanos sofrem, esperam, vivem e morrem. Mas isso não significa que, além de responder, ela não tenha uma missão própria, uma compulsão interna, certas convicções e valores que deve partilhar com o mundo.

O outro receio dos teólogos é o de que, pelo fato de se ocuparem com os assuntos do mundo, os cristãos possam esquecer sua vocação essencial de proclamar o Evangelho. E o medo de que, ao responder à necessidade de lutar contra a opressão, o racismo, o sexismo e males semelhantes, possamos negligenciar nosso chamado para “pregar a Palavra“. Se a proclamação do Evangelho do Reino fosse possível sem referência às situações humanas concretas dos países em que vivemos, então é evidente que nosso problema seria fácil de resolver! Mas o Evangelho acontece no encontro entre a Palavra de Deus e seres humanos que vivem em situações específicas.

Estamos basicamente convencidos de que o Reino de Deus é a categoria bíblica central que dá conteúdo e direção à nossa vocação missionária. Nosso objetivo é o Reino. A Igreja é chamada para servir ao Reino, para ser um instrumento privilegiado desse Reino; é chamada, na realidade, a existir por causa do Reino.

Seguimos o Cristo vivo, guiados pelo Espírito Santo. Dentro do horizonte do Reino de Deus, temos total liberdade e total responsabilidade — uma liberdade total para discernir, planejar e agir.

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Dada a natureza do Reino, a liberdade do Espírito, as Igrejas são livres para responder àquela liberdade de Deus. Nada pode ser proscrito a priori, com relação às possibilidades de ação da Igreja. Referimo-nos à liberdade do Espírito, que leva os cristãos a diferentes respostas. Chamamos essa presença do Cristo ressuscitado e essa ação do Espírito Santo de liberdade missionária, porque convida-nos a responder e nos convence a agir. Poderíamos usar a palavra “responsabilidade” em vez de liberdade, mas prefiro a palavra liberdade porque ela estimula a nossa imaginação e fornece muito mais espaço do que a palavra responsabilidade. No entanto, é sendo livres que conseguimos agir responsavelmente.

Vamos reportar-nos ao ministério de Jesus e à história dos primórdios da Igreja para encontrar os exemplos de liberdade que possam inspirar-nos e orientar-nos em nossa presente situação.

Quando empregamos a palavra liberdade, teologicamente, queremos dizer o dom do Espírito Santo que nos permite responder; mas precisamos considerar aquela possibilidade de liberdade também em termos sociológicos e políticos. Eu poderia afirmar que sou liberado, quando na verdade sou vítima de minhas próprias tendências, preconceitos sociais e privilégios de classe. Como no caso dos brancos ricos da África do Sul, que encontram apoio para o apartheid na Bíblia e declaram que estão utilizando sua liberdade cristã.

Após os grandes mestres da desconfiança — Marx, Freud e Nietzsche — estamos por demais conscientes das restrições que se opõem à verdadeira liberdade. Não podemos ignorar aquelas restrições, mesmo na vida da Igreja. Mas a Bíblia, as descobertas das ciências humanas, a comunidade da fé, especialmente em suas dimensões ecumênicas, e a prática do amor — tudo isso nos oferece pontos de referência que nos ajudarão, senão a escapar

desses limites históricos, pelo menos a lutar para transformá-los segundo a perspectiva do Reino que virá.

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O Debate

Bangcoc, 1973 Através de uma série de encontros internacionais, temos

buscado, no século XX, esclarecer a natureza da missão. O encontro de Edimburgo (1910), ao qual remontam os primórdios do movimento ecumênico, foi o primeiro de uma série. A ele seguiram-se várias reuniões periódicas. A Conferência sobre Missão Mundial, organizada pela Comissão de Missão Mundial e Evangelismo do Conselho Mundial de Igrejas (CMI), foi a oitava dessa série. Realizou-se em Bangcoc.

Houve, entretanto, diferenças relevantes entre as reuniões de

Edimburgo e de Bangcoc. Em 1910, os participantes representavam as agências missionárias protestantes do mundo ocidental. Havia apenas uns poucos representantes das “Igrejas mais Jovens”. Em Bangcoc, a maioria dos delegados vinha das Igrejas mais jovens; havia representantes de Igrejas Ortodoxas e uma delegação fraternal da Igreja Católica Romana.

Havia também diferenças de conteúdo. Edimburgo tinha

concordado em não discutir assuntos “doutrinários” — para evitar polêmicas. Bangcoc é talvez a primeira conferência missionária a tomar como tema uma afirmação básica de fé: “Salvação Hoje”*. Em geral, as reuniões missionárias discutem como chegar até as

* Sobre o assunto leiam-se: “Salvação Hoje” — Suplemento 3, março 1973 — Tempo e Presença (R. Alves, MM. Thomas, Christoph Barth, D.G. Vergara dos Santos); e “Salvação Hoje”, Mortimer Arias, Vozes/Tempo e Presença, 1974.

pessoas e desenvolver a tarefa missionária; preocupam-se com metodologias, abordagens e práticas. Bangcoc, ao contrário, focalizou a salvação que proclamamos. Abordou a questão: Qual é o significado, hoje, da afirmação básica de nossa fé cristã de que há salvação em Jesus Cristo?

Como preparação para a conferência, publicou-se um livro

fascinante sobre o tema, com histórias de várias partes do mundo, abordando a experiência real da salvação. As histórias exploravam a relação da salvação com as diversas instâncias da vida.11 Bangcoc examinou o próprio cerne de nossa convicção de que o nosso Deus é um Deus que salva, e procurou descobrir como essa convicção poderia tornar-se viva e real na tarefa missionária da Igreja.

Bangcoc é a capital da Tailândia, um país budista, onde

apenas uma pessoa em cada mil é cristão. A localização da conferência influenciou-a em dois níveis bem diferentes. Em primeiro lugar, toda a questão de atitude cristã para com as outras religiões — no caso o budismo — veio à tona, inevitavelmente, para ser discutida. Duas atitudes ficaram evidentes na assembléia. Uma foi expressa pelo Secretário Geral da Igreja de Cristo na Tailândia, que pregou o sermão inaugural (Is 53; Rm 5). Enfatizou a salvação pela graça através da fé em Cristo. Explicou que a principal preocupação da Igreja de Cristo na Tailândia era o crescimento da Igreja; o objetivo era duplicar o número de membros da Igreja em quatro anos. Por isso, pregavam às pessoas e as convidavam a se tornarem cristãs e se filiarem à Igreja.

Uma outra atitude com relação ao budismo surgiu quando alguns monges budistas assistiram a uma sessão plenária. Estabeleceu-se um diálogo entre líderes religiosos da Tailândia e um grupo selecionado de delegados à assembléia, que mostrou a 11 “Salvation Today and Contemporary Experience”, Genebra, CMI, 1972.

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necessidade de se respeitarem as outras religiões e aprender com elas.

O relatório oficial da conferência faz apenas uma leve referência a esse encontro com os budistas. Mas o contato com uma cultura budista e a experiência de uma Igreja de minoria deixaram uma impressão duradoura em todos os participantes.

É significativo que se tenha organizado uma reunião de

consulta ecumênica em Chiang Mai, na Tailândia, quatro anos depois, para discutir a questão do diálogo com outros credos. Esse encontro produziu um documento denominado: “Orientação para o diálogo com pessoas de credos e ideologias atuais”, onde a dimensão do testemunho e a capacidade de ouvir da missão cristã foram compatibilizadas.

Enquanto os delegados em Bangcoc falavam de salvação,

estavam perfeitamente conscientes de que se achavam rodeados por milhões de pessoas que também buscavam a salvação, embora suas vidas girassem em torno de valores totalmente diferentes. O desafio de outras religiões continua a ser uma questão em aberto na tarefa missionária da Igreja. Qual é o lugar das outras religiões no Reino de Deus?

A segunda conseqüência importante da reunião na Tailândia

foi que os delegados se conscientizaram concretamente da presença militar dos americanos. De uma base aérea nos arredores, os bombardeiros decolavam em intervalos regulares para despejar sua carga mortal sobre a cidade de Hanói e sua vizinhança. Um delegado dos Países Baixos propôs que fôssemos a Hanói demonstrar nossa solidariedade com o povo. Foi um momento dramático. A imprensa internacional logo anunciou que uma conferência de cristãos queria ir a Hanói. Não fomos até lá, mas a palavra salvação adquiriu um novo sentido. E ajudou-nos a entender a paixão, as tensões que permearam a conferência. Ali estávamos nós, falando de salvação, enquanto a trinta quilômetros de distância o mensageiro da morte estava decolando para matar e

destruir. Era impossível falar de salvação sem relacioná-la com aquela realidade histórica. A história, a realidade política, estava muito presente na mente dos delegados, pois eram obrigados a considerar a relação da salvação com os acontecimentos mundiais do dia.

Bangcoc descreveu a salvação em termos que indicavam sua

natureza global, holística. A salvação é vista ativamente, na luta pela justiça econômica e pela dignidade humana, na luta contra a alienação entre as pessoas; e na luta da esperança contra o desespero, na vida pessoal.

A salvação que Cristo trouxe, e da qual participamos,

oferece uma totalidade abrangente nesta vida dividida. Entendemos a salvação como novidade de vida — o desdobrar da verdadeira humanidade na plenitude de Deus (Cl 2.9-10). É a salvação da alma e do corpo, do indivíduo e da sociedade, da humanidade e da criação que geme (Rm 8.19)12. A salvação que Cristo traz oferece uma totalidade abrangente

e essa totalidade é novidade de vida. É verdadeira humanidade, a salvação da alma e do corpo, da pessoa total — e pessoa significa indivíduo e sociedade. A salvação da humanidade abrange a totalidade da criação. Essa compreensão global e holística da salvação foi acompanhada pelo reconhecimento de que não podemos ser sempre totalmente abrangentes. Temos uma compreensão global da salvação, que tem a ver com todos os aspectos da pessoa, com todos os aspectos da relação da pessoa com a sociedade, com todos os aspectos da relação da humanidade com a natureza. Mas não podemos ser sempre totalmente abrangentes. Somos obrigados a entrar nessa salvação total através de determinadas portas.

12 Bangkok Assembly, 1973, Genebra, CMI, p. 88

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Há prioridades históricas de acordo com as quais a salvação é antecipada em uma certa dimensão, seja pessoal, política ou econômica. Essa porta de entrada difere de uma situação — em que trabalhamos e sofremos — para outra. Devemos saber que essas antecipações — essas portas de entrada — não são a totalidade da salvação e devemos lembrar-nos das outras dimensões, enquanto trabalhamos. Esquecer isso é negar a totalidade da salvação. Ninguém pode, em qualquer situação específica, fazer tudo ao mesmo tempo. Há vários dons e tarefas, mas só há um Espírito e um objetivo.13 Existem certas prioridades, e devemos utilizar nossa liberdade

para identificá-las. Há dons e tarefas diversas — dons pessoais, tarefas pessoais, vocações pessoais — mas só existe um Espírito e um objetivo. E agora chegamos à frase mais polêmica do relatório da conferência.

Nesse sentido — o sentido das prioridades históricas,

das antecipações — pode-se dizer, por exemplo, que a salvação é a paz do povo do Vietnã; a independência de Angola; justiça e reconciliação na Irlanda do Norte; e a libertação da comunidade do Atlântico Norte do cativeiro do poder; ou a conversão pessoal na libertação de uma sociedade oprimida; ou novos estilos de vida para os interesses capitalistas e o desamor.14 Existem prioridades históricas, dimensões, e determinados

dons que são portas de entrada para a dinâmica do Reino e a realidade da salvação. Em dado momento, a conferência diz: “A paz no Vietnã é salvação.” Os que estão trabalhando pela paz no Vietnã estão desempenhando um papel missionário. Os que estão buscando a reconciliação na Irlanda do Norte também estão cumprindo um dever missionário. Os que estão convidando 13 Ibid. p. 90 14 Ibid

pessoas a se converterem em sociedades que as privam de sua humanidade estão trabalhando pelo Reino. Mas cada um desses casos é uma porta de entrada, uma prioridade histórica, uma antecipação de salvação, que responde a um dom determinado ou persegue um certo objetivo.

Isso é fundamental para o nosso trabalho, na formulação de prioridades históricas ou contextuais, como portas de entrada para a luta total do Reino de Deus. Essa parte da declaração foi muito mal compreendida e mal interpretada. As pessoas concentraram a atenção na segunda parte: “A salvação é a paz no Vietnã.”

É claro que não podemos pensar em salvação sem levar em

conta o aspecto da reconciliação com Deus e com o nosso próximo, bem como a vida eterna. Mas a declaração não diz que a salvação toda se resume na paz no Vietnã; ela é apenas recomendada como prioridade histórica. É uma dimensão. É uma antecipação. É uma porta de entrada. Não devemos esquecer as outras dimensões que completarão o quadro, mas precisamos entrar por uma determinada porta, se quisermos ser concretos em nossa obediência missionária. Nossa liberdade de missão existe para que possamos ser relevantes na missão.

Essa compreensão deveria ajudar a reconciliar certas

posições cristãs que parecem contraditórias. Se a paz no Vietnã é a porta de entrada para o Reino ou a prioridade missionária para os cristãos preocupados com aquele país, não se poderia também reconhecer que a construção da Igreja e o chamado à conversão são também uma porta de entrada e um aspecto a ser enfatizado em certas outras partes da Ásia e do mundo?

A assembléia tinha ouvido falar do “crescente questionamento

das pessoas em Bangcoc sobre a falta de sentido da vida para muitas delas, e sua busca de alguma coisa mais profunda, na realidade, uma nova identidade”.15

15 Ibid,p. 78

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Se existe essa falta de sentido, difundir a história do Evangelho é realmente importante em tal situação. Mas assim como a preocupação com a paz no Vietnã não é a totalidade da salvação, também a história de Jesus não representa toda a salvação, a não ser que em ambos os casos apontemos, com nossas palavras e atos, para além daquela ênfase particular, em direção à dinâmica do Reino de Deus. A abordagem teológica de Bangcoc, embora fornecendo exemplos de prioridades em termos de situações políticas e sociais, não deixou de reconhecer outras prioridades que têm predominado tradicionalmente, com a pregação da Palavra e a construção da Igreja. Devemos considerá-la todas como legítimas portas de acesso à missão total da Igreja e ingredientes do significado total da salvação.

O ataque a Bangcoc

Depois de Bangcoc, o debate concentrou-se nas implicações de declarações como as que citamos. Alguns dos amigos evangélicos viram nelas a confirmação de certos destaques que, segundo eles, remontam à Assembléia de Upsala do Conselho Mundial de Igreja, em 1968. Protestaram contra a redução da teologia a uma espécie de antropologia, e da fé cristã a uma espécie de humanismo. Hal Lindsell, antigo editor de “Christianity Today”, dizia que a ênfase em Upsala, que veio a frutificar em Bangcoc, recaíra em “humanização, secularização, envolvimento sócio-político, desenvolvimento econômico das nações do Terceiro Mundo, eliminação do racismo, revolução e um virulento sentimento anti-americano, concentrado na guerra do Vietnã. O Evangelho da salvação pessoal através da reparação oferecida por Cristo no Calvário foi suplantado por uma versão materializada e secularizada de ação social como missão da Igreja”.16

16 Ver Ralph Winter, ed., “ The Evangelical Response to Bangkok “, Pasadena, William Carey Library, 1973, p. 125

Lindsell não foi o único que interpretou Bangcoc dessa maneira; outros, mais favoráveis ao Conselho Mundial, também fizeram críticas semelhantes. Arthur Glasser, do Seminário Teológico Fuller, disse que em Bangcoc “o aspecto cultural predominou sobre o evangélico”. Ao descrever os aspectos evangélico e cultural, disse ele que “a salvação realmente tem implicações para ambos. Sob o aspecto cultural, Deus decide envolver os homens na aceitação da responsabilidade para com o mundo. Preocupa-se com o governo, a injustiça, a opressão, etc... Mas, diz Glasser, essa é uma dimensão da vocação cristã. A outra dimensão, a dimensão evangélica, ele não a vê com clareza em Bangcoc”.17

Quase no final da conferência, o representante oficial do

Vaticano, o Padre Jerome Hamer, saudou os delegados em nome da fraternal delegação da Igreja Católica. Disse ele, com franqueza: “Estou espantado de vê-los discutirem a salvação hoje, durante dias a fio, em todas as suas ramificações, sem darem atenção, porém, ao que o apóstolo Paulo disse a respeito dela. Não ouvi ninguém aqui falar em justificação pela fé. Não ouvi ninguém falar de vida eterna. Nem da justa ira de Deus contra o pecado.”

Devemos também citar as críticas feitas pela Igreja Ortodoxa

Russa e expressas numa carta enviada ao Moderador do Comitê Central do Conselho Mundial de Igrejas, M.M.Thomas, da Índia. A carta exprimia “perplexidade e tristeza” por não haver qualquer referência significativa à vida eterna na carta enviada às Igrejas por Bangcoc, que parecia projetar “uma compreensão unilateral e prejudicial da salvação num espírito de horizontalismo ilimitado” e tinha pouco a dizer sobre a perfeição moral neste mundo e a vida eterna no outro.

17 Ibid. pp. 90 - 91

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Valores ameaçados

Essas três reações críticas — a evangélica, a católica e a ortodoxa — apontam, cada uma, para um valor que precisa ser lembrado e preservado. Os evangélicos e os católicos reclamam uma mensagem mais clara, dirigida aos indivíduos, em termos de sua relação pessoal com Deus, sua necessidade de perdão e de fé e seu desejo de vida eterna. Não conseguiram ouvir, nos acalorados debates em Bangcoc, esse convite à fé e à conversão pessoal.

A Igreja Ortodoxa Russa não ouviu uma referência clara à

vida eterna em Deus, como objetivo de toda esperança cristã de salvação. A conversão pessoal, o evangelismo em termos de um convite a uma fé pessoal, a esperança escatológica em Deus — todas essas são afirmações cristãs fundamentais, que as pessoas reunidas em Bangoc jamais negariam. Sua preocupação era corrigir os desvios do passado e ler o kairós de Deus, em que o Espírito chamava a Igreja a agir com obediência, hoje.

Bangcoc abriu novos caminhos; de certa forma até falou uma

linguagem nova, que era um pouco difícil de entender. Quais eram os valores ameaçados para as pessoas reunidas em Bangcoc? Elas queriam ter em mente a interação, até mesmo a unidade, entre a história religiosa e a secular, entre a história da salvação e a história humana. Para Arthur Glasser, há um mandato cultural e um mandato evangélico; ambos são necessários mas diferentes. Bangcoc tentou ver a dimensão evangélica dentro do mandato cultural; e, dentro da dimensão evangélica, a necessidade de exigir o reconhecimento do domínio de Cristo sobre todas as culturas e reinos.

Assim, em Bangcoc, houve uma tentativa de considerar com

seriedade a história cultural que nos foi dada, de fixar as raízes de nossa Igreja, nossa teologia, nosso evangelho, no passado de nosso país e, dentro dessa história, participar da libertação do povo e da construção de nossa cultura, da criação de novas

relações humanas, numa perspectiva escatológica — com a esperança de contribuir para a riqueza do banquete final do Reino de Deus.

O que Bangcoc disse não é, na verdade, muito diferente do

que os teólogos ortodoxos vêm dizendo. Os cristãos devem tornar-se o fermento dentro da história, que poderia salvar essa mesma história. A transfiguração do mundo é o objetivo para o qual deve trabalhar nossa missão cristã. O Espírito Santo atua em toda a criação. E isso foi o que Bangcoc tentou expressar — trazer essas afirmações teológicas ao nível prático e exprimi-las na linguagem das realidades sociais, políticas e históricas.

Descobrimos em Bangcoc que a esquizofrenia teológica, que

separa as relações com Deus das relações com o nosso próximo, desaparece no maravilhoso conhecimento de um Deus cujo Espírito atua através de diferentes agentes de libertação. Tampouco deixamos de reconhecer que Deus, fundamentalmente através da Igreja, transmite à humanidade o segredo do amor divino e oferece a possibilidade de uma decisão consciente para incorporar o nosso serviço na divina missão de salvação e libertação.

Essa compreensão da salvação resgata a tarefa histórica da

humanidade e fornece a base de todo o trabalho evangélico. Nada que seja humano é estranho à comunidade cristã.

No nascimento de uma criança, no seu desenvolvimento

como pessoa, na integração da pessoa à comunidade humana, na luta pela liberdade de toda a comunidade, na busca de formas de vida mais humanas — em tudo isso vemos a manifestação da preocupação e do amor de Deus. O Deus que atuou no êxodo, dando liberdade ao povo de Israel, e o Deus que atuou através da morte e da ressurreição de Jesus Cristo, e oferece vida nova a

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toda a humanidade é o mesmo Deus que nos chama a trabalhar pela salvação humana total.

O debate evangélico

Um segundo elemento importante na discussão da missão foi

o fato de os evangélicos se concentrarem na evangelização do mundo. Um congresso sobre evangelismo mundial foi realizado pela organização de Billy Graham e a revista “Christianity Today”, em Berlim, em 1966. A ele seguiu-se um segundo congresso em 1974, assistido por quatro mil participantes em Lausanne, na Suíça, sobre o tema: “Deixemos que a Terra ouça sua Voz.” O Acordo de Lausanne, embora não fosse um documento oficial do congresso, foi preparado e assinado durante a sua realização e resume bem as suas convicções. Segundo o Acordo, “mais de 2.700 milhões de pessoas, que representam um número superior a dois terços da humanidade, ainda tinham de ser evangelizados. É uma vergonha para nós que tantos tenham sido negligenciados. É uma censura viva a nós e a toda a Igreja.” O congresso criou a expressão “atingir os inatingidos” como seu slogan principal a fim de mobilizar a Igreja.

Embora esse slogan reflita a dimensão numérica e geográfica

do problema, a palavra “inatingidos” não esclarece a situação. Parece supor que haja pessoas que não foram atingidas nem por Deus e isso, naturalmente, diz respeito a uma dimensão da realidade que nos é ocultada. Só Deus sabe onde e a quem o Espírito atingiu e como o fez. Isso não significa negar o trágico fato de que a grande maioria da população do mundo não abraçou a fé cristã e que os cristãos são instados a partilhar com todos o Evangelho de Jesus Cristo, porque é vontade de Deus que todos cheguem ao conhecimento da verdade e sejam salvos (lTm 2.4).

