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    Juliana Costa Mota

    O Setor Sul em Goinia: o espao pblico abandonado.

    Apresentao

    Este trabalho parte integrante do projeto temtico de pesquisa Habitao Econmica e Arquitetura Moderna no Brasil (1930 1964), coordenado na EESC USP pelo Prof. Dr. Nabil Bonduki. Constitui um resultado especfico da pesquisa de iniciao cientifica da bolsista Juliana Costa Mota, Planejamento Urbano e Habitao em Goinia: os projetos de Attlio Corra Lima e Armando de Godoy, ambas apoiadas pela FAPESP.

    O presente estudo focaliza uma parte especfica do projeto de Goinia - o Setor Sul -, um bairro residencial projetado por Armando de Godoy entre 1935 e 1937. Temos como objetivo analisar o processo de desenvolvimento deste setor urbano que culminou na descaracterizao do projeto original e na criao de um problema estrutural para Goinia.

    A partir desse estudo propomos a discusso no somente dos princpios originais que motivaram o projeto, mas tambm da apropriao destes pela populao, da sua atual condio e de perspectivas viveis de interveno.

    A participao de Armando de Godoy no Plano de Goinia

    Armando de Godoy (1876-1944), engenheiro formado pela Escola Politcnica do Rio de Janeiro, foi um dos principais profissionais do Urbanismo brasileiro. Durante toda a sua carreira profissional esteve vinculado prefeitura do Rio de Janeiro, um partido coerente com a idia por ele defendida de que o urbanismo competia administrao pblica. A importncia de sua atuao se reconhece no s atravs dos cargos pblicos que ocupou, mas tambm pela influncia que exercia sobre a mdia - escreveu entre 1925 e 1943 em peridicos no Rio de Janeiro, seguindo a tendncia dos engenheiros-urbanistas de divulgar a nova cincia - o Urbanismo - no Brasil .

    Godoy era uma referncia forte no pas, e por esse motivo exerceu influncia sobre a construo de Goinia, nova capital de Gois, cujo surgimento decorre da poltica nacional desenvolvimentista empreendida por Vargas a partir da Revoluo de 30. O arquiteto contratado

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    pelo Governo para o planejamento da cidade foi Attlio Corra Lima, em 1933, que desenvolveu um projeto caracterizado pela regularidade e classicismo do traado, determinado segundo as questes funcionais da circulao e as estticas, visando dotar a nova capital de beleza monumental. Entretanto, em abril de 1935 Attlio se demitiu do cargo por no concordar com as tendncias especulativo-imobilirias que vinham determinando as alteraes e demandas no projeto da cidade.

    A influncia de Godoy sobre Goinia se iniciou antes da realizao do projeto de Attlio, em 1933, quando apresentou ao Governo um relatrio com o seu parecer sobre a transferncia da capital, a adequao do stio escolhido e a funo da nova cidade. Posteriormente, aps a demisso de Attlio, Godoy foi convidado para avaliar o projeto deste e passou a ser consultor tcnico dos novos responsveis pela urbanizao de Goinia, os engenheiros Coimbra Bueno. Numa palestra proferida em 1937, no Rio de Janeiro, o Urbanista disse ter sido convidado pelo Interventor de Gois, Pedro Ludovico Teixeira, para o planejamento de Goinia e no ter aceitado o trabalho devido exigidade de tempo. Afirmou ainda este ter sido um dos motivos que o fez analisar o projeto de Attlio em 1936, sobre o qual afirmou ter feito poucas modificaes nas zonas norte e central, tendo sido a sua grande alterao a zona sul da cidade, que correspondia a quase 50% do total projetado. Entretanto, Godoy se mostrava contra as referncias urbansticas de Attlio: As exigncias da cidade moderna no permitem o denominado traado clssico. Outrora no havia as influncias de certos factores e estudos feitos nos ltimos lustros. Um dos elementos que levaram os urbanistas a modificarem a estructura da cidade foi o vehiculo automotor, cujo formidvel surto teve lugar nos ltimos decnios. (...) Hoje h as exigncias de orientao que no embaraaram LEnfant ao elaborar o Plano de Washington (...) (GODOY apud ACKEL, 1996:101)

