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Sexta Turma

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Sexta Turma

HABEAS CORPUS N. 138.301-MG (2009/0108352-1)

Relator: Ministro Og Fernandes

Impetrante: Marco Antonio Arantes de Paiva e outro

Impetrado: Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais

Paciente: Natanael Vieira da Silva (preso)

EMENTA

Habeas corpus. Tráfi co e associação para o tráfi co de drogas.

Alegação de nulidade das interceptações telefônicas. Matéria não

examinada pela Corte de origem. Ordem concedida de ofício.

1. É legítima a impetração de habeas corpus para arguição de

nulidade das interceptações telefônicas que dão amparo à denúncia,

notadamente se o acusado responde ao processo preso cautelarmente.

2. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida de ofício para

que a Corte Estadual aprecie o mérito da impetração originária.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,

acordam os Ministros da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, por

unanimidade, não conhecer do habeas corpus, mas expediu ordem de ofício, nos

termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Sebastião Reis Júnior,

Vasco Della Giustina (Desembargador convocado do TJ-RS) e Maria Th ereza

de Assis Moura votaram com o Sr. Ministro Relator.

Presidiu o julgamento a Sra. Ministra Maria Th ereza de Assis Moura.

Dr(a). Marco Antônio Arantes de Paiva, pela parte paciente: Natanael

Vieira da Silva e Exmo. Sr. Subprocurador-Geral da República Dr. João

Francisco Sobrinho.

Brasília (DF), 14 de fevereiro de 2012 (data do julgamento).

Ministro Og Fernandes, Relator

DJe 29.2.2012

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

804

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Og Fernandes: O habeas corpus é impetrado em benefício

de Natanael Vieira da Silva contra acórdão do Tribunal de Justiça de Minas

Gerais que denegou o writ lá deduzido.

O paciente foi denunciado com outras pessoas por tráfi co e associação para

o tráfi co de drogas perante o Juízo Criminal da Comarca de Boa Esperança, em

Minas Gerais.

Busca o reconhecimento da nulidade das interceptações telefônicas e

telemáticas que embasam a denúncia e, consequentemente, de todo o processo-

crime. Sustenta a desnecessidade das referidas medidas, bem como a ausência de

fundamentação da decisão que as autorizou e as sucessivas prorrogações.

Indeferida a liminar e prestadas as informações, o Ministério Público

Federal opinou pela denegação da ordem.

É o relatório.

VOTO

O Sr. Ministro Og Fernandes (Relator): Confi ra-se, desde logo, o inteiro

teor do acórdão que denegou o habeas corpus originário:

Marco Antônio Arantes de Paiva, advogado inscrito na OAB-SP sob o n. 72.035, impetrou o presente habeas corpus em favor de Natanael Vieira da Silva, pretendendo liminar no sentido de que seja anulada a decisão que autorizou a quebra do sigilo telefônico, declarando sua ilegalidade e determinando seu desentranhamento dos autos para, ao fi nal, ser anulada a denúncia e seu recebimento, obstando a marcha do processo.

A inicial veio acompanhada dos documentos de fl s. 02-272.

A inicial foi indeferida às fl s. 281-282, tendo o Superior Tribunal de Justiça, através de despacho do ilustre Ministro Relator Paulo Gallotti, determinado o trâmite regular do presente mandamus.

Intimada, a autoridade coatora prestou suas informações às fl s. 296.

No parecer de fl s. 298-299, opina a douta Procuradoria-Geral de Justiça pela denegação da ordem.

É o relatório.

Passo ao voto.

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 24, (226): 801-859, abril/junho 2012 805

Toda a sustentação trazida aos autos é no sentido de que a decisão atacada pela via do presente habeas corpus estaria lastreada no direito do acusado ao devido processo legal e ao fi nal pretende o impetrante ver “anulada a quebra do sigilo telefônico e inclusive declarada ilegal as mensagens de texto pela inexistência de autorização para tal, determinando-se o desentranhamento delas e demais derivadas, e anulada a denúncia e seu recebimento, sejam os autos devolvidos à Delegacia de Polícia, para que proceda escorreita investigação, com provas desvinculadas das gravações daqui decorrentes”.

Por certo que o art. 5º, LXVIII, da Constituição Federal, autoriza concessão de habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder.

Em princípio, o Habeas Corpus, remédio jurídico de magnitude constitucional, só se presta à defesa da liberdade de ir e vir.

Não é ele a panacéia universal destinada à cura de todos os males, muito menos instrumento visando à apuração ou correção de irregularidades ou nulidades, seja do processo em andamento, ainda pendente de sentença (STF - HC n. 66.224-PE - Rel: Min. Carlos Madeira - RTJ 127/559), seja de processo fi ndo (STJ - RHC n. 197-AL - Rel: Min. Dias Trindade - DJU 16.10.1989 - p. 15.861), seja de inquérito policial (STF - RHC n. 66.428-8-PR - Rel: Min. Sydney Sanches - DJU 2. 9.1988 - p. 21.826).

Somente casos excepcionais e visíveis de plano, se deve decretar nulidade de processo através da via estreita do habeas corpus, pois, como tem entendido a jurisprudência, o “habeas corpus é remédio excepcional para a salvaguarda da liberdade de ir e vir da pessoa, quando esta constitua objeto de constrangimento resultante de ilegalidade ou abuso de poder; não é meio para se fazer correição e varredura de possíveis irregularidades ocorridas no processo penal” (STF - HC n. 73.340-9-SP - Rel: Min. Maurício Corrêa - DJU 4.5.2001 - p. 3).

A virtual nulidade do processo que interfi ra com o direito de locomoção do réu autoriza a impetração, no entanto, não se mostra possível a impetração com o único objetivo de obter a declaração de nulidade processual.

Menos ainda se justificaria o que parece ser o real objetivo da presente impetração, sustar o andamento da marcha processual, na forma declinada na inicial, mormente em processo onde existem nada menos do que 66 indivíduos denunciados em quadrilha organizada por tráfi co e associação para o tráfi co e onde vários deles estariam presos preventivamente, como que numa manobra que teria o único objetivo de obstar a célere marcha do processo.

Diante do exposto, denego a ordem.

Vê-se que o Tribunal de origem acabou por não apreciar a legalidade

das interceptações telefônicas ao fundamento de que o habeas corpus não seria

instrumento processual destinado à apreciação de nulidades processuais.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

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Embora concorde que o habeas corpus ultimamente venha se servindo –

repetindo o que disse o acórdão – de “panacéia universal destinada à cura de

todos os males”, a jurisprudência dos Tribunais Superiores é fi rme quanto à

possibilidade do manejo do writ para a arguição de ilegalidades cometidas

no curso do processo criminal, o qual, em última análise, poderá culminar em

aplicação de pena de prisão.

Observe-se, inclusive, que o paciente responde à ação penal aqui tratada

preso cautelarmente, circunstância que avulta o interesse na veiculação da

pretensão por meio do habeas corpus.

Dessa forma, tenho que o constrangimento ilegal reside na ausência de

enfrentamento do mérito da impetração originária pela Corte a quo.

Registre-se que o exame da legalidade das interceptações não pode ser

aqui operado diretamente, para que não se incorra em indevida supressão de

instância.

Confi ram-se os seguintes julgados:

Recurso ordinário em habeas corpus interposto contra decisão que indefere liminarmente o writ originário. Recebimento. Economia processual. Cabimento do mandamus contra decisão que determina desentranhamento de documentos em feito criminal.

1. Embora se cuide de recurso ordinário interposto contra decisão que indefere liminarmente habeas corpus, tenho como importante, por medida de economia processual, examinar o apelo, em razão de ser perfeitamente cabível a formulação de writ em ataque a provimento desse jaez.

2. Na hipótese, ao contrário do afi rmado pelo Relator originário, mostra-se possível a impetração de habeas corpus contra provimento que determina o desentranhamento de documentos em feito de natureza criminal, pois, em última análise, eventual e ulterior sentença condenatória à pena privativa de liberdade poderá estar contaminada pelo vício de cerceamento de defesa.

3. Ação-garantia de índole constitucional, o writ tem por objetivo tutelar a liberdade de locomoção (CF, art. 5º, LXVIII), tornando-se viável a sua impetração, inclusive, contra ato simplesmente ameaçador ao direito de ir e vir. Por isso, estende seu espectro às decisões judiciais que, em tese, possam violar os princípios do devido processo legal e da ampla defesa, desde que, ao fi nal, se vislumbre a possibilidade de aplicação de pena privativa de liberdade.

4. Recurso ordinário a que se dá provimento para, cassada a decisão atacada, determinar que se dê seguimento ao habeas corpus originário.

(RHC n. 25.662-MG, de minha relatoria, DJe de 8.9.2009)

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 24, (226): 801-859, abril/junho 2012 807

Habeas corpus. Execução penal. Remição. Cálculo da pena. Prévia ordem indeferida liminarmente por inadequação da via eleita. Conhecimento do suposto constrangimento nesta sede. Inviabilidade. Supressão de instância. Incursão na seara fático-probatória. Desnecessidade. Cabimento do writ. Concessão parcial da ordem. Determinação de apreciação do mérito da anterior impetração.

1. A esta Corte compete apreciar os supostos constrangimentos ilegais oriundos de decisões provenientes de Tribunais de Justiça ou Cortes Regionais Federais. In casu, tendo o Sodalício de origem indeferido liminarmente a prévia ordem, sem adentrar ao mérito, não é possível a este Pretório conhecer das alegações, sob pena de indevida supressão de instância.

2. É assente neste Superior Tribunal o entendimento de que a existência de recurso próprio não confi gura óbice à apreciação de questões exclusivamente de direito na via do habeas corpus, desde que a análise da legalidade do ato coator prescinda de incursão na matéria fático-probatória.

3. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida, de ofício, em menor extensão, para determinar ao Tribunal de origem que julgue o mérito do prévio writ.

(HC n. 204.715-SP, Relatora a Ministra Maria Thereza de Assis Moura, DJe de 8.9.2011)

Por todo o exposto, não conheço do habeas corpus e concedo a ordem, de

ofício, para que a Corte Estadual examine o mérito da impetração originária,

decidindo como entender de direito.

É o voto.

HABEAS CORPUS N. 185.859-SP (2010/0174860-5)

Relator: Ministro Sebastião Reis Júnior

Impetrante: Diogo Cristino Sierra e outro

Impetrado: Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

Paciente: Renato José da Silva (preso)

EMENTA

Habeas corpus. Tráfi co de drogas. Princípio da identidade física

do juiz. Juiz sentenciante diverso do responsável pela condução da

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instrução criminal. Ausência de confi guração das hipóteses previstas no art. 132 do CPC. Nulidade confi gurada. Liberdade provisória. Ausência de fundamentação concreta. Constrangimento ilegal evidenciado.

1. Com o advento da Lei n. 11.719/2008, o magistrado que presidir a instrução criminal deverá sentenciar o feito, ou seja, o juiz que colher a prova fi ca vinculado ao julgamento da causa.

2. Esta Corte Superior de Justiça tem se orientado no sentido de que deve ser admitida a mitigação do princípio da identidade física do juiz nos casos de convocação, licença, promoção, aposentadoria ou afastamento por qualquer motivo que impeça o juiz que presidiu a instrução de sentenciar o feito, por aplicação analógica da regra contida no art. 132 do Código de Processo Civil.

3. Verifi cado que foi prolatada sentença penal condenatória por juiz diverso do que presidiu toda a instrução e que não está confi gurada nenhuma das hipóteses previstas no art. 132 do Código de Processo Civil, impõe-se a concessão da ordem para que seja anulada a sentença, determinando que outra seja proferida, dessa vez pelo Juiz titular da Vara ou por seu sucessor, conforme o caso.

4. Consoante entendimento da Sexta Turma deste Sodalício, a vedação genérica à concessão de liberdade provisória contida no art. 44 da Lei n. 11.343/2006 não impede, por si só, o deferimento do almejado benefício, caso ausentes quaisquer das hipóteses autorizadoras previstas no art. 312 do Código de Processo Penal.

5. Esta colenda Turma tem se posicionado no sentido de que, ainda que se trate de delito de tráfi co, a Lei n. 11.464/2007, ao suprimir do art. 2º, II, da Lei n. 8.072/1990 a vedação à liberdade provisória nos crimes hediondos e equiparados, adequou a lei infraconstitucional ao texto da Carta Política de 1988, que prevê apenas a inafi ançabilidade de tais infrações, sendo inadmissível a manutenção do acusado no cárcere quando não demonstrados os requisitos autorizadores de sua prisão preventiva.

6. Verifi cado que foi negada a liberdade provisória ao paciente apenas com fundamento na vedação genérica do art. 44 da Lei de Drogas, na gravidade abstrata do delito, nas suas consequências sociais e em alusões genéricas acerca da imprescindibilidade de mantença de

custódia cautelar, de rigor a concessão do almejado benefício.

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 24, (226): 801-859, abril/junho 2012 809

7. Ordem concedida para anular o Processo n. 130/10, da 7ª

Vara Criminal de São Paulo, desde a sentença, determinando que

outra seja proferida pelo Juiz que presidiu a audiência de instrução

e julgamento, ressalvada a ocorrência das hipóteses do art. 132 do

Código de Processo Civil e com observância da vedação à reformatio

in pejus indireta, bem como para conceder a liberdade provisória ao

paciente, sem prejuízo da aplicação das medidas introduzidas pela Lei

n. 12.403/2011 ou da decretação da prisão preventiva, se sobrevierem

fatos novos que justifi quem a adoção dessas medidas.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,

acordam os Ministros da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, por

unanimidade, conceder a ordem de habeas corpus nos termos do voto do Sr.

Ministro Relator. Os Srs. Ministros Vasco Della Giustina (Desembargador

convocado do TJ-RS) e Og Fernandes votaram com o Sr. Ministro Relator.

Ausente, justifi cadamente, a Sra. Ministra Maria Th ereza de Assis Moura.

Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Og Fernandes.

Brasília (DF), 13 de setembro de 2011 (data do julgamento).

Ministro Sebastião Reis Júnior, Relator

DJe 19.10.2011

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Sebastião Reis Júnior: Trata-se de habeas corpus, com

pedido liminar, impetrado em favor de Renato José da Silva, em que se aponta

como autoridade coatora a Nona Câmara de Direito Criminal do Tribunal

de Justiça de São Paulo, que denegou o HC n. 990.10.393271-4, mantendo a

sentença que condenou o paciente à pena de 2 anos e 6 meses de reclusão, em

regime inicial fechado, e multa pela prática do crime previsto no art. 33, caput e

§ 4º, da Lei n. 11.343/2006.

Os impetrantes sustentam a ocorrência de constrangimento ilegal ao

argumento de que teria sido inobservado o princípio da identidade física do juiz,

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previsto no art. 399, § 2º, do Código de Processo Penal, visto que o magistrado

sentenciante não teria sido o mesmo que presidiu a instrução criminal.

Requereram, liminarmente, fosse o paciente imediatamente colocado em

liberdade. No mérito, pugnam pela concessão da ordem para que seja anulada

a sentença condenatória, determinando-se que outra seja prolatada, bem como

seja relaxada a custódia cautelar do paciente.

A liminar foi indeferida pelo então Relator, Ministro Celso Limongi

(Desembargador convocado do TJ-SP).

Informações prestadas.

O Ministério Público Federal manifestou-se pela concessão da ordem (fl s.

165-169).

É o relatório.

VOTO

O Sr. Ministro Sebastião Reis Júnior (Relator): Da análise dos autos,

verifi ca-se que o paciente foi condenado à pena de 2 anos e 6 meses de reclusão,

em regime inicial fechado, e multa pela prática do crime previsto no art. 33,

caput, e § 4º, da Lei n. 11.343/2006, porque, no dia 18.1.2010, “trazia consigo,

para fi ns de fornecimento a terceiros, 257 pinos de cocaína, sem autorização e

em desacordo com determinação legal ou regulamentar” (fl . 97).

Inconformada, a defesa ingressou com remédio constitucional no Tribunal

de origem, por meio do qual alegou violação do princípio da identidade física

do juiz, tendo a ordem sido denegada pelos fundamentos a seguir aduzidos (fl .

136):

[...]

Importa considerar, de início, a inexistência de demonstração de qualquer circunstância concreta que pudesse conferir contornos de ilegalidade à situação do paciente, de modo a justifi car o reconhecimento de coação ilegal, nos termos do art. 648, do Cód. de Proc. Penal.

A inovação legislativa introduzida pela Lei n. 11.719/2008, alterou alguns pontos do Código de Processo Penal, inclusive, o parágrafo 2º do art. 399, nos seguintes termos: “o juiz que presidiu a instrução deverá proferir a sentença”.