Lausanne não foi uma resposta a Bangcoc. Os organizadores

do Congresso não o consideraram dessa forma. Sua preocupação

foi com a evangelização do mundo, compreendida como o relato da história de Cristo às pessoas, de modo que elas se convertessem; discutiram-se os modos e meios de alcançar esse objetivo. Estava implícita nas discussões uma crítica ao Conselho Mundial de Igrejas e à Comissão de Missão Mundial e Evangelismo — que haviam concentrado a atenção em assuntos de cultura e justiça numa conferência missionária!

Inevitavelmente, porém, a maioria dos participantes foi

afetada pelos mesmos acontecimentos históricos que os delegados de Bangcoc. Eles vinham do mesmo mundo envolvido pela guerra; estavam lendo a mesma Bíblia; a maioria deles era proveniente das mesmas Igrejas. Dos quatro mil participantes de Lausanne, 65 por cento pertenciam a Igrejas Membros do Conselho Mundial de Igrejas. Eles também estavam tentando ser fiéis ao Espírito Santo. O resultado foi que o Acordo de Lausanne incorporou alguns dos conceitos básicos de Bangcoc — diálogo, moratória, justiça, cultura — mas tentou dar a esses conceitos uma definição mais precisa a fim de assegurar que eles não obscurecessem as tarefas básicas da vocação missionária.

Foram feitas distinções e estabelecidas prioridades. O

evangelismo foi defendido como uma categoria independente, embora ligada às exigências de justiça social. “Justiça social não é evangelização”, foi dito claramente. Mas “... a justiça social está incluída no nosso mandato.”

Bangcoc levantou a possibilidade de moratória para evitar o

envio de missionários e fundos a uma determinada Igreja, por um dado período, para dar a essa Igreja uma chance de descobrir sua própria identidade com relação à comunidade de inserção. O Acordo indica que a moratória, se pudesse liberar fundos para outras regiões ainda não alcançadas pelo Evangelho, não seria má idéia! O diálogo é necessário - contanto que facilite a evangelização!

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Lausanne assinala o começo de uma convergência de posições teológicas diferentes com relação à missão da Igreja.

Dentro da família evangélica, tem havido uma crescente

exigência de um comprometimento evangélico com a realidade da mudança histórica e de uma participação nas lutas humanas pela justiça. Na realidade, no próprio Congresso de Lausanne, um número considerável de delegados assinou uma declaração complementar do Acordo, denominada “Uma resposta a Lausanne”. É um documento mais radical, mas não contradiz o Acordo. Reafirma-o, mas destaca a dimensão da justiça social e a necessidade de envolvimento social por parte dos cristãos.

Foi organizada uma consulta mundial pelo Comitê de

Lausanne pela Evangelização Mundial (junho de 1980), em Pattaya, na Tailândia. Seu objetivo era estudar mais profundamente a questão das técnicas e metodologias para atingir grupos específicos. A intenção original era limitar a discussão a considerações práticas sobre a forma de evangelizar muçulmanos, hindus, católicos nominais, protestantes nominais e outros setores identificáveis da população, semelhantes a esses. Um certo número de participantes, porém, especialmente do Terceiro Mundo, sob a liderança do Bispo David Gitari do Quênia, pediu à comissão organizadora para incluir a consideração das questões de justiça no mundo e a responsabilidade dos cristãos com relação a tais questões.

Argumentaram que o “Acordo de Lausanne” reconhecia a

importância da justiça com relação ao evangelismo e tinham receio de que o Comitê de Lausanne para a Evangelização Mundial estivesse agora seguindo uma interpretação unilateral do Acordo, não estabelecendo uma relação entre as preocupações do evangelismo e a preocupação global de Deus pela situação humana como um todo.

Desejavam que se convocasse uma conferência mundial sobre o tema da responsabilidade social cristã, a fim de se discutirem questões de justiça, especialmente a sua relação com a evangelização. Isso provocou um debate interno dentro do comitê. Expressou-se o receio, principalmente por parte da escola que defende o crescimento da Igreja, nos Estados Unidos, de que uma conferência desse tipo pudesse distorcer perspectivas e trair a vocação original do movimento de Lausanne. Segundo o ponto de vista da escola favorável ao crescimento da Igreja, o Comitê de Lausanne deveria preocupar-se principalmente com a expansão e o crescimento da Igreja, e em atingir os “inatingidos”, enquanto outros poderiam expressar, à vontade, sua preocupação com a justiça social.

Têm-se desenvolvido esforços, por parte de outros grupos

que são até mais comprometidos com o chamado para atingir os “inatingidos”. Por exemplo, Ralph Winter, de Pasadena, Califórnia disse que o verdadeiro desafio, hoje em dia é alcançar os que se acham além de nossas fronteiras culturais e que isso não pode ser tentado no nível das congregações locais. Para uma tarefa dessas, há necessidade de organizações mais especializadas, bem como de pessoas que tenham uma vocação especial, para atravessar fronteiras culturais e evangelizar pessoas de outras culturas.

Foi essa a lógica sobre a qual se baseou uma conferência

realizada em Edimburgo (1980). A conferência não produziu um acordo nem uma declaração. Resultou porém num compromisso, que os participantes foram solicitados a assinar. Rezava o seguinte:

“Uma Igreja para todos os povos até o ano 2.000. Pela graça de Deus e para sua glória, prometo empregar minha vida inteira em obedecer à sua ordem, expressa em Mateus (28.18-20), onde quer que ele me envie e de qualquer maneira que o faça, dando prioridade aos povos que atualmente se encontram fora do alcance do Evangelho (Rm

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15.20,21). Também me empenharei em transmitir a outros esse ponto de vista”.

Havia estritos requisitos doutrinários para participar dessa

conferência, o que fez que o seu impacto fosse limitado a um pequeno setor da comunidade cristã.

Enquanto isso, um número de evangélicos cada vez maior, especialmente do Terceiro Mundo, afirmava que a preocupação com a justiça humana sempre integrara a sua tradição. Os evangelistas mais famosos nunca haviam feito uma separação nítida entre os dois aspectos. Poderiam ter feito distinções; poderiam ter recomendado uma orientação para hoje e outra para amanhã, mas estavam convencidos de que a tarefa do evangelismo deveria apontar na direção da missão total de Deus, incluindo a preocupação com a justiça.

Para responder a essa preocupação e enfrentar sem rodeios

as diferenças internas, foram convocadas duas reuniões complementares. A que foi organizada pelo Comitê de Lausanne pela Evangelização Mundial e pela Associação Evangélica Mundial reuniu cinqüenta líderes evangelicais em Grand Rapids (Estados Unidos / junho de 1982), para analisar a relação entre evangelismo e responsabilidade social. “Muitos temem”, disseram eles, “que quanto mais nós, evangélicos, nos comprometermos com um desses aspectos, menos nos comprometeremos com o outro.” A consulta afirmou que “evangelismo e responsabilidade social, embora distintos um do outro, estão relacionados integralmente em nossa proclamação do Evangelho e na obediência a ele. Essa associação é, na realidade, um casamento” 18.

A Associação Evangélica Mundial organizou, em Wheaton,

Illinois (1983), uma série de três consultas simultâneas sobre “A Igreja com inserções locais”, “A Igreja em novas fronteiras de missão” e “A Igreja em resposta à necessidade humana”. A 18 ”Evangelism and Social Responsability”, The Grand Rapids Report, Exeter, Patermoster Press, 1982, p. 24

preocupação com uma clara relação entre evangelismo e justiça social, expressa em Lausanne, levantada em Pattaya, presente em comunidades como a dos Sojourners, nos Estados Unidos, e em movimentos como a Associação de Teólogos Evangélicos da América Latina, foi claramente explicitada nessas reuniões:

A realidade da presença do Reino dá-nos a coragem para começar aqui e agora a construir os sinais do Reino vindouro, trabalhando com atos e orações por maior justiça e paz e no sentido da transformação dos indivíduos e das sociedades. Uma vez que, um dia, Deus enxugará toda lágrima isto na leva a lamentar ver o povo sofrer hoje. Já que um dia haverá a paz perfeita, somos chamados a ser pacificadores agora. Humildemente, mas com insistência, convocamos as Igrejas a se unirem a nós nesse ministério da prática do amor e na busca da restauração da dignidade dos seres humanos, criados à imagem de Deus.

Há uma visão escatológica: o Reino trará o shalom (paz) de

Deus e Deus enxugará nossas lágrimas, trazendo a paz perfeita, a salvação total. Essa visão nos leva a ser ativos na história, ajudando aos que sofrem agora, trabalhando pela paz, opondo-nos a toda injustiça. Porque estamos a caminho do Reino, somos chamados a plantar os sinais do Reino neste lugar e neste momento. Podemos ter diferenças teológicas, mas estamos convencidos de que o chamado de Deus para a Igreja é um chamado holístico. Esta é uma realidade viva e aqui temos um ponto de encontro verdadeiramente ecumênico.

Tampouco podemos esquecer que o movimento evangelical

está fundamentalmente preocupado com a evangelização do mundo todo, especialmente dos milhões de pessoas que ainda não ouviram falar de Jesus Cristo. Podemos concordar ou não com algumas das metodologias propostas; podemos discordar da opinião de que os que se encontram fora da Igreja Cristã estão

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“perdidos”. Mas o Evangelho precisa ser pregado. Não pode ser propriedade privada dos cristãos. Não temos o direito de impedir ninguém de tomar conhecimento de Jesus Cristo. Nessa preocupação específica com os indivíduos, há um lembrete válido da questão da fé em nosso mundo de hoje. A discussão missiológica em círculos ecumênicos, porém, tem-se preocupado mais com a questão da fidelidade na missão, da integridade, da necessária correspondência entre palavra e ação; reconhece que a falta de fidelidade por parte dos cristãos é o principal obstáculo em todos os empreendimentos evangélicos. Nossos amigos evangelicais têm-se preocupado mais com a real tentativa de oferecer uma oportunidade para que as pessoas cheguem à fé em Cristo. As duas preocupações estão inseparavelmente ligadas. Sem uma comunidade fiel, que seja por si mesma um sinal do Reino, será difícil convencer o mundo da novidade radical do Evangelho de Jesus Cristo. Mas toda tentativa de ser fiel envolve o desejo de partilhar o Evangelho com outros. O evangelismo faz parte de nossa fidelidade a Deus. Sem um comprometimento com o evangelismo, nosso compromisso cristão está incompleto. Ao mesmo tempo, precisamos reunir essas dimensões de fidelidade e de fé porque tornar-se cristão, ser convidado a aceitar Jesus Cristo significa ser convidado a participar do seu Reino, do seu próprio movimento de amor na história. Tornando-nos cristãos, não podemos fugir à história.

A posição católica

Realizou-se em Roma (1974) um Sínodo de Bispos da Igreja Católica Romana sobre o tema “A evangelização do mundo”. Os Sínodos de Bispos, na Igreja Católica, auxiliam o papa em sua função pastoral e em seu magistério. Em geral, refletem a sabedoria coletiva dos bispos; seus resultados são então comunicados ao papa, que mais tarde os utiliza no que deseja dizer com sua própria autoridade.

O papa publicou (dezembro, 75) uma exortação apostólica intitulada Evangelii Nuntiandi (Evangelização do mundo moderno). Nela, reconhecia o trabalho dos bispos e em seguida estendia-se sobre ele. Paulo VI começava com o lembrete de que a apresentação da mensagem do Evangelho não é opcional para a Igreja. É um dever que lhe é imposto por ordem do Senhor Jesus, para que as pessoas possam crer e ser salvas. Cristo é o supremo evangelista. Ele proclama o Reino e, no Reino, uma salvação libertadora; ele acompanha sua missão evangelística com sinais evangélicos e especialmente um sinal ao qual Cristo dá grande importância — o de que os pobres e humildes sejam evangelizados. Os discípulos de João Batista perguntaram a Jesus: “És tu aquele por quem estávamos esperando ou precisamos esperar por alguém mais?” Jesus não respondeu sim nem não. Disse apenas: “Dizei a João quais os sinais que estão sendo manifestados — a cura dos doentes e a boa nova pregada aos pobres” (Lc 7. 18-23). O anúncio do Evangelho aos pobres era um sinal do Reino, um claro sinal da vocação messiânica de Jesus. Para o papa, a tarefa de evangelizar todo mundo constituía a missão essencial da Igreja.

Nisso ele estava de acordo com o Secretário Geral do

Conselho Mundial, Dr. Philip Potter, que, dirigindo-se ao Sínodo, declarou que “a evangelização é o teste da vocação ecumênica”. Também concordava com a ênfase dada em Lausanne à evangelização como missão fundamental e essencial. A Igreja evangeliza quando “busca converter, unicamente através do poder divino da mensagem que ela proclama, tanto a consciência pessoal como coletiva, nas atividades em que as pessoas empenham, em sua vida e em seu ambiente concreto”.

Existe uma tensão aqui. O papa deseja tornar claro que a

evangelização, no sentido de chamar as pessoas à fé em Cristo, é a vocação principal da Igreja. Ao mesmo tempo, reconhece que é impossível cumprir essa missão sem relacioná-la com todos os aspectos da vida das pessoas.

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A salvação que é prometida por Cristo é transcendente e

escatológica, mas tem seu começo nesta vida. Portanto, a mensagem é também “sobre os direitos e deveres de todo ser humano, sobre a vida em família, a vida em sociedade, a vida internacional, a paz, a justiça e o desenvolvimento”. É uma “mensagem particularmente enérgica, hoje em dia, sobre a libertação”.

É claro que o papa deseja afirmar duas coisas — mantendo-

as em tensão criativa. Primeiro, a salvação tem a ver com a vida eterna, é algo que depende de nossa relação com Deus em Cristo, com conseqüências que vão muito além de nossa vida histórica diária. Ao mesmo tempo, tem também conseqüências para a vida humana, aqui e agora, e aí “é impossível aceitar que na evangelização se possa ou se deva ignorar a importância dos problemas, hoje tão discutidos, e que dizem respeito à justiça, à libertação, ao desenvolvimento e à paz no mundo. Isso seria esquecer a lição que nos vem do Evangelho, com relação ao amor ao próximo que sofre e passa necessidade.”

Mas o papa diz, falando sobre a Igreja, que “ela reafirma a

primazia de sua vocação espiritual e recusa-se a substituir a proclamação do Reino pela proclamação de formas de libertação humana. Ela até declara que sua contribuição à libertação ficará incompleta se deixar de proclamar a salvação em Jesus Cristo.” Não haveria muitos fiéis na Igreja Católica que gostariam que ela substuísse a proclamação do Reino de Deus pela proclamação de qualquer forma de libertação humana. Muitos, entretanto, gostariam de ver a manifestação do Reino de Deus sob formas de libertação humana, como uma antevisão, como a vanguarda do Reino. O próprio papa indica que Cristo realizou sua proclamação através de inúmeros sinais que surpreenderam as multidões e que o sinal mais importante foi a evangelização dos pobres. Assim, palavras e atos, sinais e milagres, são todos componentes de

nossa proclamação, uma antecipação e vivência do Reino de Deus.

O papa também reconhece a liberdade com a qual temos de

responder aos mais diversos contextos. Sua preocupação é assegurar-se de que nosso envolvimento com a libertação não seja concebido como substituto do anúncio da salvação em Cristo. É a mesma preocupação expressa na carta da Igreja Ortodoxa Russa ao Conselho Mundial de Igrejas, que insistia em que não devíamos esquecer a natureza escatológica da salvação e a realidade da vida eterna.

O lado positivo da Evangelii Nuntiandi é sua afirmação da

necessidade de referir o nome de Cristo - de apontar para ele, sua vida, seu magistério, sua morte e ressurreição — em nossa evangelização e o reconhecimento simultâneo de que missão e evangelismo envolvem responsabilidade em todas as instâncias da vida.

O diálogo sobre o evangelismo, tanto dentro da Igreja Católica

Romana quanto no movimento ecumênico, muito lucraria com uma nova leitura de “A constituição da Igreja no mundo moderno” e do trabalho dos teólogos da libertação, que tentam superar o dualismo entre a salvação escatológica e a libertação histórica.

Será possível preservar essa dimensão da vida eterna, a

consumação escatológica de nossa salvação e ao mesmo tempo ver a realização dessa salvação em nossa história quotidiana?

Nairóbi 1975 — em busca da convergência Em Nairóbi, Quênia (1975), realizou-se a Quinta Assembléia

do Conselho Mundial de Igrejas, tendo como tema “Jesus Cristo Liberta e Une”. Uma das seis seções concentrou-se no sub-tema “Confessando Cristo hoje”. Essa Assembléia e essa seção em

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particular tiveram o benefício da participação de pessoas que haviam estado em Bangcoc e em Lausanne, bem como a de assessores católicos. Nairóbi, portanto, foi a primeira reunião ecumênica que tentou compatibilizar as diversas posições.

O Acordo de Lausanne sobre a Evangelização Mundial, a

encíclica do papa e “Confessando Cristo hoje” desejam, todos eles, preservar um claro conteúdo doutrinário, o cerne da evangelização e, ao mesmo tempo, estabelecer um sério compromisso com a causa da justiça humana. Nairóbi, respondendo a essa preocupação, disse: “O Evangelho sempre inclui o anúncio do Reino e do amor de Deus através de Jesus Cristo, a oferta da Graça e do perdão dos pecados, o convite ao arrependimento e à fé nele, o chamado ao companheirismo na Igreja de Cristo, o mandamento para dar testemunho das palavras e atos salvadores de Deus, a responsabilidade de participar da luta pela justiça e dignidade humana, a obrigação de denunciar tudo o que impede a integridade humana e um compromisso de arriscar a própria vida”. 19

Bangcoc havia afirmado o valor das portas de entrada; porque

não podemos fazer tudo em todo lugar a todo momento, devemos, através de uma obediência especial a um aspecto particular do Evangelho, entrar na totalidade deste.

Nairóbi afirmou que o Evangelho sempre inclui “a participação

na luta pela justiça, a obrigação de denunciar tudo o que impede a integridade humana”. Tendo aprendido com as reações críticas a Bangcoc, Nairóbi utilizou certas salvaguardas para evitar mal-entendidos: “Lamentamos que alguns reduzam a libertação do pecado e do mal a dimensões sociais e políticas, da mesma forma como lamentamos que outros limitem a libertação às dimensões particulares e eternas”. Mas os participantes estavam conscientes de que milhões de pessoas não tiveram a chance de ouvir o Evangelho e essa consciência levou-os a confessar o fracasso das 19 “Breaking Barriers: Nairobi 1975”, David M. Patoned, Genebra, CMI, 1976, p. 52. As citações que se seguem são também do mesmo livro.

Igrejas em serem fiéis à sua vocação de partilhar o Evangelho com todas as criaturas.

Nairóbi foi uma assembléia amistosa. Numa atmosfera de

reconciliação, lembrou aos cristãos que se empenhar na missão e na evangelização representava um custoso apostolado. “Há uma estreita ligação entre confessar Cristo e converter-se ao seu apostolado. Os que confessam Jesus Cristo negam-se a si mesmos, o seu egoísmo e a sua escravidão aos “governos e potências” perversas, tomam suas cruzes e o seguem. “ Em seguida, a assembléia explicitou o custo do apostolado, o preço que muitas pessoas pagam, no presente, por serem fiéis ao Evangelho. Deplorou “as conversões baratas, sem conseqüências” e uma “pregação superficial do Evangelho, um evangelho vazio sem um chamado ao apostolado pessoal e comunitário”.

Melbourne 1980 — os pobres

A Comissão de Missão Mundial e Evangelismo do Conselho Mundial convocou uma outra conferência, dessa vez em Melbourne, Austrália (1980). O tema principal foi a prece de Jesus: “Venha o teu Reino”.

A seleção do tema foi, por si só, um exercício espiritual, uma

tentativa de discernir a situação da humanidade hoje, à luz da mensagem bíblica. Havia uma consciência profunda da gravidade do sofrimento humano no mundo e a convicção de que não existiam soluções humanas prontas. A melhor coisa, pareceu a todos, seria concentrar-se na prece de Jesus. A crescente polarização na política das grandes potências mundiais; a ameaça de destruição nuclear; a crescente diferença entre ricos e pobres, entre as nações e dentro de cada uma delas; a contínua marginalização de milhões de pessoas — tudo isso influenciou a escolha do tema.

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Havia uma convicção geral, na conferência, de que não se poderia falar ou pensar no Reino de Deus sem concentrar nossos pensamentos e nossas orações na situação dos pobres da terra hoje. Os estudos bíblicos reforçaram essa convicção. Levaram os participantes a redescobrir a preocupação especial de Deus com os pobres, os oprimidos e os marginalizados. O próprio ministério de Jesus não poderia ser entendido fora de sua impotência e de uma identificação com os setores mais pobres de sua sociedade. Cristo foi morrer fora das portas da cidade, para mostrar aos que nada eram aos olhos dos poderosos, que pertencia à periferia.

Essa consciência espiritual de Melbourne foi fortalecida por

análises sociais, econômicas e políticas que mostraram claramente que a pobreza nada tem a ver com a vontade de Deus. A pobreza não é uma questão de destino; é conseqüência da organização das relações nacionais e internacionais. Está ligada às relações de Estado, comércio, dominação, dependência, classe e à exploração que prevalece no mundo das nações e dentro de cada nação. Os cristãos são chamados a atacar essa questão do ponto de vista do Reino de Deus. Desafiados pela própria identificação de Jesus com os pobres, não mais podemos considerar nossa própria relação com os pobres como uma questão ético-social; é uma questão evangélica. Nosso amor ao próximo torna-se concreto em nossas relações com os pobres. Para muitos de nós isso implica no reconhecimento de nossa parcela na culpa coletiva — quer seja de nosso país, quer de nossa classe social, que se beneficia da situação existente.

Os pobres da Terra foram vistos como vítimas dos pecados

dos outros. Somos todos pecadores, ricos e pobres; essa é uma dimensão do Evangelho. Mas Jesus olhava para as multidões com compaixão, porque reconhecia nelas pessoas que eram vítimas dos pecados dos outros. No Antigo Testamento encontram-se com freqüência referências à pobreza ou aos pobres, que são também declarações sobre a exploração e a opressão.

Essa concentração nos pobres resultou numa dinâmica espiritual; a reunião chamou as Igrejas a se identificarem com os pobres e a se tornarem Igrejas solidárias com os pobres. Houve também o reconhecimento de que os pobres, como objetos do amor de Deus, deveriam tornar-se sujeitos de sua própria história e que a missão da Igreja deveria facilitar a organização dos pobres e sua participação no Reino de Deus e na missão da Igreja.