    Analisando o projeto de Attlio, Godoy apontou as cidades que, segundo ele, alcanaram pleno sucesso por terem sido convenientemente planejadas - Cary (EUA) e Letchworth (Inglaterra) - o prottipo da cidade-jardim concebida por Ebenezer Howard em fins do sculo passado e projetada por Unwin e Parker entre 1903 e 1904. A cidade tal como a idealizou Howard, cujas idias foram compreendidas e realizadas por Unwin, Parker e outros profissionais na Inglaterra bem como na Frana, Estados Unidos, etc., uma admirvel escola para as massa populares, trazendo-as ao nvel da civilizao moderna, educando-as, instruindo-as e dirigindo-lhes a atividade no bom sentido. (GODOY, 1942: 35-6) Desse modo Godoy justificou os princpios de cidade-jardim aplicados por ele em Goinia.

    Assim houve um segundo plano para a nova capital de Gois, desenvolvido por uma equipe sediada no Rio de Janeiro, contratada pelos Coimbra Bueno e coordenada por Godoy, cujo nome aparece oficialmente apenas associado ao projeto do Setor Sul.

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    A concepo original e a sua relao com os princpios modernos

    O Setor Sul, bairro residencial projetado por Armando de Godoy entre 1935 e 37, foi inspirado na concepo de cidade jardim e teve como referncia direta Radburn, projetado por Clarence Stein em 1929. Em Goinia, na poca, o projeto foi bem recebido pelos poucos que o conheciam

    ... Um plano inspirado em Radburn, uma cidade americana.(...) Na zona sul que surgir a mais moderna soluo urbanstica do momento atual. Ser aqui realizada (...) a soluo mais tcnica para cidades modernas(...) Trata - se de uma concepo inteiramente nova no Brasil: adoo do sistema cul-de-sac, grupos residenciais em forma semi-circular, em meio a um extenso parque, gramado e com arborizao adequada, que mereceu estudos especiais. (LVARES, 1942:146)

    Segundo o Correio Oficial (veculo de imprensa do Poder Executivo de Gois) Godoy havia feito, pouco antes do seu projeto para a cidade, uma viagem aos EUA pesquisando os subrbios jardins americanos.

    O projeto foi estruturado a partir de um traado orgnico (em parte justificado pela declividade do terreno na direo do vale do Crrego Botafogo, no limite leste) que gerou quadras irregulares onde foi dada grande importncia s reas livres de uso pblico. As bordas das quadras foram parceladas segundo o padro de habitaes isoladas, enquanto os seus miolos foram mantidos como espaos livres pblicos, concebidos como parques contnuos. Do total de sua rea (3.255.276 m2), 17,33 % era destinada a estas reas verdes pblicas, o que correspondia a aproximadamente 14,72 m2 de rea livre por habitante, considerando-se a ocupao total do bairro. Foram projetadas 28 reas com este fim. Seguindo essa estrutura, Godoy props que os lotes tivessem duas frentes, que as casas se abrissem para a rua e para o parque - para o cul-de-sac atravs da entrada de servios e para a rea verde atravs da entrada principal -, criando uma relao direta entre o espao pblico e o privado. Para organizar esse modelo de ocupao foi estabelecido um sistema virio hierarquizado, onde o trnsito de veculos era separado do de pedestres. Este sistema era composto por vielas e passeios em meio aos parques para os pedestres e vias arteriais, vias coletoras e vias locais em cul-de-sac para os automveis.

    As vias coletoras faziam a articulao entre as arteriais e as locais. Estas ltimas tinham o carter de rua de servio, isto , local de acesso de veculos s casas, tanto de particulares quanto dos de servios de manuteno (coleta de lixo, abastecimento, etc.)

    As vias arteriais ligavam o bairro ao Centro e s futuras reas de expanso urbana, previstas para as regies leste e oeste da cidade. Partiam de uma grande praa central giratria (atual Praa do Cruzeiro), articuladora do trnsito. Esta praa, situada no centro da rea projetada, em

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    continuidade com o eixo norte-sul do projeto de Attlio, seria o segundo centro de radiao (o primeiro era a praa do Centro Cvico) de onde partiriam quatro novas avenidas estruturando a expanso urbana. Nessa parte do traado Godoy manteve o partido radioconcntrico de Attlio, de modo que as principais ruas do Setor Sul (83, 84 e 85) convergem para a Praa Cvica. Na nova praa estariam situados o centro religioso de Goinia e comrcios que serviriam ao bairro. Segundo Graeff, ... com a criao de uma segunda grande praa em asterisco, Godoy desestrutura o mono-centralismo de rano barroco proposto por Corra Lima. E sugere que se prossiga desestruturando o plano original ao insinuar um quinto asterisco no encontro com o futuro Setor Oeste. (GRAEFF, 1985: 29).