Esta regra, à evidência, não é absoluta e o pronunciamento de nulidade, a teor do art. 563, do Cód. de Proc. Penal, está subordinado à demonstração de prejuízo.

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 24, (226): 801-859, abril/junho 2012 811

Ademais, é preciso ter em consideração, a propósito, as normais movimentações funcionais e as situações excepcionais, em particular, em relação às persecuções penais relativas a réus presos.

Em conformidade com as informações certifi cadas nos autos, no dia em que os autos foram remendos à conclusão, o MM. Juiz Titular encontrava-se gozo de compensação [...]

No que tange à alegada violação do princípio da identidade física do

juiz, necessário se faz, inicialmente, transcrever o disposto no art. 399, § 2º, do

Código de Processo Penal, in verbis:

Art. 399. Recebida a denúncia ou queixa, o juiz designará dia e hora para a audiência, ordenando a intimação do acusado, de seu defensor, do Ministério Público e, se for o caso, do querelante e do assistente. (Redação dada pela Lei n. 11.719, de 2008).

§ 1º O acusado preso será requisitado para comparecer ao interrogatório, devendo o poder público providenciar sua apresentação. (Incluído pela Lei n. 11.719, de 2008)

§ 2º O juiz que presidiu a instrução deverá proferir a sentença. (Incluído pela Lei n. 11.719, de 2008)

De acordo com o referido princípio, aplicado no âmbito do processo penal

somente com o advento da Lei n. 11.719, de 20 de junho de 2008, o magistrado

que presidir a instrução criminal deverá sentenciar o feito, ou seja, o juiz que colher

a prova fi ca vinculado ao julgamento da causa, por entender-se que seria mais fi el ao

sentido do conjunto probatório, já que em contato direto com a prova, do que aquele

que dele tomasse conhecimento apenas pelo que estivesse reproduzido nos autos.

Não obstante, deve-se ter em mente que “a adoção do princípio da

identidade física do juiz no processo penal não pode conduzir ao raciocínio

simplista de dispensar totalmente e em todas as situações a colaboração de outro

juízo na realização de atos judiciais, inclusive do interrogatório do acusado, sob

pena de subverter a fi nalidade da reforma do processo penal, criando entraves

à realização da Jurisdição Penal que somente interessam aos que pretendem se

furtar à aplicação da Lei.” (CC n. 99.023-PR, Ministro Napoleão Nunes Maia

Filho, Terceira Seção, DJ 28.8.2009).

Assim, diante da ausência de outras normas específi cas regulamentando o

mencionado dispositivo legal, esta Corte Superior de Justiça tem se orientado

no sentido de que deve ser admitida a mitigação do aludido princípio nos casos de

convocação, licença, promoção, aposentadoria ou afastamento por qualquer motivo que

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

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impeça o juiz que presidiu a instrução de sentenciar o feito, por aplicação analógica,

devidamente autorizada pelo art. 3º do Código de Processo Penal, da regra contida no

art. 132 do Código de Processo Civil, que assim dispõe:

Art. 132. O juiz, titular ou substituto, que concluir a audiência julgará a lide, salvo se estiver convocado, licenciado, afastado por qualquer motivo, promovido ou aposentado, casos em que passará os autos ao seu sucessor. (Redação dada pela Lei n. 8.637, de 31.3.1993).

Parágrafo único. Em qualquer hipótese, o juiz que proferir a sentença, se entender necessário, poderá mandar repetir as provas já produzidas.

Dessa forma, tem-se que a regra é a de que a sentença deverá ser proferida

pelo magistrado que colheu as provas durante o processo criminal, admitindo-

se, excepcionalmente, que juiz diverso o faça, desde que impossibilitado de

realizar tal ato em razão de alguma das hipóteses legalmente previstas.

Nesse sentido, o seguinte julgado da Quinta Turma deste Sodalício:

Embargos de declaração em habeas corpus. Princípio da identidade física do juiz. Art. 399, § 2º, do CPP. Sentença proferida por juiz substituto. Juiz que presidiu audiência em gozo de férias. Aplicação analógica do art. 132 do Código de Processo Civil.

1. De acordo com o princípio da identidade física do juiz, incorporado ao ordenamento jurídico pátrio com o advento da Lei n. 11.719/2008, o magistrado que presidir a instrução criminal deverá proferir a sentença no feito, nos termos do art. 399, § 2º, do Código de Processo Penal.

2. “No entanto, em razão da ausência de regras específi cas, deve-se aplicar por analogia o disposto no art. 132 do CPC, segundo o qual no caso de ausência por convocação, licença, afastamento, promoção ou aposentadoria, deverão os autos passar ao sucessor do Magistrado.” (HC n. 163.425-RO, 5ª Turma, Rel. Min. Felix Fischer, DJe de 6.9.2010).

3. “A adoção do princípio da identidade física do Juiz no processo penal não pode conduzir ao raciocínio simplista de dispensar totalmente e em todas as situações a colaboração de outro juízo na realização de atos judiciais, inclusive do interrogatório do acusado, sob pena de subverter a fi nalidade da reforma do processo penal, criando entraves à realização da Jurisdição Penal que somente interessam aos que pretendem se furtar à aplicação da Lei.” (CC n. 99.023-PR, 3ª Seção, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJU de 28.8.2009).

4. Embargos de declaração acolhidos, sem efeitos infringentes, tão-somente para sanar a omissão apontada.

(EDcl no HC n. 162.254-SP, Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, DJe 24.8.2011)

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 24, (226): 801-859, abril/junho 2012 813

Na espécie, das informações colacionada aos autos, verifi ca-se que o Juiz

titular da 7ª Vara Criminal de São Paulo-SP, Djalma Rubens Lofrano Filho,

responsável por presidir toda a instrução criminal, com a realização de oitiva

de testemunhas de acusação, de defesa e do interrogatório do paciente (fl . 75),

encontrava-se em gozo de férias regulamentares no período de 1º.7.2010 a

15.7.2010, sendo que, de 19.7.2010 a 23.7.2010, encontrava-se no gozo de dias

de compensação (fl . 153).

Não obstante, constata-se que a sentença penal condenatória, datada do

dia 26.7.2010 (fl . 103) – portanto em data em que o juiz titular já havia retornado

a suas funções –, foi prolatada por magistrado diverso, pelo que evidente a violação do

princípio da identidade física do juiz, já que não confi gurada nenhuma das hipóteses

previstas no art. 132 do Código de Processo Civil.

Com efeito, não se pode admitir a prática alternada de atos processuais

entre juízes da mesma vara de forma indiscriminada, especialmente porque

evidenciado que, in casu, as provas colhidas pelo Juiz titular, como a oitiva de

testemunhas e o interrogatório do paciente, embasaram o édito condenatório.

Dessa forma, impõe-se a concessão da ordem para que seja anulada a sentença

condenatória proferida nos autos da Ação Penal n. 130/10, da 7ª Vara Criminal de

São Paulo-SP, determinando que outra seja proferida, dessa vez pelo Juiz que

presidiu a instrução, ressalvada a ocorrência de uma das hipóteses do art. 132 do

Código de Processo Civil.

Quanto à pretendida concessão de liberdade provisória ao paciente ou de

relaxamento da sua custódia cautelar, a Corte estadual assim se manifestou (fl .

137):

[...] a r. sentença condenatória está devidamente motivada, com referência, em especial, à condenação do paciente a crime equiparado a hediondo, bem como à presença dos requisitos da manutenção da prisão cautelar.

Importa anotar, a propósito, que, além de o paciente ter permanecido preso durante a tramitação do feito, iniciará, necessariamente, o cumprimento de pena em regime fechado (L. n. 8.072/1990, art. 2º, § 1º) e, a teor do art. 44, caput, da Lei n. 11.343/2006, não fazia jus ao benefício da liberdade provisória.

Razoável, portanto, a manutenção da prisão provisória, tanto para garantia da aplicação da lei penal, como para garantia da ordem pública, quer para evitar a reiteração criminosa, quer para resgatar a estabilidade social, que, em casos como o presente resta sobremaneira comprometida.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

814

Com efeito, consoante entendimento da Sexta Turma deste Sodalício,

a vedação genérica à concessão de liberdade provisória contida no art. 44 da Lei

n. 11.343/2006 não impede, por si só, o deferimento do almejado benefício, caso

ausentes quaisquer das hipóteses autorizadoras previstas no art. 312 do Código

de Processo Penal.

Ainda, esta colenda Turma tem se posicionado no sentido de que, ainda

que se trate de delito de tráfi co de drogas, a Lei n. 11.464/2007, ao suprimir

do art. 2º, II, da Lei n. 8.072/1990 a vedação à liberdade provisória nos crimes

hediondos e equiparados, adequou a lei infraconstitucional ao texto da Carta

Política de 1988, que prevê apenas a inafi ançabilidade de tais infrações, sendo

inadmissível a manutenção do acusado no cárcere quando não demonstrados os

requisitos autorizadores de sua prisão preventiva, exatamente como na hipótese dos

autos, em que foi negada a liberdade provisória ao paciente apenas com fundamento

na vedação genérica do art. 44 da Lei de Drogas, na gravidade abstrata do delito,

nas suas consequências sociais e em alusões genéricas acerca da imprescindibilidade de

mantença de custódia cautelar.

Nesse sentido, confi ra-se o seguinte julgado:

Agravo regimental no recurso especial. Penal. Tráfi co de drogas. Prisão cautelar. Necessidade de fundamentação com base em fatores concretos. Liberdade provisória. Possibilidade.

1. É de ser mantida a decisão agravada por seus próprios fundamentos, pois a Sexta Turma desta Corte vem decidindo no sentido de que, com o advento da Lei n. 11.464/2007, a qual alterou a redação do art. 2º, II, da Lei n. 8.072/1990, tornou-se possível a concessão de liberdade provisória aos crimes hediondos ou equiparados, nas hipóteses em que não estejam presentes os requisitos do art. 312 do Código de Processo Penal.

2. A hediondez do delito e a vedação abstrata do art. 44 da Lei n. 11.343/2006 não impedem, por si só, a concessão do citado benefício.

3. Agravo regimental a que se nega provimento.

(AgRg no REsp n. 1.198.320-RS, Ministro Og Fernandes, Sexta Turma, DJe 4.4.2011)

Ante o exposto, concedo a ordem para anular o Processo n. 130/10, da

7ª Vara Criminal de São Paulo, desde a sentença, determinando que outra

seja proferida pelo Juiz que presidiu a audiência de instrução e julgamento,

ressalvada a ocorrência das hipóteses do art. 132 do Código de Processo Civil

e com observância da vedação à reformatio in pejus indireta, bem como para

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 24, (226): 801-859, abril/junho 2012 815

conceder a liberdade provisória ao paciente, sem prejuízo da aplicação das

medidas introduzidas pela Lei n. 12.403/2011 ou da decretação da prisão

preventiva, se sobrevierem fatos novos que justifi quem a adoção dessas medidas.

VOTO

O Sr. Ministro Vasco Della Giustina (Desembargador convocado do

TJ-RS): Sr. Presidente, é um processo de muita repercussão, deveria até ser

divulgado.

E V. Exa., eminente Ministro Relator, inclusive cita aqui o Código de

Processo Civil, do qual V. Exa. também é um expert. Acho que a matéria está

inteiramente bem elucidada e bem aplicada.

Acompanho o voto do Sr. Ministro Relator, concedendo a ordem de habeas

corpus.

HABEAS CORPUS N. 217.657-SP (2011/0210566-3)

Relator: Ministro Vasco Della Giustina (Desembargador convocado do

TJ-RS)

Impetrante: Luciano de Freitas Santoro e outro

Advogado: Luciano de Freitas Santoro

Impetrado: Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

Paciente: Manuel de Albuquerque Figueiredo

EMENTA

Habeas corpus. Crimes de falsidade ideológica e de uso de

documento falso. Declaração de pobreza para a obtenção do benefício

da justiça gratuita. Trancamento de ação penal. Falta de justa causa.

Atipicidade da conduta. Ordem concedida.

1. A conduta daquele que apresenta, em processo judicial,

declaração de hipossufi ciência inidônea, declarando-se pobre em

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

816

desacordo com a realidade ou com as hipóteses taxativas da Lei

n. 1.060/1950, não pode ser enquadrada como crime de falsidade

ideológica (art. 299 do CP) ou de uso de documento falso (art. 304 do

CP), pois aludida manifestação não pode ser considerada documento

para fi ns penais, já que é passível de comprovação posterior, seja

por provocação da parte contrária seja por aferição, de ofício, pelo

magistrado da causa. Precedentes do STJ e do STF; magistério de

Guilherme de Souza Nucci e de Juarez Tavares.

2. Ordem concedida para trancar a ação penal.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Sexta

Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, conceder a ordem de

habeas corpus, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. A Sra. Ministra Maria

Th ereza de Assis Moura e o Sr. Ministro Sebastião Reis Júnior votaram com o

Sr. Ministro Relator.

Ausente, justifi cadamente, o Sr. Ministro Og Fernandes.

Presidiu o julgamento a Sra. Ministra Maria Th ereza de Assis Moura.

Brasília (DF), 02 de fevereiro de 2012 (data do julgamento).

Ministro Vasco Della Giustina (Desembargador convocado do TJ-RS),

Relator

DJe 22.2.2012

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Vasco Della Giustina (Desembargador convocado do TJ-

RS): Trata-se de habeas corpus, substitutivo de recurso ordinário, com pedido

de liminar, impetrado em benefício de Manuel de Albuquerque Figueiredo,

contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que

conheceu em parte e denegou idêntica medida.

Consta dos autos que o paciente foi denunciado como incurso no art.

304 c.c. o art. 299, caput, ambos do Código Penal, uma vez que teria inserido

declaração falsa em documento particular - declaração de hipossufi ciência -,

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 24, (226): 801-859, abril/junho 2012 817

com o fi m de obter indevidamente o benefício da Justiça Gratuita em processo

judicial cível (fl s. 28-30).

Inconformada com o recebimento da exordial acusatória pelo Magistrado

de primeiro grau (fl . 95), a defesa impetrou o remédio heróico perante a Corte

de Justiça local, pretendendo o trancamento da ação penal. A ordem, todavia, foi

denegada, recebendo o acórdão (fl s. 19-27) a seguinte ementa:

Habeas corpus. Paciente denunciado como incurso no artigo 304 c.c. artigo 299, caput, ambos do Código Penal.

Negativa de autoria. Ausência de dolo por parte do paciente. Inadmissibilidade. O habeas corpus constitui-se em meio impróprio para apreciar a alegação de ausência de provas sufi cientes para a condenação do paciente, pois depende de análise aprofundada quanto a matéria probatória. Ordem não conhecida para esse fi m.

Trancamento da ação penal por ausência de justa causa. Inadmissibilidade. A denúncia descreve fatos que, em tese, caracterizam ilícito penal, sendo que há, até o momento, indícios plausíveis que justifi cam o movimento do aparato judicial na presente ação penal.

Ordem parcialmente conhecida e, nesta parte, denegada. (fl . 20)

Por isso o presente mandamus, alegando o impetrante a ausência de justa

causa para a ação penal, ao argumento de que os fatos narrados são atípicos, sendo

desnecessário, para tal constatação, o amplo revolvimento de fatos e provas.

Acrescenta que “a declaração de pobreza, ainda que considerada falsa, não

é relevante para tipifi cação penal” (fl . 07), valendo ressaltar que “o MM. Juiz de

Direito da 26ª Vara Cível do Foro Central da Comarca da Capital, ao indeferir

o pedido de gratuidade da justiça, ainda condenou o paciente ‘a pagar o décuplo

das custas judiciais’” (fl . 07).

Requer, assim, o trancamento da Ação Penal n. 050.10.089039-3, que

tramita no Juízo da 20ª Vara Criminal da Comarca de São Paulo, capital.

O pedido de liminar foi indeferido às fl s. 149-151.

Informações prestadas às fl s. 155-166 e 168-181.

O parecer do Ministério Público Federal, subscrito pelo i. Subprocurador-

Geral da República Dr. Juarez Tavares, opinou, às fl s. 184-190, pela concessão

da ordem.

É o relatório.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

818

VOTO

O Sr. Ministro Vasco Della Giustina (Desembargador convocado do TJ-

RS) (Relator): A hipótese dos autos é de concessão do writ.

Cinge-se a controvérsia em saber se a declaração de hipossuficiência

prestada em processo judicial, com a fi nalidade de se obter a gratuidade de

justiça, subsume-se aos tipos penais dos arts. 299 (falsidade ideológica) e 304

(uso de documento falso) do Código Penal quando possuidora de informações

falsas.

