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    UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

    CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO INTERDISCIPLINAR EM CINCIAS HUMANAS -

    DOUTORADO

    Sexualidade e Reproduo. Da natureza aos Direitos:A incidncia da Igreja Catlica na Tramitao

    do Projeto de Lei 20/91 - Aborto Legal e Projeto de Lei

    1151/95 Unio Civil Entre Pessoas do Mesmo Sexo.

    MYRIAM ALDANA VARGAS SANTIN

    Florianpolis, Julho de 2005

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    MYRIAM ALDANA VARGAS SANTIN

    Sexualidade e Reproduo. Da natureza aos Direitos:A incidncia da Igreja Catlica na Tramitao

    do Projeto de Lei 20/91 - Aborto Legal e Projeto de Lei

    1151/95 Unio Civil Entre Pessoas do Mesmo Sexo.

    DOUTORADO: Tese a ser apresentada a Banca

    Examinadora do Programa Interdisciplinar em

    Cincias de Filosofia e Cincias Humanas daUniversidade Federal de Santa Catarina, como

    requisito parcial para obteno do grau de Doutora

    em Cincias Humanas.Orientadora: Prof. Dr Joana Maria Pedro.Co-Orientadora: Prof. Dr Miriam Pillar Grossi.

    Florianpolis, Junho de 2005.

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    Resumo

    Neste trabalho tentamos mostrar como a Instituio religioso-poltica Igreja Catlica, teminterferido decisivamente na construo dos direitos sexuais e reprodutivos, tanto em n vel mundial atravsda sua participao nas Conferncias Internacionais sobre Populao e Desenvolvimento e sobre a Mulher,como em nvel nacional, atravs da sua presena marcante na cultura brasileira e da sua ao direta noCongresso Nacional e nas bases eleitorais dos parlamentares durante a dcada de 1990. Fundamentando-se na repetio de pressupostos filosfico-antropolgico-teolgicos essencialistas e fundamentalistas, osquais representam a defesa incondicional da vida, critica sistematicamente o que denomina cultura da

    morte patrocinada por um complot internacional de laboratrios multinacionais responsveis pela produode anticonceptivos e associados a grupos que defendem a legalizao do aborto, o uso de preservativos ea oficializao das unies homossexuais. Estes, por sua vez, entendem que os direitos sexuais ereprodutivos so conquistas da modernidade e representam a autonomia de homens e mulheres decidiremsobre seu corpo, sua sexualidade e sua capacidade reprodutiva sem interferncias da religio e recebendodo Estado laico a garantia para usufru-los e a proteo contra os que intentam contra os mesmos. Para aanlise desse processo privilegiamos os debates travados no Legislativo acompanhando os Projetos de leisobre aborto legal PL20/91 e a Parceria Civil PL1151/95. Destaca a interferncia da Igreja Catlica e dosgrupos Pr-Vida, como atores sociais que desenvolveram presses sobre os parlamentares para quevotassem contra esses projetos, alm de interferir nos trmites pelas Comisses Tcnicas da Cmara e doSenado pelas quais os Projetos de Lei so submetidos antes de votados. Apresenta, outrossim, a maneiracomo se deu a luta do movimento feminista, do movimento GLTTB pelo reconhecimento de seus direitos e

    de sua cidadania; mostra, tambm, o que a sociedade estava discutindo com relao aos direitos sexuais edireitos reprodutivos, como esses conceitos chegaram ao Congresso Nacional e o processo da construopoltica dos mesmos. Para efetuar essa anlise, recorreu-se categoria de gnero e a eixos de anlise,como naturalizao, desnaturalizao, fundamentalismo e contextualizao histrica, tentandocompreender como as mesmas prevalecem nos processos de construo/desconstruo das prticas eteorizaes em torno de sexualidade e reproduo, perpassando por vrias reas do conhecimento, comohistria, antropologia e sociologia, alm de roar com outros campos, como o da filosofia, sendo que estainterdisciplinaridade imposta pelo prprio objeto de estudo.

    Palavras-chave: Direitos Sexuais Direitos Reprodutivos Igreja Catlica - Congresso Nacional.