    Os lotes, de dimenses irregulares e desenhos variados (o que era causado pelo prprio desenho do bairro), variavam entre 346 m2 e 894 m2 , possuindo, a maioria, rea entre 400 e 600 m2. Devido organicidade do projeto, o topgrafo responsvel pela demarcao de parte dos lotes afirma ter sido este um trabalho complicado pois no projeto o desenho era baseado no permetro e no no clculo de reas, ou seja, um processo grfico que mostrava falhas quando transposto para a escala real.

    A rea do bairro, que na poca correspondia a 3% da rea total do municpio, estava dividida da seguinte forma:

    Utilizao da rea do Setor Sul (Fonte: IPLAN, 1977) Utilizao rea (m2) % do total Ruas 379.231 11,65 Lotes 1.822.730 56,00 reas Livres 564.298 17,33 Vielas, caladas e praas 489.017 15,02 Total 3.255.276 100,00 Guiando-se pelos princpios howardianos de utilizao dos espaos pblicos e de unidade de

    vizinhana, Godoy props para as reas internas de parque equipamentos e servios pblicos, como hospitais, parques infantis, jardins de infncia, escolas, campos esportivos, enfim, uma srie de equipamentos com fins sociais, educativos e culturais que contribuiriam para a alta qualidade de vida dos moradores do lugar. Nessa proposta se destaca o ideal moderno de priorizao dos espaos pblicos nos projetos habitacionais, associado noo de comunidade, pois se pensou que os espaos pblicos motivariam o convvio coletivo dos moradores criando vnculos entre estes e destes com o lugar.

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    Godoy entende a cidade como elemento civilizador e de inegvel utilidade social, pois motivadora do desenvolvimento da sociedade. No relatrio apresentado em 1933 ao Interventor em Gois, Pedro Ludovico Teixeira, dando parecer sobre a construo da nova capital, Godoy afirmou:

    A cidade moderna (...) que obedece s determinaes do urbanismo, um centro de cultura, de ordem, de trabalho e de atividades bem coordenadas. Ela educa as massas populares, compes-lhes e orienta-lhes as fras e os movimentos coletivos e desperta energias extraordinrias entre os que a vivem e ficam sob a sua influncia civilizadora. (GODOY, 1943: 212)

    No seu livro A Urbs e os seus problemas (1943) o Urbanista cita exemplos de cidades europias adiantadas, onde tudo se fazia ... com o objetivo de obter (...) a maior higiene possvel, transportes rpidos, boa iluminao, casas confortveis, mercados asseados e bem situados, alimentao s para todos, escolas, hospitais, centros de diverso, jardins acessveis a todas as classes. (Idem: 136). Nessa mesma obra ressalta o modelo cidade jardim iniciado por Howard como ideal - ... a mais perfeita e a mais completa criao urbanista da poca que atravessamos (...) na qual ... tudo se fez no sentido de criar um verdadeiro ambiente de bosque em trno das habitaes, arborizando-se racionalmente todas as praas, avenidas e ruas, formando jardins nas frentes das casas, pomares e pequenas hortas nos ptios. (Ibidem:137-38). Segundo ele a cidade jardim visava ... dar abrigo s classes pobres, proporcionando-lhes todo o conforto moderno e permitindo a vida de famlia nas melhores condies possveis (...) (Ibidem: 137). Por esse motivo no eram permitidas habitaes coletivas, prejudiciais vida e moral da famlia, pois a casa ideal devia ser isolada recebendo ar e luz de todas as partes.

    Para entender a proposta de Godoy e situa-la no mbito moderno importante voltar a Howard e ao Modelo Cidade Jardim. Este, surgido no final do sculo passado na Inglaterra, visava criar uma alternativa s grandes cidades industriais, que oferecesse aos operrios melhor qualidade de vida. Nesse sentido foi proposta a Cidade Jardim, com a idia de equilibrar campo e cidade. Nesta cidade, o sistema seria cooperativo, com relaes de trabalho equilibradas e os operrios viveriam, cada um com sua famlia, em casas individuais envolvidas pelo ambiente natural.