Com efeito, eis os fatos descritos pelo acórdão estadual:

(...) o paciente foi denunciado como incurso no artigo 304 c.c. artigo 299, caput, ambos do Código Penal, porque no dia 24 de fevereiro de 2010, em local incerto do Município de São Paulo, Capital, inseriu declaração falsa em documento particular, com o fi m de prejudicar direito e alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante.

Segundo noticiado na exordial acusatória, no dia 26 de fevereiro de 2010, no Fórum João Mendes Jr., situado na Pça. João Mendes, Centro, nesta Capital, o paciente fez uso do referido documento particular ideologicamente falso por ele mesmo produzido.

Apurou-se, ainda, que no dia 26 de fevereiro do corrente ano, o paciente ajuizou junto ao Foro Central desta Comarca uma ação cautelar em face do Banco Real ABN. A petição inicial foi protocolada e distribuída para a 26ª Vara Cível daquele Foro.

Consta que a petição inicial foi instruída com uma declaração de pobreza, datada de 24 de fevereiro de 2010, fi rmada pelo próprio paciente. Por meio de tal documento, declarou-se Manuel “pessoa pobre, na acepção jurídica do termo”, alegando, ainda, não poder arcar com as despesas processuais sem prejuízo de seu sustento.

Com base em tal documento, Manuel requereu a concessão dos benefícios da Justiça Gratuita, criados pela Lei n. 1.060/1950, isentando-se do pagamento de custas processuais.

Todavia, diligências posteriores promovidas pelo Juízo Cível revelaram que a declaração de pobreza produzida e assinada pelo paciente era ideologicamente falsa, pois o paciente era proprietário de 07 (sete) imóveis e possuía diversas aplicações financeiras, auferindo, ainda, rendimentos de capital e alugueres, tendo declarado à Receita Federal, naquele mesmo exercício, um patrimônio de R$ 675.135,59 (seiscentos e setenta e cinco mil, cento e trinta e cinco reais e cinqüenta e nove centavos).

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 24, (226): 801-859, abril/junho 2012 819

Referida situação econômica, a toda evidência, não se coaduna com a condição de “pobre” invocada pelo paciente para prejudicar o direito do Estado ao recebimento das custas processuais e para alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante (sua capacidade fi nanceira plena para o pagamento de tais despesas).

Descreve, por fim, a denúncia, que após ter produzido tal documento, o paciente utilizou-o para instruir seu pedido de concessão de benefícios da Justiça Gratuita formulado quando do ajuizamento da petição inicial da ação proposta. Com tal uso, o paciente tentou induzir em erro o Juízo da 26ª Vara Cível do Foro Central da Capital, ao qual foi dirigido o pedido embasado na declaração mentirosa. (fl s. 22-23)

Sobre o tema, a jurisprudência dominante deste Tribunal Superior é no sentido de que a conduta daquele que apresenta, em processo judicial, declaração de hipossufi ciência inidônea, declarando-se pobre em desacordo com a realidade ou com as hipóteses taxativas da Lei n. 1.060/1950, não pode ser enquadrada como crime de falsidade ideológica (art. 299 do CP) ou de uso de documento falso (art. 304 do CP), pois aludida manifestação não pode ser considerada documento para fi ns penais, já que é passível de comprovação posterior, seja por provocação da parte contrária seja por aferição, de ofício, pelo magistrado da causa, dado que ostenta apenas presunção relativa (juris tantum). Assim, havendo dúvidas sobre o estado de miserabilidade do declarante, pode o juiz indeferir o benefício da justiça gratuita, em consonância com as provas colhidas, sendo possível, ademais, a imposição de penalidade de pagamento de até o décuplo das custas judiciais para reprimir a prática desleal.

A respeito, o seguinte julgado desta Sexta Turma:

Penal. Habeas corpus. Falsidade ideológica. Inquérito policial. Trancamento. Possibilidade apenas quando demonstrada a manifesta atipicidade da conduta. Declaração de pobreza. Falsidade aventada pelo magistrado. Não adequação da conduta ao delito previsto no artigo 299 do Código Penal. Documento que, por si só, não possui força probante. Necessidade de ulterior averiguação pelo juízo, de ofício ou a requerimento. Atipicidade. Necessidade de trancamento. Ordem concedida.

1. O trancamento de inquérito policial somente é viável ante a cabal e inequívoca demonstração da atipicidade da conduta atribuída ao investigado.

2. Consoante recente orientação jurisprudencial do egrégio Supremo Tribunal Federal, seguida por esta Corte, eventual declaração de pobreza fi rmada com o fi to de obter o benefício da gratuidade de justiça não se adéqua ao tipo penal previsto no artigo 299 do Código Penal, pois não possui, por si só, força probante, já que sujeita à posterior averiguação pelo Magistrado, de ofício ou a requerimento.

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820

3. Ordem concedida. (HC n. 110.422-DF, Rel. Min. Jane Silva (Desembargadora convocada do TJ-MG), DJe 09.02.2009)

Na mesma esteira, os precedentes da Quinta Turma a seguir colacionados:

Habeas corpus. Penal. Crime de falsidade ideológica. Declaração de pobreza para obtenção do benefício da justiça gratuita. Conduta atípica. Trancamento da ação penal. Constrangimento ilegal evidenciado. Ordem concedida.

1. O trancamento da ação penal, em sede de habeas corpus, somente deve ser acolhido se restar demonstrado, de forma indubitável, a ocorrência de circunstância extintiva da punibilidade, a ausência de indícios de autoria ou de prova da materialidade do delito, ou a atipicidade da conduta.

2. A declaração de pobreza com o intuito de obter os benefícios da justiça gratuita goza de presunção relativa, passível, portanto, de prova em contrário.

3. Assim, a conduta de quem se declara falsamente pobre visando aludida benesse não se subsume àquela descrita no art. 299 do Código Penal. Precedentes.

4. Ordem concedida para determinar o trancamento da ação penal. (HC n. 105.592-RJ, Rel. Min. Jorge Mussi, DJe 19.04.2010)

Penal. Recurso especial. Artigos 299 e 304 do Código Penal. Declaração de pobreza para obtenção do benefício da justiça gratuita. Atipicidade da conduta. Recurso improvido.

1. A conduta de quem se declara falsamente pobre visando aludida benesse ou se utiliza de tal documento para instruir pleito de assistência judiciária gratuita não se subsume àquelas descritas nos artigos 299 e 304 do CP. (REsp n. 1.096.682-SC, Rel. Min. Jorge Mussi, Quinta Turma, DJ 1º.6.2009).

2. Recurso especial improvido. (REsp n. 1.100.837-SC, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJe 13.10.2009)

Penal. Recurso ordinário em habeas corpus. Inquérito policial. Trancamento. Falsidade ideológica. Declaração de pobreza para obtenção do benefício da gratuidade judiciária. Situação não autorizada pela Lei n. 1.060/1950. Atipicidade da conduta. Constrangimento ilegal evidenciado.

I - Conquanto, a teor da jurisprudência desta Corte, seja o trancamento do inquérito policial medida excepcional, a hipótese delineada nos presentes autos autoriza que se obste, na origem, o prosseguimento das investigações, dada a fl agrante atipicidade da conduta atribuída ao recorrente.

II - A conduta daquele que declara pobreza, fora das hipóteses legais previstas na Lei n. 1.060/1950, com o fi to de obter o benefício da gratuidade judiciária, per se, não se amolda ao delito tipifi cado no art. 299 do CP, uma vez que a declaração, em si mesma, goza de presunção juris tantum, sujeita, portanto, a comprovação posterior, realizada, de ofício, pelo magistrado, ou mediante impugnação, nos

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 24, (226): 801-859, abril/junho 2012 821

termos da própria Lei de regência (Precedente do STF: HC n. 85.976-MT, Segunda Turma, Rel. Ministra Ellen Gracie, DJU de 24.2.2006).

Recurso ordinário provido. (RHC n. 23.121-SP, Rel. Min. Felix Fischer, DJe 10.11.2008)

O Supremo Tribunal Federal também perfi lha da mesma orientação, como

se colhe do seguinte aresto:

Falsidade ideológica. Declaração de pobreza para fi ns de gratuidade judiciária.

Declaração passível de averiguação ulterior não constitui documento para fi ns penais.

HC deferido para trancar a ação penal. (HC n. 85.976-MT, Rel. Min. Ellen Gracie, Segunda Turma, DJ de 24.02.2006)

A respeito da matéria sob exame, por pertinente, cumpre trazer à baila as

lições de GUILHERME DE SOUZA NUCCI:

Documento não é a declaração sujeita á comprovação. Quando se apresenta uma carteira de habilitação, por exemplo, nada mais se exige, pois se deduz ser o motorista apto a dirigir veículo automotor. Se for documento falso, cabe punição, pois lesou a fé pública. No entanto, ofertada uma declaração de pobreza, presume-se a situação de carência, até prova em contrário, que pode ser apresentada por qualquer parte interessada ou produzida de ofício pelo magistrado.

(...)

Percebe-se, com clareza, não ser a declaração de pobreza um documento hábil a demonstrar, de pronto, a situação de carência. Sujeita-se à demonstração de veracidade por outros documentos e à produção de provas, nos mesmos autos onde deveria produzir seus efeitos.

Aliás, outro dado relevante para essa análise diz respeito à verifi cação feita pelos órgãos estatais, que promovem a assistência judiciária à população carente. Faz-se uma triagem entre quem é realmente pobre, necessitando dos serviços, e quem pode arcar com os custos da defesa. Não se aceita mera declaração de pobreza, pois se sabe ser mera petição; jamais um documento.

(...)

A declaração de pobreza não é documento; não se destina a constituir prova intrínseca de pobreza; depende de confi rmação por outros elementos; confi gura mera presunção de pobreza, passível de prova em contrário, a qualquer momento.

Em suma, não se pode acolher a declaração de pobreza como base fática apta a constituir a tipicidade do delito de falsidade ideológica. (In: “Tratado Jurisprudencial

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

822

e Doutrinário”: Direito Penal, vol. II - Parte especial e legislação penal especial, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 836-837).

Por fi m, cumpre transcrever os seguintes trechos do parecer ministerial,

subscrito pelo renomado penalista e ilustre membro da Subprocuradoria-Geral

da República Dr. Juarez Tavares:

O crime de falsidade ideológica somente se aperfeiçoa caso o conteúdo inidôneo inserido no documento tenha o condão de produzir seus efeitos jurídicos, com valor probatório, sem necessidade de posterior chancela, para sua concreta validação.

Ocorre que a declaração de pobreza, para fi ns de obter benefício de gratuidade de justiça, é um documento sujeito à verifi cação ofi cial. A veracidade da afi rmação nela aposta depende de certifi cação pelo juiz, que pode livremente aceitá-la ou rejeitá-la, caso constate que a parte não faz jus ao benefício.

Além disso, em qualquer momento do processo, se surgir alguma suspeita a respeito da veracidade da declaração de hipossufi ciência, poderá a parte contrária impugná-la, ou o juiz revogá-la.

(...)

Como se vê, a lei não outorga à declaração de pobreza a função de fazer prova dos fatos que afi rma, não podendo, por si mesma, ser considerada um documento, na acepção exigida para a confi guração do crime em apreço.

(...)

De outro giro, mister ressaltar que o delito de falsidade ideológica não prescinde que a declaração falsa tenha por objetivo prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade acerca de um fato juridicamente relevante (...) (fl s. 186-187)

Ante o exposto, concedo a ordem para determinar o trancamento da

Ação Penal n. 050.10.089039-3, que tramita no Juízo da 20ª Vara Criminal da

Comarca da Capital-SP.

É como voto.

HABEAS CORPUS N. 218.411-RS (2011/0218596-4)

Relatora: Ministra Maria Th ereza de Assis Moura

Impetrante: Cleomir de Oliveira Carrão - defensora pública

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 24, (226): 801-859, abril/junho 2012 823

Impetrado: Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

Paciente: Joao Roberto Fraga

EMENTA

Execução penal. Habeas corpus. Regime aberto. Superlotação

e precariedade das casas de albergado. Constrangimento ilegal.

Ocorrência. Cumprimento em regime aberto domiciliar. Possibilidade.

Ordem concedida.

1. Se, por culpa do Estado, o condenado não vem cumprindo

pena em estabelecimento prisional adequado ao regime fi xado na

decisão judicial (aberto), resta caracterizado o constrangimento ilegal.

2. A superlotação e a precariedade do estabelecimento penal, é

dizer, a ausência de condições necessárias ao cumprimento da pena em

regime aberto, permite ao condenado a possibilidade de ser colocado

em prisão domiciliar, até que solvida a pendência, em homenagem aos

princípios da dignidade da pessoa humana, da humanidade da pena e

da individualização da pena.

3. Ordem concedida para que o paciente seja imediatamente

colocado em regime aberto domiciliar, para que aguarde o surgimento

de vaga em casa de albergado com condições mínimas necessárias ao

adequado cumprimento da pena em regime aberto, restabelecido o

decisum de primeiro grau.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,

acordam os Ministros da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça: “A

Turma, por unanimidade, concedeu a ordem de habeas corpus, nos termos do

voto da Sra. Ministra Relatora.” Os Srs. Ministros Sebastião Reis Júnior e Vasco

Della Giustina (Desembargador convocado do TJ-RS) votaram com a Sra.

Ministra Relatora.

Ausente, justifi cadamente, o Sr. Ministro Og Fernandes.

Presidiu o julgamento a Sra. Ministra Maria Th ereza de Assis Moura.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

824

Brasília (DF), 02 de fevereiro de 2012 (data do julgamento).

Ministra Maria Th ereza de Assis Moura, Relatora

DJe 15.2.2012

RELATÓRIO

A Sra. Ministra Maria Th ereza de Assis Moura: Trata-se de habeas corpus,

com pedido liminar, impetrado em favor de João Roberto Fraga, apontando-se

como autoridade coatora o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

(Agravo em Execução Penal n. 70042819078).

Colhe-se dos autos que o paciente, condenado a pena de 5 (cinco) anos e

6 (seis) meses de reclusão, cumpria pena no regime aberto. Em 14.12.2010, o

Juízo das Execuções Criminais concedeu ao paciente a prisão domiciliar, ante a

superlotação e mistura com presos do regime semiaberto nos estabelecimentos

destinados ao regime aberto. Confi ra-se o teor da decisão:

O apenado João Roberto Fraga, condenado a 05 anos e 06 meses de reclusão, cumpre pena em regime aberto.

O Código Penal, em seu art. 33, § 1ª, c, estabelece que a pena privativa de liberdade a ser executada no regime aberto será cumprida em “casa de albergado” ou “estabelecimento adequado”, sendo tal regime baseado na autodisciplina e senso de responsabilidade do condenado, que “deverá, fora do estabelecimento e sem vigilância, trabalhar, freqüentar curso ou exercer outra atividade autorizada, permanecendo recolhido durante o período noturno e nos dias de folga”, de acordo com o art. 36, caput, do mesmo diploma legal.

Segundo a LEP, a Casa do Albergado deve consistir em prédio localizado em centro urbano, separado dos demais estabelecimentos, e caracterizar-se pela ausência de obstáculos físicos contra a fuga, e conter, além dos aposentos para acomodar os presos, local adequado para cursos e palestras (arts. 94 e 95 da LEP).

A Lei de Execução Penal vigora há aproximadamente 26 anos e, quando de sua edição, foi estabelecido o prazo de 6 meses para que as autoridades administrativas providenciassem a aquisição ou desapropriação de prédios para instalação de casas de albergados, conforme art. 203, § 2º.

Todavia, à margem da lei, os estabelecimentos prisionais destinados ao cumprimento da pena em regime aberto, sob jurisdição deste juízo da VEC de Porto Alegre, há muito apresentam superlotação, prejudicando o desenvolvimento de trabalho ou realização de atividades inclinadas à ressocialização do interno. Além disso, em razão da falta de vagas no regime semiaberto, a administração prisional

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 24, (226): 801-859, abril/junho 2012 825

passou a colocar os presos daquele regime nos estabelecimentos destinados aos do regime aberto, gerando mistura de presos, o que culmina por gerar descontrole interno, com trânsito de drogas, celulares e armas entre os detentos, além de condições insalubres e anti-higiênicas para o convívio.

Outrossim, o caos a que se chegou nos estabelecimentos prisionais, em especial, aqui, nos de regime aberto, tem nas fugas sua mais visível conseqüência, apresentando altos índices de evasão.