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    Rsum

    Dans ce travail nous essayons de montrer comment linstitution politico-religieuse quest lEglise Catholique

    a interfrde manire dcisive dans llaboration des droits sexuels et reproductifs, tant au niveau mondial

    travers sa participation aux confrences internationales sur Population et Dveloppement et sur laFemme, quau niveau national par sa prsence marquante dans la culture brsilienne et son action directeau Congrs National et dans les bases lectorales des parlementaires, durant les annes 90. LEgliseCatholique fonde son action sur la rptition de prsupposs philosophico-anthropologico-thologiquesessentialistes et fondamentalistes qui reprsentent la dfense inconditionnelle de la vie et critiquesystmatiquement ce quelle nomme la culture de la mort, finance par un complot international delaboratoires multinationaux responsables de la production de contraceptifs et associs des groupes quidfendent la lgalisation de lavortement, lusage du prservatif et lofficialisation des unionshomosexuelles. Ces groupes, pour leur part, pensent que les droits sexuels et reproductifs sont des

    conqutes de la modernitet quils reprsentent lautonomie de dcision des hommes et des femmes en

    rapport ce qui concerne leur corps, leur sexualitet leur capacitreproductive, sans interfrences de lareligion hommes et femmes qui reoivent de lEtat lac la garantie ncessaire pour lusufruit de leursdroits et pour leur protection face aux adversaires de ces droits. Dans lanalyse de ce processus nous

    avons privilgiles dbats de lAssemble Lgislative qui ont eu lieu propos des Projets de Loi sur lalgalisation de lavortement (PL 20/91) et sur le PACS (PL 1151/95). Est ainsi tudie linterfrence, dansces dbats, de lEglise Catholique et des groupes Pour La Vie, en tant quacteurs sociaux qui firentdiverses pressions sur les parlementaires pour quils votent contre ces projets, sans compter leurs

    interfrences lors du passage de ces projets par les Commissions Techniques de la Chambre et du Snatavant quils ne soient soumis au vote. Lanalyse ici ralise prsente aussi la manire selon laquelle se fitla lutte du mouvement fministe, ainsi que du mouvement GLTTB pour la reconnaissance de ses droits et

    de sa citoyennet; elle expose les concepts en dbat dans la sociten rapport aux droits sexuels et auxdroits reproductifs, comment ces concepts arrivrent au Congrs National et leur propre processus deconstruction politique. Pour effectuer ces analyses nous avons recouru la catgorie de sexe et des axesdanalyse tels que naturalisation, dnaturalisation, fondamentalisme et contextualisation historique. Nousavons essay de comprendre comment ces axes et catgories prvalent dans les processus deconstruction/dconstruction des pratiques et des thorisations au sujet de la sexualitet de la reproduction,traversant plusieurs champs de connaissance tels que lhistoire, lanthropologie et la sociologie, outre le fait

    quils touchent dautres champs comme la philosophie. Cette interdisciplinaritest impose par lobjet dtude lui-mme.

    Mots-cl: Droits sexuels Droits reproductifs Eglise Catholique - Congrs National.

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    Abstract

    This studies we intend to show how the Catholic Church has interfered decisively in the establishmentconstruction of reproductive and sexual rights, in a worldwide level through its participation in International

    Lectures About Woman Development and Population as in a national level through its remarkable presencein Brazilian culture and its direct action over the national Congress and in the parliamentary electoral bases

    during the decade of 1990. Established by the repetition of philosophical and anthropological purposes,

    which represent the unconditional life defense, it criticizes systematically the death culture sponsored byan international riot of the multinational laboratories responsible for the ant-conception production and

    associated to groups of abortion legalization defense, the condom using and Homosexuals relationships.

    Theses understanding that sexual and reproductive rights have been conquests of modernity and represent

    the autonomy of men and women to decide about their bodies, their sexuality and their reproductive

    capacity without religious interference and getting from a laical state the warranty to benefit them and theprotection against the ones that attempt to them to the analisysat the process we advantaged the debates

    set in the Legislative System, following the Law Issues about legal abortion PL 20/91 and the CivilPartnership 1151/95. It focus the Catholic Church interference and Pro-Life Groups as social actors that

    pressure the parliamentarians to vote against the projects and even interferer over the on- goings thoughthe Senate and Chamber Technical Commission throughout the Law Issues are submitted before been

    voted. This studies presents the way as the fight of the GLTTB movement for the citizenship laws right

    recognition display , also, which are the social discussions in the relation to the sexual and reproductive

    rights, how theses concepts come to the National Congress and their political process of establishment.