    Partindo de um mesmo problema enfrentado pelo Movimento Moderno - a condio de vida do operrio urbano - a idia de Howard inicia uma srie de questes posteriormente trabalhadas por este movimento, como: reforma social, economia, propriedade coletiva do solo e zoneamento funcional das cidades. Entretanto o Movimento Cidade Jardim nega o grande centro urbano e busca a cidade pequena em meio ao campo. Recusa o largo uso da tecnologia industrial, aproximando-se dos ideais do Arts & Crafts. Coloca a propriedade coletiva, mas no estatal, do solo, que seria gerido pela prpria comunidade.

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    Percebemos assim que as solues Modernas, apesar de visarem em ltima instncia os mesmos objetivos da Cidade Jardim, so opostas a este modelo. O Urbanismo Moderno assume a metrpole industrial e trabalha para dar-lhe qualidade. Prioriza tambm a questo da habitao, valoriza a relao homem natureza mas objetiva supervalorizar o solo urbano atravs verticalizao (habitaes coletivas) e liberao do solo e isso atravs da utilizao da tecnologia.

    Mas, a partir dessa diferena de modelo urbano os dois movimentos voltam a dividir as mesmas expectativas: dar qualidade de vida aos operrios atravs de moradia digna, servida por equipamentos comunitrios de servio e lazer atravs das unidades de vizinhana, organizar a cidade atravs do zoneamento, hierarquizar o trfego separando o fluxo de veculos do de pedestres, preservar a natureza e pensar a cidade na escala regional.

    Voltando ao caso de Goinia conclumos que Godoy seguiu os princpios do urbanismo

    moderno atravs do modelo cidade jardim. No seu discurso se apropriou no s das solues

    espaciais por este modelo geradas mas tambm de todo o ideal reformador social por ele

    induzido. O Urbanista almejava as conquistas e os aperfeioamentos da ordem coletiva, e foi

    esse o ideal que marcou o seu projeto para Goinia, assim como o de que se estabelecesse nas

    cidades maior contato entre o homem e a natureza, pois A arquitetura das cidades, que outrora s tinha como elementos principais a pedra e o tijolo, foi em parte substituda por outra mais risonha, cujas

    formas, mais empolgantes e variadas, s a natureza, nos mistrios da sua criao, sabe compor e realizar.

    (Ibidem:137)

    Mas apesar de ter como referncia o modelo de desenho e social da cidade howardiana, Godoy acabou produzindo algo mais prximo dos bairros jardins, cujo objetivo era aumentar a qualidade do espao de habitao da classe mdia. Estes projetos se distanciam do modelo social e de produo de Howard, propondo apenas um loteamento com desenho pitoresco, amplas reas verdes e alguma infra-estrutura, como se mostra o projeto do Setor Sul.

    O processo que gerou a descaracterizao do projeto original

    O projeto do Setor Sul foi aprovado em 1938. Inicialmente, o bairro foi determinado como Zona Fechada pelo Governo, o que significava que a ocupao era legalmente proibida. Essa medida se justificava pelo esforo do Estado em controlar o processo de urbanizao de Goinia e pela falta de recursos pblicos para financiar a implantao total do projeto urbano. Por este motivo foi determinado que a execuo das obras seria gradativa, tendo sido definidas como reas prioritrias para a urbanizao os setores Norte (que abrigava a zona residencial de mdia e baixa renda e a zona industrial) e Central (onde estava localizado o Centro Cvico, a zona comercial e a zona residencial de mdia e alta renda).

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    Nesse quadro a implantao do projeto do Setor Sul foi prevista para ocorrer a partir de 1962. Mas visando aumentar os recursos estatais, a venda dos lotes foi iniciada desde 1937, quando a rea destinada ao futuro Setor Sul (porque no implantado at ento) era um matagal. At a dcada de 50 os lotes foram vendidos a baixo preo porque no tinham a menor infra-estrutura. Isso permitiu que pessoas de baixa renda adquirissem o seu prprio imvel.

    Os proprietrios de lotes no bairro, motivados pela crise de moradia que vinha crescendo desde o incio da construo de Goinia, pressionavam o Governo para a liberao da ocupao dos mesmos, o que veio a ocorrer em 1950. Mas antes mesmo dessa autorizao a rea comeou a ser ocupada pelos proprietrios dos lotes e por alguns invasores que se concentravam na margem do Crrego Botafogo.