Como ressaltado, por conta da mistura indiscriminada entre presos dos regimes aberto e semiaberto, a administração prisional passa a tratar todos eles como se fossem de um mesmo regime, desprezando a individualização da pena. Observa-se, em tais estabelecimentos, que muitas vezes são colocadas barreiras para evitar as fugas, como portões, grades, cadeados, galerias e guardas, o que vai de encontro à expressa disposição da LEP.

Destaco que a situação deplorável de tais estabelecimentos prisionais é notória; inclusive, porquanto oportunas, trago à colação ponderações realizadas pela eminente Desª. Fabiane Breton Baisch ao proferir voto no Mandado de Segurança n. 70030416218, em que se decidia acerca da suspensão de dispositivos do Prov. 001/2009 desta VEC:

(...) Antes de adentrar na questão, propriamente dita, importante ressaltar o louvável empenho dos magistrados em solucionar, ou, melhor dizendo, atenuar os graves problemas verificados no sistema prisional brasileiro, sendo de todos conhecido o abandono estatal em relação aos indivíduos que tiveram sua liberdade tolhida, pela imposição de uma pena.

Não é de hoje que se faz urgente a tomada de medidas voltadas à cura de um sistema que se encontra agonizante, não havendo, em muitas casas prisionais e albergues, a mínima estrutura para abrigar aqueles que para lá foram enviados, a todo momento sendo noticiado, pelos juízes responsáveis, problemas de superlotação e completa ausência de higiene e possibilidade de tratamento adequado dessas pessoas. (...)

Oportuno também lembrar que o Ministério Público ajuizou ação civil pública, julgada procedente em primeiro grau, n. 001/1.07.0283822-9, sendo condenado o Estado, do Rio Grande do Sul, em 6.2.2009, ao cumprimento de obrigação de fazer consistente na geração e implementação de vagas necessárias para recolhimento dos presos de todos os regimes, possuindo 270 dias para implementar 40% da carência de vagas do regime aberto, o que ainda não ocorreu. A parte ré interpôs recurso de apelação, já julgado com trânsito em julgado, mantendo a sentença. Esse julgado, por evidente, reforça ainda mais a precária situação prisional gaúcha.

A situação dos albergues da região metropolitana de Porto Alegre, nos últimos 12 meses, só piorou.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

826

A Casa do Albergado Padre Pio Buck, a pedido do Ministério Público, está totalmente interditada desde 25.10.2010. O Instituto Penal Irmão Miguel Dario foi incendiado em 2.8.2010, ainda sem qualquer reforma, com o que há menos vagas. Ademais, todas superlotadas, não possuem nem agentes penitenciários sufi cientes.

Não por acaso, os presos que cumprem pena no regime aberto, nesses dois estabelecimentos, ressalvados condenados por crimes graves, foram postos em prisão domiciliar.

Atualmente, mais de 400 presos do regime fechado, já com progressão de regime deferido, aguardam remoção ao regime semiaberto. Isso porque inexistem vagas para o cumprimento de pena no regime semiaberto, muito menos para o aberto.

Por total incompetência do Poder Executivo, as remoções para os regimes mais brandos somente são possíveis graças às fugas, ou seja, o próprio sistema alimenta o descumprimento das penas e contribui para a não-socialização dos presos.

Vale destacar que, recentemente, houve revistas em casas prisionais sob jurisdição da VEC-POA, inclusive nas de regime semiaberto e aberto, onde foram encontrados armas, drogas, aparelhos de celular e outros objetos ilícitos, evidenciando o total descontrole do Estado.

Nesse cenário prisional em que as Casas de Albergado longe estão de cumprir a LEP e ainda apresentam condições propícias para o fomento da criminalidade em detrimento da sociedade, é preciso reavaliar o custo-benefício da manutenção de presos em regime aberto encarcerados.

Diante de tal contexto, o mero encaminhamento do apenado, cujo direito à progressão de regime ao aberto foi reconhecido, para casa prisional nas condições relatadas, confi guraria verdadeiro excesso de execução individual, conforme art. 185 da LEP, afrontando os princípios da individualização da pena, da dignidade da pessoa, da humanidade e da vedação ao cumprimento de penas cruéis.

Com efeito, no magistério do Promotor de Justiça goiano Haroldo Caetano da Silva, em sua obra Execução Penal: com as inovações da Lei n. 10.792/2003:

Excesso quer dizer aquilo que excede ou ultrapassa o permitido, o legal, o normal. Logo, estará caracterizado o excesso de execução quando o sentenciado é submetido a tratamento mais rigoroso do que o fi xado na sentença ou determinado pela lei, o que ocorrerá, por exemplo, na hipótese em que o agente, não obstante condenado a cumprir pena no regime aberto ou semi-aberto, é mantido em regime fechado; ou também no caso de, aplicada medida de segurança, não haja transferência para hospital psiquiátrico, permanecendo em cadeia pública. Nos dois exemplos, a execução ultrapassa, em prejuízo do sentenciado, os limites traçados pela decisão judicial ou pela lei, confi gurando o excesso.

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 24, (226): 801-859, abril/junho 2012 827

O cumprimento da pena na exata medida imposta em decisão judicial consiste em direito subjetivo do condenado, caracterizando constrangimento ilegal a execução em regime mais gravoso. Não se olvida, porém, que o apenado teve contra si proferida sentença penal condenatória, reconhecendo sua responsabilidade na prática de crime, devendo, pois, sofrer todas as sanções e conseqüências decorrentes de seu ato; entretanto, dentro da justa medida da lei; se o Estado, por meio de seus administradores, desde a edição da LEP, não conseguiu ele próprio cumprir a lei, não é razoável que o indivíduo venha a sofrer as conseqüências de tal desídia e ausência de senso de responsabilidade.

Nas palavras do Des. Amilton Bueno de Carvalho, expostas no prefácio do livro “Prática de Execução das Penas Privativas de Liberdade”, do Des. Marco Antônio Bandeira Scapini: “supera o discurso fácil e estéril de alguns no sentido de que no cotejo entre as garantias do apenado e a segurança da sociedade, prepondera a última, como se fossem esferas estanques, como se ocorresse confl ito entre os direitos do cidadão e os interesses sociais: estes só se legitimam quando preservam o ‘um’ - o todo’ é a soma de todos os ‘um’; quando se faz valer os direitos do ‘um’ se está fazendo garantir os direitos do todo’ (...)”.

Assim, feitas tais colocações, entendo que a solução emergencial que mais se ajusta ao caso concreto e à realidade do precário sistema prisional do Estado, de modo a respeitar o direito do apenado e também o das demais pessoas, que pugnam por segurança, é o de permitir que os apenados em regime aberto venham a cumprir pena nas condições de prisão domiciliar.

Outrossim, ressalto que o Código Penal permite que seja cumprida a pena do regime aberto em estabelecimento “adequado”, ao invés de casa de albergado, estando autorizado o magistrado, pelo art. 115 da LEP, a estabelecer condições especiais para a concessão de regime aberto, sem prejuízo daquelas obrigatórias elencadas em seus incisos, quais sejam:

I - permanecer no local que for designado, durante o repouso e nos dias de folga;

II - sair para o trabalho e retomar, nos horários fi xados;

III - não se ausentar da cidade onde reside, sem autorização judicial;

IV - comparecer a Juízo, para informar e justifi car as suas atividades, quando for determinado.’

Destaco que a possibilidade de cumprir pena em residência particular não afronta tal dispositivo; ao contrário, alinha-se perfeitamente às disposições lá contidas.

A solução emergencial aqui conferida ao apenado vem reiteradamente sendo admitida pela jurisprudência, inclusive dos Tribunais Superiores em julgados recentes:

(...)

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

828

Ante o exposto, defiro a João Roberto Fraga o cumprimento da pena nas condições da prisão domiciliar, quais sejam:

a) Poderá o apenado pernoitar em sua residência, recolhendo-se ao lar a partir das 19h até às 6h do dia seguinte;

b) Poderá ausentar-se de sua residência apenas para desenvolver atividade laborativa, estudo, tratamento médico seu e de seus filhos, devendo nela permanecer nos horários e dias de folga;

c) Não poderá mudar de residência sem prévia comunicação a este juízo, devendo obter autorização na hipótese de transferência para outra Comarca;

d) Deverá se apresentar trimestralmente ao juízo da execução, durante o período do benefício, informando suas atividades laborativas, estudantis ou tratamento médico;

e) Por fi m, o apenado deverá se apresentar, em 48h, à VEPMA, para indicar seu endereço e comprometer-se com as condições.

Oficie-se à casa prisional, com cópia desta decisão, para que seja dado conhecimento ao apenado das condições elencadas.

O apenado fi cará sujeito à fi scalização por Comissário de Vigilância.

Remeta-se o PEC à Vara de Execução de Penas e Medidas Alternativas (fl s. 116-123).

Irresignado, o Ministério Público interpôs agravo em execução, visando a

reforma do decisum que concedeu ao paciente o benefício da prisão domiciliar. O

Tribunal a quo deu provimento ao recurso, nos seguintes termos:

Prisão domiciliar. Hipóteses de cabimento.

Realmente, a superlotação das casas de albergue, bem como as precárias condições em que essas se encontram, não se revelam como motivos hábeis a que se mantenha a decisão guerreada.

Observemos o que preconiza o artigo 117 da LEP:

(...)

Verifi ca-se, assim, que o texto legal é expresso quanto a que o recolhimento em residência particular pressupõe esteja o apenado cumprindo a pena em regime aberto, além de se enquadrar em alguma das situações constantes do rol do referido artigo de lei.

E, nos autos, não há nenhum indicativo de que o apenado seja maior de 70 anos de idade ou que esteja acometido de doença grave, não sendo também mulher nas condições dos itens III e IV do art. 117 da LEP.

Logo, o ora agravado não faz jus à benesse então deferida, uma vez que, no caso dos autos, a superlotação prisional e as insalubres condições das casas

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 24, (226): 801-859, abril/junho 2012 829

prisionais, não ensejam a prisão domiciliar, visto que em notória inobservância ao art. 117 da LEP que rege a matéria.

(...)

Assim, voto pelo provimento do agravo aduzido, modificandoa decisão hostilizada (fl s. 153-156).

Sustenta o impetrante que o Tribunal de origem, ao dar provimento ao

recurso ministerial, afrontou os princípios constitucionais da dignidade da

pessoa humana e da individualização da pena, bem como o estatuído pelo Pacto

de São José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário.

Defende que as hipóteses do art. 117 da LEP são exemplifi cativas, e, que

o direito hodierno deve ser balizado pela principiologia constitucional. Aduz

que a jurisprudência rem admitido o cumprimento da pena em regime mais

brando sempre que o sistema prisional não for capaz de manter o detento em

estabelecimento adequado.

Requer, liminarmente, a suspensão do acórdão impugnado. No mérito,

pugna para que seja restabelecida a prisão domiciliar tal como concedida pelo

Juízo de execuções.

A liminar foi indeferida às fl s. 165-166.

Foram prestadas informações às fl s. 175-176 e 179-244.

Com vista dos autos, o Ministério Público Federal, em parecer da lavra

do Subprocurador-Geral Wagner de Castro Mathias Netto, manifestou-se pela

concessão parcial da ordem (fl s. 247-249).

É o relatório.

VOTO

A Sra. Ministra Maria Th ereza de Assis Moura (Relatora): Busca-se na presente impetração seja restabelecida a decisão de primeiro grau que deferiu ao paciente a prisão domiciliar ante a superlotação dos estabelecimentos prisionais destinados ao regime aberto e a precária situação prisional gaúcha.

Conforme salientou o Magistrado de primeiro grau, a situação dos estabelecimentos prisionais da comarca de Porto Alegre-RS é “deplorável” (fl . 117) e, até mesmo, caótica, haja vista que população das casas de albergado suplanta, em muito, o viável, chegando a prejudicar o desenvolvimento de trabalhos ou a realização de atividades destinadas à ressocialização dos internos.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

830

E não é só. Segundo consta, encontram-se inseridos em tais

estabelecimentos não apenas aqueles em que neles deveriam estar - os que

cumprem a pena em regime aberto - como também outros presos que cumprem

a pena em regime semiaberto, ante a ausência de vagas em estabelecimento

prisional adequado ao cumprimento da pena no regime intermediário. Tal

circunstância gera mistura de sentenciados, provocando “descontrole interno,

com trânsito de drogas, celulares e armas entre os detentos, além de condições

insalubres e anti-higiênicas para o convívio” (fl s. 116-117).

Destaque-se, ainda, consoante sublinhado pelo Juízo da Execução,

que em razão da “mistura indiscriminada entre presos dos regimes aberto e

semiaberto, a administração prisional passa a tratar todos eles como se fossem

de um mesmo regime, desprezando a individualização da pena”, e que “em tais

estabelecimentos, (...) muitas vezes são colocadas barreiras para evitar as fugas,

como portões, grades, cadeados, galerias e guardas, o que vai de encontro à

expressa disposição da LEP” (fl . 117).

Este Sodalício vem afastando o caráter taxativo do rol do art. 117 da Lei de

Execução Penal, que trata das hipóteses em que poderá ser concedida a prisão

domiciliar.

Com efeito, é assente nesta Corte o posicionamento no sentido de que

caracteriza constrangimento ilegal a submissão do apenado ao cumprimento

de pena privativa de liberdade no regime mais gravoso, quando evidenciado

ter sido-lhe permitido o cumprimento da pena em regime aberto. Não se pode

permitir excessos aos limites impostos para o cumprimento da reprimenda, sob

pena de desvio de fi nalidade da pretensão executória.

Dessarte, este Tribunal consolidou o entendimento de que a ausência de

vagas em estabelecimento adequado para o cumprimento da pena em regime

aberto não justifi ca a permanência do condenado em condições prisionais

mais severas. Afinal, a carência de vagas em estabelecimento prisional é

falha do sistema carcerário estatal, que deve ser arrogada ao Poder Público,

sendo inadmissível que o apenado sofra, injustamente, as conseqüências dessa

defi ciência.

Assim, em casos tais, possível é a concessão, em caráter excepcional, da

prisão domiciliar, no caso de inexistir no local casa de albergado, enquanto se

aguarda surgimento de vaga em estabelecimento prisional adequado. Nesse

sentido, confi ram-se os seguintes precedentes desta Corte:

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 24, (226): 801-859, abril/junho 2012 831

Agravo regimental no habeas corpus. Julgamento unipessoal de prejudicialidade da ordem. Reconsideração da decisão e concessão do writ. Paciente condenado a pena com regime inicial aberto. Inserção noturna de condenado em estabelecimento de segurança máxima, com ala. Ilegalidade. Reconhecimento.

1. A Lei de Execução Penal, adiantando o teor da Constituição de 1988, já enunciou o cânone da individualização da pena. Neste diapasão, fere a lógica do escorreito desconto da sanção penal a inserção de condenado, sujeito a regime aberto, no período noturno, em ala de presídio, dada a ausência de casa de albergado. Em casos tais, a jurisprudência desta Corte consolidou o entendimento de que se deve deferir, enquanto perdurar tal estado de coisas, a prisão albergue domiciliar.

2. Agravo regimental provido para conceder a ordem, garantindo ao paciente prisão domiciliar, diante da inexistência de Casa de Albergado para o adequado cumprimento do regime aberto (PEC n. 34.431-1, Comarca de Jaguarão-RS), nos termos da lei, até que surja, eventualmente, vaga no regime adequado.

(AgRg no HC n. 195.113-RS, Rel. Ministro Haroldo Rodrigues (Desembargador convocado do TJ-CE), Rel. p/ acórdão Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 14.6.2011, DJe 17.8.2011)

Habeas corpus. Execução penal. Paciente benefi ciado com o regime prisional aberto. Inexistência de casa do albergado na comarca. Prisão domiciliar. Possibilidade. Ordem concedida.

1. Se o paciente foi benefi ciado com a progressão ao regime prisional aberto e não existe vaga em estabelecimento adequado ou casa do albergado, é possível a concessão dos benefícios da prisão domiciliar, até o seu surgimento.

2. Ordem concedida, para outorgar ao paciente o benefício de aguardar, em prisão domiciliar, vaga em estabelecimento próprio ao cumprimento da pena em regime aberto.

(HC n. 158.783-RS, Rel. Ministro Celso Limongi (Desembargador convocado do TJ-SP), Sexta Turma, julgado em 31.8.2010, DJe 20.9.2010)

Habeas corpus. Execução penal. Homicídio qualificado. Regime aberto. Ausência de vaga em casa de albergado ou inexistência desta. Regime de cumprimento de pena mais severo. Prisão domiciliar. Possibilidade.

1. Encontrando-se o condenado cumprindo pena em regime mais gravoso do que lhe fora imposto, em razão de inexistência de vaga em estabelecimento penal adequado ou inexistência deste, cabível a imposição de regime mais brando, em razão de evidente constrangimento ilegal.