Nos últimos vinte anos, tem-se dito inúmeras vezes que a Igreja deveria ser “a voz dos que não têm voz”. Essa era uma função necessária. Mas havia um elemento de paternalismo nesse papel. O mais importante é ajudar os pobres a se organizarem, de modo que façam ouvir sua própria voz. O chamado de Deus à conversão é dirigido a pessoas que devem respondê-lo como pessoas. É um chamado a desempenhar um papel de protagonista. Levar isso a sério, na vida da Igreja, é sugerir que os pobres se tornem os verdadeiros evangelizadores. Prevê um movimento do Espírito de Deus nas massas de pobres do mundo, que são capazes de evangelizar os próprios pobres. Através da evangelização dos pobres, um chamado ao arrependimento, à solidariedade e à vida nova chega a todas as pessoas e a todos os setores da sociedade.

Jesus estabeleceu uma clara ligação entre a vinda do seu Reino e a proclamação da Boa Nova aos pobres (Lc 4.18; 7.22). As Igrejas não podem esquecer essa tarefa evangelística. Os pobres do mundo, que formam a maioria da população, estão esperando por esse testemunho do Evangelho, que será realmente uma boa nova para eles.

Na Conferência de Melbourne, começamos a discutir algo que

é de vital importância para todos os que se preocupam com a missão mundial da Igreja. Quando falamos a respeito dos pobres e quando nossos amigos evangelicais falam dos “inatingidos”, estamos com freqüência falando das mesmas pessoas, porque a maioria dos pobres do mundo não são cristãos. Assim, nossa abordagem do próximo não é tanto em termos de suas convicções religiosas, mas sim em termos de sua condição humana total.

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Dirigimo-nos a eles como pessoas que são vítimas da divisão de poderes e divisão do trabalho no mundo e como pessoas por quem Deus tem uma opção preferencial, e nos empenhamos com eles numa ação que transformará isso numa realidade histórica. Se acreditamos que Jesus traz a Boa Nova aos pobres, devemos levar em consideração fielmente as conseqüências para a missão da Igreja. Não será verdade que os pobres tenham “a visão mais clara, a associação mais íntima com o Cristo crucificado que sofre neles e com eles, e. . . que hoje em dia eles sejam a vanguarda da missão da Igreja?” 20

Para todos nós, porém, pobres ou não, o chamado à

solidariedade com os pobres levanta a questão das estruturas que criam a pobreza. Há uma responsabilidade cristã para transmitir o amor sob forma de justiça. Se nos preocupamos com os pobres apenas como vítimas da pobreza, e se evitamos procurar as causas que estão na raiz dessa pobreza, traímos a nossa vocação. Essa é, na verdade, a nova descoberta — a de que não podemos limitar-nos à “proclamação direta do Evangelho”, a não ser que consideremos com máxima seriedade a situação das pessoas a quem ele é proclamado.

Nossos amigos evangelicais estão também impressionados com o fato de que os inatingidos são os pobres. Passo a citar a consulta sobre “A Igreja em resposta à necessidade humana”, à qual já me referi anteriormente:

Quando refletimos sobre os quase três bilhões de

pessoas que ainda não ouviram falar do Cristo e do seu Evangelho, ficamos impressionados pela terrível constatação de que a maioria delas é constituída de pobres e que muitas estão ficando ainda mais pobres. Milhões dessas pessoas vivem situações em que sofrem exploração e opressão e em quer sua dignidade como pessoas criadas à imagem de Deus está sendo violentada de muitas

20 ”Venha o teu reino: perspectivas de missão”, Genebra, CMI, 1980, p. 219

maneiras. Devemos comover-nos profundamente com a sua infelicidade. Nosso Senhor Jesus Cristo nos redime da perdição eterna e estabelece seu domínio sobre toda a nossa vida. Não limitamos, pois, o nosso evangelho a uma mensagem sobre a vida após a morte. Nossa missão é muito mais ampla. Deus nos chamou para proclamar Cristo aos perdidos e chegar até as pessoas em nome de Cristo, com compaixão e preocupação com a justiça e a eqüidade.21

A linguagem é diferente, mas a preocupação e a consciência

são as mesmas. Enfrentamos uma realidade humana que desafia a totalidade do nosso compromisso cristão. É impossível dizer que se pode limitar a um evangelho espiritual ou material, porque em Jesus Cristo e na real experiência de nosso trabalho missionário o evangelho material e o espiritual são um único: o Evangelho do Deus encarnado em Jesus Cristo, chamando-nos a participar com Deus naquela invasão de amor.

“Missão e Evangelização — Uma Afirmação Ecumênica” 22

A Afirmação Ecumênica sobre Missão e Evangelização, publicada pelo Conselho Mundial de Igrejas é resultado de um longo processo de consulta com Igrejas Membros, organizações especializadas e teólogos de diversas confissões. A Afirmação começa com uma visão escatológica de um novo céu e uma nova terra — como a inspiração por trás de toda atividade cristã na história. Passa, em seguida, ao reconhecimento da enormidade do pecado humano. Esses dois aspectos, reunidos, formam o quadro que permite entender a urgência da missão da Igreja — chamar as pessoas e as nações ao arrependimento, anunciar o perdão dos

21 Carta de Wheaton às Igrejas, p. 15 22 Esse documento foi publicado como 4.° volume na Série Missão, CMI, 1983

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pecados e um novo começo nas relações com Deus e o próximo, através de Jesus Cristo. A evangelização é confirmada como uma dimensão fundamental da vida do Conselho Mundial de Igrejas, que é, por si, descrita como uma peregrinação rumo à unidade, sob a visão missionária: “para que o mundo creia que tu me enviaste” (Jo 17.21).

A liberdade da Igreja, no cumprimento de sua missão, deriva

da liberdade que vemos em Jesus e na Igreja do Novo Testamento. Através da participação no amor de Deus, a Igreja tem a capacidade de responder com amor a cada situação. A Igreja é convidada a uma identificação com a humanidade no serviço prestado com amor e na proclamação feita com alegria, a fim de que possa cumprir seu papel sacerdotal de oferecer preces intercessórias e liturgia eucarística.

O ponto de partida de nossa proclamação é Cristo, e Cristo

crucificado. Cristo é reconhecido como o que tomou sobre si todo o sofrimento, pecado e morte, criando, através de sua ressurreição, possibilidades de vida nova e plena. “O evangelismo chama as pessoas a olharem para Cristo e prometerem sua vida a ele, a entrarem no Reino cujo Rei veio ao mundo como uma criança indefesa em Belém e como homem assassinado na cruz”. O documento termina com uma série de afirmações relacionadas com a conversão, o Evangelho em todas as instâncias da vida, a Igreja e sua unidade na missão de Deus, a missão segundo Cristo, a Boa Nova anunciada aos pobres, a missão nos seis continentes, o testemunho entre os povos de credos existentes e uma visão do futuro.

O local e o universal na missão

Diz-se com freqüência que o mundo se tornou uma aldeia

global. A inter-relação entre o local e o universal é fácil de ver em nossos dias. Cada pequena aldeia no Sri Lanka é afetada pelas

flutuações dos mercados de Londres ou Nova Yorque. O que acontece aos negros na África do Sul é uma questão discutida na política interna da Europa ocidental e dos Estados Unidos.

A missão mundial não pode ser cega a essas realidades. Uma

Igreja que apóia o “apartheid” na África do Sul ou é indiferente a ele não pode apresentar credenciais cristãs para realizar trabalho missionário em outros países. O que os cristãos estão fazendo numa determinada área geográfica, num dado momento, afeta os acontecimentos em outras áreas e em outras épocas. Esta é uma lição que aprendemos de forma dramática no Conselho Mundial de Igrejas com o Programa de Combate ao Racismo.* Quando esse programa apoiou o movimento africano de libertação, que lutava por justiça racial, provocou protestos e críticas em Igrejas do Hemisfério Norte.

De um ponto de vista cristão ou missionário, entretanto, não

podemos ser fiéis ao Evangelho de Jesus Cristo a não ser que estejamos com os oprimidos e marginalizados. Boicotar os produtos das companhias transnacionais, retirar nossas contas dos bancos que financiam o “apartheid”, influir nos parlamentos ou partidos políticos, nada disso parece ter relação com missão. Mas no mundo moderno, com todas as suas inter-relações, não podemos ser eficientes se não expressarmos nossa solidariedade tanto a nível local quanto global.

Evidentemente, quando estendemos a compreensão da

missão da Igreja a praticamente todas a atividades humanas — * O Programa de Luta contra o Racismo tem origem na Assembléia de Evanston (EUA, 1954) com a declaração: “Toda a forma de segregação baseada em raça, cor ou origem étnica é contrária ao Evangelho”. O Programa foi criado pelo Comitê Central do Conselho Mundial de Igrejas (1969) e ratificado pela Assembléia Geral de Nairóbi (Quênia, 1977). Objetivos: elaborar política e programas para combater o racismo; ajudar pessoas vítimas de perseguição; fazer investigações práticas; assistir as Igrejas na educação de seus membros sobre justiça social; e manter um Fundo Especial para essa luta (Nota dos Editores).

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boicote, apoio a operários em greve, trabalho voluntário nos campos, reformas das prisões, direitos dos índios, etc. — coloca-se a questão de onde, afinal, está nossa vocação cristã específica. O que é que a Igreja poderia dar à comunidade humana que ninguém mais conseguiria dar? O que é que distingue a participação particular da Igreja nessa luta coletiva, nessa solidariedade internacional, nessa fronteira tão mundana? Como pode tudo isso ser justificado como vocação cristã?

A preocupação com o nosso próximo, especialmente com os

pobres, precisa ser expressa de formas que sejam historicamente relevantes e eficazes. Não amamos nosso próximo para nos salvarmos. Não amamos a fim de nos sentirmos melhor. Queremos expressar nosso amor de tal modo que a situação de nosso próximo se altere. Mas a nossa solidariedade e a nossa identificação com os pobres é em nome de Cristo; nossos atos vêm da comunidade cristã e têm suas raízes na disciplina da liturgia e da oração. Assim, esses atos “seculares” são uma espécie de testemunho. Devem ser relevantes, mas devem também apontar para o tipo de nossa participação, devem apontar para Jesus Cristo. Isso faz parte de uma compreensão teológica de nossa liberdade missionária hoje. Somos livres para nos empenharmos em todas as espécies de atividades humanas, desde que essas atividades se tornem portas de entrada para o Reino e daí apontemos em direção a Jesus.

Unidade e integridade na missão Quero encerrar este capítulo com uma referência a uma

discussão que tivemos na Sexta Assembléia do CMI em Vancouver. A primeira pergunta de fato apresentada na reunião plenária foi formulada por um delegado sueco: Por que não havia menção à palavra “evangelismo” no relatório do Secretário Geral do Conselho Mundial de Igrejas? A resposta do Dr. Philip Potter foi breve. Disse ele que cada um dos parágrafos de seu relatório havia se referido implicitamente ao evangelismo; mais

explicitamente havia no relatório um chamado às Igrejas para que confessassem sua fé.

Esse breve diálogo no plenário da Assembléia girou

basicamente em torno da seguinte questão: será o evangelismo uma dimensão da vida total da Igreja ou uma atividade específica e intencional? É algo que está incorporado em todos os aspectos da vida da Igreja ou alguma coisa que fazemos conscientemente? Se a missão da Igreja está ligada à situação humana global, onde está a vocação evangélica específica da Igreja?

Como planejamos a pregação do Evangelho? Organizamos

atividades missionárias nacionais ou internacionais de tal maneira que são consideradas opera ad extra? Ou estão integradas na vocação evangélica, no significado evangélico de tudo o que as Igrejas estão fazendo diariamente? Se tudo o que as Igrejas fazem representa portas de entrada para o Reino, todos esses atos têm uma dimensão missionária e um potencial evangelístico. Mas se a Igreja se transformar numa comunidade egocêntrica, apenas voltada para si própria, se a preocupação da Igreja não for com o Reino mas consigo mesma, evidentemente a dimensão global do evangelismo se perderá. Os empreendimentos para o envio de missões a países estrangeiros, nos dois ou três últimos séculos, foram, em sua maioria, organizados fora das estruturas eclesiásticas oficiais, porque as Igrejas não respondiam a esse chamado. Do ponto de vista bíblico, porém, o chamado à missão se destina a toda a Igreja. Toda a comunidade cristã é chamada a assumir a responsabilidade pelo corpo de Cristo, a manifestar a pessoa de Cristo no mundo.

A verdadeira realização dessa vocação poderia dar-se através

de todas as nossas atividades ou através de uma organização intencional de atividades concretas. Em ambos os casos dever-se-ia fazer a seguinte pergunta: Essas atividades servem ao Reino? São portas de entrada para a dinâmica total do Reino de Deus?

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O símbolo teológico do Reino nos ajudará a superar todas as dicotomias, separações e divisões e a fazer justiça à ênfase especial representada em cada uma das posições que descrevemos. A Bíblia toda fala do propósito das palavras e atos de Deus como sendo a revelação do seu Reino e a restauração de seu domínio libertador.

Como o Reino compreende tudo, e como o Espírito nos abre

os olhos para a presença do Rei em situações e circunstâncias concretas, somos convidados a seguir, utilizando a liberdade que Deus nos dá. Temos o poder de assumir nossas vocações missionárias específicas. Todas elas devem contribuir para a economia total do Reino. Silêncio ou proclamação, ação ou contemplação, resistência ou resignação — esses e muitos outros termos, aparentemente contraditórios, poderiam ser empregados para focalizar a atenção nas múltiplas possibilidades abertas aos cristãos e às Igrejas no cumprimento de sua missão. O que necessitamos é de uma visão clara do que seja a missão; em seguida devemos discernir como nossa entrada para o Reino poderia relacionar-se com outras entradas e com a participação de outros na mesma dinâmica do Reino.

O Reino na Bíblia

O Reino no ensino de Jesus

O símbolo do Reino de Deus é fundamental nos Evangelhos

Sinóticos. João Batista e Jesus anunciam o Reino de Deus e declaram que ele está “à vista”. É verdade que o símbolo do Reino não recebe a mesma atenção na maior parte dos outros livros do Novo Testamento. Voltaremos, mais tarde, a tratar dessa surpreendente diferença entre os Evangelhos Sinóticos e os outros livros do Novo Testamento.

O fato de os Evangelhos Sinóticos, escritos mais ou menos

na mesma época ou logo após as epístolas, enfatizarem o ensino de Jesus sobre o Reino de Deus indica a importância desse símbolo para o próprio Jesus. A Igreja Primitiva concentrou seu magistério e proclamação na expectativa da parousia – a segunda vinda. Ela adorava o Cristo ressuscitado, recontando as histórias da cruz de Cristo e de sua ressurreição. Histórias de sua vida terrena e trechos de seus ensinamentos circulavam, ao mesmo tempo, numa tradição paralela ou complementar. Os Evangelhos foram produzidos através da organização de relatos independentes, que eram contados e recontados indefinidamente, para preservar a memória de Jesus.

Embora a Igreja Primitiva, quer de origem judaica, quer de

origem helenística, interpretasse os atos e palavras de Jesus à luz de sua própria existência, é evidente que o núcleo das afirmações básicas relativas ao Reino veio do próprio Jesus. Mortimer Arias chama esse ensinamento do Reino de “memórias subversiva de

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Jesus”23, que permaneceu viva e que, de tempos em tempos, retorna como atenção central da Igreja. Escolhemos o Reino como tema central, em torno do qual organizaremos nossa compreensão da missão, porque essa memória voltou com força em nossos dias. Seria difícil encontrar um tema bíblico mais inspirador, quando enfrentamos os desafios da situação contemporânea.

Jesus veio, anunciando o Reino de Deus a um povo que

vivia na antecipação de acontecimentos que abalariam a terra. Lucas e Mateus narram suas histórias sobre o Natal à luz dessas expectativas. Lucas descreve Simeão (Lc. 2.25-32) como “justo e piedoso”, procurando a consolação de Israel, esperando que o Reino viesse.” Quando ele viu o Menino Jesus, convenceu-se de que chegara o momento: “Meus olhos viram a tua salvação”. Mateus conta dos magos vindos do Oriente em busca de um rei recém-nascido, no palácio de Herodes. O massacre das crianças mostra como os rumores da vinda do Rei foram levados à sério pelas autoridades (Mt 2.1-18). A época era cheia de expectativas. Dentro desse mundo e para ele, chegou Jesus, que confirmou e corrigiu essas expectativas.

Para os três Evangelhos Sinóticos, o centro da pregação e

do ensino de Jesus era claramente o Reino de Deus (“dos céus” em Mateus, mas sem qualquer diferença de sentido). O Evangelho de João substitui o Reino pela “vida eterna”, um exemplo da tradução dinâmica de um conceito hebraico para leitores helenísticos. Quaisquer que sejam os termos utilizados, a convergência do ensino de Jesus no símbolo do Reino é clara e a linguagem do Reino figurou com destaque no seu julgamento e na sua sentença.

Tanto Mateus quanto Lucas organizam seu material

cuidadosamente; começam com a expectativa e a chegada do Rei e concluem com o Cristo ressuscitado, assumindo a autoridade de 23 “Announcing the Reign of God: Evangelization and the Subversive Memory of Jesus”, Filadélfia, Fortress Press, 1984

Reino e apontando para sua futura consumação. “Todo poder no céu e na Terra me foi concedido... até a consumação dos séculos”. (Mt 28.18-20) Em Lucas, os discípulos perguntam a Jesus: “Senhor, tu restaurarias, agora, o Reino de Israel?” A resposta de Jesus oferece correção à sua compreensão do Reino, que o limita a Israel. É uma promessa ao invés de uma descrição: “Recebereis o poder quando o Espírito Santo descer sobre vós; e sereis minhas testemunhas em Jerusalém e em toda a Judéia e Samaria e até os confins da Terra” (At 1.6-8).

No Pai Nosso, Jesus ensina seus discípulos a orar pelo

Reino (Mt 6.10), pondo essa expectativa no centro da prática religiosa de seus discípulos. A oração pelo Reino é completada por um paralelismo hebraico: “Seja feita a tua vontade assim na terra como no céu”. O Reino pelo qual os discípulos são ensinados a orar é o domínio de Deus sobre todos os acontecimentos históricos.

Nos ensinamentos de Jesus, o Reino de Deus compreende

todos os anseios e os gritos de angústias do povo de Israel. Responde à mensagem fundamental do Antigo Testamento e revela o propósito, o caráter e o poder do futuro domínio de Deus. Convida o povo a responder com obediência radical. A proclamação do Reino é sempre acompanhada por um chamado à decisão, para seguir Jesus, para participar da missão de Deus. Para Jesus, a vinda do Reino é o domínio transformador de um Deus compassivo.

Jesus começou com as esperanças dominantes entre o seu

povo. Quando pregou o Reino de Deus, baseou-se na idéia de Reino na mente de seus ouvintes. Ele elabora a idéia, confirma-a, mas também a corrige. Consultemos primeiro o Antigo Testamento, para descobrir as afirmações fundamentais relativas ao Reino de Deus, que foram assumidas no magistério de Jesus, e depois procuremos saber como eles nos leva a uma nova compreensão do Reino.

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O Reino no Antigo Testamento No Antigo Testamento, a esperança do Reino tem duas

fontes históricas principais. Uma é a experiência da libertação, e aqui o êxodo é o ponto central. A outra é a experiência da importância e do desespero, da qual vem o grito de agonia: Se Deus não nos salvar, quem poderá fazê-lo?

A libertação é a seguida da celebração e da liturgia e do

estabelecimento da aliança. Deus estabelece um pacto com o povo libertado. Isso envolve uma vocação, um chamado e fornece as regras básicas para a futura relação entre Deus e o povo de Deus.

A libertação e a aliança se ligam à tradição profética. O

profeta denuncia a realidade presente, tanto em termos de experiência de libertação, no passado, como em termos da vinda do dia do Senhor. Esse dia seria um dia de julgamento; mas existe sempre a promessa de reconstrução e restabelecimento do povo. Os profetas lembraram a Israel a sua vocação missionária. Ser fiel a Javé é assegurar a justiça, cuidar dos fracos, ser o povo da Promessa e do Reino. Israel é sócio de Deus no pacto; através desse chamado, Israel será uma luz para as nações, mostrando o propósito final de Deus de redenção para todos.

A outra fonte de esperança do Reino é a consciência do

silêncio de Deus, a experiência da total impotência do povo. Durante o período da ocupação grega e romana da Palestina, tudo conspirava contra as esperanças do povo. Eles podiam apenas esperar pelo julgamento de Deus sobre a história. A literatura apocalíptica vê o domínio de Deus como praticamente ausente na história da época, mas a se manifestar plenamente no futuro. Isto significa uma negação da ação histórica; vivendo na perversa situação presente, o povo espera o triunfo final de Deus.

Em ambas as perspectivas, há um futuro final que pertence

a Deus. A diferença está na resposta à presente situação: se

trabalhamos para nos aproximar do domínio de Deus nas condições históricas atuais ou se aceitamos o presente, dependendo inteiramente da promessa do juízo final.

Essas duas linhas encontram-se no Messias, concebido

pelos profetas da Babilônia como o Servo Sofredor. Em sua liberdade missionária, Jesus converteu o caminho do sofrimento e da derrota em instrumento de Deus, para transformar toda a história humana e atingir a vitória final. Ele se coloca na linha dos profetas, anunciando a libertação ao povo, o ano de liberdade concedido por Deus. Sua consciência do poder do demônio e da morte iminente dele, Jesus, poderia ser interpretada como a aceitação, por parte do Servo Sofredor, até do silêncio de Deus, que está no próprio centro da perspectiva apocalíptica. Ele vai para a morte a fim de libertar novas forças históricas, para realizar sua missão universal.

O Reino presente e futuro O reinado de Deus, o Reino de Deus no Antigo Testamento,

se cumpre na história humana. Deus é um Deus vivo cuja vontade é para ser reconhecida e cumprida na vida da nação.24 A fé de Israel é uma fé histórica.

Um excelente exemplo dessa compreensão histórica do

Reino de Deus vem da época dos juízes. A fé de Israel em Javé como Rei tinha conseqüências políticas.25 As tribos que vieram do Egito para Canaã não conquistaram a terra prometida de um golpe só. Primeiro ocuparam as montanhas; não eram suficientemente fortes para se apoderarem dos vales. Logo reuniram-se a eles pessoas que haviam fugido das aldeias, cuja unidade era

24 O termo “reinado” indica a manifestação ativa e dinâmica da autoridade real de Deus; “Reino” afirma a mesma coisa, mas introduz a dimensão social e comunitária, a realidade total e transformada da nação e até da natureza. 25 George Pixley, “God Kingdom”, Londres, SCM Press, 1981.