    Dessa forma a ocupao do Setor Sul se iniciou atravs do descumprimento da lei que criava as Zonas Fechadas, de forma parcial e antes da sua urbanizao. Isso gerava uma situao complicada, pois alm de o projeto de Godoy no ser de conhecimento comum (poucos conheciam o loteamento de tipo americano , como chamavam), no havia para este uma legislao especfica e adequada, que garantisse o seu padro de ocupao dos lotes e das reas livres, o que iniciou a sua descaracterizao. A maioria dos proprietrios determinou como fundo do lote a parte voltada rea livre e, como frente, aquela voltada rua pois ignoravam o projeto original e tinham como modelo o lote urbano tradicional. Vale ressaltar que essa arbitrariedade e falta de noo das caractersticas previstas para a rea surgiam principalmente pela no realizao do projeto no momento adequado.

    Em Goinia, esse perodo (dcada de 40) foi marcado pelo crescimento desordenado, motivado pela exploso demogrfica e pelo enfraquecimento do Estado no controle do processo de urbanizao, realizado a partir de loteamentos privados que no preservavam as qualidades esboadas nos planos iniciais (da dcada de 30) para a cidade.

    Devido s presses contnuas dos proprietrios do Setor Sul e do rpido crescimento de Goinia, a urbanizao do bairro foi antecipada para a dcada de 50, mas em ritmo lento: at o incio da dcada de 60 no havia infra-estrutura bsica (pavimentao, redes de gua, esgoto e energia) na sua maior parte.

    A urbanizao continuou na dcada de 60 e gerou grande crescimento da populao do setor. Conseqentemente houve neste perodo a valorizao dos lotes e toda a populao de baixa renda que habitava o bairro foi levada a deix-lo vendendo seus imveis por no poder pagar as tarifas urbanas. A partir de ento a populao do setor passou a ser predominantemente de mdia e alta renda.

    Mesmo quando se implantou o projeto as reas livres no receberam nenhum tratamento e, dessa forma, no se constituram como reas verdes de parque. Nessa poca no havia mobilizao do Estado, da Prefeitura ou dos proprietrios para o tratamento dessas reas. Apenas um ou outro morador plantava alguma rvore.

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    Assim o espao pblico no foi construdo e apropriado pelos moradores, continuou vago parecendo um grande lote baldio. Esse quadro foi agravado com o aumento da violncia urbana pois as casas, inicialmente com cercas vivas, foram muradas, de modo que as reas livres deixaram de ser espaos abertos, com relao com o espao privado e se tornaram bolses vazios cercados por altos muros.

    No final da dcada de 60 foi elaborada a primeira reestruturao do Setor Sul, a partir do Plano Diretor de Goinia, coordenado por Jorge Wilheim. Essa reestruturao no alterou o desenho original e o modelo de ocupao vigente na rea. Se destaca sobretudo pela tentativa de dar uso s reas livres ociosas, que foram abertas doao para instituies de ensino ou filantrpicas.

    Outra medida importante tomada com relao s reas livres data de 1967, quando o Governo autorizou a alienao de vielas consideradas inservveis (isto : sem serventia) perante requerimento dos interessados (proprietrios dos lotes limtrofes) e julgamento de uma comisso especializada. Era freqente os proprietrios requererem a compra de parcelas das reas verdes, tentando coloc-las como vielas, casos estes que no foram aprovados pela referida comisso. Entretanto, essa avaliao que permite a privatizao dessas vias parece ignorar que eram elas o acesso do pblico s reas internas, de modo que quando extintas ou bloqueadas dificultam ou impedem esse acesso, tornando o interior - as conhecidas praas do Setor Sul - de uso, quando no de posse, privado. A situao atual de que cerca de 70% dessas vias de acesso foram privatizadas.

    constante a ameaa s reas livres pela especulao imobiliria. Se inicialmente essas reas foram abertas ocupao de carter social ou educativo (quando se construiu numa das reas, por exemplo, uma escola e um centro esprita e, noutra, uma escola particular) posteriormente algumas foram inteiramente privatizadas e ocupadas por edifcios para uso coletivos (como exemplo h o de dois clubes privados), pela ampliao dos lotes circundantes (um caso) ou por edifcios de manuteno de rgo institucionais (trs casos). Como resultado, das 28 reas verdes internas 4 foram fechadas e das 24 restantes, 3 foram parcialmente ocupadas por instituies de ensino. Ou seja, desde o incio os rgos pblicos responsveis pela urbanizao no s no contriburam para a concretizao do projeto original do Setor Sul como tambm ajudaram na sua deteriorao.