2. É dever do Poder Público promover a efetividade da resposta penal, na dupla perspectiva da prevenção geral e especial; entretanto, não se podem

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

832

exceder os limites impostos ao cumprimento da condenação, sob pena de desvio da fi nalidade da pretensão executória.

3. Ordem concedida para restabelecer a prisão domiciliar do ora Paciente até o surgimento de vaga em estabelecimento adequado para o cumprimento da pena em regime aberto.

(HC n. 97.940-RS, Rel. Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, julgado em 12.8.2008, DJe 8.9.2008)

Verifi ca-se que a situação in casu muito se assemelha à inexistência de casa de albergado propriamente dita. Nesta esteira de intelecção, em casos de superlotação ou precariedade das casas de albergado, entendo ser possível, do mesmo modo, a concessão da prisão domiciliar, porquanto inexistentes as condições mínimas necessárias ao cumprimento da pena no regime fi xado pelo título executivo judicial, qual seja, o aberto.

Com efeito, não se pode admitir que o sentenciado que alcança o direito de cumprir a sua reprimenda corporal em regime aberto seja inserido em estabelecimento inadequado, porquanto não pode o apenado arcar com o ônus da falta de estrutura do sistema prisional estatal. É dever do Estado proporcionar as devidas condições para o cumprimento de pena em casa de albergado ou estabelecimento em que os princípios basilares do regime aberto sejam observados, quais sejam: a autodisciplina e o senso de responsabilidade do preso.

Entendimento diverso, em meu sentir, implica ofensa ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, previsto no art. 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988, e ao princípio que lhe é correlato, em sede de execução penal, é dizer, o princípio da humanidade da pena, insculpido no art. 5º, inciso XLVII, da Magna Carta.

Isso porque, o fato de terem cometido infrações penais, não retira dos apenados a dignidade humana e os direitos a ela inerentes, e, por tal razão, a Lei Maior dispõe: “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral” (art. 5º, inciso XLIX).

Ademais, permitir que indivíduos inseridos em regimes diversos de cumprimento de pena - semiaberto e aberto - coexistam em um mesmo ambiente carcerário seria ferir de morte o princípio constitucional da individualização da pena (artigo 5º, incisos XLVI e XLVIII).

Consoante destacou o Juízo de primeira instância, “o mero encaminhamento

do apenado, cujo direito à progressão de regime ao aberto foi reconhecido,

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 24, (226): 801-859, abril/junho 2012 833

para casa prisional nas condições relatadas, confi guraria verdadeiro excesso de

execução individual, conforme art. 185 da LEP” (fl . 118).

Nesta senda, o que se impõe é um tratamento mais brando até que seja

resolvida a pendência, devendo ser assegurado ao paciente o direito de aguardar

em prisão domiciliar o surgimento de vaga estabelecimento prisional apropriado,

é dizer, dotado de condições mínimas necessárias ao cumprimento da pena em

regime aberto, de modo a assegurar a integridade física e moral dos presos.

Nesse diapasão, já decidiu o Pretório Excelso, por ocasião do julgamento

do HC n. 95.334-RS. Confi ra-se a ementa do decisum:

Pena. Cumprimento. Regime aberto. Casa do albergado. A concretude do regime aberto pressupõe casa do albergado estrita aos que estejam submetidos a essa espécie de cumprimento da pena, havendo de dispor o local de condições a assegurarem a integridade física e moral do preso - dever do Estado, consoante disposto no inciso XLIX do artigo 5a da Constituição Federal.

Prisão domiciliar. Casa do albergado inexistente ou imprópria. O rol normativo de situações viabilizadoras da prisão domiciliar não é exaustivo, cabendo observá-la, se houver falha do aparelho estatal quanto a requisitos a revelarem a casa do albergado.

(HC n. 95.334-RS, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Rel. p/ Acórdão Min. Marco Aurélio, Primeira Turma, julgado em 3.3.2009, DJe 157 - 21.8.2009).

Ante o exposto, concedo a ordem para restabelecer a decisão de primeiro

grau que concedeu a prisão domiciliar ao paciente, garantindo-lhe o direito de

aguardar em regime aberto domiciliar o surgimento de vaga em estabelecimento

prisional com condições necessárias ao adequado cumprimento da pena em

regime aberto.

É como voto.

HABEAS CORPUS N. 222.970-MS (2011/0256460-3)

Relator: Ministro Og Fernandes

Impetrante: Defensoria Pública do Estado de Mato Grosso do Sul

Advogado: Denise da Silva Viegas - defensora pública

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

834

Impetrado: Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul

Paciente: Ezequias Gomes dos Santos

EMENTA

Habeas corpus. Furto. Ausência de tipicidade material. Inexpressiva lesão ao bem jurídico tutelado. Aplicação do princípio da insignifi cância.

1. A intervenção do Direito Penal apenas se justifi ca quando o bem jurídico tutelado tenha sido exposto a um dano com relevante lesividade. Inocorrência de tipicidade material, mas apenas a formal quando a conduta não possui relevância jurídica, afastando-se, por consequência, a ingerência da tutela penal, em face do postulado da intervenção mínima. É o chamado princípio da insignifi cância.

2. Reconhece-se a aplicação do referido princípio quando verifi cadas “(a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada” (HC n. 84.412-SP, Ministro Celso de Mello, Supremo Tribunal Federal, DJ de 19.11.2004).

3. No caso, não há como deixar de reconhecer a mínima ofensividade do comportamento do paciente, que subtraiu três camisetas de uma loja, avaliadas no total de R$ 30,00 (trinta reais), posteriormente restituídas, sendo de rigor o reconhecimento da atipicidade da conduta.

4. Segundo a jurisprudência consolidada nesta Corte e também no Supremo Tribunal Federal, a existência de condições pessoais desfavoráveis, tais como maus antecedentes, reincidência ou ações penais em curso, não impedem a aplicação do princípio da insignifi cância.

5. Ordem concedida.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima

indicadas, acordam os Ministros da Sexta Turma do Superior Tribunal de

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 24, (226): 801-859, abril/junho 2012 835

Justiça, por unanimidade, conceder a ordem de habeas corpus, nos termos do

voto do Sr. Ministro Relator. Ressalvou seu entendimento o Sr. Ministro

Sebastião Reis Júnior. Os Srs. Ministros Sebastião Reis Júnior, Vasco Della

Giustina (Desembargador convocado do TJ-RS) e Maria Th ereza de Assis

Moura votaram com o Sr. Ministro Relator.

Presidiu o julgamento a Sra. Ministra Maria Th ereza de Assis Moura.

Brasília (DF), 14 de fevereiro de 2012 (data do julgamento).

Ministro Og Fernandes, Relator

DJe 21.3.2012

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Og Fernandes: Trata-se de habeas corpus impetrado em

favor de Ezequias Gomes dos Santos, apontando como autoridade coatora o

Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul.

O paciente foi condenado, por furto simples, a 1 (um) ano de reclusão, no

regime aberto, e 10 (dez) dias-multa, substituída a sanção corporal por medidas

restritiva de direitos.

Busca a absolvição pela incidência do princípio da insignificância,

acentuando a inexpressividade da res subtraída. Assevera, ainda, que a existência

de antecedentes negativos não impede o reconhecimento da atipicidade material

da conduta.

Prestadas as informações, o Ministério Público Federal lançou parecer pela

denegação da ordem.

É o relatório.

VOTO

O Sr. Ministro Og Fernandes (Relator): Segundo consta dos autos, o paciente subtraiu três camisetas, avaliadas no total de R$ 30,00 (trinta reais), de um estabelecimento comercial.

Para a caracterização do fato típico, ou seja, que determinada conduta mereça a intervenção do Direito Penal, é necessária a análise de três aspectos: o formal, o subjetivo e o material ou normativo.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

836

A tipicidade formal consiste na perfeita subsunção da conduta do agente

ao tipo previsto abstratamente pela lei penal. O aspecto subjetivo consiste no

dolo.

Já a tipicidade material implica verifi car se a conduta possui relevância

penal, em face da lesão provocada no bem jurídico tutelado. Deve-se observar o

desvalor da conduta, o nexo de imputação e o desvalor do resultado, do qual se

exige ser real e signifi cante.

A intervenção do Direito Penal apenas se justifi ca quando o bem jurídico

tutelado tenha sido exposto a um dano com relevante lesividade. Não há,

outrossim, a tipicidade material, mas apenas a formal, quando a conduta não

possui relevância jurídica, afastando-se, por consequência, a intervenção da

tutela penal, em face do postulado da intervenção mínima. É o chamado

princípio da insignifi cância.

Tal princípio tem sido acolhido como causa supralegal de exclusão de

tipicidade. Vale dizer, uma conduta que se subsuma perfeitamente ao modelo

abstrato previsto na legislação penal pode vir a ser considerada atípica por força

desse postulado.

Reconhece-se a aplicação do referido princípio quando verifi cadas “(a) a

mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social

da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a

inexpressividade da lesão jurídica provocada” (HC n. 84.412-SP, Ministro Celso

de Mello, Supremo Tribunal Federal, DJ de 19.11.2004).

No caso, não há como deixar de reconhecer a mínima ofensividade do

comportamento do paciente, que subtraiu três camisetas de uma loja, avaliadas

no total de R$ 30,00 (trinta reais), posteriormente restituídas, sendo de rigor o

reconhecimento da atipicidade da conduta.

Em casos análogos ao presente, esta Corte vem assim decidindo:

Habeas corpus. Furto simples, na forma tentada. Princípio da insignifi cância. Aplicabilidade. Mínimo desvalor da ação. Valor ínfi mo das res furtivae. Irrelevância da conduta na espera penal. Precedentes do Supremo Tribunal Federal e desta Corte.

1. A conduta perpetrada pelo Paciente - tentativa de furto na forma simples de res furtiva avaliada em R$ 80,00 - insere-se na concepção doutrinária e jurisprudencial de crime de bagatela.

2. Não se descura existir, no caso, tipicidade formal, pois a conduta do Paciente adequa-se ao paradigma abstrato definido na lei. Entretanto, não ocorre, na

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 24, (226): 801-859, abril/junho 2012 837

espécie, a tipicidade material: não houve lesão efetiva e concreta a bem jurídico tutelado pelo ordenamento penal, dado o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento do agente, o mínimo desvalor da ação e a ausência de qualquer conseqüência danosa. E a atipia material, segundo doutrina e jurisprudências hodiernas, exclui a própria tipicidade penal (HC n. 104.070-SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, decisão monocrática, Informativo-STF n. 592, v.g.).

3. Habeas corpus concedido, para absolver o Paciente (art. 386, inciso III, do Código de Processo Penal).

(HC n. 133.520-MG, Relatora a Ministra Laurita Vaz, DJe de 25.4.2011)

Penal. Recurso especial. Tentativa de furto. Estabelecimento comercial vigiado. Crime impossível. Não-caracterização. Reconhecimento do princípio da insignifi cância. Recurso provido. Habeas corpus concedido de ofício.

1. O sistema de vigilância eletrônica instalado em estabelecimento comercial ou a existência de vigias, a despeito de difi cultar a prática de furtos no seu interior, não é capaz de impedir, por si só, a ocorrência do fato delituoso, não autorizando o reconhecimento do crime impossível (REsp n. 1.109.970-SP, Rel. Min. Paulo Gallotti, DJ 17.6.2009).

2. O princípio da insignifi cância surge como instrumento de interpretação restritiva do tipo penal que, de acordo com a dogmática moderna, não deve ser considerado apenas em seu aspecto formal, de subsunção do fato à norma, mas, primordialmente, em seu conteúdo material, de cunho valorativo, no sentido da sua efetiva lesividade ao bem jurídico tutelado pela norma penal, consagrando os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima.

3. A tentativa de furto de cinco ovos de páscoa, no valor de R$ 70,00, embora se amolde à defi nição jurídica do crime de furto, não ultrapassa o exame da tipicidade material, mostrando-se desproporcional a imposição de pena privativa de liberdade, uma vez que a ofensividade da conduta foi mínima, tendo sido os bens restituídos à vítima.

4. Recurso especial provido para afastar a aplicação do art. 17 do CP.

5. Habeas corpus concedido de ofício para extinguir a ação penal, em razão do reconhecimento do princípio da insignifi cância.

(REsp n. 1.171.091-MG, Relator o Ministro Arnaldo Esteves Lima, DJe de 19.4.2010)

Ressalte-se, ainda, que, segundo a jurisprudência consolidada nesta Corte

e também no Supremo Tribunal Federal, a existência de condições pessoais

desfavoráveis, tais como maus antecedentes, reincidência ou ações penais em

curso, não impedem a aplicação do princípio da insignifi cância.

A propósito, vejam-se os seguintes precedentes:

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

838

Habeas corpus. Furto tentado. Princípio da insignificância. Extinção da punibilidade.

1. A intervenção do Direito Penal apenas se justifi ca quando o bem jurídico tutelado tenha sido exposto a um dano com relevante lesividade. Inocorrência de tipicidade material, mas apenas a formal, quando a conduta não possui relevância jurídica, afastando-se, por consequência, a ingerência da tutela penal, em face do postulado da intervenção mínima.

2. No caso, não há como deixar de reconhecer a mínima ofensividade do comportamento do paciente, que tentou subtrair um botijão de gás, avaliado em R$ 30,00 (trinta reais), sendo de rigor o reconhecimento da atipicidade da conduta.

3. Segundo a jurisprudência consolidada nesta Corte e também no Supremo Tribunal, a existência de condições pessoais desfavoráveis, tais como maus antecedentes, reincidência ou ações penais em curso, não impedem a aplicação do princípio da insignifi cância.

4. Ordem concedida.

(HC n. 148.663-RS, de minha relatoria, DJe de 5.4.2010), com destaques;

Habeas corpus. Furto tentado. Princípio da insignificância. Aplicabilidade. Mínimo desvalor da ação. Valor ínfi mo das res furtivae. Irrelevância da conduta na esfera penal. Precedentes do Supremo Tribunal Federal e desta Corte. Réu portador de maus antecedentes. Possibilidade de aplicação.

1. A conduta perpetrada pelo Paciente – tentativa de furto de dois pares de óculos escuros e um litro de licor Amarula – insere-se na concepção doutrinária e jurisprudencial de crime de bagatela.

2. O furto não lesionou o bem jurídico tutelado pelo ordenamento positivo, excluindo a tipicidade penal, dado o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento do agente, o mínimo desvalor da ação e o fato não ter causado maiores conseqüências danosas.

3. Conforme iterativa jurisprudência desta Corte Superior, o fato de o Paciente ostentar maus antecedentes não constitui motivação suficiente para impedir a aplicação do Princípio da Insignifi cância.

4. Ordem concedida para cassar o acórdão impugnado e a sentença de primeiro grau, absolvendo o Paciente do crime imputado, por atipicidade da conduta.

(HC n. 148.863-MG, Relatora Ministra Laurita Vaz, DJe de 22.3.2010), com destaques.

À vista do exposto, concedo a ordem a fi m de, aplicando o princípio da

insignifi cância, absolver o paciente na ação penal aqui tratada.

É como voto.

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 24, (226): 801-859, abril/junho 2012 839

VOTO

O Sr. Ministro Sebastião Reis Júnior: Sra. Presidente, acompanho o voto

do Sr. Ministro Relator, concedendo a ordem de habeas corpus, mas ressalvo o meu

ponto de vista em face da ocorrência de reincidência, o que impediria, a meu ver,

o reconhecimento da insignifi cância.

RECURSO ESPECIAL N. 1.101.914-RJ (2008/0233983-0)

Relatora: Ministra Maria Th ereza de Assis Moura

Recorrente: Maria Alice Adão Antunes

Advogado: Nélio Roberto Seidl Machado e outro(s)

Recorrente: Marly dos Santos Abreu

Advogado: Gilberto Cyrillo Ramos Filho

Recorrido: Instituto Nacional do Seguro Social - INSS

Procurador: Jorge Batista Fernandes Júnior e outro(s)

Recorrido: Ministério Público Federal

EMENTA

Penal e Processo Penal. Recurso especial. Divergência

jurisprudencial. Violação ao art. 171 do CP. Ocorrência. Estelionato

judiciário. Conduta atípica. Deslealdade processual. Punição pelo

CPC, arts. 14 a 18. Recurso especial a que se dá provimento.