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proporcionada pela fé no domínio de Javé, expressa através da aliança. Os hebreus rejeitavam toda autoridade central; sua única autoridade era Javé e a única lei que reconheciam era a lei que se havia constituído nos anos difíceis do êxodo. Em linguagem política, era esse o papel revolucionário de Israel: realizar o Reino de Javé na terra de Canaã. Em momentos de perigo, as aldeias procuravam uma certa unidade militar e buscavam um “juiz” que as conduzisse na batalha. Foi sob grande pressão que foram a Gideão pedir-lhe que se tornasse o rei de Israel, mas ele não aceitou e lhes disse: “Javé vos governa” (Jz 8.22-23). Mais tarde, quando os anciãos do povo pediram ao profeta Samuel que ungisse um rei para eles, ele os advertiu das tristes conseqüências que adviriam (1Sm 8.4,5,10,17). Um exemplo semelhante dessa fé histórica em Javé como Rei é dado por Josué (24.14,18). Josué chama o povo a tomar uma decisão: se eles querem servir a Javé, não podem servir a outros senhores. Josué e a sua casa sabem o que farão. A lealdade exclusiva a Javé envolve uma clara rejeição de todos os reis de fora ou de dentro. A atitude dos primeiros cristãos com relação ao culto do imperador e sua afirmação de que só Jesus é o Senhor têm paralelos no Antigo Testamento.

Trata-se de algo mais que a rejeição da autoridade; trata-se

também do reconhecimento de que a proteção e a justiça de que Israel gozava deviam ser estendidas aos estrangeiros e aos fracos (Ex 22.20-23). A proclamação do ano do jubileu (Lv 25) foi o estabelecimento da cláusula legal para assegurar que a justiça prevalecesse – especialmente na propriedade da terra por todas as famílias. Essas leis e a espécie de injunções incluídas no Livro de Josué (24) são importantes para a compreensão do ministério de Jesus e a mensagem de justificação, o recomeço e a fé pessoal de Paulo. Isto não constitui uma “espiritualização” do Antigo Testamento; tentam traduzir essas perspectivas básicas em novas situações históricas.

Não há uma coincidência total entre os fatos da história e o

domínio de Deus, mas Deus participa ativamente na formação da

história humana, chamando, censurando, corrigindo, inspirando. Os profetas não oferecem uma interpretação da história como um exercício intelectual, mas lembram ao povo a obediência que Deus espera e exige. Anunciam o futuro julgamento de Deus. Exigem que o arrependimento seja expresso através de atos históricos de reparação. É na história que se experimentam as antecipações do Reino e se ouve o chamado a viver nos novos dias de Javé.

O Reino de Deus é um convite a ver, para além das

realidades presentes, o poder da era vindoura, e a encontrar nela a inspiração para enfrentar as ambigüidades históricas atuais. Deus chama o povo a avançar, a procurar a nova terra, a nova justiça. A visão do Reino, mesmo que baseada numa experiência histórica do passado – a opressão no Egito e a libertação – é sempre relatada no futuro. Até mesmo as experiências históricas de fracasso não pesaram contra a esperança messiânica.

A tradição profética é, às vezes, utópica ao descrever a

nova realidade que Deus promete, mas, exatamente por essa razão, a nova realidade se transforma na tarefa histórica do povo. Os profetas falam de um futuro que está chegando como julgamento e promessa, mas à luz desse futuro, há também o chamado ao arrependimento, uma nova fidelidade e uma nova justiça.

A história é o cenário do conflito com o mal, o pecado, a

opressão e a injustiça. É também onde se experimenta a antecipação do Reino e se ouve o chamado para viver um novo dia, o dia de Javé. O propósito final de Deus é o estabelecimento da paz de Deus, o “shalom”. Isso envolve a total implementação da justiça de Deus, o estabelecimento de relações corretas uns com os outros, com Deus e com a natureza. O ano do jubileu oferecia uma correção periódica das injustiças existentes. O Reino de Deus busca a consumação da história, dentro e através de um processo histórico dinâmico, no qual Deus é o protagonista final e decisório.

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A intervenção de Deus é absolutamente necessária para pôr fim às ambigüidades da história e à contradição da desobediência humana e para incorporar a natureza à nova realidade. Mas a visão do profeta é sempre histórica e concreta, chamando o povo a sair da Babilônia e voltar para a Palestina. O shalom de Deus será a culminância e a purificação de todo êxodo humano.

O Reino como governo e reinado O símbolo do Reino de Deus tem uma dupla referência na

Bíblia toda. É o governo de Javé e nos recorda a nossa relação com Deus como Rei. A realeza, no Antigo Testamento, indica a autoridade de Javé e esta não é limitada pela geografia. Aponta para a dignidade do rei mais do que para qualquer província, em particular, sobre a qual o rei tenha domínio. Mas, por extensão daquele primeiro sentido, é também o Reino de Deus como um conceito comunitário. O povo, como um todo, é chamado a proclamar sua lealdade ao Senhor e, conseqüentemente, a organizar sua vida coletiva dentro da moldura da lei concebida por Javé, a aliança, o decálogo, o jubileu. O primeiro – a afirmação da soberania de Deus – é fundamental. Ser escolhido por Deus e aceitar Deus como Senhor é aceitar o domínio exclusivo de Deus sobre nós.

Os profetas censuram o povo de Israel porque eles

romperam a relação da aliança com seu Deus. Oséias descreve isso corretamente como uma violação da fidelidade humana. Talvez este sentido da soberania absoluta de Javé seja o aspecto que distingue a religião hebraica. O poder de Deus não era limitado a uma determinada região ou a um aspecto específico da vida da comunidade. O Deus da história era o Deus de Abraão, Isaque e Jacó, o Deus que os libertou da opressão, marchou com eles durante os anos difíceis no deserto e ajudou-os em cada fase da conquista de Canaã. Com essa compreensão, o conceito de Javé como Rei assumia uma qualidade dinâmica. Embora o poeta

anônimo do Salmo 137 não pudesse cantar “um dos cânticos de Sião” numa terra estrangeira, Jeremias conseguiu escrever aos exilados: “Procurar-me-eis e me encontrareis, quando me procurardes de todo o vosso coração” (Jr 29,13). E o Segundo Isaías proclamou: “No deserto, preparai o caminho do Senhor, fazei no deserto uma estrada reta para o nosso Deus... e a glória do Senhor será revelada...” (Is 40.3-5). Para destacar o dinamismo do símbolo do Reino, muitos traduzem assim: “Deus reina”, “Deus governa” ou “Deus salvará o seu povo”.

O chamado e a promessa de Deus são para Abraão e seu

povo (Gn 12,1-3). Israel é considerado a luz das nações. A paz e a justiça se beijariam no shalom histórico de Deus (Sl 85). Essa dialética da relação com Javé, o Rei e a antecipação de um destino histórico – trabalhando e esperando a nova cidade que viria de Deus – é uma constante “cantus firmus” do Reino em toda a Bíblia. Pessoal e comunitária, histórica e escatológica ao mesmo tempo, é uma visão do Deus criador, que deseja recriar as pessoas, até mesmo partir de ossos secos (Ez 37.1-14). Essa dialética determina toda a esperança escatológica do Antigo Testamento. A lealdade a Deus desafia o status quo. A construção da nação é o teste de todas as práticas religiosas em Israel. A justiça tornada visível nas relações humanas será a evidência de sua fidelidade a Javé. Essa dupla abordagem do Reino no Antigo Testamento é muito útil para compreender-se a transição da proclamação do Reino nos Evangelhos à proclamação de Jesus nas Epístolas.

Israel e as nações Israel tem uma missão universal. Israel tem também esse

sentido concreto da relação particular com Deus. Olhando para o passado histórico, e procurando divisar, no futuro, a culminância do domínio de Deus sobre toda a criação, Israel conseguiu discernir em Adão e Eva (Gn 1.26-31), em Noé (Gn 9.13-17) e mais tarde em Abraão (Gn 12.2-3), a preocupação de Deus com todo o povo,

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toda a humanidade. Deus é o criador, o provedor, o juiz e o redentor de todos.

A noção de “eleição” desempenha um papel capital no

Antigo Testamento. Javé é um Deus pessoal, chamando um determinado povo para seguir um rumo específico de ação. A eleição não acontece devido ao mérito, mas em virtude da misericórdia de Deus, que ouve o “grito de seu povo” (Ex 3.7-10). Israel foi convidado e instado a organizar sua vida em resposta a essa graça. Foi – e ainda é – muito fácil confundir eleição com um sentido de propriedade. O chamado de Israel foi para se organizar uma nação onde a justiça prevalecesse, onde os pobres, os órfãos, as viúvas, os estrangeiros fossem especialmente protegidos (Is 1.1-20). Os profetas lembravam constantemente ao povo a sua vocação, em resposta à eleição de Deus. Referiam-se às transações de Deus com outras nações e povos (Am 1.2) e ao fato de Deus usá-los para corrigir Israel (Hc 1). Embora o nacionalismo israelita fosse freqüentemente reforçado e as manipulações políticas justificadas pela noção de eleição, a visão dos profetas era a de um mundo de nações vivendo todas sob o domínio amoroso de Deus.

Embora a Bíblia, como um todo se concentre na história das

relações de Deus com Israel e na formação da Igreja, ela indica claramente o profundo interesse de Deus pelas nações. Deus é Senhor de todas as nações (Am 9.7). Todas as nações pertencem a Deus (Sl 82.8). Israel tem a vocação de ser uma benção para todas as nações (Is 42.6; Jr 4.2; Is 2.3; Mq 4.2). O Segundo Isaías (caps. 45 e 46) fazem uma clara ligação entre o fato de Deus ser o único Deus e todas as nações serem chamadas e se ajoelharem perante ele. A promessa é que a “casa de Deus será uma casa de oração para todos os povos” (Is 56.7). Deus governa Israel em todos os tempos. Deus abençoa, julga, age através da promessa e da realização, nos acontecimentos concretos. Mas o sentido destes entende-se para além de Israel; devem também tornar-se paradigmáticos, sacramentais e representativos. A preocupação de

Deus com Israel é a preocupação com um povo escolhido para um propósito específico; mas essa preocupação mesma – expressa em Israel, através de Israel e até fora de Israel – corporifica a preocupação de Deus com todos os outros povos.

O que pertence a Israel é a vocação de ser uma luz para os

gentios e as nações (Is 49.6). O particularismo de Deus tem suas raízes no amor universal de Deus. A história do Antigo Testamento continua a ser, para todas as nações, um ponto central de referência para a sua própria história nacional. Embora Israel precise ser lembrado de que o fato de serem filhos de Abraão não lhes dá uma lugar no Reino, todas as outras nações são convidadas a olhar para a história de Israel a fim de descobrir indícios que permitam compreender suas próprias histórias.

Resumindo, a visão predominante do Antigo Testamento é o

domínio de Deus sobre a vida de Israel e sobre toda a criação. Javé trouxe a libertação ao povo nas terríveis circunstâncias de outrora; Javé trará libertação, mesmo em situações que hoje parecem desesperadoras. Ele comanda a história. Acreditar em Deus é responder com obediência, construindo a comunidade com justiça. De fato, Jeremias chega a afirmar que “fazer justiça é conhecer a Deus” (Jr 22.15-16).

Essa resposta é construída na história. E toda a criação será

incluída na transformação total que é poeticamente antecipada. O Reino exige uma lealdade pessoal a Javé e à comunidade que Javé deseja. Embora o Antigo Testamento se concentre em Israel, ele reconhece o lugar e a vocação de todas as nações, sob o domínio soberano de Deus. A experiência histórica e a compreensão teológica de Israel destinavam-se, desse modo, a fornecer uma perspectiva para todos. A memória da libertação e a realidade da opressão existente levaram à ansiosa expectativa pela vinda do Dia do Senhor, a chegada do Messias, o Ungido, enviado por Deus para inaugurar a nova era. Na literatura

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apocalíptica, a imagem do Filho do Homem representava a ação final de Deus, a intervenção de Deus no drama humano.

A esse mundo, cheio de esperança e medo, chegou Jesus

anunciando: “O tempo está cumprido e o Reino de Deus está próximo. Arrependei-vos e crede no Evangelho” (Mc 1.14-15).

O Reino no Novo Testamento

O Reino está aqui Jesus uniu-se a João Batista e aos profetas antigos,

anunciando a chegada do Reino de Deus e chamando todos ao arrependimento.O elemento novo é a declaração de que o tempo está cumprido (Mc 1.15) e que em sua própria pessoa o Reino está presente e atuante. Quando Jesus leu as Escrituras na sinagoga, em Nazaré, surpreendeu as pessoas com a ousada afirmação de que “Hoje se cumpriu esta Escritura em vossos ouvidos” (Lc 4.21). As promessas messiânicas de Isaías (61 e 58), introduzidas por Lucas no texto, manifestaram-se nos atos de Jesus. Sua compaixão pelos desamparados representa a preocupação de Javé com os pobres de Israel. Os atos de cura e exorcismo eram poderosas manifestações do Reino de Deus. Os demônios fogem, significando o alvorecer do Reino (Mt 12.28). Jesus perdoa os pecados e promete um novo começo, como no ano do jubileu.

Quando Jesus envia seus discípulos numa jornada

missionária, concede-lhes poderes relacionados com o Reino: eles devem proclamar a Boa Nova aos pobres, curar os enfermos, expulsar os demônios. Quando os discípulos voltam e se apresentam a ele, Jesus interpreta o que eles experimentaram como uma derrota total das forças do mal. “Vi Satã cair do céu como um raio” (Lc 10.18). Diz Jesus aos fariseus: “O Reino de

Deus não vem com aparência exterior; nem dirão: Ei-lo aqui, ou ei-lo ali; porque eis que o Reino de Deus está entre vós” (Lc 17.20-21).

Mas essas referências diretas ao surgimento do Reino de

Deus, em sua pessoa e através de seus atos, não são muito numerosas. Os Evangelhos Sinóticos reconhecem um certo mistério na pessoa de Jesus e na manifestação do Reino de Deus. Parecem convidar as pessoas a tomarem uma decisão e chegarem às suas próprias conclusões. Quando João Batista enviou seus discípulos para perguntar a Jesus: “És tu aquele que havia de vir ou esperarmos outro?” Jesus respondeu: “Ide e anunciai a João as coisas que ouvis e vedes: os cegos vêem e os coxos andam; os leprosos são limpos e os surdos ouvem; os mortos são ressuscitados e aos pobres é anunciada a Boa Nova” (Mt 11.2-5). João deveria formar o seu próprio juízo.

Muitas pessoas tiraram suas próprias conclusões; alguns

resolveram segui-lo, “pois os ensina como quem tem autoridade e não como os escribas” (Mt 7.28-8:1). Outros se escandalizam e atribuíram seu poder ”a Belzebu” (Mt 10.25) ou chegaram até a conspirar para matá-lo (Mt 21.46;26.3). Há indícios, nos Evangelhos, da fé das pessoas comuns; elas confiavam na autoridade de Jesus, algumas até deixavam tudo para segui-lo. Muitas dessas pessoas eram estrangeiras. A exclamação do centurião romano, junto à cruz, pode ser considerada como um bom resumo da resposta da fé esperada nos Evangelhos: “Verdadeiramente este era o Filho de Deus” (Mt 27.54). As parábolas são um recurso pedagógico para ajudar o povo a compreender os mistérios do Reino. Ao mesmo tempo são um convite para descobrir pela fé, no humilde começo da vida de Jesus, o potencial oculto do Reino ainda a ser manifestado.

Podemos sentir, nas páginas do Novo Testamento, o

entusiasmo reinante nas primeiras comunidades cristãs. Após a ressurreição, sua fé se confirmou: a autoridade vista e sentida no

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Rabi de Nazaré não podia ser anulada pelo poder da cruz. Essas comunidades não tinham ainda as categorias conceituais para explicar todos esses acontecimentos, mas uma coisa ficou clara: nesse Jesus havia acontecido uma ação radical de Deus, surgira uma nova era, e o seu destino pessoal, bem como o destino de toda a humanidade, estava agora ligado para sempre a esses acontecimentos.

O Reino chegou. O Rei visitou o povo e “virá de novo”. É

espantoso que a expectativa da parousia, da volta de Jesus em glória, propicie a perspectiva para a interpretação da vida real da comunidade cristã e para a releitura, na vida de Jesus, da manifestação de sua realeza. Porque o Novo Testamento, como um todo, a vida, a morte e ressurreição de Jesus são uma claríssima evidência do domínio real de Deus em ação. Travou-se uma batalha decisiva, que mudou a situação humana; uma nova era teve início, Cristo voltará; mas o Reino já se manifestou na história e, daquele momento em diante, toda a situação humana já se transformou. Nesse ínterim, Jesus foi exaltado e todas as línguas devem confessar que “Jesus Cristo é o Senhor, para a glória de Deus Pai” (Fp. 2.5-11).

Acrescentou-se uma nova dimensão radical à perspectiva

do Reino no Antigo Testamento. Uma pessoa, em particular, num período histórico concreto, tornar-se a encarnação do propósito final de Deus para toda a criação. Através da vinda do Espírito Santo, a comunidade cristã recebe o poder de se recordar dessa pessoa, de experimentar sua presença aqui e agora, e de esperar sua vinda em juízo e glória. A fim de proclamar essa fé, os membros da comunidade cristã estão prontos a enfrentar as autoridades judaicas e a desafiar as pretensões imperiais de César. O domínio de Cristo é o ponto central da visão do Novo Testamento sobre o Reino de Deus. Nele, “de uma vez por todas” (Hb 9.26) foi lançada a pedra fundamental do Reino.

A batalha pelo Reino Toda a vida e ministério de Jesus foram uma permanente

confrontação com os poderosos da época. Mateus conta a história dos soldados romanos, procurando a criança que nascera para ser rei, e assassinando todas as crianças com menos de dois anos, naquela região (Mt 2.16-18). Na história de Lucas, Simeão descreve a natureza conflitante da vocação de Jesus: “Eis que esta criança é posta para a queda e elevação de muitos em Israel e para sinal que é contraditado (e uma espada transpassará também a tua própria alma), para que se manifestem os pensamentos de muitos corações” (Lc 2.24-35)

Jesus se coloca na tradição profética, e sua vocação inclui

sofrimento e perseguição. Ele também incorpora em si a tradição apocalíptica, que descreve calamidades do fim dos tempos; ele sofre essas calamidades, submetendo-se ao julgamento e à cruz. Mesmo que consideremos as antecipações da morte de Jesus Cristo nos Evangelhos como resultantes de reflexões posteriores à ressurreição, feitas pela Igreja Primitiva, fica bem claro que Jesus não tentou evitar o confronto. Pelo contrário, ele não hesitou em expor a hipocrisia dos poderosos, denunciar a exploração dos pobres e fortalecê-los com a promessa do Reino.

Um grande debate divide as interpretações do Evangelho

com relação ao caráter político do ministério de Jesus. Mesmo que não vejamos Jesus como um revolucionário político, como muitos fazem, é muito claro que sua vocação profética e messiânica o levou à confrontação com as forças históricas da opressão, poderes e governantes de sua época.

Como diz Leonardo Boff, a política, como campo limitado,

parcial e específico da atividade humana, não consegue descrever a riqueza total da vida de Jesus:

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Ele é sim o Messias-Cristo mas não de tipo político. Seu Reino não pode ser privatizado e reduzido a uma parte da realidade, como seja a política. Ele veio para sanar toda a realidade em todas as suas dimensões, cósmica, humana e social. O grande drama da vida de Cristo foi tentar tirar o conteúdo ideológico contido na palavra “Reino de Deus” e fazer o povo e os discípulos compreenderem que ele significa algo de muito mais profundo: que exige conversão da pessoa e transformação radical do mundo da pessoa, no sentido do amor a amigos e inimigos e da superação de todos os elementos inimigos do homem e de Deus. 26 O Reino de Deus, o poder de Deus, agia em Jesus para o

bem de seus compatriotas. Jesus preocupava-se seriamente com as dificuldades históricas de sua pátria e, ao mesmo tempo, em sua vida, Deus cumpria os propósitos divinos para toda a humanidade. Não existem duas histórias diferentes: uma secular e outra religiosa. O ministério de Jesus era muito realista. Esse ministério visava ao benefício de Israel; era ao mesmo tempo para o benefício de toda a humanidade e para revelar a todas as nações a vontade salvadora de Deus.

Em Jesus, temos o Reino em ação. Ele toma como sua

vocação principal a proclamação do ano do jubileu e sua implementação na pessoa do Servo Sofredor. Toda a sua vida, até a morte na cruz, é uma manifestação completa do reino do amor de Deus. Em Jesus, como no Antigo Testamento, Deus é o defensor dos esquecidos e marginalizados da sociedade. Ao receber pecadores e proscritos, cuidando dos samaritanos e gentios, ele entra em conflito com as forças dominantes da sociedade. Era de esperar que suas críticas à observância do sábado e sua atitude do povo judeu, despertassem a ira doa líderes religiosos.

26 “Jesus Cristo Libertador”, Editora Vozes Ltda., 1972, 8ª edição p. 74

O congresso Ecumênico Mundial de Teologia, realizado no Brasil, em fevereiro de 1980 diz, em seu documento final:

O Reino que Jesus indica com sua prática

messiânica é a eficiente vontade do Pai, que deseja a vida para todos os seus filhos (Lc 4 e 7.18-23). O sentido da existência de Jesus é dar sua vida para que todos possamos ter vida, e com abundância. Ele fez isso por solidariedade com os pobres, tornando-se pobre ele mesmo (2Co. 8.9; Fp2.7) e nessa pobreza anunciou o Reino da libertação e da vida. A elite religiosa e os líderes políticos que controlavam o povo de Jesus rejeitaram esse Evangelho: eles “tiraram de seu meio” a Testemunha do amor do Pai e “mataram o Autor da Vida”. Assim o “pecado do mundo” alcançou o seu limite (At 2.23; 3.14-15; Rm 1.18-3.2; Jô 1.5, 10-11; 3.17-19). Mas o amor de Deus é maior que o pecado humano. O Pai

leva seu trabalho adiante, pelo povo judeu e por todo o povo do mundo, através da ressurreição de Jesus dos mortos. No Cristo ressuscitado, temos o triunfo definitivo sobre a morte e os primeiros frutos do “novo céu e da nova Terra”, a cidade de Deus no seio da humanidade (Ap 21.1-4).27

O mundo inteiro, até mesmo toda a criação, é o campo de

batalha do Reino. A política não tem uma posição privilegiada, mas também não é excluída. A afirmação do amor e da justiça do Reino levou Jesus e levará os cristãos a situações de conflito. Como Jesus enfrentou essas situações?