    The analisys settlement is based to gender categories and topics as naturalizations, denaturalization,historic context and fundamentalism, intending to clear how they cover the process of construction/

    deconstruction of the practices and theories about sexuality and reproduction, going through many

    knowledge areas as history, anthropology and sociology, as well as philosophy, been this subjects anecessity of the study objective.

    Keywords:Sexual Rights, Reproductive Laws, Catholic Church, National Congress.

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    AGRADECIMENTO ESPECIAL

    La realizacin de un trabajo cientfico, en este caso la tesis de doctorado, introduce en la

    cotidianidad un proyecto de vida que no solo implica tiempo, dedicacin y paciencia, sino que debido al

    desafo planteado por la temtica misma, pone en juego las relaciones familiares y particularmente la

    relacin conyugal.

    Este complejo proceso de desenvolvimiento y construccin de un objeto de estudio realizado a lo

    largo de cinco aos, interfiere en la relacin de tal manera que quien lo realiza necesita altas dosis depaciencia, pero quien lo acompaa necesita el doble de paciencia. Es as como se viven diversos

    momentos en los que la relacin se ve amenazada, resiste y se rehace nuevamente.

    Lo ms significativo es que mi compaero Jandir, sin importar el momento que estuviera

    atravesando nuestra relacin, SIEMPRE estuvo presente, apoyando mi trabajo de diversas maneras. No

    solo en trminos de liberar mi tiempo, asumiendo l la administracin de la casa, sino siendo mi

    interlocutor permanente en la temtica, lo cual fue doblemente valioso, debido a que al vivir lejos de la

    Universidad no pude estar presente en todos los espacios de discusin y debate donde podra estar

    discutiendo mis reflexiones sobre la tesis.

    Igualmente fue un baluarte al corregir mi portugus con acento hispano por un portugus ms

    clsico. Como si todo esto fuera poco, en los momentos en los que el amor parec a esconderse, fatigado

    por las incertidumbres y dudas del proceso, siempre escuch con amor y paciencia mis angustias y

    preocupaciones, dndome nimo y fuerza para continuar el camino.

    Por todo esto, un agradecimiento muy especial a quien siento copartcipe y cmplice en este

    trabajo.

    Con amor,

    Myriam

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    AGRADECIMENTOS

    A elaborao de uma tese um processo de formao, de amadurecimento e de desafios que

    mexe com a prpria identidade, com os sonhos e a histria de vida de quem se envolve nela. So cincoanos em que se mergulha nesse processo de busca, de criao no qual no se estsozinho, mas h umarede de apoio afetivo, logstico e de conhecimentos que impossvel registrar numa pgina deagradecimentos. Por isso, em nome dos/as aqui mencionados/as, estendo meu sentimento de gratido atodos/as aqueles/as que, de uma ou outra forma foram co-partcipes nesta caminhada.

    ACAFE, pela bolsa que, durante trs anos, me auxiliou, principalmente viabilizando o transportedo oeste para a capital e permitindo-me, assim, a realizao dos crditos da disciplinas cursadas.

    Ao Professor Hector Leis, ao corpo de professores e ao corpo tcnico-administrativo que, com a

    qualidade de seu trabalho e empenho, conseguiram consolidar e qualificar nosso programa de doutorado,alcanando um lugar de destaque nos Programas de Ps-graduao Interdisciplinar do pais.

    professora Dra. Joana Maria Pedro, pela sua orientao carregada de energia positiva, umantdoto frente s dificuldades atravessadas; pelo incentivo permeado de aconchego que abria as portas dasua casa e me permitia a convivncia to gratificante com sua me; pela sua competncia, carinho esabedoria que tornaram possvel meu crescimento pessoal e profissional e a concluso desta tese.