1. Não configura “estelionato judicial” a conduta de quem

obtém o levantamento indevido de valores em ação judicial, porque

a Constituição da República assegura à parte o acesso ao Poder

Judiciário. O processo tem natureza dialética, possibilitando o exercício

do contraditório e a interposição dos recursos cabíveis, não se podendo

falar, no caso, em “indução em erro” do magistrado. Eventual ilicitude

de documentos que embasaram o pedido judicial poderia, em tese,

constituir crime autônomo, que não se confunde com a imputação de

“estelionato judicial” e não foi descrito na denúncia.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

840

2. A deslealdade processual é combatida por meio do Código

de Processo Civil, que prevê a condenação do litigante de má-fé

ao pagamento de multa, e ainda passível de punição disciplinar no

âmbito do Estatuto da Advocacia.

3. Recurso especial a que se dá provimento, para absolver as

recorrentes, restabelecendo-se a sentença.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,

acordam os Ministros da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça: “A

Turma, por unanimidade, deu provimento ao recurso especial, nos termos do

voto da Sra. Ministra Relatora.” Os Srs. Ministros Sebastião Reis Júnior e Vasco

Della Giustina (Desembargador convocado do TJ-RS) votaram com a Sra.

Ministra Relatora.

Ausente, justifi cadamente, o Sr. Ministro Og Fernandes.

Presidiu o julgamento a Sra. Ministra Maria Th ereza de Assis Moura.

Brasília (DF), 06 de março de 2012 (data do julgamento).

Ministra Maria Th ereza de Assis Moura, Relatora

DJe 21.3.2012

RELATÓRIO

A Sra. Ministra Maria Th ereza de Assis Moura: Maria Alice Adão Antunes e

Marly dos Santos Abreu interpuseram recursos especiais, ambos com fundamento

no artigo 105, inciso III, alíneas a e c, da Constituição da República, contra

acórdão do Tribunal Regional Federal da Segunda Região, ementado verbis:

Apelação criminal. Recurso do assistente de acusação. Admissibilidade. Obtenção de pagamento indevido em ação previdenciária. Fraude comprovada. Estelionato contra o INSS. I- Admissibilidade do recurso do assistente de acusação. Art. 598 do CPP. II - Embora o art. 171 do CP brasileiro não preveja, expressamente, a fi gura típica do estelionato praticado por meio do processo judicial, não há limitação que o exclua, quando trata da obtenção de vantagem ilícita em prejuízo alheio, mediante indução ou manutenção de alguém em erro, por qualquer meio

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 24, (226): 801-859, abril/junho 2012 841

fraudulento. III - Embora possa haver situações em que o ingresso de ação judicial para a obtenção de um ato ou negócio, ambos ilegais, não representam o crime previsto no art. 171 do CP brasileiro, há outras tantas que podem vir a confi gurá-lo. Para isso, entretanto, devem estar presentes na conduta em concreto analisada, todas as elementares da fi gura típica do art. 171 do CP, a ser avaliado caso a caso. IV - Da análise da instrução criminal, depreende-se que estão presentes os elementos para a confi guração do crime previsto no artigo 171, na forma do seu § 3º, e, ressalte-se, a fraude pode ser empregada em face de uma pessoa e o prejuízo suportado por outra, como nos casos de pluralidade de sujeitos passivos. V - Apelação do INSS provida. (fl . 577).

Depreende-se dos autos que as recorrentes foram denunciadas,

respectivamente, como incursas nas sanções dos artigos 171, parágrafo 3º, e

168, parágrafo 1º, inciso III, ambos do Código Penal. O INSS requereu sua

inclusão no processo como Assistente de Acusação (fl . 61), o que foi deferido

pelo Juiz de 1º grau (fl . 67). Concluída a instrução, o juízo monocrático, após

a manifestação do Ministério Público pugnando pela absolvição das acusadas,

julgou improcedente a denúncia com fulcro no artigo 386, inciso III, do Código

de Processo Penal. Irresignado, o Assistente de Acusação manejou recurso

de apelação, ao qual o Tribunal deu provimento, para condenar ambas as

recorrentes como incursas no artigo 171, parágrafo 3º, do Código Penal, às

penas de 5 anos e 3 meses de reclusão, e de 5 anos, 1 mês e 6 dias de reclusão,

respectivamente, ambas em regime fechado.

Sustentam as recorrentes, às fl s. 621-650 e fl s. 671-691, além de dissídio

jurisprudencial, violação aos artigos 171 e 59 do Código Penal. No pormenor,

aduzem que o denominado estelionato judicial não encontra previsão legal no

Estatuto Penal Brasileiro, sendo, portanto atípica a conduta praticada, razão pela

qual não poderiam ter sido condenadas. Subsidiariamente, pugnam pela redução

da pena aplicada.

Foram apresentadas contrarrazões pelo INSS às fls. 694-746 e pelo

Ministério Público às fl s. 793-801 e 813-822.

Os recursos especiais foram admitidos às fl s. 834-835 e 838-839.

Manifestou-se o Ministério Público Federal, às fl s. 845-863, em parecer da

lavra do Subprocurador-Geral Haroldo Ferraz da Nóbrega, pelo provimento do

recurso.

É o relatório.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

842

VOTO

A Sra. Ministra Maria Th ereza de Assis Moura (Relatora): A insurgência

merece prosperar.

Inicialmente, entendo necessária a transcrição da denúncia oferecida contra

as recorrentes, para melhor elucidação dos fatos apresentados nos presentes

autos:

1. Conforme se depreende da inclusa fotocópia integral do Processo n. 00.0205190-7, na data de 27.06.1996, o MM Juiz da 17ª Vara Federal - Dr. Wanderley de Andrade Monteiro - determinou a expedição de Mandado de Arresto da quantia de R$ 3.004.406,68 (três milhões, quatro mil, quatrocentos e seis reais e sessenta e oito centavos) dos cofres do Instituto Nacional do Seguro Social - INSS, em razão de execução levada a cabo na ação ordinária movida por Odete Alvarenga de Souza Ferrari e outros, contra esta autarquia federal (fl s. 1.019). 2. Este mandado determinava, ainda, a entrega da referida quantia milionária às mãos da primeira acusada, Maria Alice Adão Antunes - patrona dos autores -, o que, de fato, foi feito (fl s. 1.020). 3. Ocorre que, percebeu-se, a posteriori, que, embora a execução devesse ser processada somente em relação a 26 (vinte e seis) autores, a primeira acusada, agindo ardilosamente, de forma dolosa, incluiu à contadoria outros 67 (sessenta e sete) aposentados, que não integravam a relação processual, fato este que acarretou a liquidação ilegítima da vultosa quantia de mais de três milhões de reais, cifras absurdamente superior à efetivamente devida pelo INSS (fls. 1.021). 4. Diante da constatação desse expediente fraudulento e por ter sido induzido em erro pela primeira acusada, o MM. Juiz Federal da 17ª VF determinou o imediato bloqueio do saldo existente na conta bancária de Maria Alice, intimando-a a devolver quantia porventura já sacada, no prazo fatal de 24 (vinte e quatro) horas, sob pena de Busca e Apreensão (fl s. 1.023). 5. Em que pese a adoção de tal medida jurisdicional, o fato é que a primeira acusada já havia consumado a prática delituosa, fazendo uso da milionária quantia, tendo, inclusive, transferido cerca de oitocentos e noventa mil reais para a conta da segunda acusada, Marly dos Santos Abreu. Esta, por sua vez, sacou em espécie mais da metade do valor original - quatrocentos e cinquenta mil reais -, tendo fi cado em conta bancária o saldo restante. 6. Em declarações prestadas espontaneamente perante a Egrégia Corregedoria do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, a primeira acusada afi rmou que a quantia supramencionada foi depositada na conta de Marly dos Santos, em função de uma espécie de assistência que teria lhe prestado ao longo do processo (fl s. 1.110). 7. Neste mesmo lugar, a segunda acusada alegou precisar de dinheiro em espécie para pagar uma obra em casa, carpinteiros, pedreiros, e para outras despesas particulares (fl s. 1.111). Apesar de ter plena consciência de que deveria ter devolvido o dinheiro havido ilicitamente, esta acusada afirmou que não

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 24, (226): 801-859, abril/junho 2012 843

achava justo fazê-lo, pois representava seus honorários. 8. Diante da resistência da segunda acusada em devolver o dinheiro público, o Juiz da 39ª Vara Federal - D. Firly Nascimento Filho - determinou a expedição de Mandado de Busca e Apreensão da quantia de quatrocentos e cinquenta mil reais, medida esta que restou infrutífera (fl s. 1.172), confi rmando a intenção de Marly dos Santos de se locupletar ilicitamente com os valores pertencentes ao INSS. 9. Em desesperada manobra procastinatória para não se ver obrigada a devolver os valores em questão, a segunda acusada impetrou Mandado de Segurança junto ao Tribunal Regional Federal da 2ª Região, tendo, entretanto, a Colenda Primeira Turma - por unanimidade - denegado a segurança. (...). Com as condutas acima expostas, a primeira acusada, Maria Alice Adão Antunes - obteve para si e para outrem vantagem ilícita, em prejuízo da autarquia previdenciária, induzindo em erro Magistrado Federal, mediante expediente fraudulento, estando, portanto, incursa nas penas do artigo 171, § 3º, do Código Penal. A segunda acusada - Marly dos Santos Abreu - apropriou-, no exercício da função de advogada, de valores alheios de que tinha detenção, incorrendo, desta maneira, nas penas do artigo 168, § 1º, inciso III, do Código Penal. (fl s. 2-7).

Constata-se, em síntese, que a primeira recorrente, advogada dos autores

em ação judicial, formulou requerimento ao juízo da 17ª Vara Federal da

comarca do Rio de Janeiro, objetivando levantar valores referentes ao reajuste dos

proventos de 93 segurados do INSS. O pedido de tutela antecipada foi deferido

e o levantamento efetuado, porém logrou-se apurar posteriormente que só seria

possível o recebimento em relação a 26 dos 93 segurados. Asseverou o Parquet

que, ao assim agir, teria a 1ª recorrente induzido o magistrado em erro com o

escopo de obter vantagem pecuniária indevida em face do INSS e a 2ª recorrente

teria se apropriado indevidamente dos valores depositados pela 1ª recorrente em

sua conta, a título de honorários pelo auxílio prestado no referido processo.

O Juízo a quo, no entanto, absolveu as recorrentes, entendendo ser atípica a

conduta, pelos seguintes fundamentos:

Com efeito, compulsando-se os autos verifi ca-se que não restou demonstrada a utilização de qualquer meio fraudulento para a obtenção da tutela antecipada, não havendo induzimento ou manutenção do MM. Juiz em erro. Bem ressaltado pelo MPF, a autonomia do direito de ação, enquanto possa existir independentemente da existência do direito material. A parte pode acionar a máquina judiciária com pedidos absurdos, cabendo ao magistrado o estudo da procedência ou não do pedido, assim como dos pressupostos processuais e condições da ação para perfeito prosseguimento do feito. O juiz, à época, não se deu conta do erro. Consequentemente, verifi ca-se não demonstrada nos autos a fraude e o induzimento em erro, elementos necessários para a confi guração do crime de estelionato. (fl . 386).

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

844

Ingressou-se, então, com recurso de apelação, ao qual se deu provimento para

condenar ambas as recorrentes como incursas no artigo 171, parágrafo 3º, do Código

Penal. Destaque-se que a Corte a quo entendeu que a 2ª recorrente participou

conjuntamente com a 1ª recorrente da prática do estelionato, tendo, inclusive,

recebido os valores questionados nos presentes autos a título de honorários. Ao

ensejo, confi ra-se a fundamentação utilizada pelo Tribunal de origem:

Afi nal, embora o art. 171 do CP brasileiro não preveja, expressamente, a fi gura típica do estelionato praticado por meio do processo judicial, como fez o Código Penal da Espanha (Lei Orgânica n. 10, de 23 de novembro de 1995), no seu art. 248.1 c.c. art. 250.1, 2º, também não há limitação que o exclua, quando trata da obtenção de vantagem ilícita em prejuízo alheio, mediante indução ou manutenção de alguém em erro, por qualquer meio fraudulento. Nesse sentido, a conclusão é de que, em tese, embora possa haver situações em que o ingresso de ação judicial para a obtenção de um ato ou negócio, ambos ilegais, não representam o crime previsto no art. 171 do CP brasileiro, há outras tantas que podem vir a confi gurá-lo. Para isso, entretanto, devem estar presentes na conduta em concreto analisada, todas as elementares da fi gura típica do art. 171 do CP, a ser avaliado caso a caso. (fl . 562).

Irresignadas, interpuseram as recorrentes recursos especiais, questionando

a existência do denominado estelionato judiciário. Cinge-se, portanto, a

controvérsia em analisar se a conduta das recorrentes se amolda ou não ao

tipo penal insculpido no artigo 171 do Código Penal. Ou seja, inquire-se se

é possível o advogado praticar o crime de estelionato através do desempenho

de sua atividade forense ou processual, para obter uma vantagem indevida em

prejuízo alheio.

Tenho que, no caso, a conduta das recorrentes é atípica, não se podendo,

portanto, falar em estelionato, quanto mais em “estelionato judicial”, fi gura de

tipicidade questionável na doutrina e na jurisprudência, embora, em tese, possa a

atitude das recorrentes confi gurar ilícito civil.

O “estelionato judicial”, no dizer de Guilherme de Souza Nucci, “é uma

expressão criada para designar particular situação, envolvendo o uso do processo

para auferir lucros ou vantagens indevidas, mediante fraude, ardil ou engodo. O

agente procura a via processual para conseguir alguma vantagem, ludibriando a

Justiça. Pode apresentar documentos falsos ou testemunhas mentirosas; é viável

que se mancomune com a parte contrária; busca corromper autoridades, etc.”

(Tratado jurisprudencial e doutrinário do Direito Penal, v. II, Parte Especial,

RT, São Paulo: 2011, p. 659).

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 24, (226): 801-859, abril/junho 2012 845

Os autores que defendem a existência do referido estelionato entendem

que o tipo penal capitulado no artigo 171 do Código Penal não exclui da

incidência da norma as hipóteses em que a fraude é aplicada por meio do

processo judicial, não sendo possível, dessarte, falar-se atipicidade, ainda mais

quando perfectibilizados todos os elementos da norma incriminadora. Ao

ensejo, confi ra-se a lição de Luiz Regis Prado:

Tem sido admitida pela doutrina estrangeira a possibilidade do estelionato processual, sobretudo no processo civil, quando uma parte, com sua conduta fraudulenta ou enganosa, realizada com ânimo de lucro, induz o juiz em erro e, este último, como consequência, profere sentença injusta que causa prejuízo patrimonial à parte contrária ou a terceiro. Aqui, o enganado é o juiz, que se vê utilizado para a consecução de um resultado ilícito (caso de autoria mediata), e o prejudicado é a parte contrária ou terceiro. Entende-se, pois, que as afi rmações conscientemente falsas das partes são ilícitas e constituem uma fraude suscetível de realizar a fi gura do delito de estelionato, quando preenchidos todos os seus requisitos legais. (Curso de Direito Penal Brasileiro. 7. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, vol. 2, p. 442-443).

No mesmo sentido manifesta-se Nilo Batista que, em artigo de título

“Estelionato Judiciário”, rebate os principais argumentos contrários à tipicidade

do estelionato praticado por meio do judiciário. Com efeito, esclarece que não

há se falar em 1) inidoneidade presuntiva do juiz para ser enganado, pois este,

como ser humano que é, está apto a errar bem como a ser induzido em erro.

Ademais, acaso verdadeira essa afi rmação, não se poderia falar em crime de falso

testemunho, por exemplo. Acrescenta, ainda, que, não obstante 2) a sentença ser

uma resultante multifária das alegações e das provas, deve ser avaliada a causalidade

entre o erro e a disposição, o que possibilitaria, a seu ver, a responsabilização

daquele que se valeu da fraude. Por fi m, aduz que não se pode entender que 3)

a limitada incriminação da fraude processual signifi ca vontade de não incriminar

outras possíveis fraudes, principalmente quando for possível a tipifi cação em

tipo concorrente principal, como por exemplo, o estelionato. (Revista dos

Tribunais, vol. 638, dez/1988, p. 255).

Entretanto, não obstante as diversas manifestações relativas à tipicidade do

estelionato praticado judicialmente, penso que a difi culdade para a admissão de

tal conduta como ilícita está na consideração de que a Constituição da República

assegura a todos o acesso à justiça, nos termos do que preceitua o inciso XXXV

do artigo 5º, não se podendo punir aquele que, a despeito de formular pedido

descabido ou estapafúrdio, obtém a tutela pleiteada.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

846

Em decorrência do exercício do direito de ação, tem-se que o processo é

dialético, possibilitando o controle pela parte contrária, através do exercício da

defesa e do contraditório, bem como da interposição dos recursos previstos na

Constituição e na lei processual. E, mais, que o magistrado não está obrigado a

atender os pleitos formulados, não estando a eles vinculados. Tais circunstâncias

são incompatíveis, penso, com a ideia de ardil, ou de indução em erro do

julgador em feito judicial.