O Senhor Sofredor Os evangelistas abrem um espaço que parece

desproporcionado para a história da crucificação. Paulo diz, 27 “The Challenge of Basic Communities”, Sergio Torres e John Eagleson eds., p. 236.

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resumindo sua própria missão: “Nada me propus saber entre vós, senão a Jesus Cristo, e este crucificado.” Ali, na cruz, o presente e o futuro se encontram. A cruz marca o clímax de um conflito histórico. Mas a cruz é também o ponto focal do drama divino-humano. O Novo Testamento afirma que, através de sua morte, Jesus enfrentou todas as forças do mal, da opressão e da morte, e, sustentado por Deus na ressurreição, é agora proclamado vitorioso sobre todos os poderes e governantes.

A cruz foi a conseqüência da luta social e política em que

Jesus estava empenhado. Seu amor pelos proscritos, sua preferência pelos pobres, sua proclamação do Reino de Deus, manifestado nele, não passariam sem contestação. Ele poderia talvez ter evitado a cruz, fazendo concessões às autoridades, mas não quis. A não-resistência que ele pregava foi vivida até o fim. Tudo isso é muito histórico e muito político; mas ao mesmo tempo, através dos mesmos acontecimentos, o drama da vontade salvadora e libertadora de Deus, para todos, estava sendo revelado.

Quer usemos uma linguagem histórica e política ou

apocalíptica, estamos descrevendo a mesma realidade. A manhã da ressurreição confirma que tanto as forças negativas ocultas, como suas manifestações históricas em Israel, foram derrotadas. O pior mal não conseguiu arrancar do crucificado uma só palavra de ódio. O mal foi destronado pelo sofrimento do inocente. É claro que ainda há trágicas manifestações do mal na história da humanidade, mas o mal foi derrotado. Os seguidores de Jesus sabem que não pode haver situação completamente desesperadora, porque a esperança triunfou na cruz.

Isso se aplica também à espécie de mal que conhecemos

como opressão, com sua conseqüência de pobreza e sofrimento. O apóstolo Paulo disse que Jesus se tornou pobre para que, através de sua pobreza, todos nós pudéssemos ser ricos (2Co 8.9). Nenhuma situação de pobreza é agora definitiva. Não

corresponde à vontade de Deus e é condenada. Precisa ser contestada. E o início final, a morte, também é derrotado. Essa é a afirmação revolucionária da fé cristã. Em Jesus Cristo, o poder do Reino estava em ação, transformando toda a história humana. O domínio de Deus foi agora confirmado – sobre a morte, a miséria e o mal. O povo de Deus é chamado a proclamar esses acontecimentos e a dar esperança a toda a humanidade.

É nesse contexto que devemos entender as diferenças entre

a pregação do Reino de Deus nos Evangelhos e o anúncio de Jesus como Senhor e Salvador, no Livro dos Atos e nas Epístolas.

As diferenças são devidas a um duplo processo. Por um

lado, havia a tendência a interpretar o sentido da vida de Jesus à luz da ressurreição e da vinda do Espírito Santo, e por outro, havia a tendência a traduzir os símbolos da cultura palestina e do meio religioso em categorias pertencentes à cultura grega e às religiões mediterrâneas. Para Lucas (At 8.12; 28.23), o tema do Reino está ligado ao reconhecimento de Jesus como o Cristo. Paulo menciona a palavra “reino” apenas doze vezes, mas o seu uso do termo está em perfeita harmonia com as afirmações dos Evangelhos Sinóticos. Ele vê o Reino em ações concretas; reconhece Jesus como o fundamento do Reino; tem consciência do conflito inerente ao Reino; está convencido da futura confirmação do Reino (Rm 14.17; Co 4.20; Cl 1.13; 1Co 15.25,50 etc). A realidade do Reino de Deus, como se evidencia na exaltação de Jesus Cristo, permeia as cartas de Paulo, mesmo quando a palavra “reinado” ou “reino” não é empregada. Jesus aparece em franca oposição a todas as forças demoníacas. Paulo vê essa luta cósmica contra os governos e poderes alcançando o seu clímax na cruz e na ressurreição (1Co 2.8; Ef 1.21; Cl 2.15). Aqui temos não só a interpretação da cruz, feita após a ressurreição, como também o emprego de termos helenísticos para torná-la mais inteligível. Como diz um escritor:

É um ponto central no relato bíblico que

precisamente aquele a quem os governantes e poderosos

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crucificaram (1Co 2.8) seja agora seu Mestre e Senhor. O Jesus ressuscitado é o Senhor do mundo e também da Igreja. Cada parte que compõe a literatura do Novo Testamento proclama corajosamente essa mensagem. “Todo o poder no céu e na Terra me foi concedido”. Disse Jesus ressuscitado a seus discípulos (Mt 28.18). Na Epístola aos Colossenses (2.10), Paulo declara que Cristo é o chefe dos governantes e poderosos. O Cristo ressuscitado está “muito acima de toda regra, autoridade, poder e domínio, e acima de todo nome chamado, não só nesta era (isto é, certamente nesta era), mas também na que há de vir” (Ef 1.21). Pedro também nos lembra que os anjos, as autoridades e os poderosos estão agora sujeitos a Cristo (1Pe 3.22). Da mesma forma o autor da Carta aos Hebreus declara que tudo é posto em sujeição a Cristo (2.8,9). Em lugar nenhum isso é afirmado com mais veemência do que no Livro do Apocalipse, onde se diz repetidas vezes que Jesus ressuscitado é agora o “governante dos reis da Terra” (1.5). Mesmo agora ele é o Rei dos reis e o Senhor dos senhores (19.16; 17.14). 28 Mas é também quando a fé proclama Jesus como Senhor

(Fp 2.5-11; 1Co 12.3) que precisamos recordar a relação entre o Reino e o sofrimento como caminho escolhido por Deus. Até que ponto o Canto do Servo, especialmente o de Isaías (53), influenciou Jesus, é uma coisa que ainda é objeto de debates por parte dos eruditos. Mas não se pode negar que através dos séculos a Igreja viu essa ligação e que o próprio texto do Evangelho a confirma. É em Isaías (53) que encontramos a maior percepção, no Antigo Testamento, da libertação através do sofrimento vicário.

Para nós essa ligação é muito importante, porque a

libertação proclamada (Is 53) é uma salvação integral, que envolve

28 Ronald Sider, “Christ and Violence”, Scottdale, Herald Press, 1979, pp. 56-57.

justificação, cura, libertação da opressão, prosperidade, paz, koinonia” – e vida eterna!

A obediência de Jesus até à morte, sua participação na

pobreza e na opressão da humanidade revela a magnitude do seu amor, o objetivo universal de sua missão e o poder do sofrimento redentor na história.

O Reino que há de vir Referimo-nos anteriormente ao novo tema introduzido por

Jesus – o tempo se cumpriu, o Reino está próximo. Também consideramos o caráter histórico dinâmico da luta pelo Reino. Agora entendemos, além disso, que os cristãos primitivos estavam cheios de expectativas quanto ao Reino que viria, a volta de Cristo, o juízo final e a transformação de toda a realidade. A atmosfera espiritual e teológica predominante nas primeiras comunidades cristãs era de oração e espera pela volta de Jesus. Os Evangelhos Sinóticos dão provas de que essa expectativa era partilhada pelo próprio Jesus. Ao mesmo tempo, ele agia no poder do Reino – sendo ele próprio o Reino – e chamava as pessoas a se prepararem para a novidade total da sua chegada. Ele emprestava a imagem apocalíptica do Filho do Homem, pobre e desamparado, vindo com o poder divino para julgar a todos e inaugurar o Reino. A maioria das parábolas do Reino indica essa vinda futura. O mistério do Reino é sua modéstia, pequeno como o grão de mostarda (Mt 13.31), mas cheio de potencial explosivo.

A oração de Jesus mantém a dialética entre o Reino pelo

qual oramos e a vontade de Deus que deve ser implementada na Terra. O Reino de Deus está no futuro; ele virá; somos chamados a entrar nele. Mas o Reino também está em ação. Essa dialética é explicada da seguinte forma por Günter Bornkamm:

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Não devemos separa as declarações sobre o futuro e o presente, como já se vê, pelo fato de que na pregação de Jesus elas estão relacionadas da maneira mais estreita. O atual alvorecer do Reino de Deus é sempre mencionado, de forma a mostrar que o presente revela o futuro, como salvação e julgamento, e portanto não o antecipa. Além disso, o futuro é sempre mencionado como descobrindo e iluminando o presente e portanto revelando hoje como o dia da decisão. Não se trata, portanto, apenas de uma diferença superficial ou uma gradação diferente, relacionada, por assim dizer, apenas com a quantidade de cor empregada pelo pintor apocalíptico, quando se observa que as palavras escatológicas de Jesus não descrevem o futuro como um estado de bem-aventurança celestial nem se estendem em longas descrições dos terrores do juízo final. Portanto, na pregação de Jesus, falar do presente significa falar do futuro e vice-versa.

O futuro de Deus é salvação para o homem que

aprende o presente como presente de Deus e como a hora da salvação. O futuro de Deus é juízo para o homem que não aceita o “agora” de Deus, mas se agarra ao seu próprio presente, seu próprio passado e também aos seus próprios sonhos de futuro. Poderíamos dizer, como Schiller: “O que negamos ao presente, a eternidade jamais devolverá”. Apenas aqui isso se aplica num sentido novo e consumado. Nessa aceitação do presente como o presente de Deus... o perdão e a conversão tornam-se uma só coisa nas obras de Jesus.

O futuro de Deus é o chamado de Deus ao

presente, e o presente é o tempo de decisão à luz do futuro de Deus. Essa é a direção da mensagem de Jesus. Vezes sem conta, portanto, ouvimos a exortação: “Olhai, vigiai” (Mc 13.9) contrasta vivamente com todo o curioso questionamento. Portanto, essas mesmas palavras de

Jesus, que se referem ao futuro, não se destinam a ser entendidas como uma instrução apocalíptica, mas sim como uma promessa escatológica. 29 Muitas das palavras de Jesus relativas ao Reino futuro

chegam-nos em linguagem apocalíptica. Entretanto, em comparação com os escritores apocalípticos de sua época, Jesus exerceu um grande autocontrole. Recusou-se a fornecer datas e a especular. E a intenção dos seus ensinamentos através das parábolas é clara.

- O Reino é uma dádiva de Deus. As exigências éticas feitas

e as bênçãos oferecidas por Jesus derivam da certeza de que Deus resolveu trazer o Reino. A vinda de Deus não depende das estratégias humanas. A tragédia da situação atual não é a realidade total; o Reino está chegando – e isso é um convite a confiar.

- - O convite não anula as iniciativas humanas; na realidade ele

convida as pessoas a se prepararem para o Reino: vigiem, estejam prontos (Mt 24.44; 25.10-13; Lc 12.35-37). Devemos ficar alertas, especialmente porque quando o rei chegar na glória, seremos julgados em termos de nossos encontros prévios, inesperados e até não reconhecidos com Deus na história, “nesses pequeninos” (Mt 25.31-46).

- - Os servos do Reino devem perseverar a despeito dos

fracassos e dificuldades. A colheita final está garantida (Mt 13.3-8). “minha palavra não voltará vazia” (Is 55.11)

- - O Reino é o valor mais alto ao qual todos os outros se

renderão (Mt 6.33; 13.44-46). - - Deve-se esperar que haja oposição. Não se pode eliminar a

ambigüidade na história. Este é o tempo da paciência de Deus, o 29 Jesus of Nazareth, New York, Harper & Row, 1960, pp.92-93

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tempo de arrepender-se. O dia chegará quando toda a verdade será revelada e haverá uma grande surpresa para todos (Mt 7.21-23; 13.24-30).

Nas expectativas dos judeus, a vinda do Messias significava o inicio do shalom de Deus, a chegada do Reino de Deus. Com a ressurreição de Jesus, temos uma compreensão diferente do fim dos tempos. A ressurreição inaugurou uma nova era; marcou o começo da era missionária escatológica. Há um período entre a chegado do Messias em sofrimento e a vinda do Messias em triunfo. A chegada final do Reino de Deus acontecerá após completar-se o período missionário.

De agora em diante, o Reino terá dupla referência. Primeiro, algo totalmente novo já aconteceu em Jesus; o

mundo se reconciliou com Deus. Todos são chamados a se reconhecerem nesse acontecimento.

Segundo, vivendo no presente período histórico, somos chamados a esperar a realização de todas as esperanças de Israel no clímax da história, o juízo e a redenção da história, que ocorrerão no tempo de Deus.

Essa expectativa do Reino que permeia a vida da Igreja

Primitiva, apoiada na experiência do domínio de Cristo, alarga o horizonte da fé a ponto de abarcar toda a história humana e o seu destino final. Paulo e os outros escritores do Novo Testamento são intermediários da esperança de uma transformação total da criação – um novo céu e uma nova terra. A utopia dos profetas sobre a paz universal é assim reafirmada no contexto mais amplo de uma missão universal.

A missão do Reino Há um certo consenso de que Jesus concebia sua missão,

bem como a de seus discípulos, como estando confinada a Israel

(Mt 10.5). Talvez ele partilhasse da esperança do Antigo Testamento de que as nações viriam render culto em Jerusalém. A limpeza dos pátios dos templos, reservados ao culto dos peregrinos estrangeiros, e as parábolas do banquete do Reino (Mt 8.11; Lc 14.16-24) confirmam essa concepção.

No entanto, todo o ministério de Jesus foi orientado para a

superação de todas as barreiras humanas. Ele rejeitou francamente a noção existente de que a promessa de salvação de Deus fosse limitada ao povo judeu. João Batista havia declarado que Deus podia fazer surgir das pedras os filhos de Abraão (Mt 3.9). O herói de uma das parábolas mais importantes de Jesus é um samaritano desprezado. Os testemunhos de fé mais impressionantes são dados por estrangeiros, como o centurião (Mt 8.10), a mulher siro-fenícia (Mc 7.25), o soldado que o viu morrer (Mt 27.54). Nas grandes parábolas do julgamento (Mt 25.31-46) “todos se reunirão perante o Filho do Homem”; bem no começo de seu ministério, ele provocou a ira do povo em Nazaré ao lembrar-lhes a benção de Deus aos estrangeiros (Lc 4.24-27).

Devemos concluir que para Jesus o Reino envolve as

nações do mundo, embora ele entendesse a sua própria missão histórica e a missão imediata de seus seguidores como sendo centralizada em Israel. Também não se pode contestar a preferência especial de Jesus, entre a sua própria gente, pelos pobres e marginalizados.

Os que recebem ajuda de Jesus são... pessoas à

margem da sociedade, homens que, devido à má sorte, à culpa ou aos preconceitos existentes, são considerados homens marcados, proscritos; doentes que, segundo a doutrina da retribuição, que dominava na época, devem suportar a sua doença como punição por algum pecado cometido; endemoninhados ou seja, possuídos pelos demônios; os doentes de lepra, “primogênitos da morte”, aos quais se nega a vida em companhia dos outros; gentios,

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que não participam em nada dos privilégios de Israel; mulheres e crianças que nada representam na comunidade; e pessoas realmente más, culpadas, que o homem bom mantém sempre à distância. 30 Nos atos, a Igreja é apresentada aprendendo as implicações

da vinda de Jesus para a sua vida no mundo. Foram necessários muitos acontecimentos inquietantes para que a Igreja Primitiva se convencesse de sua vocação transcultural. Quando o Espírito Santo desceu sobre eles no Pentecostes, os discípulos conseguiram comunicar-se com os peregrinos e fiéis em Jerusalém. A perseguição espalhou os cristãos; também lhes deu a oportunidade de explicar os acontecimentos de Jerusalém a grupos mais abrangentes. Uma revelação especial transformou Saulo, o odiado perseguidor, em Paulo, o apóstolo dos gentios. As visões de Pedro e Cornélio representam uma verdadeira abertura na compreensão da abrangência do Reino de Deus. Como sua compreensão do sentido e da expectativas da parousia mudou, aumentando a sua percepção do verdadeiro significado da cruz e da ressurreição, eles conseguiram articular uma visão do Reino abrangendo todo o oikoumene. Isso marcou o grande salto da missão centrípeta para a missão centrífuga.

O grande mandato resume a experiência da Igreja Primitiva

com relação ao Cristo ressuscitado e exaltado. “Todo poder no céu e na Terra me foi concedido. Ide, pois, e fazei discípulos de todas as nações, batizando-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-as a observar tudo o que vos tenho mandado e eis que estou convosco sempre até a consumação dos séculos” (Mt 28.18-20).

O horizonte se amplia. Seu centro é a fé em que Jesus

Cristo é o Rei dos reis e o Senhor dos senhores (1Tm 6.15), que ele preenche todas as coisas (Ef 1.23; 4.10), e nele todas as coisas serão unidas” (Ef 1.10). Os atos poderosos de Deus 30 Bornkamm, op. Cit., p. 79.

resultarão em um “novo céu e uma nova Terra”. E à nova Jerusalém os “reis da Terra trarão sua glória, a glória e a honra das nações” (Ap 21).

A Igreja e o Reino A observação superficial e freqüente de que Jesus pregou o

Reino e de que o resultado da pregação foi a Igreja poderia ser tomada como um desafio retórico à fidelidade, mas não é, de forma alguma, verdade, histórica ou teologicamente.

Jesus reuniu à sua volta discípulos, em diversos números e

de categorias diferentes, a fim de continuar a proclamação do Reino vindouro – os doze, os setenta, os muitos. Esses discípulos tornaram-se, mais tarde, testemunhas da ressurreição e desenvolveram uma consciência de sua missão, como seguidores de Jesus, na expectativa de sua volta.

Jesus chamou todo o povo de Israel ao arrependimento e a

um novo estilo de vida, que estará de acordo com o Reino que virá. Os discípulos responderam a esse chamado e estavam prontos para sacrificar tudo para seguir Jesus. Naturalmente tiveram medo, principalmente durante os dias que se seguiram à crucificação de seu Mestre. Também não conseguiram entender o significado pleno da ressurreição. Experimentaram tanto a alegria da presença de Jesus como o medo da perseguição.

Nos livros dos Atos, temos uma descrição da primitiva

comunidade cristã. Eles experimentaram a presença do Espírito Santo, que produziu neles uma permanente sensação de alegria. Viviam com medo daqueles que estavam decididos a apagar até mesmo a lembrança de Jesus.

Com um misto de alegria e medo, formaram uma

comunidade de ajuda mútua. Não havia pessoas necessitadas

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entre eles. Pouco a pouco foram sendo levados a descobrir as dimensões mais amplas do serviço do Reino, e sua vida começou a ser marcada pelos cuidados carinhosos que dispensavam a outros (At 3.1-7). Deram intrépido testemunho do domínio de Jesus, quando confrontaram as autoridades (At 4.19-20). Proclamaram “a palavra de Deus com audácia” (At 4.31). À medida que os cristãos continuavam a crescer em número e a se espalhar para além de Jerusalém, e sua expectativa do Reino se acentuava, a identidade da Igreja se tornava cada vez mais evidente. Havia um processo de institucionalização em ação, mas havia também um aumento da auto-percepção e da resposta aos desafios. Assim, Paulo desenvolveu a imagem do corpo (1Co 12), primeiramente em termos instrumentais, mostrando como os diferentes membros podiam trabalhar juntos harmoniosamente para a realização do ministério total; mais tarde, nas Cartas aos Efésios e aos Colossenses, como o Corpo cuja cabeça é o Cristo, numa relação dialética de participação na glória do plano de Deus e de atuação como precioso instrumento para desempenhar o papel de serviço em benefício de toda a criação.

Na perspectiva do Reino, a Igreja é chamada a ser e a ir.

Ser uma antecipação do Reino; mostrar em sua vida interna os valores da justiça e do amor que sustenta; desenvolver uma vocação de serviço sacerdotal na intercessão, na tradição de Abraão, em favor de toda a comunidade humana; celebrar liturgicamente, em antecipação, a vinda do Reino; vigiar, como as virgens da parábola, achegada do Senhor; e depois ser o povo missionário de Deus, chamado e enviado pelo mundo inteiro, para proclamar e servir, anunciando e manifestando a chegada do Reino de Deus.

Nesse ínterim, no processo da vida cristã, trabalhando e

esperando pelo Reino, o poder deste começa a manifestar-se, através do Espírito Santo, na transformação que acontece na vida dos cristãos. Eles são convidados a participar da transformação de toda a criação, através da orientação do Espírito Santo. Pedro

escreve que os cristãos participam da natureza divina (2 Pe 1.4), da nova vida em Cristo. O Reino torna-se um processo de conversão e santificação. Manifesta-se na mudança da adesão, na passagem do reino das trevas para o reino da luz e, conseqüentemente, na formação de todas as coisas, tanto na vida individual como na comunitária, visando à plenitude do Reino que virá.

Em resumo, o Novo Testamento continua a viver em uma

história: em Jesus, na história de Israel ocupado; na Igreja Primitiva, na história de uma comunidade de fiéis espalhados pelo vasto Império Romano. Em cada caso, porém, Jesus é proclamado Senhor; o Reino é manifestado no poder do Espírito, chamando os cristãos a um estilo de vida orientado para o Reino, a viver na expectativa da total redenção, transformação e glorificação deste mundo no Reino Futuro de Deus. Entre a ascensão de Jesus e a sua volta, um novo povo, o Israel de Deus, a Igreja, passa a existir. Num certo sentido, ele substitui o velho Israel. Cabe agora a essa comunidade mostrar a preocupação universal de Deus com todas as nações, comprovar a abertura do Reino de Deus na vida e morte de Jesus Cristo.

Essa comunidade não deve repetir o erro de Israel e tomar o

seu chamado como um privilégio particular. O chamado é para a missão. É para se empenhar na anunciação do Rei, o Senhor Jesus; desafiar em seu nome todos os poderes que afligem e oprimem; ser um povo sacerdotal, intercedendo por outros, o povo servo de Cristo, projetando o espírito de amor de Jesus no mundo, um povo à espera, apontando para as promessas de Deus. A Igreja é enviada para amar a Deus e ao próximo, para seguir o caminho e o exemplo de Jesus e, com a segurança do poder real do seu domínio, a proclamar, ensinar, converter e batizar todas as nações. A Igreja é enviada como serva de todo o povo, como uma vocação sacerdotal, missionária e evangelística. O Evangelho de Jesus Cristo pertence a todo o povo. O Reino é o sentido oculto de

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sua história. A Igreja testemunha o Reino de Deus até o fim da Terra e até a consumação dos séculos.