    professora Dra. Miriam Grossi, pela sua amizade, sua energia contagiante, sua firmeza eamplitude terica, sempre pronta a compartilhar seus conhecimentos e a inserir-nos em congressos eeventos onde nossos temas de pesquisa pudessem avanar e se retroalimentar. Sua criatividade apontacaminhos por onde a pesquisa pode ser ampliada para atender a complexidade da temtica; suasexigncias terico-metodolgicas e seu olhar antropolgico garantem um aprendizado permanente e umenriquecendo do trabalho.

    s/aos colegas de doutorado da linha de pesquisa Estudos de Gnero e do Ncleo de Identidadesde Gnero e Subjetividades - NIGS, que deram contribuies valiosas na construo desta tese atravsdas discusses tericas e do enriquecimento mtuo propiciados por este ncleo: nele nasceu minhamotivao para fazer o doutorado e, ao longo de cinco anos foi meu ponto de referncia e um espao departilha. Na impossibilidade de mencionar a totalidade dos/as pesquisadores/as que o compem, noscolegas aqui citados, Miriam Adelman, Adriano, Ari, Bernardete, Marlene, Siomara, Dborah, LuisFernando, Karla, Carmen Susana, Simone, Tito, Cristina, Roseli, Flvio, Juliana, Camila e Rita estendo atodos/as meu agradecimento.

    professora Dra. Mara Lago, que sempre acreditou na gente, dando uma fora, brindando carinho,amizade, estando presente nos momentos mais decisivos e contribuindo com suas inspiraes nosseminrios, aulas e debates.

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    s professoras Maria Juraci e Luzinette, que participaram da Banca Examinadora para aQualificao do Projeto e deram valiosas sugestes para o desenvolvimento posterior deste trabalho.Igualmente, s professoras que compem a banca, por aceitarem o convite e dedicarem seu preciosotempo avaliao desta tese.

    Ao CFEMEA, pelo apoio que me prestou em Braslia durante a coleta do material emprico nosmeandros no Congresso Nacional, assim como no fornecimento de documentao e na partilha deanlises.

    s amigas de Catlicas pelo Direito de Decidir, pela disponibilidade total em munir-me debibliografia e documentos indispensveis ao trabalho, mas, sobretudo pela partilha de informaes, apoioe amizade.

    Maria JosRosado Nunes, a Zeca, a amiga que sempre me incentivou e exerceu o papel de

    musa inspiradora nas anlises relativas Sociologia das Religies enriquecidas com seu olhar de gnero.

    s/aos amigas/os e colegas do grupo de pesquisa e estudos de Gnero, FOGUEIRA, grupo inter-institucional de universidades do oeste catarinense, meu interlocutor na busca de critrios para relacionaras realidades de gnero da regio com o trabalho terico desenvolvido na tese.

    UNOCHAPECO, especialmente ao Centro de Cincias Humanas, o qual me disponibilizou partedo horrio a ele devido para a elaborao deste trabalho, alm de compreender minha pouca participaono Centro em vista da priorizao da tese. Igualmente, agradeo aos cursos e turmas nas quais ministreiaulas, pois se adaptaram de bom grado aos horrios que favoreciam o cumprimento das exigncias dauniversidade onde cursei o doutorado.

    Zilda Quadros, amiga fiel e companheira de luta na organizao do movimento de mulheres nomunicpio de Chapece regio, a qual com carinho e amizade, ps seus tempos de descanso e seusconhecimentos sobre os meandros do mundo da informtica disposio para a configurao ediagramao deste trabalho.

    Maria de Lourdes, amiga e corretora de texto, que colocou a servio deste trabalho seu tempo,sua dedicao e sua preparao profissional.

    Aos que me deram hospedagem, amizade e conforto nas estadias em Florianpolis, tornandoagradveis minhas chegadas e sadas: Ivone e Fabiola, Marlene, Inezita e Srgio, Laci e Daniela, Glria eCamilo, Laura e Fbio, Arley e Ana.

    A Andr Luis, que, com sua presteza e seu carinho, amenizava as esperas na rodoviria deFlorianpolis e, com as caronas facilitava a otimizao do tempo nos afazeres do doutorado.