    A partir de 1973 iniciou-se na rea em estudo o Projeto CURA, subordinado ao Programa de Complementao Urbana promovido pelo Banco Nacional de Habitao (BNH), atravs da Carteira de Desenvolvimento Urbano - CDU. O objetivo deste programa era melhorar a habitabilidade de determinadas reas por meio de investimentos em infra-estrutura e equipamentos urbanos, de acordo com as possibilidades econmicas e aspiraes da populao alvo. Eram priorizadas reas urbanas perifricas, com ocupao rarefeita e infra-estrutura subutilizada.

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    O objetivo geral para o Setor Sul era intervir no crescimento desordenado que vinha ocorrendo na regio sudoeste de Goinia desde 1970, atravs da criao de um polo de influncia alternativo ao da rea central. O bairro fora escolhido para a interveno por fazer a ligao entre o ncleo central da cidade e todas as reas de expanso ao sul, ser ocupado por populao de mdia e alta renda, ter grande nmero de lotes no edificados e supervalorizados que, junto s reas livres, constituam grandes vazios na regio central de Goinia. Na poca a populao do setor era de 14.100 habitantes, distribudos em 2750 residncias.

    Na poca do projeto os moradores, consultados, apontaram como necessidades ao bairro as seguintes: urbanizao das reas livres para solucionar problemas de segurana e sanitrios; criao de atividades esportivas, culturais e sociais com nfase naquelas realizadas ao ar livre; complementao dos servios de infra-estrutura bsica; instalao de linhas de nibus, de comrcio e de servios.

    O CURA encontrou as reas livres abandonadas, tomadas por lixo (porque o servio de limpeza urbana limitava-se s reas pavimentadas), muitas com acessos estrangulados que chegavam a 3 m de largura, o que dificultava a implantao de equipamentos pblicos. Outro problema encontrado estava relacionado implantao errada da maioria das casas, que tinham localizado as entradas de veculo voltadas para as reas verdes, de modo que foi necessrio abrir pequenas ruas que dessem acesso s garagens.

    A partir da anlise das demandas do bairro, este foi subdividido em unidades de vizinhana para as quais foram estabelecidos os seguintes objetivos:

    - urbanizao das reas livres transformando-as em reas verdes com equipamentos de lazer; - complementao das redes de gua, esgoto, energia eltrica, iluminao pblica,

    pavimentao e de galerias de guas pluviais; - incentivo ao aumento do ndice de construo gerando, a mdio prazo, total ocupao dos

    lotes; Deste programa foi suspensa a complementao da rede de esgoto devido ao seu alto custo.

    Para as reas livres foram propostos os seguintes equipamentos: play-ground, quadras poliesportivas, bancos, bebedouros, vegetao, pavimentao e iluminao.

    Esse projeto, no final, visava melhorar as condies de habitabilidade do Setor Sul intervindo nos seus espaos pblicos e conciliando as necessidades da comunidade e do poder pblico, de implantao e manuteno do loteamento. Para se ter uma idia da situao destes espaos, antes da realizao do projeto nem mesmo a principal praa do setor havia sido urbanizada.

    Alm das obras de infra-estrutura o CURA previu que fosse realizada parceria com empreendedores privados, a partir de financiamento do BNH, que criariam um polo de atividades comerciais e culturais que atendesse a toda a cidade. Foi tambm sugerida a realizao de parceria com o capital privado para a urbanizao e manuteno das reas verdes - a Prefeitura

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    entraria com o projeto e as empresas privadas com a execuo e manuteno destes por um perodo mnimo de 23 anos.

    Entretanto, foi estabelecido pelo BNH que esses investimentos privados no poderiam ser enquadrados no projeto inicial de Complementao Urbana. Nesse momento fixou-se que o CURA deteria-se exclusivamente na urbanizao das reas verdes de lazer. E, diante a carncia de reas pblicas de lazer em Goinia nessa poca, a concretizao do Projeto teria grande importncia para toda a cidade. Nesse momento determinou-se que a manuteno dessas reas seria feita pelas Associaes de Quadra.