Como bem lembrado por Guilherme de Souza Nucci:

Entretanto, embora se tenha utilizado da terminologia jurídica, denominando tal hipótese de estelionato, em verdade, o fato é atípico. Inexiste previsão legal para a punição pelo delito do art. 171 do Código Penal, caso o agente se valha do processo para buscar alguma vantagem indevida. Em primeiro lugar, há o direito de ação, indistintamente assegurado. Em segundo, cabe ao juiz acolher ou rejeitar demandas temerárias. Em terceiro, há fi guras típicas específi cas para cada infração cometida no processo. Se houver falso testemunho, aplica-se o disposto no art. 342 do CP. Havendo oferecimento de documento falso, invoca-se o preceituado nos arts. 297 e 304 do CP. Existindo corrupção, aplica-se o art. 317 e 333 do CP. E assim por diante. No processo, há produção de provas e condução pelo juiz, de forma que, se prejuízo houver, advirá da sentença e não da atitude de qualquer das partes. Pode-se até falar em erro judiciário, porém não em estelionato judiciário.

(...)

Processar a parte (ou o advogado), afi rmando-se a ocorrência de estelionato judiciário, pode ser um meio indevida de coibir o direito de ação ou afetar a imunidade judiciária. Essas questões devem ser resolvidas no âmbito do processo, como litigância de má-fé e suas específi cas penalidades. (ob. cit., p. 659).

No mesmo sentido, mostra-se irretocável a lição de Heleno Fragoso (Lições

de Direito Penal. Parte Especial. 11. ed. rev. e atual. por Fernando Fragoso, Rio de

Janeiro: Forense, 1995, p. 276), verbis:

Não há estelionato judiciário ou processual (induzimento em erro do juiz para, através da sentença, obter vantagem patrimonial em prejuízo de outro litigante). É inconcebível o estelionato (ou tentativa de estelionato) na afi rmação mendaz feita ao julgador ou com prova falsa a ele apresentada por litigante improbo. Compete ao juiz, na aplicação do direito, interpretar a lei, o contrato ou a sentença invocados pelo litigante em prol de sua causa, fi xando-lhes o alcance e a signifi cação. A alteração da verdade e o induzimento em erro acaso praticados poderão constituir falsidade documental ou fraude processual (art. 347 do CP). Em sentido contrário, pronunciam-se autores importantes, perante sistemas

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 24, (226): 801-859, abril/junho 2012 847

que desconhecem a incriminação autônoma da fraude processual. Cf. Schönke-Schröder, § 263, v. 7.

No caso em exame, o Tribunal de origem condenou as recorrentes por

conduta comissiva, consistente em ter induzido o juízo em erro com pedido

descabido, obtendo em razão disso, tutela antecipada indevida. Tenho, porém,

que não pode ser considerada típica a conduta porque coube ao Juiz da 17ª

Vara Federal, uma vez recebido o pedido, a análise acerca da sua procedência e

se ele se encontrava em consonância com a documentação acostada nos autos.

E tal decisão, que sempre deve ser devidamente fundamentada, estava sujeita a

posterior recurso.

Assim, não vejo como se admitir a tese de que o crime se perfez

simplesmente por se ter obtido o levantamento indevido de quantia em

ação judicial. Tampouco vislumbro a possibilidade de “indução em erro” do

magistrado, porque não é típica a conduta de quem procura o Poder Judiciário,

ainda que de forma descabida, haja vista a não caracterização automática, nessa

conduta, do “artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento”. De fato, uma

afi rmação pura e simples não é sufi ciente para que seja considerada verdadeira

no processo judicial, porquanto claras as regras de distribuição do ônus da prova,

não sendo, portanto, ainda que falsa a assertiva, sufi ciente a induzir alguém em

erro. Entretanto, se houvesse ilicitude na documentação que instruiu o pedido,

aí sim haveria crime a ser apurado, mas a conduta daquele que assim age, em

tese, é outra e não foi descrita na denúncia.

Importante ponderar, ainda, que, em uma análise mais detida sobre os

elementos do delito de estelionato, tem-se que este se perfaz com a obtenção

de vantagem ilícita pelo agente, não podendo referida vantagem ser entendida

como a própria sentença judicial, porquanto, em última análise, esta decorre

do exercício constitucional do direito de ação. Ademais, entender possível a

consumação do referido estelionato por meio da prolação de decisão judicial,

retiraria não só o caráter material do delito descrito no artigo 171 do Código

Penal, como o transmudaria de crime contra o patrimônio para crime contra a

administração da justiça.

Destaque-se, por fi m, que o Direito Penal é a ultima ratio, não devendo se

ocupar de questões que encontram resposta no âmbito extrapenal, não sendo

demais lembrar que o Código de Processo Civil prevê a punição para a litigância

de ma-fé nos artigos 14 a 18, sem se falar na possibilidade de punição disciplinar

no âmbito do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

848

O entendimento acima esposado encontra respaldo em alguns julgados

dessa Corte, o que demonstra também a existência da apontada divergência

jurisprudencial. Ao ensejo:

Estelionato/estelionato judicial. Processo/representação/provas em juízo. Responsabilidade dos procuradores. Ausência de fato típico. 1. Quanto aos acontecimentos do processo judicial (deveres e responsabilidade), hão de vir a pelo, preferencialmente, os arts. 14 a 18 do Cód. de Pr. Civil. 2. Os sucessivos atos processuais estão fora da lei penal; o processo, já de natureza dialética, gerado, pois, por oposições, está continuamente sujeito ao controle das partes, às quais se asseguram o contraditório e a ampla defesa, bem como uma série de recursos. 3. Tal o caso, falta-lhe a ilicitude da vantagem, também lhe falta o meio fraudulento (artifício, ardil, etc.). Enfi m, o denominado estelionato judicial juridicamente não é fato penal; falta-lhe, assim, tipicidade. 4. Não é penalmente punível a conduta de quem procura em juízo. 5. Habeas corpus deferido a fi m de se extinguir a ação penal. (HC n. 136.038-RS, Relator Ministro Nilson Naves, Sexta Turma, Publicado no DJe de 30.11.2009.)

Criminal. REsp. “Estelionato judiciário”. Trancamento da ação penal. Atipicidade da conduta. Ausência de previsão legal da conduta reputada delitiva. Recurso desprovido. I. Hipótese em que o réu ajuizou duas ações com pedidos idênticos, objetivando a condenação da União Federal a resgatar um mesmo título da dívida pública externa, tendo sido, por esta razão, denunciado pela prática do delito de estelionato. II. Não obstante a presença aparente dos elementos do tipo penal, o estelionato judiciário não tem previsão no ordenamento jurídico pátrio, e grande parte da doutrina sequer faz referências à apontada modalidade delitiva, razão pela qual o Tribunal a quo entendeu, acertadamente, pelo trancamento da ação penal por atipicidade da conduta. III. Recurso desprovido. (REsp n. 878.469-RJ, Relator Ministro Gilson Dipp, Quinta Turma, publicado no DJ de 29.06.2007)

Penal e Processual Penal. Recurso ordinário em habeas corpus. Trancamento de ação penal. Denúncia fundada no art. 171 caput combinado com art. 14, ambos do Código Penal - tentativa de estelionato judiciário. Fato atípico. Provimento. I - O fato não é típico. Não há previsão legal da fi gura do estelionato judiciário. A cobrança de juros, acima do permitido em lei ou seja: exagerados, poderia constituir crime de usura. Entretanto, não foi o paciente denunciado por tal e nem narra a denúncia, expressamente ato de usura. Refere-se tão-somente que o título executivo fundamental de uma ação de execução, originara-se de infração penal do art. 4º, letra ‘a’, da lei n. II - Utilizar-se de ação de execução para cobrar de devedor débito representado por nota promissória (título extrajudicial), não é crime. Poderia haver crime na forma de se conseguir o título. Possível vantagem indevida poderia estar representada no título, mas não conseguida pela sua execução. III - A causa debendi de um título de crédito poderia decorrer de delito,

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 24, (226): 801-859, abril/junho 2012 849

mas não o confi guraria o uso regular de procedimento judicial. IV - Atípica a conduta denunciada, deveria ter sido rejeitada a denúncia. V - Recurso provido. (RHC n. 2.889-0-MG, Relator Ministro Pedro Acioli, publicado no DJ de 07.03.1994).

Assim, tenho que o juiz de primeiro grau bem apreendeu a questão, ao

absolver as recorrentes por atipicidade da conduta, invocando a autonomia do

direito de ação:

A parte pode acionar a máquina judiciária com pedidos absurdos, cabendo ao magistrado o estudo da procedência ou não do pedido, assim como dos pressupostos processuais e condições da ação para perfeito prosseguimento do feito. O juiz, à época, não se deu conta do erro. Consequentemente, verifi ca-se não demonstrada nos autos a fraude e o induzimento em erro, elementos necessários para a confi guração do crime de estelionato. (fl . 386).

Ante o exposto, dou provimento ao recurso especial para absolver as

recorrentes, restabelecendo a sentença.

É como voto.

RECURSO ESPECIAL N. 1.147.274-RS (2009/0126858-1)

Relator: Ministro Sebastião Reis Júnior

Recorrente: Alberto Augusto Alves Rosa e outros

Advogado: Mauro Borges Loch e outro(s)

Recorrido: Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS

Procurador: Adriana Barzotto Rispoli e outro(s)

EMENTA

Recurso especial. Processo Civil. Proclamação do resultado do

julgamento pelo colegiado. Retifi cação na sessão seguinte por questão

de ordem. Impossibilidade.

1. Nos termos do art. 556 do Código de Processo Civil, o

julgamento nos órgãos colegiados se encerra após a proclamação

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

850

do resultado fi nal pelo seu Presidente, não podendo haver nenhuma

retifi cação de ofício após o seu desiderato, sob pena de ofensa aos

princípios do devido processo legal, da segurança jurídica e do

contraditório. Precedente.

2. Recurso especial provido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,

acordam os Ministros da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, por

unanimidade, dar provimento ao recurso especial nos termos do voto do Sr.

Ministro Relator. Afi rmou suspeição o Sr. Ministro Vasco Della Giustina. A

Sra. Ministra Maria Th ereza de Assis Moura e o Sr. Ministro Og Fernandes

votaram com o Sr. Ministro Relator.

Presidiu o julgamento a Sra. Ministra Maria Th ereza de Assis Moura.

Dr. Francis Campos Bordas sustentou oralmente pelos recorrentes, Alberto

Augusto Alves Rosa e outros.

Brasília (DF), 03 de novembro de 2011 (data do julgamento).

Ministro Sebastião Reis Júnior, Relator

DJe 28.11.2011

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Sebastião Reis Júnior: Trata-se de recurso especial

interposto por Alberto Augusto Alves Rosa e outros com fundamento no art. 105,

III, a e c, da Constituição Federal, contra acórdão do Tribunal Federal da 4ª

Região assim ementado (fl s. 508-509):

Questão de ordem. Administrativo. Apelação. Embargos à execução. Servidores. 28,86%. Remuneratórias. Prescrição. Interrupção. Contagem pela metade. Precedentes.

1. Considerando-se que os exequentes individualmente poderiam desde março de 2000 (fl . 74, apenso) ajuizar a ação de execução, tem-se que a suspensão da execução em razão das providências tomadas pelo Sindicato não lhes pode benefi ciar.

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 24, (226): 801-859, abril/junho 2012 851

E isso porque eventual discussão acerca legitimidade ativa do sindicato à execução do direito reconhecido na ação coletiva em nada interfere ou prejudica a capacidade processual dos próprios exeqüentes individualmente.

2. Interrompido o curso do prazo prescricional, o mesmo recomeça a correr pela metade do prazo, ou seja, por dois anos e meio, a partir do ato interruptivo, sem, contudo, acrescentar ou reduzir o prazo fatal de cinco anos, que permanece inalterado. Precedentes do STJ.

Assim, constatado que a interrupção da prescrição (a qual só ocorre uma única vez, art. 202, CPC) se deu com o ajuizamento da ação coletiva pelo sindicato em 1997 e, considerando que esta transitou em julgado em março de 2000, recomeçando a partir daí a prescrição a correr pela metade, tem-se que o prazo para ajuizamento da execução esgotou-se dois anos e meio após, a saber, em setembro de 2002.

E como a presente ação foi ajuizada pelos exeqüentes individualmente somente em agosto de 2006 (fl . 02, apenso), o prazo prescricional da pretensão executiva já se encontrava consumado.

3. Apelo provido. Honorários advocatícios favoráveis à embargante no valor de R$ 1.500,00 (um mil quinhentos reais), considerados a natureza das questões debatidas e o trabalho apresentado pelas partes, nos termos dos precedentes desta Turma a causas da espécie.

Opostos embargos declaratórios, foram rejeitados (fl . 538).

Os recorrentes aduzem, em preliminar, contrariedade aos arts. 468 e 471

do Código de Processo Civil, sustentando a impossibilidade de o Tribunal Regional

apreciar novamente a apelação, após a proclamação do resultado do julgamento,

em sede de questão de ordem, em face da preclusão pro judicato, sem a necessária

provocação da parte interessada, tampouco a intimação prévia das partes. Enfatizam,

nesse particular, o que se segue (fl . 548):

[...] considerando que a 3ª Turma do Tribunal Regional já havia se pronunciado sobre o feito, e não estando presentes nenhuma das hipóteses previstas no artigo 471, entende a parte embargante que se operou a preclusão pro judicato, não podendo o acórdão recorrido ter julgado novamente a lide.

Desimporta, aqui, que o acórdão não tenha sido publicado, ou que a “reforma” da decisão tenha ocorrido na sessão seguinte, importa é que houve pronunciamento formal do Poder Judiciário, em julgamento com pauta publicada no veículo ofi cial, intimados os advogados e partes para a sessão. E nada disso ocorreu no “segundo” julgamento.

[...]

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

852

Apontam violação do art. 535, II, do Código de Processo Civil,

por entenderem que o Tribunal de origem deixou de analisar questões

imprescindíveis ao deslinde da controvérsia.

Quanto ao mérito, indicam ofensa aos arts. 172 e 173 do Código Civil,

defendendo que o prazo prescricional da pretensão executória é de 5 anos

contados do trânsito em julgado da sentença proferida na ação de conhecimento.

Alegam contrariedade aos arts. 583 e 586, § 2º, do Código de Processo

Civil, bem como divergência jurisprudencial, esclarecendo que há no título

executivo parcela líquida e ilíquida, cabendo à parte defi nir qual será executada

primeiro, não se iniciando o prazo prescricional enquanto não se liquidar a

sentença na parte necessária.

Apontam violação dos arts. 161 e 202 do Código Civil e 617 do Código

de Processo Civil, além de divergência jurisprudencial, sustentando que, após

o trânsito em julgado em 2000, a entidade sindical diligenciou no sentido de

obter a documentação necessária para promover a execução da sentença, no

tocante à parte líquida do título, qual seja, a incorporação do reajuste na folha de

pagamento.

Acrescentam não ter havido inércia dos servidores, em razão da atuação do

Sindicato, asseverando o que se segue (fl s. 562-564):

[...] Naquela ocasião o sindicato autor já destacou a importância desta etapa para o prosseguimento da execução: com isto, defi nir-se-ia de modo homogêneo para toda a categoria o percentual a ser incorporado, bem como a data da incorporação, estabelecendo com isso valor e o período a serem calculados relativamente às parcelas vencidas.

[...]

Entretanto, a execução foi extinta ao fundamento de que a entidade exequente (ADUFRGS) não detinha legitimidade ativa na fase executiva [...] Tal discussão prolongou-se até o segundo semestre de 2004, quando reformada a decisão pelo acórdão da apelação cível [...], reconheceu-se a legitimidade do Sindicato para propor execução. Através desta decisão, a execução retornou seu ritmo, sendo a UFRGS citada para proceder à incorporação dos 28,86% em folha de pagamento [...]

A jurisprudência tem, a propósito, acolhido de forma pacífi ca a tese de que a prescrição não fl ui com a adoção de medida que comprovem o intuito do credor em cobrar seus direitos, o que, à saciedade, está comprovado no presente feito.

[...]

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 24, (226): 801-859, abril/junho 2012 853

Por fi m, apontam ofensa aos arts. 172 e 173 do Código Civil, além de divergência jurisprudencial e de contrariedade à MP n. 1.704/1998, em virtude do reconhecimento pelo governo federal do direito dos servidores ao reajuste de 28,86%, confi gurando renúncia à prescrição.