    Aos filhos, Raquel e Jandir Dario, pela pacincia, amor e ternura que me motivaram a realizar estetrabalho e pela compreenso com que me acompanharam nos altos e baixos deste processo.

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    minha querida me, irms/aos, sobrinhas/os que, apesar da distncia geogrfica, me deramfora nos momentos de desanimo e, nos encontros ocasionais foram interlocutores nos debates sobre atemtica desta tese, ajudando-me a refletir e a clarear meu objeto de estudo.

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    SUMRIO

    1.1 Gnero - Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos........................................................29

    1.2 Concepes de sexualidade...........................................................................................331.3 Modelo de dois sexos......................................................................................................391.4 Reproduo e Maternidade.............................................................................................461.5 Trabalho de Campo.........................................................................................................50

    1.5.1 O Campo..............................................................................................................51

    1.5.2 Explorao do Campo.........................................................................................541.5.2.2 Escolha das pessoas a serem entrevistadas...............................................56

    1.5.3 Estratgias de entrada em Campo.........................................................................571.5.4 Levantamento Documental..................................................................................58

    1.5.4.1 Nas Organizaes No-Governamentais ONGs ....................................601.5.4.2 Na Igreja Catlica:....................................................................................61

    1.5.5 Entrevistas............................................................................................................62

    1.5.5.1 Aplicao das Entrevistas.........................................................................631.5.6 O material emprico da pesquisa..........................................................................65

    1.5.6.1 Anlise do material...................................................................................662.1 O Poder Legislativo Nacional: Suas Funes.................................................................692.2 Relao do Legislativo com Executivo..........................................................................712.3 O processo Legislativo...................................................................................................74

    2.4 O Governo Brasileiro e os Direitos Reprodutivos e os Direitos Sexuais.......................76

    2.5 Perfil das Legislaturas 90-94 e 95-98.............................................................................77

    2.6 A Instituio Igreja Catlica IC..................................................................................79

    2.6.1 A Organizao da Igreja Catlica em nvel mundial...........................................802.6.2 A organizao do Estado da Cidade do Vaticano:................... ..82

    2.6.3 Organizao da Igreja Catlica em nvel nacional...............................................832.7 A Igreja Catlica e sua interferncia no Congresso Nacional no debate das questessobre Reproduo e Sexualidade..........................................................................................85

    2.7.1 Presso da hierarquia e das bases eleitorais catlicas sobre os parlamentares.....862.7.2 O Grupo Parlamentar Catlico GPC:...............................................................902. 7.3 A parceria com o Movimento Pr-Vida..............................................................94

    2.7.3.1 O Movimento Pr-vida no primeiro mundo e suas estratgias de ao...942.7.3.2 A ideologia dos grupos Pr-Vida: ...........................................................98

    2.7.3.3 Os movimentos Pr-Vida no Brasil...........................................................992.7.5 Setor Famlia da CNBB e Congresso Nacional.................................................1012.7.5.1 A organizao em nvel nacional:............................................................1012.7.5.2 A denncia de um plano internacional contra a vida e a famlia:...........102

    2.8 O que poderamos ler nesses discursos........................................................................1053.1 A herana das relaes da Igreja Catlica na Pennsula Ibrica...................................1113.2 O Padroado...................................................................................................................112

    3.3 O Processo de Romanizao.........................................................................................1133.4 A organizao do laicato...............................................................................................1153.5 A Ao Catlica...........................................................................................................1163.6 A Teologia da Libertao.............................................................................................1173.7 A Igreja Catlica a caminho do sculo XXI................................................................1203.8 A relao de um Estado laico com uma Instituio Religiosa......................................122

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    3.8.1 Estado laico (ou leigo)........................................................................................123

    3.9 Indivduo versus cidado..............................................................................................1273.10 Moral natural versus tica poltica..............................................................................1303.11 Estado, Igreja e liberdade religiosa.............................................................................132

    4.1 Questes Epistemolgicas............................................................................................1394.1.1 Direitos sexuais e reprodutivos, a construo de um campo...............................1404.1.2 A Definio dos Conceitos................................................................................1444.1.3 Conflitos polticos e tericos na compreenso de direito.................................149