    A equipe responsvel pelo projeto avaliou como positivo ao seu desenvolvimento o nvel econmico da populao do Setor Sul, que faria possvel aumentar a tributao como forma de reverter os investimentos. Foi assumido que a populao sofreria sobrecarga tributria, que seria recompensada pelos servios de infra e super estrutura a partir de ento implantados. Mas foi levantada a questo: at que ponto os equipamentos comunitrios, com caracterstica de rea de lazer, classificados como super-estrutura, atenderiam apenas aos moradores locais, justificando que apenas estes arcassem com as despesas?

    A realizao do CURA foi lenta, pois faltava motivao e engajamento da populao e verba da Prefeitura. Previsto para ser iniciado em 74 e concludo em 75, foi iniciado em 77 e concludo em 80. Mas mesmo aps a sua concluso as reas livres continuaram ociosas. A populao do prprio bairro ou de reas vizinhas no utilizava adequadamente os equipamentos e nem se preocupava com a sua conservao e manuteno, o que gerou a degradao fsica e social dessas reas num curto prazo. Alm disso, a ausncia de fiscalizao sobre o derrame de lixo na rea, a larga quantidade de lotes baldios e a falta de policiamento desestimulava ainda mais a participao da comunidade.

    Aps ter sido concludo o CURA foi muito criticado pois, apesar do alto investimento realizado, no cumpriu os principais objetivos planejados, isto , no mudou as relaes entre os moradores e os espaos pblicos. Mas essas crticas pareciam ignorar o fato de que o projeto foi desenvolvido a partir da demanda colocada pelos prprios moradores. Acredito que o problema tenha sido a continuidade da falta de educao para o novo modo de habitar da populao, pois esta no participou nem da implantao e nem da manuteno dos projetos de recuperao das reas livres. Ou seja, as transformaes imediatas obtidas com o CURA no mudaram a atitude da populao.

    Parte desse problema se justifica por essa populao, na maioria abastada, ter como conceito de espao de lazer clubes ou outras propriedades privadas, de modo que o espao pblico nunca fora visto como prprio de seu usufruto e de suas reivindicaes. Estas s comearam a surgir devido ameaa que as reas abandonadas geravam aos moradores e desvalorizao que gerava aos seus imveis. Inicialmente estes no tinham interesse na urbanizao e valorizao das reas como espaos pblicos, ao contrrio, desejavam a privatizao dessas reas.

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    Desde a finalizao do CURA novos projetos foram lanados visando solucionar os mesmos problemas mas nenhum surtiu efeito. Surgiram: projeto de tombamento, de parceria entre a prefeitura e os moradores para a recuperao e manuteno das reas livres, de reestruturao viria localizada atravs da abertura de uma nova rua (projeto este concretizado neste ano de 1999), etc.

    Atualmente h duas tendncias para a questo: a consolidao ou a privatizao dos espaos pblicos. Esta ltima apresenta duas variaes: uma seria a criao de condomnios, em que os moradores assumiriam os gastos de recuperao e manuteno das reas livres e teriam o domnio do uso das mesmas; a outra prope o loteamento e a venda das reas livres.

    Em 1987 foi criada a Associao dos Moradores do Setor Sul, que pedia pela construo de postos policiais, recuperao das reas verdes, regularizao das invases milionrias da Rua 115 e recuperao do Projeto CURA.

    Diretrizes para interveno na rea

    Pensar o Setor Sul segundo uma perspectiva de preservao no significa resgatar o projeto original de Godoy, mas sim os seus princpios vlidos e compatveis ao contexto atual. Visamos o desenvolvimento de propostas de interveno que sejam harmnicas com a concepo original. No pretendemos destruir os princpios originais de Godoy e nem a viabilidade do bairro.

    Analisando o Setor Sul atravs do seu processo de concepo e concretizao percebemos que h uma fissura entre esses dois momentos. Se no primeiro, Godoy criava o bairro residencial segundo o modelo dos bairros jardins, no segundo h uma sucesso de descaracterizaes da proposta original que culmina na criao de um espao onde o que seria motivo de qualidade diferencial - as reas verdes pblicas - gera, ao contrrio, degradao espacial e social.