O Tema do Reino como preocupação Teológica

Em 1968 Wolfhart Pannenberg lamentou-se de que o Reino

de Deus fosse um tema que não figurava na teologia contemporânea; hoje em dia, seria difícil encontrar uma investigação teológica sobre a clareza dos objetivos missionários que não seja conduzida do ponto de vista da teologia do Reino. Praticamente todas as teologias do contexto do Terceiro Mundo tentam interpretar a realidade – histórica, cultural e política – em termos de visões do futuro, dentro de uma perspectiva do Reino.

É possível, na época atual, acalentar uma esperança

comum para o nosso mundo. Por causa disso, não podemos ficar satisfeitos com nenhuma abordagem teológica que interprete nossa situação – a situação de nosso país ou nosso grupo religioso – sem referência ao destino de outros povos e de outras culturas. Como o mundo ficou menor, a visão de Deus ficou maior. Estamos convencidos de que a preocupação de Deus é com a realidade total e não apenas com grupo particular ao qual pertencemos. O crescente pluralismo do mundo levanta questões que exigem um sistema de interpretação, tanto para os aspectos seculares como para os aspectos religiosos da realidade.

Há uma esperança comum; há também um desespero

generalizado. A nova preocupação com o tema do Reino é também o resultado de um certo apocalipsismo e do crescente desespero com o futuro da humanidade. Somente com a visão do Reino como uma prece, que se centraliza nas promessas de um novo dia em

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Deus, poderíamos encontrar força e poder para continuar com esperança.

Para tomar um exemplo, os cristãos de El Salvador, em sua

luta para vencer a violência institucionalizada, estão envolvidos em todas as ambigüidades da violência revolucionária. Simples cristãos, enfrentando a morte ou a prisão, são, nesta situação, inspirados pela esperança que não nasce de uma compreensão dos fatores de poder da situação, mas que surgem da convicção de que a realidade presente não corresponde à vontade de Deus, não pode ser permanente e que um novo dia terá de vir. A visão do Reino de Deus não é o produto do seu desespero; vem da Bíblia que leram. É a resposta da Graça ao seu desespero.

A base trinitária A plena manifestação do Reino se dá na pessoa de Jesus

Cristo. Nele, os poderes do Reino estão em ação. Ele age com a autoridade do Rei, perdoando pecados e expulsando demônios. Penetra no domínio das forças do mal. Sua morte revela a dinâmica de amor do Reio. Ele toma para si o pecado, a opressão e a mortalidade da humanidade, e sua ressurreição marca a vitória sobre o mal, o sofrimento e a morte.

Ele assumiu forma humana, se fez pecado, tornou-se pobre

e, através de sua morte e ressurreição, trouxe vida, a promessa e a antecipação do Reino futuro. Porque vemos os poderes do Reino em ação na vida de Jesus Cristo, compreendemos que ele aponta, para além de sua limitada manifestação na Terra, em direção ao ministério mais profundo de Deus. Jesus é o revelador de Deus. Jesus não é auto-suficiente; ele enfrenta a vida e encontra a morte em obediência ao Pai, e repleto do Espírito Santo. A doutrina da Trindade é a formulação conceitual de uma realidade vivida por Jesus, experimentada pelos cristãos e afirmada pela Igreja. A doutrina aparece na história do pensamento cristão para expressar

a experiência dos apóstolos e dos cristãos primitivos, que viram no Cristo e através dele a realidade de um Deus criador e de um Espírito sustentador. Jürgen Moltmann escreve:

A história de Cristo é interpretada à luz de sua

origem. Os Evangelhos relatam a história de Jesus como a história do Messias enviado por Deus ao mundo, com o propósito da salvação e ungido com o Espírito da nova criação. Os Evangelhos apresentam a história de Jesus à luz de seu envio, de sua missão... A relação entre o Jesus da história e o Deus a quem ele chamou de Pai corresponde à relação do Filho com o Pai por toda a eternidade. A missio ad extra revela a missio ad intra. A missio ad intra é o fundamento para a missio ad extra.31 O sofrimento e a morte de Jesus resultaram tanto da

controvérsia histórica na qual ele foi envolvido como da vontade salvadora de Deus. Os que foram atores naquela história agiram de acordo com a sua compreensão da situação, respondendo a fatores de poder na sociedade. Os eventos ocorridos em Jerusalém realmente aconteceram. Foram acontecimentos históricos. Ao mesmo tempo, revelaram o sofrimento, a vontade salvadora do Pai. Através do sofrimento de Cristo na história, também vemos que o Deus que o enviou participa do seu sofrimento. O grito na cruz: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mt 27.46), revela o sofrimento do Filho com o silêncio do Pai; também revela o sofrimento do Pai na realização da mais profunda manifestação de amor missionário de Deus, a fim de recuperar a criação decaída. Deus é um amante apaixonado e quem ama, sofre. O único meio de escapar ao sofrimento é através da reconciliação e da reabilitação. O Espírito Santo atua de forma misteriosa para nos chamar à reconciliação, apontando para o objetivo do Reino, que é a vida em toda a sua plenitude. Em Jesus, discernirmos Deus como um Deus missionário, estendendo a mão 31 Moltmann, Jürgen, “The church in the Power of the Spirit”, New York, Haper and Row, pp. 53-54.

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para resgatar e salvar, criando em liberdade uma relação de amor. O Reino histórico de Deus toma forma, quando o Espírito de Deus chama a humanidade a uma nova relação. Cristo representa a expressão do amor missionário de Deus, ampliando-se para resgatar a lealdade, o amor e a relação da aliança que foi dada com liberdade e perdida com o pecado.

A fé no Deus trino corresponde à nossa experiência de

Jesus Cristo e da vinda do Espírito Santo. A reflexão cristã sobre essa realidade histórica levou a Igreja à convicção de que é a manifestação “ad extra” de uma realidade interna de Deus. Jesus aponta na direção dos propósitos criativos de Deus e em direção à ação redentora do Espírito Santo, chamando toda a criação à reconciliação. Quando falamos da missão de Jesus Cristo, estamos falando da eterna missão de Deus. Compreendemos nossa própria missão à luz da missão de Jesus Cristo, que foi enviado pelo Pai sob o poder do Espírito Santo.

A cruz nos diz que, na história, o Reino sofre a violência. Por causa da cruz, não podemos viver num otimismo fácil a respeito da história. As forças do mal são reais. Para derrotá-las, o Filho de Deus teve que ser enviado. A cruz significa o reconhecimento do poder do mal por parte de Deus. Ela mostra também como Deus lida com o mal. O encontro de Jesus com o mal leva à cruz, e à reafirmação do amor na ressurreição. Nossa missão é a mesma. A missão da Igreja para entrar nesse movimento missionário de Deus.

O pecado que resultou na cruz está, entretanto, presente em todos os seres humanos e não poupa as Igrejas. Podemos apenas pôr a nossa fé no chamado de Deus, na presença do Espírito Santo, nas promessas de Jesus de estar presente onde quer que dois ou três se encontrem em seu nome – e não uma determinada qualidade ou mérito das Igrejas Cristãs! Mas a fragilidade da nossa condição ou a triste realidade do nosso pecado não deve cegar-nos para a nossa vocação de nos tornarmos embaixadores de Cristo, chamando todos à reconciliação com Deus (2Co 5.16-21). Somos chamados a participar da paixão redentora de Deus.

Missão extraordinária e regular? Como o Reino é a missão do Deus trino, criador, redentor,

santificador, ele diz respeito à realidade total. Nada, principalmente nada que seja humano, está fora dessa preocupação amorosa. O poder de Deus aparece na preservação da natureza, no movimento das estrelas, na mudança das estações, e no amor de Deus pelas pessoas. O amor de Deus pelas pessoas deve realizar-se através delas. Deus nos chama ao amor e à justiça, mas não é um agente fora da história, que intervenha sempre de forma milagrosa. O milagre do amor de Deus acontece através de seres humanos livres, que são chamados a colaborar na realização dos propósitos de Deus.

Nas palavras de um teólogo dinamarquês, Johannes

Aagaard, Deus executa uma missão extraordinária e muitas missões regulares.32 A missão extraordinária é a missão de Jesus Cristo, a missão da Igreja – manifestada no envio de Jesus Cristo e no chamado da Igreja à sua vocação específica de testemunha do Reino de Deus. As missões regulares são as missões das nações, as missões de todos os agentes históricos, que cooperam para a construção da comunidade humana. Através de todos os aspectos da história humana – político, econômico, cultural e social – os seres humanos são chamados, enquanto comunidades e indivíduos, a participar do amor providencial de Deus – o que inclui a construção de comunidades protetoras e solidárias.

Essa distinção é útil, mas não pode ser encarada de forma

absoluta, porque os cristãos e as Igrejas estão também necessariamente envolvidos nas chamadas missões regulares, através dos ministérios diaconais. O fato de ser a Igreja uma instituição social tem, por si só, conseqüências sócio-políticas. A Igreja é chamada a existir para cumprir a missão extraordinária, a revelação de Deus em Cristo, mas através de sua própria 32 “Mission After Upsala”, Universidade de Aarhus, Dinamarca, Agosto de 1970; trabalho inédito, p. 6.

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existência, ela se envolve em todos os aspectos da missão de amor de Deus pela humanidade. A distinção é útil na medida em que indica a responsabilidade especial da Igreja pela missão extraordinária. O reconhecimento de outras histórias diferentes da história de Israel e de agentes outros que não a Igreja de Jesus Cristo, como agentes do Reino de Deus, só se torna possível devido ao ministério de Jesus Cristo. É vocação da Igreja proclamar o Rei e declarar os valores, as perspectivas, os objetivos e os sinais do Reino de tal maneira que ambas as missões do Reino possam um dia ser uma só – como já o são em Deus.

A Igreja é a detentora do segredo do propósito de Deus,

revelado em Cristo. Portanto, tema responsabilidade missionária de partilhar aquele conhecimento com outros agentes, que estão também servindo ao Reino, embora não tenham consciência disso e não possam, através do seu serviço, satisfazer as exigências e objetivos finais do Reino. Não é que a missão da Igreja sacralize a realidade secular, resgatando-a para o Reino.

A missão da Igreja introduz, sob a perspectiva da revelação,

um elemento de renovação, de arrependimento, que poderia capacitar esses agentes a se tornarem parte da missão total de Deus – extraordinária e regular. Devemos também reconhecer que a chamada missão regular, a missão de preservar a vida, está ligada à missão extraordinária; ela é fundamental para a missão da Igreja. Fatores seculares e forças políticas favorecem ou prejudicam o ministério da Igreja.

No Império Romano, construíram-se estradas com finalidades

militares e econômicas, mas isso facilitou a difusão do Evangelho, no século I. A lei que garante a liberdade religiosa tem relação com a missão extraordinária de Deus; ela cria o quadro dentro do qual a missão extraordinária pode ser realizada. A preservação da vida nunca é apenas “secular ou regular”, é visivelmente extraordinária, quando aquelas vidas entram numa relação viva com o Deus de

Jesus Cristo, através da Igreja. O rei persa Ciro foi um instrumento de Deus, como o viu claramente o Segundo Isaías.

Podemos e devemos distinguir entre a missão de Deus

através da Igreja, aqueles que responderam ao chamado de Deus em Jesus Cristo, e a missão de Deus através de outros agentes, que estão promovendo aspectos daquela missão. Mas do ponto de vista do Reino, há uma extensão de amor entre a preservação da vida e o novo nascimento de uma vida de fé.

Conversão ao Rei: pessoal e coletiva Como o Reino é missão de Deus, plenamente manifestada

no total auto-esvaziamento de Jesus Cristo, os que ouvem a mensagem do Reino são convidadas a responder com uma adesão total. A conversão não é uma opção para o trabalho pastoral da Igreja. É a única resposta possível à dramática revelação do amor apaixonado de Deus. Proclamar o Reino é sempre um convite para unir-se às forças do Reino e entrar nele. O arrependimento é o primeiro ato de resposta. Os pecados são confessados, as adesões são mudadas e as atitudes, transformadas. Se o Reino é o plano de Deus em ação, e se o que os cristãos experimentam é a antecipação desse Reino, que está chegando à vida real de hoje, então nos movemos num mundo de maravilhas e emoções, um mundo de decisões finais. Nenhuma outra palavra, a não ser conversão, serviria aqui. Naturalmente, a palavra conversão tem sido mal empregada; tem sido reduzida ao sentido de experiência psicológica. Precisamos resgatar o significado dessa palavra, para designar o ato de resposta ao chamado do Rei Servo, Jesus Cristo, que nos enviará, como o Pai enviou Jesus, sustentado pelo Espírito Santo, pelo mesmo caminho de sofrimento e esperança.

Em nossa resposta ao Reino, estamos integrados no processo de vida em Deus. O movimento de amor do Pai, Filho e Espírito Santo continua através da Igreja, chamando-nos a servir e

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mostrar os primeiros frutos do Espírito Santo. Jesus colocou os pobres e as crianças no centro da preocupação dos discípulos, para simbolizar a exigência radical de amor feita por Deus. Os profetas, bem como João Batista e Jesus, apresentaram os pobres como o desafio final para testar a nossa resposta ao Reino. A resposta ao Reino poderia implicar em abandonar a riqueza, as relações familiares e sociais, mas nunca ser um fim em si mesma. As renúncias são necessárias a fim de nos integrarmos ao movimento de amor, que atua em favor dos pobres e proscritos. A justiça é a resposta exigida daqueles que ouvem o chamado do Reino; é o penúltimo objetivo, calçando o caminho para a realização do Reino de amor na história. A justiça, no sentido bíblico, é a justiça reabilitadora. Não é dar a cada um o que ele merece; é dar a todos o que eles precisam para entrar na dinâmica do Reino.

Muitas vezes, na Bíblia, as pessoas são mencionadas ou

invocadas como uma entidade coletiva. Israel é considerado como um todo. Mesmo no Tratado Teológico sobre Israel, que Paulo apresenta na Carta aos Romanos (9-11), Israel é visto como um corpo coletivo, existindo através de gerações, recebendo a salvação no fim dos tempos, quando Deus terá piedade de todas as pessoas.

Há uma vocação no Reino de Deus para essas entidades

coletivas – como Israel, assírios e egípcios. Eles são chamados ao arrependimento, conversão e obediência. Talvez “a morte de Jesus para muitos” possa também ser entendida nessa linha; ela se deu igualmente para as realidades coletivas de culturas e nações.

Falamos da Igreja como uma entidade dessas. A igreja não

é um clube de indivíduos, que reúnem suas experiências religiosas particulares numa organização coletiva. A Igreja é o corpo de Cristo. É a realidade organizada, preservada através dos séculos, na qual estamos integrados. Esse elemento de identidade coletiva não é fácil de avaliar em nossos dias, porque damos muita ênfase

ao individualismo. À consciência contemporânea ela aparece não como um nacionalismo estreito. Mas a família e a nação e todos os frutos coletivos de cultura devem ser considerados como as oferendas que os reis das nações trazem ao Reino (Ap 21.24). Os reis da Terra, aqui, não são reis individuais, que vêm pessoalmente; eles representam os seus países, com toda a sua herança de culturas e valores. Essa realidade organizada também é objeto da preocupação de Deus. Todos os ossos sacrifícios, oferecidos por amor a nossos amigos, parentes e à humanidade em geral, não se perdem. Desgastar-nos na luta pela paz e a justiça não é um desperdício de tempo e energia. Essas são as oferendas coletivas que serão apresentadas ao Rei dos reis. É importante elaborar esse ponto, porque muitas vezes tendemos a esquecer essa dimensão coletiva, ao enfatizarmos a salvação pessoal.

Há, evidentemente, um chamado pessoal. As parábolas do

Reino deixam isso bem claro. Seguir Jesus é tornar-se uma nova criatura nele; é experimentar algo daquilo que o Evangelho de João chama de vida eterna, vida em toda a sua abundância. E realmente importante que preservemos essa dimensão pessoal, individual. Mesmo para trabalhar pelo bem coletivo da humanidade, precisamos de um compromisso de fé e de convicção pessoal.

O prêmio do Reino Precisamos resgatar, em nossa pregação e em nosso

ensino cristão, a crença na ressurreição e na vida após a morte. Nossa civilização tende a suavizar a realidade da morte. É verdade que uma preocupação indevida com a vida após a morte, poderia ser, e de fato tem sido, um meio de fugir às responsabilidades históricas. Mas não podemos negar o testemunho das Escrituras com relação à ressurreição de Jesus Cristo e à promessa de vida eterna nele e no Reino, através do trunfo final de Deus sobre a

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morte. Precisamos reafirmar a convicção de que a vida vence a morte, em nossa vida quotidiana, e especialmente em momentos de conflito. Disse Julia Esquivel:

Assim, o Reino de Deus é a capacidade de acreditar

até a morte, e para além da morte, que Deus é nosso pai e que somos irmãos e irmãs. Significa viver de modo a pôr fim a todas as divisões, todas as injustiças, a enxugar todas as lágrimas, a amar de tal forma que possamos partilhar nossas vidas, porque acreditamos que a morte não tem mais nenhum poder sobre nós.

Aquele que acredita que no trono de Deus reina o

Cordeiro, que foi morto por amor, não ousa ajoelhar-se perante qualquer outro deus, feito de ouro ou de pedra, mas atreve-se a se opor a todo projeto político que produz injustiça ou morte para o povo. Embora ele possa morrer, já foi ressuscitado. O Reino não lhe pode ser arrebatado...

Por aquele Reino Moises renunciou ao trono do

Egito e preferiu partilhar as desgraças do povo de Deus. Outros morrem, depois de espancados, sem aceitar as transações que os teriam salvo, porque preferiram a ressurreição. Outros, ainda, sofreram os julgamentos do escárnio, espancamentos e até as correntes da prisão. Foram apedrejados, torturados, queimados, perseguidos e desacreditados. Outros são marcados para que seus movimentos possam ser controlados. Outros são deixados sem terra e sem pão. Outros são mortos, enquanto enterram seus mártires. Outros fogem para as montanhas e se refugiam nas cavernas. Mas todos eles, mesmo que continuem a ser oprimidos e maltratados nas fábricas, campos e cidades, continuam sua marcha, levantando os olhos para o futuro, em direção a Jesus, de quem tiram sua fé e que lhes dará o prêmio. Por causa dele e por causa

deles, devemos resistir até a morte, sabendo que ele conquistou o mundo”.33 Esse texto vem de uma experiência de confronto com a

morte. A sensação de medo e tremor, de confiança e alegria chega-nos porque nossa vida já foi tomada por Deus. O máximo que uma ideologia humana pode prometer é que o sacrifício do povo através dos séculos encontrará recompensa numa sociedade sem classes. Isso realmente inspira as pessoas a praticar atos de auto-sacrifício heróico. Mas sob a perspectiva escatológica cristã, todos são convidados a renunciar à vida, no serviço do próximo e no trabalho pelo amor e pela justiça, simplesmente porque Deus se preocupa com a história e nosso serviço é parte dessa preocupação. Não sacralizamos a história; entregamos nossa vida a Deus, sabendo que nossa vida pessoal e coletiva encontrará sua realização no Reino.

O convite ao Reino é dirigido a cada um, porque Deus é um

Deus pessoal e amoroso. Respondemos a ele, porque sabemos que nossa existência, agora e para sempre, está em Deus. Empenhamos-nos na ação histórica, confiando, em meio à ambigüidade de nosso envolvimento, que a morte não possa derrotar o propósito criativo e libertador de Deus e que, no poder do Espírito Santo, até a nossa morte possa servir aos propósitos de Deus. Esta talvez seja a sabedoria do movimento pietista, que exige uma experiência pessoal de Deus, para que alguém seja capaz de assumir, plenamente e com alegria, o risco da obediência missionária. Quando nos contentamos, porém, em nos aquecer ao calor da piedade pessoal e não nos envolvemos na luta do Reino, com todos os seus riscos, então a fé se torna um sedativo e o envolvimento missionário perde a sua força.

33 “The Crucified Lord: Latin American Perspective”, em “Your Kingdom Come: Mission Perspectives”. Genebra, CMI, 1980, pp. 59-60.

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Oferecendo o “agora” da história

O Reino está chegando. Somos instados a orar por ele. A

certeza desse futuro já condiciona o nosso presente. O Reino é o poder do futuro, operando na realidade presente.

O Reino é, na verdade, uma realidade presente. Jesus envia

os discípulos e lhes diz: “Toda a autoridade, todo o poder, o Reino no céu e na Terra me foi concedido” (Mt 28.18-20). Em conseqüência, os discípulos vão a todas as regiões do mundo, sabendo “a priori” que todas essas regiões já foram modeladas pelo Reino, que foi concedido a Cristo e que certamente está chegando. A esperança torna-se uma motivação e a vida da comunidade cristã torna-se uma antecipação do poder do Reino. O Espírito Santo está ativo, produzindo os frutos do amor, que dizem respeito à manifestação final do Reino.

Os ensinamentos dos teólogos ortodoxos sobre a

transformação de toda a realidade, segundo o modelo da transformação, podem ajudar-nos em nossa compreensão da relação entre história e escatologia.

A celebração litúrgica é o momento da tomada de

consciência do contato com a beleza do Reino futuro. É a antecipação do Reino; é o momento em que oferecemos a Deus todo o cosmos, a sociedade, a natureza e a vida, que precisa ser transformada. Na ascensão de Jesus, a natureza humana foi elevada até Deus. Paulo diz (Cl 3.3) que “nossa vida está oculta, com Cristo, em Deus”.

Essa transformação não é um processo automático; é uma

busca contínua. É uma exposição de nós mesmos, na liturgia, à ação de Deus. Como nos encontramos, após a ressurreição de Jesus, na nova era, não buscamos mérito; nossas obras são agora expressões, certamente manchadas pelo pecado, mas, apesar

disso, oferendas trazidas ao altar, para serem queimadas, purificadas e aceitas.

O que fazemos hoje por amor ao Reino, o que gerações

passadas fizeram, o que gerações futuras farão, está tudo preservado na própria existência de Deus. A finalidade de Deus era a garantia da aliança no Antigo Testamento; é também a garantia do novo pacto. O Reino é a meta À qual Deus quer levar toda a história. Nesse Deus do futuro, o nosso presente é recebido, purificado e preservado.