    4.2 Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos nas Conferncias da ONU..........................1534.2.1 Conferncia Internacional sobre Direitos Humanos (Viena, 1993)....................1554.2.2 Conferncias sobre Populao e Desenvolvimento das Naes Unidas: Antes doCairo............................................................................................................................157

    4.2.3 Conferncia Internacional das Naes Unidas sobre Populao e Desenvolvimento CIPD - Cairo, 1994...................................................................................................162

    4.2.3.1 Interesses em conflito.............................................................................1634.2.3.2 Posies do Vaticano e do Movimento Feminista..................................1654.2.3.2.1 Nas PREPCONs...................................................................................167

    4.2.3.2.2 No Documento da Plataforma de Ao.......................................1684.2.3.2.3 Alguns significados da presena do Vaticano e do Movimento Feministana CIPD......................................................................................................174

    4.2.4 IV Conferncia das Naes Unidas sobre a Mulher - Beijing, 1995.................1754.2.4.1 O debate em torno do uso do Conceito de Gnero..................................1774.2.4.2 Direitos sexuais.......................................................................................180

    4.3. Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos no Brasil....................................................184

    4.3.1 Aspectos da participao poltica..............................................................................1854.3.2 O Movimento de Sade e Direitos Reprodutivos..............................................191

    4.4 Fundamentos ticos dos Direitos Reprodutivos e Direitos Sexuais.............................1974.4.1 O Direito Privacidade......................................................................................2004.4.2 Privacidade e direito integridade pessoal.......................................................202

    5.1 As posies do Conclio Vaticano II sobre reproduo e matrimnio.........................2075.2 A Humanae Vitae: 1968................................................................................................211

    5.3.1 As reaes da Igreja Catlica do Brasil frente encclica Hamanae Vitae:.......2145.3 Declarao da Congregao para a Doutrina da Fsobre o Aborto.............................2175.4 Evangelium Vitae: 1995...............................................................................................220

    5.4.1 Conjuntura internacional e nacional em torno de reproduo e aborto..............2205.4.2 As posies do Vaticano na encclica Evangelium Vitae...................................2215.4.3 Continuidade e/ou mudanas de rumo?.............................................................226

    5.5 Os fundamentos filosficos, teolgicos e epistemolgicos da doutrina catlica sobrereproduo e famlia...........................................................................................................231

    5.5.1 A concepo biolgica de reproduo................................................................2315.5.2. Fundamentos filosficos, teolgicos e epistemolgicos ..................................233

    5.6 Fundamentalismo........................................................................................................235

    5.6.1 Contexto dos fundamentalismos........................................................................236

    5.6.2 Fundamentalismo catlico.................................................................................2385.7 A permanncia no mundo privado ..............................................................................241

    5.8 Igreja Catlica e Cidadania Moderna..........................................................................2436.1 Antecedentes do Projeto PL 1.1151/95..........................................................................245

    6.2 Projeto de Lei no 1.151/95...........................................................................................248

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    6.2.1 Justificativa.........................................................................................................248

    6.2.2 A Tramitao do PL1151/95...............................................................................2516.3 Anlise de argumentos apresentados nos discursos dos/as Parlamentares sobre oPL1151/95...........................................................................................................................255

    6.3.1 Argumentos do Direito Natural X Direitos Humanos........................................2566.3.2 Argumentos sobre a impossibilidade da famlia homossexual...........................2596.3.3 Alguns argumentos sustentados por deputados favorveis aprovao da lei deparceria civil................................................................................................................261

    6.4 Reflexes sobre concepes de famlia........................................................................2636.5 Concepes catlicas sobre o modelo de famlia.........................................................2706.6 O PL1151/95 e seus desdobramentos nas lutas do movimento GLBTT.......................276

    7.1 Antecedentes sobre aborto e sexualidade: temticas conflitantes no Congresso Nacional............................................................................................................................................282

    7.2 O PL20/91 e a PEC25/95.............................................................................................287

    7.2.1 Interferncia da PEC25/95 como contra-ataque do ator Igreja Catlica............2897.2.2 A tramitao do PL20/91....................................................................................2907.2.3 O Pl20/91 depois da aprovao na CCJR..........................................................2937.3 O Advocacy desenvolvido em torno da questo do Aborto..................................2957.3.1 Estratgias de articulao...................................................................................2967.3.2 Reaes a conjunturas especficas, neste caso, a visita do Papa ao Brasil (1997).....................................................................................................................................298