É o relatório.

VOTO

O Sr. Ministro Sebastião Reis Júnior (Relator): A irresignação merece

amparo.

Com efeito, observa-se dos autos que, na sessão de 4.11.2008, a Terceira

Turma do Tribunal Federal da 4ª Região proclamou o resultado do julgamento

nos seguintes termos: “a Turma, por unanimidade, decidiu negar provimento

ao apelo” (fl . 494), mantendo incólume a sentença. Destacou o Relator o que se

segue (fl s. 492-493):

[...]

Assim, constato que a interrupção da prescrição (a qual só ocorre uma única vez, art. 202, CPC) se deu com o ajuizamento da ação coletiva pelo Sindicato em 1997 e (fl . 68, apenso), tendo essa ação transitado em julgado em março de 2000.

Todavia, a certidão narratória do título executivo - fl s. 68-76, apenso, demonstra ter o Sindicato diligenciado quanto às providências necessárias à instrução da ação executiva antes de consumado o prazo prescricional.

Por isso, tendo em vista esta peculiaridade acima mencionada, nos termos da jurisprudência acima transcrita, não se aplica a prescrição ao presente caso.

[...]

Não obstante isso, na sessão seguinte, o Relator levou o feito novamente

a julgamento, em sede de questão de ordem, ao alvedrio das partes, e votou

no sentido de anular o acórdão anteriormente proferido e dar provimento à

apelação, nos termos da seguinte ementa (fl s. 508-509):

Questão de ordem. Administrativo. Apelação. Embargos à execução. Servidores. 28,86%. Remuneratórias. Prescrição. Interrupção. Contagem pela metade. Precedentes.

1. Considerando-se que os exeqüentes individualmente poderiam desde março de 2000 (fl . 74, apenso) ajuizar a ação de execução, tem-se que a suspensão da execução em razão das providências tomadas pelo Sindicato não lhes pode benefi ciar.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

854

E isso porque eventual discussão acerca legitimidade ativa do sindicato à execução do direito reconhecido na ação coletiva em nada interfere ou prejudica a capacidade processual dos próprios exeqüentes individualmente.

2. Interrompido o curso do prazo prescricional, o mesmo recomeça a correr pela metade do prazo, ou seja, por dois anos e meio, a partir do ato interruptivo, sem, contudo, acrescentar ou reduzir o prazo fatal de cinco anos, que permanece inalterado. Precedentes do STJ.

Assim, constatado que a interrupção da prescrição (a qual só ocorre uma única vez, art. 202, CPC) se deu com o ajuizamento da ação coletiva pelo sindicato em 1997 e, considerando que esta transitou em julgado em março de 2000, recomeçando a partir daí a prescrição a correr pela metade, tem-se que o prazo para ajuizamento da execução esgotou-se dois anos e meio após, a saber, em setembro de 2002.

E como a presente ação foi ajuizada pelos exequentes individualmente somente em agosto de 2006 (fl . 02, apenso), o prazo prescricional da pretensão executiva já se encontrava consumado.

3. Apelo provido. Honorários advocatícios favoráveis à embargante no valor de R$ 1.500,00 (um mil quinhentos reais), considerados a natureza das questões debatidas e o trabalho apresentado pelas partes, nos termos dos precedentes desta Turma a causas da espécie.

Disse, na oportunidade, para justifi car a questão de ordem, que, “analisando

melhor os autos, constato peculiaridade relevante no presente caso, a justifi car

decisão em sentido contrário” (fl . 496).

Entretanto, a meu ver, a atuação da Corte Regional afastou-se do devido

processo legal, ofendendo os princípios da legalidade, da segurança jurídica

e do contraditório, porque, após a proclamação do resultado do julgamento e

encerrada a prestação jurisdicional do Tribunal de origem no tocante à apelação,

reformou o acórdão, modifi cando o resultado proclamado em sessão anterior. E

o fez sem permitir às partes acesso à sessão em que tal questão foi apreciada, já

que não houve nova intimação.

Vale conferir os seguintes dispositivos do Código de Processo Civil, in

verbis (grifo nosso):

Art. 463. Publicada a sentença, o juiz só poderá alterá-la:

I - para lhe corrigir, de ofício ou a requerimento da parte, inexatidões materiais, ou lhe retifi car erros de cálculo;

II - por meio de embargos de declaração.

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 24, (226): 801-859, abril/junho 2012 855

Art. 471. Nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas, relativas à mesma lide, salvo:

I - se, tratando-se de relação jurídica continuativa, sobreveio modifi cação no estado de fato ou de direito; caso em que poderá a parte pedir a revisão do que foi estatuído na sentença;

II - nos demais casos prescritos em lei.

Art. 556. Proferidos os votos, o presidente anunciará o resultado do julgamento, designando para redigir o acórdão o relator, ou, se este for vencido, o autor do primeiro voto vencedor.

Parágrafo único. Os votos, acórdãos e demais atos processuais podem ser registrados em arquivo eletrônico inviolável e assinados eletronicamente, na forma da lei, devendo ser impressos para juntada aos autos do processo quando este não for eletrônico.

Por oportuno, trago à colação os seguintes apontamentos de Th eotônio

Negrão:

Art. 463. Mutatis mutandis, o princípio [segurança jurídica] também se aplica aos tribunais: publicado o acórdão, já não pode ser alterado, a não ser nos casos dos ns. I [erros materiais] e II [embargos declaratórios] ou através de recurso cabível contra ele.

Art. 556:

2. Nos órgãos colegiados dos tribunais, o julgamento se encerra com a proclamação do resultado fi nal, após a coleta de todos os votos. Enquanto tal não ocorrer, pode qualquer dos seus membros, inclusive o relator, retifi car o voto anteriormente proferido [...]

2a. Impossibilidade de retifi cação em sessão seguinte, de votos e do julgamento já proclamados, dado que, proclamada a decisão, o Tribunal cumpre e acaba o ofício jurisdicional, só podendo alterá-la nos casos inscritos nos incisos I e II do art. 463, CPC [...]

É defeso ao magistrado proceder, de ofício, à retratação de voto depois de anunciado o resultado do julgamento pelo presidente do órgão judicante’ [...]

(Código de Processo Civil e legislação processual em vigor. 41ª ed. Editora Saraiva, 2009, p. 478 e 800 - grifo nosso)

Sobre o tema, confi ra-se o ensinamento de José Carlos Barbosa Moreira:

A doutrina brasileira, em peso, [...] parte da premissa de que o julgamento colegiado se encerra quando, colhidos os votos, o presidente do órgão, ou quem esteja a substituí-lo, anuncia o resultado. Nesse instante, torna-se

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

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pública a decisão. Dela tomam ciência, de maneira geral, as pessoas presentes ao julgamento, e em especial os interessados diretos: os advogados e, talvez, as partes mesmas, caso tenham querido comparecer. Pode até suceder, se se trata de pleito do interesse de largas coletividades, quiçá da inteira nação, que o resultado seja incontinenti divulgado pelos meios de comunicação social. Exigências primárias de segurança requerem que daí em diante se exclua, com óbvia ressalva dos recursos legais, qualquer possibilidade de retifi cação de votos, sempre capaz, em princípio, de importar em alteração do próprio resultado.

[...]

Mas é da essência do julgamento colegiado que todos os julgadores possam ouvir e ponderar as razões que cada qual invoca em favor de sua opção. Se alguém retifi ca o voto ainda no curso do julgamento, tem muito maior probabilidade de ser ouvido pelos outros juízes do que terá em momento posterior, quando, além das eventuais ausências supervenientes, é preciso contar com o afrouxamento da atenção dos restantes membros do colegiado, inevitável quanto a causa ou recurso que já se julgou, talvez horas atrás.

[...]

Reza o artigo 556 do Código de Processo Civil: [...]. Se aí não se proíbe expressis verbis a posterior modificação de voto, com certeza é o que se depreende do texto, olhado em seu conjunto. A inexistência de cláusula expressa acha explicação provável no fato de haver-se reputado ocioso dizer com todas as letras o que se afi gurava óbvio. Realmente, que utilidade terá a proclamação do resultado pelo presidente, se o panorama, ainda é suscetível de alterar-se até o fi m da sessão? Devemos entender que se cuida de uma “proclamação provisória” e de um “resultado idem”? É entendimento que a meu ver não se compadece com a seriedade – quase ia escrevendo solenidade – do ato. Caso a retifi cação superveniente venha a inverter o desfecho da votação, ficará sem efeito a designação do relator do acórdão?

[...]

Tratando-se de acórdão enquadrável no conceito lato de “sentença”, existe a mais o obstáculo do artigo 463, segundo o qual, cumprido e acabado que está, com a publicação, o ofício jurisdicional do órgão judicante, só lhe é lícito alterá-la “para corrigir inexatidões materiais, ou lhe retifi car erros de cálculo”, ou então no julgamento de embargos de declaração que se venham a interpor. Daí extraio que, ainda a admitir-se a modifi cação superveniente de voto, jamais poderá ela acarretar mudança do teor do julgamento fere a vista o impasse. Convém precisar que a decisão do tribunal está juridicamente publicada com o próprio anúncio coram populo do resultado. E ajunto que a melhor exegese do dispositivo citado lhe amplia o campo de incidência literalmente restrito à “sentença de mérito”, para fazê-lo compreender as sentenças (e, portanto, os acórdãos) em geral.

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 24, (226): 801-859, abril/junho 2012 857

(Julgamento Colegiado – Modificação de voto após a proclamação do resultado?, Adv (Advocacia Dinâmica) Seleções Jurídicas, Jan. 2000, p. 35-36 - grifo nosso)

No mesmo sentido, Alexandre Freitas Câmara leciona nos seguintes

termos:

[...]

A deliberação do tribunal para elaboração do acórdão é publica, por força do disposto no art. 93, IX, da Constituição da República. Assim é que, em sessão pública, são tomados os votos dos magistrados que compõem o órgão colegiado. Afi rma, então, o art. 556 do Código de Processo Civil que proferidos os votos, o presidente anunciará o resultado do julgamento, designando para redigir o acórdão o relator, ou, se este for vencido, o autor do primeiro voto vencedor. Uma vez proclamado o resultado, pois, torna-se pública a decisão.

No que concerne aos acórdãos que exercem função de sentença, é de se aplicar o disposto no art. 463 do CPC, segundo o qual ao publicar-se a sentença, torna-se esta irretratável, só podendo a mesma ser modifi cada pelo mesmo órgão jurisdicional se forem interpostos embargos de declaração ou para correção de erros materiais. Assim sendo, uma vez proclamado o resultado do julgamento colegiado que tenha natureza de sentença, e tornada pública, por conseguinte, tal decisão, não poderá mais o órgão colegiado alterá-la (feitas as ressalvas do art. 463 do CPC). Não havendo qualquer regra para disciplinar a irretratabilidade das decisões interlocutórias, parece evidente que se deve empregar a analogia, como método de integração da lei, nos termos do que dispões o art. 126 do CPC. Em outros termos, também os acórdãos interlocutórios [...] devem ser tidos como irretratáveis após a proclamação do resultado.

Nem poderia mesmo ser outra a conclusão, data venia dos que pensam de modo diverso. Permitir a modifi cação da decisão [...] após encerrado o julgamento seria admitir que as partes fossem surpreendidas [...] pela nova decisão, diferente daquela que havia sido proclamada pelo presidente do Tribunal após a colheita dos votos dos magistrados que compõem a turma julgadora. Ocorre que qualquer decisão que surpreende as partes é atentatória ao princípio do contraditório, devendo ser repudiada.

Sobre este ponto já tem se pronunciado autorizada doutrina, afi rmando que surpreender as partes implica violar o contraditório. [...] Ora, sendo violadora do contraditório uma decisão que surpreenda a parte por adotar um novo enfoque jurídico tomado como seu fundamento, muito maior será a violação se o próprio resultado da decisão for alterado, após sua proclamação, surpreendendo as partes.

[...]

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

858

Sendo o contraditório a garantia política do processo, consistente em assegurar a participação dos interessados na formação do provimento estatal, será violador da garantia constitucional (...) qualquer acontecimento que, em um processo, leve à formação de um provimento cuja elaboração tenha se dado sem que se permitisse às partes participar de sua elaboração. O contraditório não pode ser, porém, garantia meramente formal. Exige-se, para que se tenha processo democrático, que o contraditório seja efetivo e equilibrado. Em outros termos, o contraditório deve vir acompanhado do equilíbrio assegurado pela observância do princípio da isonomia, assegurando-se a ambas as partes oportunidades equivalentes de infl uir no resultado do processo.

[...]

A decisão modifi cada depois de sua proclamação surpreende, indubitavelmente, as partes do processo, o que a torna violadora da garantia constitucional do contraditório, razão pela qual deve ser repudiada. Basta imaginar a surpresa de que será tomada a parte que, avisada por seu advogado que saiu vencedora do julgamento proferido, descobre, no dia seguinte, que após a proclamação [...] o tribunal modifi cou a decisão, através da retifi cação dos votos capazes de alterar o resultado, restando ela, afi nal, vencida.

[...]

Por todo o exposto, concluo pela impossibilidade de se modifi car voto após a proclamação do resultado do julgamento pelo presidente do tribunal, já sendo a decisão, a partir daquele momento, irretratável [...]

(Julgamento por órgão colegiado. Modifi cação de voto após a proclamação do resultado. Impossibilidade. Escritos de Direito Processual. Rio de Janeiro: Editora Lumen Iuris, 2001, p. 341-344 - grifo nosso)

Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero comungam do mesmo

entendimento:

O julgamento só se encerra com o anúncio de seu resultado pelo presidente do órgão fracionário. Até aí qualquer dos membros do colegiado pode rever o seu posicionamento e/ou pedir vista do feito. Depois de anunciado o resultado, incide o art. 463, CPC, sendo insuscetível de modifi cação a decisão. Opera-se a preclusão consumativa. O relator redigirá o acórdão, salvo se vencido, hipótese em que o autor do primeiro voto vencedor o redigirá.

(Código de Processo Civil comentado artigo por artigo. RT, 3ª ed., p. 598 - grifo nosso)

Ou seja, proclamado o resultado, não poderia ter ocorrido, como ocorreu, a

alteração, a modifi cação do julgado de ofício, em sessão posterior, sem que tivesse

fi cado caracterizado erro material. Houve preclusão consumativa. O motivo, vale

Jurisprudência da SEXTA TURMA

RSTJ, a. 24, (226): 801-859, abril/junho 2012 859

lembrar, para a alteração de ofício do julgamento não foi a constatação de erro

material, mas sim, como ressaltado pelo próprio relator, a constatação de uma

peculiaridade relevante no caso, que justifi caria decisão em sentido contrário.

Verifi co, ainda, que a reforma do acórdão proferido em sede de apelação,

em desrespeito aos dispositivos legais mais acima referidos, implicou ofensa ao

devido processo legal, bem como aos princípios do contraditório e da segurança

jurídica, notadamente por ter sido realizado de ofício e sem a necessária

intimação prévia.

É necessário deixar claro que a ilegalidade no acórdão atacado consiste

na reforma do provimento jurisdicional anterior – cujo resultado já havia

sido proclamado e cujo julgamento já havia se encerrado – de ofício, sem a

constatação de erro material e sem a intimação prévia das partes.

Do Superior Tribunal de Justiça colaciono o seguinte aresto, cuja

interpretação, a contrario sensu, autoriza a conclusão de que o recurso especial

deve ser provido, considerando-se que qualquer alteração quanto ao julgamento

só pode ocorrer enquanto não houver a proclamação do resultado final.

Proclamado o resultado, o julgamento não pode mais ser modifi cado:

Administrativo. Processo Civil. Ação indenizatória contra a Fazenda Pública. Prazo quinquenal. Retificação de voto pelo relator. Possibilidade, até a proclamação do resultado do julgamento.

1. Nos órgãos colegiados dos tribunais, o julgamento se encerra com a proclamação do resultado final, após a coleta de todos os votos. Enquanto tal não ocorrer, pode qualquer dos seus membros, inclusive o relator, retifi car o voto anteriormente proferido.

[...]

3. Recurso especial desprovido.

(REsp n. 258.649-PR, Ministro Teori Albino Zavascki, Primeira Turma, DJ de 13.9.2004)

Ante o exposto, dou provimento ao recurso especial para cassar o acórdão

proferido em sede de questão de ordem (fls. 495-508), restabelecendo o

proclamado em sede de apelação (fl s. 479-494), devendo os autos retornar ao

Tribunal Federal da 4ª Região para que o processo volte ao seu curso normal.