Há muitos fracassos. Sabemos de alguns, aqui e ali, que

pagaram com a vida a tentativa de mudar situações de opressão humana. Mas há muitos outros, que se gastaram em atos de amor e cujos nomes não aparecem em livros de história ou na memória do povo. Em Deus, porém, há memória. Tudo o que tem valor para o Reino permanece, porque o Reino é plano e promessa de Deus, desde o começo dos tempos; sua realidade está na existência missionária de Deus.

Karl Barth afirmou que não há ponto de contato em nós, que

nos dê acesso a Deus. A realidade do pecado, como a Bíblia descreve, principalmente na Carta aos Romanos, é tal que não existe nada em nós que possa permitir-nos ter acesso a Deus. Foi apenas no Homem-Deus, Jesus Cristo, que Deus estabeleceu o ponto de contato com a humanidade. É em Cristo que nos relacionamos com Deus, em Cristo e não em nós mesmos. Portanto não posso confiar em minha própria experiência de conversão, em minha própria experiência de perdão. Posso apenas confiar na Graça de Deus, plenamente manifestada em Jesus Cristo e em suas promessas. Vivendo em Cristo, nessa relação, posso dizer que tenho a certeza de minha salvação em Cristo. Mas a única garantia é o amor de Deus por mim e não o meu amor por Deus. Essa é a mensagem fundamental de Paulo na Carta aos Romanos. “Pois estou certo de que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as coisas presentes

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ou futuras, nem o poder, nem a altura, nem a profundidade, nem qualquer criatura nos poderá separar do amor de Deus, em Cristo Jesus, nosso Senhor” (8.48-39).

Com freqüência, citamos essas palavras com um espírito de

ostentação, para sugerir que não há poder no mundo que possa destruir nosso amor por Cristo. Mas Paulo não está dizendo que não podemos falhar, mas sim não há poder que possa fazer com que Deus nos falhe. Nossa vida em Cristo está garantida pela fidelidade de Deus para conosco (Cl 3.3).

Essa fidelidade deve estender-se também às nossas

comunidades. O que vale para a nossa vida individual deve valer também para a nossa vida coletiva. Não podemos, evidentemente, afirmar que as famílias que formamos, as comunidades que organizamos e a cultura que desenvolvemos pertençam à economia do Reino. Entramos nessas atividades com a esperança de que serão consideradas como nossa oferenda ao reino de Deus, mas, no final, nossa confiança é em Deus, cuja sabedoria rejeitada, aceita e aperfeiçoa. Precisamente porque existe essa continuidade de fidelidade em Deus, é que podemos empenhar-nos em muitas espécies do amor seletivo a tudo o que fazemos. Como descreve o apóstolo Paulo: “Portanto, meus amados irmãos, sede firmes e constantes, sempre abundantes na obra do Senhor, sabendo que o vosso trabalho não é vão no Senhor” (1Co 15.58).

O julgamento de Deus purificará e transformará as

oferendas que fazemos, de modo que elas se tornem dignas do Reino. Não construímos o reino, mas construímos a comunidade humana, à luz do Reino que está chegando. Oferecemos tudo o que podemos produzir, sob a inspiração do Espírito Santo, para ser queimado sobre o altar de Deus. Como é uma oferenda a Deus, queremos oferecer o melhor que temos. Expressões como “construir” o Reino são melhores entendidas em termos de nossa intenção de oferecer a Deus o melhor, sabendo que Deus é que traz o “shalom” final, a consumação de todas as coisas.

O total realismo da literatura bíblica é evidente na

sua proclamação do Reino de Deus como a realidade futura. Por melhor que as coisas estivessem indo, por mais íntima que fosse a comunhão com Deus, o Reino de Deus era anunciado como futuro, como o Reino que viria. À luz da futuridade do Reino de Deus, é obvio que nenhuma forma presente de vida e sociedade pode ser considerada definitiva.

Essa compreensão não paralisa a atividade política.

O futuro Reino de Deus – porque é Deus (pois a existência de Deus não pode ser separada do seu domínio) o exige obediência já no presente. O futuro do Reino desencadeia uma dinâmica que está sempre iluminando a visão do homem e dá sentido à sua ardente busca de formas políticas de justiça e amor. As novas formas que forem alcançadas mostrar-se-ão provisórias e preliminares, em comparação com a finalidade do Reino de Deus. Elas terão, cada uma por sua vez, que ceder lugar a novas formas sucessivas. Mentes superficiais poderiam pensar que a busca política é, conseqüentemente, vã. Mas isso seria deixar de reconhecer que a satisfação não está na perfeição daquilo com que começamos, mas na glória daquilo para onde nos inclinamos.34 É evidente que essa adaptação do presente ao futuro

prometido exigirá uma ação racional, baseada na pesquisa sociológica e na análise científica. As aproximações que conseguirmos serão marcadas pelo pecado da nossa situação e pelos erros nascidos das limitações humanas. Podemos apenas oferecer o fruto de nossos trabalhos, como uma oferenda que precisa ser purificada e integrada no plano de Deus, na sabedoria da vontade de Deus. 34 Wolfhart Pannenberg, “Theology and the Kingdom of God”, Philadelphia, Westminster, 1969, pp. 80-81.

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Podemos também dizer que o penúltimo passo é uma preparação para o caminho do Senhor. Esta é a expressão profética que João Batista aplicou a si mesmo; ele veio para preparar o caminho do Senhor. Aplicar essa expressão a nós mesmos poderá parecer pretensioso. Mas vista da perspectiva do Reino que está chegando, ela representa o caminho da obediência e da adesão.

Nenhuma situação humana pode ser considerada como última; toda situação humana é penúltima. Sobre isso todos os cristãos estão de acordo. O que estamos dizendo aqui é que as penúltimas situações humanas assumem uma significação final, porque Deus está interessado nesse penúltimo. Deus atua pela palavra e pelos sacramentos e está presente nos pobres, que esperam nossa resposta a Deus. Nossas respostas são, na verdade, relativas, ambíguas e penúltimas, mas tornam-se últimas devido à presença de Cristo, oculta, porém revelada. E dentro dessa realidade, o julgamento de cada situação é um julgamento último e final. Não podemos pretender que nada do que fazemos corresponda à realidade final do Reino de Deus. Mas empenhamo-nos na ação com toda a seriedade, porque o Deus do Reino busca a nossa resposta e a nossa obediência. É isso que leva todas as religiões, em geral, e o cristianismo, em particular, à beira do fanatismo e da intolerância; uma situação relativa torna-se uma situação final, na perspectiva da presença de Deus! Precisamos reconhecer a relatividade de cada situação; precisamos ser lembrados de seu caráter penúltimo. O Reino que sta vindo é a crítica final de toda a nossa realidade histórica. Mas oferecemos, em confiança, o fruto de nossos trabalhos.

“Venha o teu Reino” O Novo Testamento liga o Reino ao âmbito da oração. Há

duas orações que precisam ser mantidas numa tensão construtiva: “Venha o teu Reino” e “Maranata – vem, Senhor Jesus” – a oração de Jesus e seus discípulos e a prece da Igreja Primitiva. Nossa

compreensão do Reino, como plano de Deus, desde o começo dos tempos, e como parte integrante da existência missionária de Deus, expressa na criação, libertação e redenção, culminando no ministério de Jesus, enche-nos de admiração e só podemos responder com adoração. Somos transportados para uma realidade, que permeia toda a criação. A oração é a única linguagem para expressar esse mistério; até mesmo nossa reflexão teológica sobre o Reino precisa ser feita numa conversa com Deus, em forma de oração. Nesse sentido, o Reino é uma realidade espiritual. Mas a palavra “espiritual” não significa “separado da realidade”. Ela indica a presença de Deus e a liberdade do Reino, e dá sentido a toda a realidade. O Reino pelo qual oramos é o Reino que incorpora as promessas do “shalom” final de Deus, em situações históricas.

A segunda oração, Maranata, é um lembrete necessário de

que estamos esperando pelo Reino de Deus e de não podemos ficar satisfeitos com os esforços tentativas que oferecemos, para a implementação do Reino na história. Nossa prece é pela vinda do Rei, cuja presença, plenamente manifestada, é a marca do Reino.

O bispo Lesslie Newbigin observou que é mais fácil para os

cristãos orar “Venha o teu Reino” do que orar “Maranata”.35 No conceito do Reino, adequadamente incluímos a maior parte das aspirações fundamentais de paz e justiça da humanidade, que existem até independentemente da revelação cristã. Mas estamos orando pelo Reino de Deus, pelo Reino manifestado historicamente em Cristo e vindo em toda a sua plenitude com a volta de Jesus Cristo. Ideologias podem ser oferendas ao Reino, mas nunca substitutivos dele.

Finalmente, o que é o novo na visão cristã do Reino é o Rei,

Jesus de Nazaré. Ele é o Rei Servo. O centro de nossa esperança cristã é Jesus Cristo. Isso se torna evidente, quando consideramos a missão da Igreja a serviço do Reino, e a liberdade que cerca 35 “You Kingdom Come”, op. cit., pp. 41-42.

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essa missão. O Rei que está chegando será a referência predominante para todas as nossas opções e prioridades e para toda a nossa vocação cristã.

Liberdade na Missão do Reino Já vimos, tanto do ponto de vista bíblico quanto do ponto de

vista teológico, que o Reino de Deus abrange a realidade total e que nada do que é histórico é estranho ao amor criativo e redentor de Deus. Nada fica fora da autoridade dada a Cristo, como Senhor, e nenhum acontecimento fica fora da atuação do Espírito Santo. Já vimos também, em Jesus Cristo, a plena manifestação histórica do Reino, o Reino em ação. Chamando-o de Senhor, a Igreja Primitiva reconhecia nele a autoridade que no Antigo Testamento pertencia a Javé, o Rei.

A invasão do amor na história Jesus é, de acordo com o Livro do Apocalipse (Ap 1.5), a

verdadeira testemunha de Deus. Em sua vida, seus ensinamentos, sua morte e ressurreição, ele revela o propósito de Deus, o plano de Deus, que chamamos de Reino. Ele manifesta os poderes do Reino e se empenha na luta final com os poderes do anti-reino, na cruz. Ele é aquele que testemunha, final e fundamentalmente, os propósitos libertadores de Deus. Ele chama a Igreja a assumir a vocação de testemunha. O testemunho da Igreja deriva do próprio mandato de Jesus: “Assim como o Pai me enviou, eu vos envio” (Jo 20.21). Como ele era testemunha pelo poder do Espírito Santo, assim os discípulos receberão o Espírito Santo para se tornarem testemunhas (At 1.8). Os discípulos e a Igreja que eles ajudaram a construir, são testemunhas da poderosa invasão do amor na história, na pessoa de Jesus Cristo.

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Se quisermos resumir em poucas palavras o significado de Jesus, será difícil encontrar uma expressão melhor do que essa – uma invasão de amor, um derramamento de amor, desde a encarnação, através de todo o ministério, até a cruz. Sua própria definição da missão por ele cumprida encontra-se na passagem de Lucas (4.18-21); nele está manifestada a justiça reabilitadora, que é uma das definições bíblicas de amor. Ele olhava para as multidões com compaixão (Mt 9.36). O Evangelho de João resume a missão de Jesus; a respeito de sua decisão de ir a Jerusalém e ser crucificado, diz a passagem que “como havia amado os seus, que estava, no mundo, amou-os até o fim” (Jo 13,1).

Jesus disse que veio para servir, para dar sua vida pelo

resgate de muitos (Mt 10.45). A vocação para ser a testemunha do Reino significava viver totalmente o amor de auto-entrega. E esse amor foi totalmente livre, no modo por que foi oferecido.

Um exemplo dramático do seu amor e da sua liberdade

aparece na seguinte passagem: “Uma grande multidão seguia-o e o comprimia. E havia uma mulher que tinha um fluxo de sangue havia doze anos, e veio por detrás, entre a multidão e tocou em suas vestes. E imediatamente cessou a hemorragia, e Jesus, percebendo em si mesmo que dele saía poder, voltou-se logo em seguida para a multidão e disse: “Quem tocou em minhas vestes?”... Então disse ele à mulher: “Filha, a tua fé te salvou; vai em paz e fica livre deste teu mal” (Mc 5.24-34).

Aqui está o portador da revelação de Deus para todo o

sempre. Aqui está o profeta, que para a multidão era a esperança do Reino futuro. E ele pára para responder com amor uma mulher que sofre. Essa história revela de forma dramática a atitude normal de liberdade, que Jesus teve em todos os tempos. Quando estava na cruz, envolvido no drama íntimo da própria existência de Deus, ainda assim preocupou-se com o ladrão a seu lado e a mulher ao pé da cruz. Essa é a liberdade missionária – a capacidade de responder com amor à necessidade de todos.

Liberdade no ministério do amor Segundo Mateus (Mt 4.23), “ele percorria toda a Galiléia,

ensinando nas sinagogas, pregando o Evangelho do Reino e curando todas as enfermidades e moléstias entre o povo”. É muito difícil fazer distinção entre o ensinamento e a pregação de Jesus; a natureza didática das curas ou a proclamação em torno da expulsão dos demônios. Não há prioridade; não há distinção. Essa descrição de Mateus não é normativa, mas ajuda-nos a entender a vocação de Jesus.

Jesus ensina, prega, cura. Talvez precisemos começar com

a pregação, porque foi o que ele fez, vindo depois de João Batista, proclamando que o “Reino de Deus está à porta”. Sua proclamação gira em torno do Reino, anunciando a Boa Nova aos pobres (Lc 6.20) e denunciando os ricos (Lc 6.24), os escribas e os fariseus (Mt 23.23-36). Ele censura os poderes políticos (Lc 13.31-35; Mc 10.42). A proclamação de Jesus tem uma dupla função: anuncia o início do Reino de Deus que traz a Boa Nova da redenção e da libertação aos pobres e aos proscritos; também contém uma advertência sobre o julgamento para todos os que detêm o poder na sociedade e rejeitam o chamado ao arrependimento.

Jesus cura. É interessante que nessa passagem de Mateus

não haja menção ao fato de que Jesus perdoa. Hoje em dia, damos mais importância ao perdão dos pecados do que à cura dos corpos e mentes das pessoas. Mas no Evangelho, essas distinções não têm muita importância. A palavra “salvação”, tal como é usada nos Evangelhos, implica as duas coisas.

Nessa relação entre a cura e perdão, vemos novamente a

liberdade de Jesus. Os amigos do paralítico, que enfrentam muitas dificuldades por causa do doente, estão procurando para ele uma cura. O problema real daquele homem, do ponto de vista de seus amigos, era a má saúde. Jesus, olhando para o homem, diz uma

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palavra de perdão. É um escândalo para os fariseus e um desapontamento para os amigos. Alguns escribas perguntaram para si mesmo: “Por que esse homem fala assim? É uma blasfêmia. Quem pode perdoar os pecados, senão Deus?” A cura que se segue é para Jesus um sinal para autenticar o perdão. Aqui está uma ilustração da relação dinâmica e criativa entre o perdão e a cura. Vemos nos Evangelhos muitos que vêm a Jesus, em busca de cura, e recebem apenas cura! Jesus é livre em seu amor, para responder ao que ele vê como necessidade da pessoa e da situação que a pessoa enfrenta.

Quer cure ou perdoe, Jesus expressa o seu amor em

resposta às situações concretas das pessoas. Essa é a liberdade do amor. Jesus se sente livre, após proclamar o Evangelho aos pobres, para entrar na casa de pessoas ricas. Mas os frutos desse encontro com pessoas ricas estão relacionados com a sua preocupação para com os pobres, como está claro na história de Zaqueu (Lc 19).

Jesus ensina e seus ensinamentos são a respeito do Reino.

São a respeito da qualidade da vida dos cidadãos do Reino. Seu ensino está contido, também, nos atos que devem obrigar o povo a repensar suas interpretações da lei e dos profetas. Por exemplo, ele desobedece à lei, curando pessoas no sábado. Sente-se livre para desobedecer à lei a fim de salvar, curar, ajudar. Ele se solidariza com os discípulos, quando eles desrespeitam a lei religiosa que prescreve que eles devem repousar no sábado e a lei ética religiosa relativa à propriedade. Na liberdade do amor, ele vê a lei da necessidade ou a lei da vida como mais importante.

Jesus expulsa os demônios, isto é, luta contra as forças

espirituais, que oprimem as pessoas e corrompem as atitudes individuais e as estruturas da sociedade, de modo a libertar as pessoas e a sociedade do poder dessas forças. O Reino do amor, que abrange tudo, é o principio básico. A ocasião concreta, o convite para uma ação ou proclamação do Reino é fornecida, no

ministério de Jesus, pelas necessidades dos proscritos, dos desamparados e marginalizados.

É a sua vocação a assunção da carga do mundo, que dá

unidade à sua liberdade. Cada ato de Jesus responde a uma situação, uma oportunidade, uma necessidade, um desafio. Ele vê uma necessidade e responde a ela. Mas é sempre o amor em ação; é a liberdade em ação. Embora cada ato represente uma resposta a uma situação, cada um alcança um significado mais pleno, em virtude da vocação messiânica de Jesus. Ao alimentar a multidão, ele satisfaz uma necessidade específica das pessoas. Ao mesmo tempo, esse ato alcança um significado mais rico, quando interpretado como uma antecipação da santa comunhão e até do banquete messiânico, no Reino futuro.

Cada um desses atos independentes indica o conjunto, que

é a revelação do amor de Deus e a inauguração do Reino de Deus. Para os aleijados que eram trazidos a Jesus, um discurso sobre o Reino não podia ser uma porta de entrada para o mesmo. Houve oportunidades para fazer longos discursos sobre o Reino e Jesus aproveitou-as. Ele pregava regularmente na sinagoga; isso era parte do seu trabalho normal. Cada um desses atos foi necessário, para indicar uma compreensão do shalom e todos os atos, em conjunto, forneceram uma visão da promessa de Deus. Eles possibilitaram às pessoas compreender a salvação como perdão, como cura, como convite para seguir Jesus, como amor ao próximo, como luta contra todos os poderes e princípios, como afirmação da liberdade do amor contra a escravidão da lei.

Alguns dos atos de Jesus só adquiriram seu pleno

significado após a ressurreição, porque é só à luz do todo que as partes podem ser compreendidas. Como Igreja, hoje, temos a vantagem de conhecer a história toda de Jesus; isso nos permite aplicar todas as partes da história aos diferentes e particulares atos de amor, que a Igreja é chamada a praticar, em situações específicas.

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O testemunho da Igreja sobre o Reino A Igreja é chamada a dar testemunho do início do Reino de

Deus em Jesus. Pelo poder sempre presente do Espírito Santo, ela deve ser o espelho do ministério do Reino de Deus. Os cristãos são servos de todo o Reino; mas dentro da dinâmica que abrange o mundo todo, a vocação especial da Igreja é anunciar o Reino e convidar as pessoas para o Reino. Na Grande Comissão, Jesus primeiro se refere à autoridade que lhe foi conferida e diz a seus discípulos: “... ide, pois, e fazei discípulos de todas as nações, batizando-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-as a observar tudo o que vos tenho mandado; estarei sempre convosco, até a consumação dos séculos”. Várias outras passagens bíblicas abordam essa responsabilidade específica da Igreja, dentro da economia total do Reino de Deus.

Tanto a natureza do Reino, que proclamamos, quanto a

personalidade do Rei, que nos convoca, tornam impossível para nós ficarmos satisfeitos com uma proclamação puramente intelectual. Como o Reino é vida, Jesus é o Senhor Vivo, e o Espírito é a realidade que dá poder, a proclamação precisa ser atuante, manifesta e encarnada. É impossível falar do Reino de Deus de maneira convincente, senão mostraremos os poderes do Reino. Paulo disse que o “Reino não consiste em palavras mas em poder” (1Co 4.20).

A proclamação é uma dimensão fundamental do trabalho da

Igreja; a Palavra de Deus precisa ser partilhada, através das palavras da Igreja. A história de Jesus Cristo e a história da aliança de Deus com o povo de Israel precisam ser contadas e recontadas inúmeras vezes. Mas a Igreja não anuncia o plano de Deus para a salvação apenas; ela é também chamada a desempenhar um papel ativo. Enquanto comunidade social, a Igreja deve agir na história. Sua existência deve facilitar a manifestação mais ampla do Reino na história.

Organizamos atividades competitivas, para que nossos membros não possam participar de reuniões de associações de moradores, sindicatos, cooperativas etc.? Incluímos nas preces intercessórias da congregação a dinâmica da busca do homem pela justiça, que também encarna a preocupação de Deus com a humanidade? Mesmo na vida interna da Igreja, na celebração dos sacramentos, os atos da Igreja têm conseqüências mundanas. O batismo e a comunhão, um casamento ou um funeral são, todos, eventos religiosos; marcam, porém, momentos graves da vida humana e têm um impacto inevitável na comunidade.

Num sentido normativo, as funções sacramentais e

inspiradoras da Igreja não podem ser isoladas de seu testemunho total a toda a comunidade e do modo pelo qual a Igreja promoverá o plano total de Deus. O batismo de um acriança lembra à família e à comunidade que a criança é chamada a ser colaboradora de Deus, na obra da criação e na construção da comunidade. A celebração de um casamento não é apenas a consagração de uma família de duas pessoas; é um mandato conferido ao casal, para contribuir para a vida de toda a comunidade, a partir da sua privilegiada união em amor recíproco. Toda atividade da Igreja deve, pois, ser vista em termos do seu chamado para proclamar o Reino. Deve ser vista como uma ação que ajuda a divulgar o coração da realidade do Reino de Deus. A Igreja é uma protagonista do Reino. Como serva, seu trabalho resulta em sinais de amor – em curas, em construção da comunidade, em atos de serviço. Como profeta, a Igreja anuncia a Boa Nova aos pobres, denuncia as forças que trabalham contra o Reino de forma concreta. Como sacerdote, a Igreja intercede por todo mundo. Em sua vida litúrgica, deve incorporar as esperanças e necessidades da comunidade em que está inserida.

Enquanto comunidade que anuncia o Reino, a Igreja tornar-se as primícias do Reino e um antegozo de sua realidade final; torna-se um sacramento do Reino, revelando ao mundo o objetivo final de Deus, um sinal apontando para o Reino. A eucaristia é a expressão mais plena dessa dimensão de antecipação do Reino.

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Através do pão e do vinho, antecipamos o banquete do Reino, a comunhão final de Deus e “anunciamos a morte do Senhor até que ele venha” (1Co 11.26).