    Concebido como lugar de alta qualidade de vida segundo os padres modernos, guiado pelos princpios de monofuncionalidade e de priorizao e valorizao dos espaos pblicos, o processo de desenvolvimento do Setor Sul no correspondeu s expectativas do seu criador quanto ocupao, relao entre rea pblica e privada e ao sentido de comunidade. Inicialmente o Setor Sul era um projeto que criava uma zona privilegiada, afastada do agito do centro ocupado pelo comrcio e pela administrao poltica, assim como da zona industrial, situada ao Norte. Este projeto foi destrudo pela construo indevida das casas, pelo abandono das reas verdes que tiveram seus equipamentos inutilizados e seus acessos interrompidos e, fundamentalmente, pelo modo de enfrentamento do espao urbano por parte dos moradores, que optaram por se confinar nos espaos privados cercados por muros. A situao atual do bairro demonstra a incapacidade da populao de usufruir coletivamente dos espaos pblicos.

    Em meio a esse quadro crtico faz-se imprescindvel a colocao de perspectivas viveis rea em questo. Avalio que houve uma distncia nunca rompida entre o ideal urbano de Godoy e

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    a perspectiva urbana determinada para Goinia, tanto por questes culturais quanto econmicas. Dessa forma, a proposta original do Urbanista criou uma situao de incoerncia entre as possibilidades do projeto e a vontade de concretiz-las: havia espao fsico para efetivao dessas possibilidades, que se tornou vazio e ocioso pela faltava de uma postura adequada dos administradores e moradores. Nesse quadro, tanto a noo de utopia como a de factibilidade perdem o sentido e resta como realidade uma condio vaga onde espaos consolidadas so ao mesmo tempo expectantes.

    A partir dessa constatao acredito que a recuperao do Setor Sul deva partir do resgate dos princpios que davam qualidade ao projeto de Godoy, segundo novas formas que gerem o uso dos espaos ociosos. Considero que esses princpios consistem fundamentalmente na valorizao dos espaos pblicos e da relao com a natureza.

    Nesse sentido, uma perspectiva seria manter os miolos da quadra como rea pblica mas com usos definidos, destinados a suprir demandas atuais do bairro mas tambm da cidade. Estes usos no seriam restritos ao lazer, at mesmo porque a quantidade de reas verdes deixadas a esse fim tornou-se excedente. Digo deixadas porque na concepo de Godoy essas reas seriam de lazer sim, mas equipadas com servios para a comunidade, o que ocorreu.

    Penso na criao de uma rede de servios pblicos (creche, escola, hospital, biblioteca, etc.) que tire partido da condio de interioridade dessas reas verdes e as construa como espao tanto dos moradores do bairro como dos de outras reas, aqueles hoje estigmatizados e responsabilizados pela crescente violncia enfrentada no local. Seria um meio de amenizar estes conflitos sociais hoje vivenciados.

    Outra possibilidade seria o redesenho dessas reas livres nos miolos das quadras, parcelando-as em lotes residenciais e criando uma relao positiva entre o espao privado (a casa) e o pblico (a rua). Para isso imagino uma releitura da cul-de-sac, o desenho que permita a essa via ser espao de lazer e convvio dos moradores e no s uma rua de servios. A partir desse modelo de interveno o bairro se manteria com predominncia de habitaes horizontais, como um lugar mais reservado e com qualidade ecolgica garantida pelo tratamento das ruas e pela taxa de ocupao dos lotes.

    Finalmente h a possibilidade de se integrar as duas idias anteriores, isto : lotear algumas reas e preservar outras com usos definidos, desde que seja feito entra estas um balano coerente com as demandas reais.

    Entretanto, fundamental em qualquer interveno para a recuperao dessas reas a integrao dos moradores no processo, pois s isso garante a sustentabilidade s mesmas. Esse seria um meio tambm de se estender os vnculos dos moradores entre si e com o lugar, o que desejvel.

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    Endereo

    Departamento de Arquitetura e Urbanismo, EESC-USP. Av. Dr. Carlos Botelho, n. 1465, Vila Pureza, So Carlos - SP. CEP: 13560-250.

    Telefone: (16) 273-93-00 / Fax: (16) 273-93-10; E-mail: [email protected]

    Currculo

    Juliana Costa Mota: aluna do 4 ano do curso de Arquitetura e Urbanismo da escola de Engenharia de So Carlos, Universidade de So Paulo; integrante do grupo de pesquisa Habitao Econmica e Arquitetura Moderna no Brasil (1930-1964); bolsista FAPESP desde agosto de 1998, sob a orientao de Nabil Georges Bonduki Sumrio de Autores Sumrio Sumrio de Artigos