A Igreja é, pois, chamada a testemunhar os poderosos atos

de Deus na história. É a portadora do segredo de toda a história em Cristo. Sua vocação é sustentar Cristo e isso é implementado através da proclamação. Mas dada a natureza do que é proclamado, essa proclamação só pode realizar-se através da participação, do serviço, da intercessão, do sofrimento e do amor que é vivido.

Assim como Jesus Cristo é a livre invasão do amor, assim

também a Igreja é enviada, na mesma liberdade, para testemunhar esse amor. A Igreja é o povo incumbido de uma tarefa especial, no serviço do Reino de Deus, mas não é o Reino e não tem monopólio sobre ele. Não é o único agente do Reino. Trairemos a liberdade do Reino, se insistirmos em que todos devam estar sob a autoridade da Igreja. Não podemos mais aceitar a Cristandade como modelo. Isso representou uma tentativa de criar uma comunidade monolítica, sujeita à autoridade da Igreja. A vocação da Igreja é testemunhar o Reino na história, apontar para o Rei, dar conhecimento ao mundo do que lhe foi revelado na vida e no ministério de Jesus Cristo.

A liberdade da Igreja em sua missão Devemos, além disso, afirmar que a Igreja é livre para

selecionar os meios adequados para cumprir a sua vocação. Podemos ilustrar essa liberdade da Igreja olhando para a primeira comunidade cristã em Jerusalém tal como foi descrita no Livro dos Atos.

(a) A vinda do Espírito Santo (At 2) é uma profunda

experiência pessoal e comunitária, que causou entusiasmo e

permitiu às pessoas falar línguas diferentes e se comunicarem. A referência a línguas diferentes é, sem dúvida, uma referência à torre de Babel (Gn 11.1-9). O Espírito Santo está inaugurando a Igreja como comunidade missionária de reconciliação, de forma simbólica, dramática e histórica. Essa nova comunidade é enviada ao mundo para chamar toda a humanidade – espalhada em Babel, em conseqüência de seu desafio a Deus – a se unir com Cristo, o elo real e final entre os seres humanos e Deus.

(b) O que aconteceu, porém, provocou o seguinte comentário: “Estão bêbados.” A ação do Espírito Santo causa surpresa e desprezo. Pedro explica: “Não estão bêbados, é de manhã cedo ainda!” E sem se dar conta, ele vê pregando. Prossegue explicando e interpretando, mas essa interpretação não será completa até que ele se dirija ao povo, dizendo: “Arrependei-vos e sede batizados... em nome de Jesus Cristo” (At 2.38-39).

(c) A comunidade estava unida, possuindo todas as coisas em comum, cuidando uns dos outros de acordo com as necessidades, manifestando amor em todas as relações e celebrando a comunhão (At 2.43-47; 4.32-37). O fato de ser uma comunidade e o seu próprio estilo de vida constituíam a missão, e “Deus estava acrescentando à Igreja os que estavam sendo salvos”.

(d) Pedro e João vão ao templo para orar. Vêem um aleijado mendigando à porta. O amor invade os apóstolos e, antes de irem orar, param para curar. A cura causa espanto, e Pedro é obrigado a explicar o que aconteceu. Proclama Jesus como o Cristo e convida o povo a arrepender-se. Age com liberdade e essa liberdade abre a porta à proclamação do Evangelho.

(e) Segue-se então uma série de circunstâncias que levam os apóstolos à prisão. Da prisão ao templo e de volta à prisão. Confrontados com o interrogatório das autoridades (At 4.5), eles dão testemunho do poder sob o qual se encontram e da vocação que lhes é conferida. Não podem parar de dar testemunho de

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Jesus, porque devem obedecer a Deus e não aos homens (4.19-20).

Pedro e João não tinham dúvidas quanto à sua vocação. Seu

serviço ao Reino é dar testemunho de Jesus Cristo. Obrigados a explicar os acontecimentos de Pentecostes, a cura e a desobediência às autoridades, eles o fazem indicando a fonte de sua vocação. Empenham-se em todos os tipos de atividades, algumas por sua própria conta, quando respondem com amor a uma situação, e outras quando são chamados a prestar contas, através da perseguição que enfrentam. Todas essas atividades, porém, transformam-se em pontos de partida para dar testemunho da preocupação total de Deus com as pessoas e do chamado que os apóstolos receberam.

A Igreja Primitiva, seguindo o exemplo de Jesus Cristo,

sentia-se livre para responder espontaneamente ou de forma organizada. Houve tempo em que tiveram de organizar uma divisão do trabalho entre os apóstolos e os diáconos (At 6.1-7), a fim de corrigir uma injustiça. O que encontramos não é anarquia, mas também não é uma organização rígida. Estevão é diácono, mas o vemos pregando – logo depois de ter sido feita a divisão do trabalho! Deve haver divisão do trabalho, mas não uma lei opressora que impeça qualquer membro da comunidade de apontar para o Reino e convidar outros para Jesus Cristo.

(f) Eles estavam todos espalhados devido à perseguição (At

8.1-14). Não se trata de um programa planejado de longo alcance, mas fornece aos discípulos a oportunidade de explicar por que estão onde estão e o que está acontecendo em Jerusalém. Implícito nessa explicação há um convite evangélico: isso também tem sentido para vocês e não apenas para o povo de Jerusalém!

(g) Os Atos poderiam ser chamados de Livro do Espírito Santo. Temos uma série de surpresas do Espírito: Filipe conduzido ao encontro com o eunuco etíope (At 8.26-38); Cristo

inesperadamente enfrentando Paulo, na estrada de Damasco (9.1-19); Pedro e Cornélio sendo levados por visões a um encontro (10.1-11.18), que convence a Igreja da preocupação missionária de Deus com os gentios. Durante as primeiras jornadas missionárias de Paulo e Barnabé (13.1-4), inúmeras vezes a Igreja é surpreendida pelo chamado de Deus, para que ela enfrente novas situações missionárias (10.17; 16.9-10).

Paulo tem uma convicção apaixonada de que sua vocação é proclamar o Evangelho e conseguir o maior número possível de adeptos para a nova fé (1Co 9.19-32). Mas quando é solicitado para não esquecer os pobres, assume a nova tarefa de bom grado. Essa foi a principal recomendação feita pelo Concílio de Jerusalém: cuidar dos pobres (Gl 2.10; 2Co 9). Paulo não hesita em interromper suas jornadas missionárias e levar a Jerusalém os fundos que coletou para as vítimas da fome (Rm 15.25-26). Com liberdade, ele responde aos desafios trazidos por novas situações.

A liberdade de obediência Seguindo o exemplo da Igreja Primitiva, a Igreja de hoje é

livre para fazer opções e cumprir sua vocação missionária das mais diversas maneiras, nas mais variadas circunstâncias. Há apenas uma referência fundamental – Jesus, o Rei. E há apenas um ponto de concentração concreto e histórico – os pobres e desvalidos.

Um documento emitido em 1959 pelo Conselho Mundial de

Igrejas refere-se a essa liberdade da Igreja nos seguintes termos: Não existe um meio único de testemunhar Jesus Cristo. A

Igreja tem dado testemunho em diferentes épocas e lugares e de diferentes maneiras. Isso é importante. Há ocasiões em que se exige uma ação dinâmica na sociedade; há outras em que uma palavra deve ser falada; outras quando o modo como os cristãos

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vivem juntos e com outras pessoas por si só já é o testemunho; noutras ocasiões ainda a simples presença num ato de adoração comunitária ou individual é o testemunho. Essas diferentes dimensões do testemunho de um único Senhor são sempre uma questão de obediência concreta. Considerá-las isoladamente, umas das outras, é distorcer o Evangelho. Elas estão inextricavelmente ligadas e, juntas, dão as verdadeiras dimensões do evangelismo. O importante é que a palavra redentora de Deus seja proclamada e ouvida.36

Naturalmente, reconhecemos que há dons, vocações,

divisões do trabalho. Esses dons podem ser pessoais ou coletivos. Uma ordem religiosa ou uma envolvida numa missão internacional para proclamar o Evangelho a povos distantes de qualquer Igreja Cristã, dá o seu próprio testemunho. Devemos reconhecer, porém, que todos esses empreendimentos são respostas contingentes, ações a serem desempenhadas aqui e agora e não necessariamente a serem repetidas amanhã, lá ou aqui. As vocações e as contingências guardam uma relação recíproca de liberdade e não de lei.

O evangelista, confrontado com uma situação de

necessidade humana, não pode argumentar que seu dom se inclina para outra direção. Somos chamados a servir a essa invasão total de amor no Reino de Deus. A divisão do trabalho, o reconhecimento dos diferentes dons e a criação de organizações especializadas são necessários, mas não devem minar a liberdade que a obediência exige, nem diminuir a plenitude do Reino de Deus.

Quais são as prioridades prescritas para a Igreja em nossos dias? Em geral, propõem-se três pontos de concentração, que surgem da preocupação específica de Deus com os pobres, do envio da Igreja por parte de Deus, para proclamar o Evangelho a todas as nações, e da promessa feita por Deus de uma nova era de paz e justiça. Minha tese é a de que esses são aspectos 36 “A Theological Reflection on The Work of Evangelism”, Genebra, CMI, 1959, p.21.

intimamente relacionados de um único e mesmo chamado à obediência cristã no serviço do Reino, que é basicamente um chamado à liberdade.

Os riscos da liberdade Essa liberdade não é uma coisa nova, diz respeito à

existência da Igreja e ao serviço do Reino. Tem sido manifestada com freqüência na história da Igreja e deve manifestar-se hoje. Um exame seletivo rápido revelará como essa liberdade tem sido exercida, às vezes com conseqüências positivas, outras vezes com conseqüências negativas.

Em primeiro lugar, mesmo a teologia ortodoxa de hoje

gostaria de preservar uma certa harmonia entre a Igreja e as autoridades civis. Isso se baseia na convicção de que ambas se destinam a trabalhar pelo bem comum do povo e que, trabalhando juntas, seriam uma benção para todos. Para nós, sob a perspectiva da Igreja Ocidental, isso é uma reminiscência da infeliz história da aliança entre a Igreja e o Estado, que começou com Constantino. Em nossos livros de histórias e teologia, e mesmo nas discussões atuais sobre a situação da Igreja, freqüentemente expressamos um certo pesar de que a Igreja Cristã se tivesse tornado a Igreja Oficial do Império Romano.

Precisamos, porém, indagar se as condições dominantes no

Império Romano ofereciam qualquer alternativa responsável. Não sou historiador da Igreja e posso apenas levantar a questão. Não seremos apressados demais em condenar um determinado acontecimento, devido às conseqüências que se seguiram? No caso em questão, as conseqüências não eram evidentes quando se fez a opção. Essa opção foi feita para que o testemunho da Igreja e os valores da civilização, simbolizados pelo Império Romano, pudessem ser preservados. Mas tarde, a Igreja tornou-se

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prisioneiros da lógica do poder e transformou-se de Igreja perseguida em Igreja perseguidora. Isso foi uma tragédia e prova que nenhuma solução, nenhuma expressão da liberdade de Igreja é definitiva. Devemos continuamente fazer a seguinte pergunta: Como testemunhar hoje em dia, novamente, do Rei, Servo do Reino de Deus?

No presente momento, na dinâmica da cultura da Europa

Oriental, o Estado procura ser um centro de cultura e de valores inteiramente autônomo, nos termos da filosofia marxista. A Igreja está fazendo um esforço para se manter próxima do povo, da história nacional, da língua, afirmando, como parte de sua vocação, a preservação dessas tradições. O exemplo mais marcante disso é a Igreja da Romênia, embora a mais popular, no que diz respeito aos meios de comunicação, seja a Igreja Católica da Polônia. Num país onde havia tradicionalmente uma íntima relação entre a Igreja e o Estado, a Igreja não está mais envolvida com o Estado; em vez disso, aproximou-se do povo e defende os valores nacionais. A liberdade da Igreja leva em conta os fatores de poder em dada sociedade, e opta pela não identificação com o Estado. Relaciona-se com ele, mas também o critica; não se transforma em religião civil, mas segue sua vocação com liberdade.

Um segundo exemplo histórico, também de natureza

polêmica, é o monasticismo. Nada no ministério de Jesus indicava que esse seria um fenômeno na vida da Igreja. A Igreja Primitiva, ao que sabemos, não o recomendava como estilo de vida. O monasticismo representou uma tentativa para preservar a integridade da fé cristã, quando havia a possibilidade de que fosse comprometida pela aliança da Igreja com o Estado. Foi também uma tentativa de fugir ao mundo corrupto e preservar a espiritualidade pessoal. Logo, porém, os mosteiros se transformaram em centros que ofereciam hospitalidade aos estrangeiros e refúgio aos que deles necessitavam. Transformaram-se em hospitais e, mais tarde, em escolas e

centros de preces intercessórias. Dos mosteiros veio o impulso missionário que levou à conversão de toda a Europa Central e Setentrional. A Igreja havia assumido livremente uma forma institucional, que já existia em outros sistemas religiosos. O estilo monástico de vida correspondia ao de Qunram, à várias seitas gnósticas e até mesmo aos centros de espiritualidade hindu. O que começou como um retiro, como uma fuga do mundo, acabou transformado num poderoso instrumento missionário. Os reformadores criticaram o monasticismo; não havia lugar para eles nas Igrejas que fundaram. Denunciaram a degradação do ideal monástico no século XVI. Uma vez mais, descobrimos que não podemos encara de forma absoluta nenhum dos instrumentos que a Igreja tenha utilizado no passado, com responsabilidade e liberdade, para enfrentar uma necessidade específica, num certo momento histórico. Tampouco podemos desprezar esses movimentos; são todos metodologias possíveis no trabalho da Igreja.

Olhemos agora para dois modelos contemporâneos de

preocupação, adotados com base nas prioridades percebidas. Um é o da preocupação com o crescimento da Igreja, como principal objetivo da missão cristã, em termos de evangelismo transcultural, e de instalação e desenvolvimento de igrejas com crescente número de fiéis. Isso foi sempre uma prioridade da Igreja.

Durante os dois últimos séculos, esse tem sido o modelo

dominante de missão ocidental. A partir da perspectiva do Reino, ele não pode ser questionado. Precisamos cumprir o Grande Mandato. Precisamos revelar o propósito de Deus a toda a humanidade, em todas as culturas. Precisamos chamar as pessoas a serem colaboradoras e participantes nas lutas ativas e históricas do Reino de Deus. Mas se isso se torna um fim e si mesmo, e se o crescimento da Igreja não se processa dentro de uma preocupação com a totalidade do Reino, tornar-se irresponsável. O crescimento da Igreja, quando degenera em simples recrutamento de membros para um clube, transforma-se

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em traição ao Reino. A possibilidade de abuso não é, porém, desculpa para fugir ao desafio missionário que ele contém. O outro exemplo tem a ver com a preocupação atual com a participação cristã nas lutas pela libertação. Poderíamos utilizar o exemplo da Nicarágua ou da África do Sul, ou a prioridade para a missão que Desmond Tutu recomenda às Igrejas daquele país. Não podemos fugir ao chamado para testemunhar a salvação de Deus e a notícia libertadora. Se a Igreja de Jesus Cristo não atacar a questão da opressão de milhões de pessoas, principalmente a questão do racismo institucionalizado, praticado na África do Sul, toda a credibilidade do Evangelho sofrerá. Assim, essa vocação específica é privilegiada e absolutamente necessária, se quisermos proclamar, de maneira convincente, a mensagem do Reino. Mas se essa mesma ênfase na participação cristã nas lutas de libertação não incluir as dimensões da celebração e da liturgia e não discernir os indicadores escatológicos do Reino que virá e do Cristo que é Rei, então isso também será uma traição ao Evangelho.

O fato de que na luta pela libertação, na América Latina, as

pessoas estejam ao mesmo tempo desenvolvimento uma teologia, é, por si, uma indicação de sua consciência de que não estão empenhados numa “luta secular”, mas que a formação de novas sociedades é uma questão de obediência cristã e um meio importante de proclamar o Evangelho.

Disse Gustavo Gutierrez:

Em Jesus Cristo, encontramos Deus. Na palavra humana, lemos a Palavra de Deus. Nos acontecimentos históricos, reconhecemos o cumprimento da promessa. Esse é o círculo hermenêutico fundamental: do ser humano para Deus e de Deus para o ser humano; da história para a fé e da fé para a história; do amor fraterno para o amor do Pai e do amor do Pai para o amor dos irmãos e irmãs; da

justiça humana para a santidade de Deus e da santidade de Deus para a justiça humana; dos pobres para Deus e de Deus para os pobres.37

Não há garantia de que a liberdade missionária não será

mal empregada. No diálogo ecumênico, temos a possibilidade de um contínuo desafio, corrigindo e inspirando uns aos outros.

Mas será que há axiomas ou prioridades “lógicas” na

missão? Eis uma questão que precisamos enfrentar. A consulta sobre Evangelismo e Responsabilidade Social, realizada em junho de 1982, em Grand Rapids, Michigan, afirmou que as duas preocupações de justiça e evangelismo estão intimamente ligadas e, embora possam ser distintas, não se podem nem devem separar. Os participantes afirmaram, entretanto, que:

O evangelismo está ligado ao destino eterno das

pessoas; ao trazer-lhes a Boa Nova da salvação, os cristãos estão fazendo o que ninguém mais pode fazer. Raramente, ou nunca, deveríamos ter de escolher entre satisfazer a fome espiritual e a fome física, ou entre ajudar corpos e salvar almas. Um amor autêntico pelo nosso próximo nos levará a servi-lo como pessoa integral. Entretanto, se tivermos de escolher, então temos de dizer que a suprema e definitiva necessidade de toda a humanidade é a Graça salvadora de Jesus Cristo e que, portanto, a salvação eterna e espiritual de uma pessoa é mais importante que o seu bem-estar temporal ou material.38 Há outros que acham que se deve dar prioridade a atos de

misericórdias; esses não querem proclamar o Evangelho com palavras e até desejam suprimir sua própria identidade como cristãos. Nos anos 60, na Europa, desenvolveu-se uma teologia que chegou ao extremo de exigir silêncio total por parte dos 37 “La fuerza histórica de los pobres”, Salamanca, Sigueme, 1982, p. 81. 38 “Evangelism and Social Responsability”, Exeter, Paternoster Press 1982, pp. 24-25.

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cristãos. Prescrevia uma moratória de palavras a fim de conquistar primeiro o direito de ser ouvida. Mas isso não pode ser contada.

Devemos dizer “não” a qualquer tentativa de priorizar

permanentemente os modos e meio de obediência no serviço do Reino. A única prioridade é o Reino, o Rei e a sua invasão de amor. E a palavra falada e um copo de água fresca, dado em nome de Jesus, são, ambos, dependendo das circunstâncias, portas de entrada certas para a dinâmica total do reino. Não pode haver Evangelho de salvação individual sem referência à justiça do reino. Não há amor de Deus que não seja relacionado com o do próximo. O encontro entre os membros da Igreja e pessoas estranhas à comunidade cristã é, de fato, um encontro total, onde as palavras recebem significado do comportamento global da comunidade cristã. Não podemos decidir se nosso próximo será salvo; é preciso esperar pela surpresa do Juízo Final (Mt 7.21-23; 25.31-46). Proclamamos a salvação em Cristo. Isso significa salvação pelo seu corpo, salvação pelo seu Reino, salvação pelo seu plano de transformar toda a realidade. Assim, qualquer palavra que anuncie o Evangelho é uma porta de entrada para o Reino total; senão, não é uma proclamação autêntica do Evangelho. E não pode existir solidariedade cristã com os pobres, que não aponte para a totalidade das promessas do Reino, inclusive o convite à fé pessoal e ao testemunho. Para citar Gustavo Gutierrez, ainda uma vez:

A práxis libertadora, enquanto parte de uma

autêntica solidariedade com os pobres e oprimidos, é afinal uma práxis de amor, de amor verdadeiro, eficiente, amor histórico por pessoas concretas, amor ao próximo e, nesse amor, amor a Cristo, que se identificou com o menor de nossos irmãos. Todas as tentativas para separar o amor de Deus e do próximo dão lugar a atitudes que empobrecem o Evangelho. É fácil opor uma práxis do céu a uma práxis da terra e vice-versa. É fácil, mas não é fiel ao Evangelho de um Deus feito homem. Parece mais autêntico e mais

profundo falar de uma práxis de amor, que tem suas raízes num amor livre e gratuito do Pai, quando se torna história em solidariedade com os pobres e desvalidos e, através deles, em solidariedade com todos os seres humanos.39 Depois de Jesus Cristo, há uma tal encarnação de Deus nos

seres humanos, que nossas raízes em Cristo nos levam a amar o próximo e nosso amor ao próximo nos leva a Jesus Cristo.

Missão e liberdade O Reino de Deus é uma realidade eterna em Deus; é a

manifestação histórica do amor trinitário de Deus. Deus está no comando; ele fala, preserva, purifica, julga, completa. Ele receberá nossas expressões de obediência, tentativas parciais e ambíguas. Como confiamos em Deus e acreditamos no plano de Deus para nós, hoje e na eternidade, e oramos “Venha o Teu Reino”, como olhamos para o futuro com expectativa e ansiedade, podemos, com fé, oferecer um copo d’água, uma palavra de amor, a mão aberta da comunhão, tudo em nome de Deus. Pregar a palavra, interceder em preces, viver em solidariedade com os pobres – todos esses são meios de afirmar e cumprir nossa vocação como Igreja. Como povo sacerdotal, realizando nossa vocação, obedecemos a nosso chamado, apontando para Jesus, o Rei, em cuja vida toda vida pode encontrar um novo começo.

O modelo bíblico para a vocação da Igreja é dado por João

Batista, que aponta para Jesus Cristo: “Eis o cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo”. A missão da Igreja é apontar ele, através de cuja vida, morte e ressurreição tem-se revelado a plenitude do amor redentor de Deus. Somos dominados pelo exemplo de Maria, a mãe de Jesus. Nas bodas de Cana ela diz aos criados: “Façam o que ele mandar”. Maria tornou-se uma fonte de inspiração, tanto 39 OP. cit., p. 69

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para a piedade da Igreja Católica Romana quanto da Ortodoxa, e também pode ser para os protestantes. Ela chama a nossa atenção para ele, em cujo poder unicamente podemos confiar.

Paulo, na estrada de Damasco, recebe a visão do Cristo

ressuscitado. Sua resposta nos dá o paradigma definitivo para a missão da Igreja. “Que farei, Senhor?” (At 22.10). A liberdade missionária significa perguntar a Cristo o que faremos e estar sempre preparados apara fazer o que ele nos pede.