    7.3.3 Os materiais escritos de informao e de presso.............................................3007.3.4 Campanhas nacionais a favor e contra o PL20/91..............................................303

    7.3.4.1 Frum interprofissional sobre o atendimento ao aborto previsto na lei..3047.3.4.2 Advocacy junto ao Conselho Nacional de Sade...................................305

    7.3. 5 A Mdia nas campanhas pre contra o PL20/91..............................................3067.4 A PEC25/95 e as Campanhas que acompanharam sua tramitao..............................3097.5 Identificao de Argumentos relativos ao Aborto.........................................................316

    7.5.1 Discurso Contrrio Interrupo da Gravidez...................................................3167.5.2 Vozes Religiosas Discordantes da Posio Oficial da Hierarquia Catlica........3237.5.3 Discursos favorveis interrupo da gravidez................................................325

    7.6 Sexualidade e reproduo como direitos:....................................................................3329.1 AUTORES DE REFERENCIA. .......................................................................................358

    9.2 DOCUMENTOS..............................................................................................................377

    9.2.1 Relativos ao Congresso Nacional.......................................................................377

    9.2.2 Relativos Igreja Catlica..................................................................................3799.2.3 Relativos outros atores sociais.........................................................................3819.2.4 Entrevistas..........................................................................................................382

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    APRESENTAO

    Este trabalho parte dos requisitos para a concluso do Curso de Ps-graduao strito sensu

    Interdisciplinar em Cincias Humanas, realizado ao longo de cinco anos na Universidade Federal de

    Santa Catarina. Depois de cursar as disciplinas exigidas pelo programa, defendi o projeto de pesquisa

    Sexualidade e Reproduo da Natureza aos Direitos: a incidncia da Igreja Catlica na tramitao

    dos PL20/91 - Aborto Legal e PL1151/95 - Unio Civil entre pessoas do mesmo sexo relativos aos

    Direitos Sexuais - DDSS e aos Direitos Reprodutivos DDRR em tramitao no Congresso Nacionaldurante a dcada de 90. Este projeto foi desenvolvido sob orientao das professoras doutoras Joana

    Maria Pedro e Miriam Pillar Grossi.

    O propsito principal deste trabalho foi elaborar um quadro de anlise que nos permitisse

    observar e entender as conseqncias tericas e polticas que se gestam na passagem da

    compreenso da sexualidade e reproduo ao status de direitos, focalizando a incidncia da Igreja

    Catlica nesse processo atravs do acompanhamento dos debates em torno da tramitao de algumas

    aes parlamentares da dcada de 90 (PL20/91;PEC25/95;PL1151/95) relativas ao aborto e unio

    civil entre pessoas do mesmo sexo.

    Especificamente, me propus a:

    Analisar a forma como os argumentos formulados na defesa incondicional da vida e da fam lia

    relacionam-se com os presupostos filosfico/antropolgicos do fundamentalismo religioso.

    Refletir sobre a maneira como estes fundamentos filosfico/antropolgicos do fundamentalismo

    religioso justificam a interferncia da religio num Estado laico.

    Analisar as estratgias utilizadas pelos diversos atores sociais na luta pela defesa de seus

    interesses polticos na definio dos DDSS e DDRR.

    Analisar os princpios utilizados por alguns atores sociais ligados Igreja Catlica, em relao

    naturalizao da sexualidade e da reproduo, ao direito sagrado e definitivo da vida humana desde

    sua concepo e famlia burguesa como instituio sagrada.

    Observar o significado que representa para um Estado democrtico a reduo esfera privada

    dos DDRR e DDSS a partir do argumento de que se trata de uma questo de ordem natural.

    12

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    O resultado deste trabalho foi estruturado em sete captulos, sendo que cada um deles traz um

    assunto especfico sobre o tema proposto, mas que, ao mesmo tempo, interliga-se com os demais para

    compor um quadro de analise das lutas polticas travadas nos anos 90 na busca da definio de

    Direitos Sexuais e dos Direitos Reprodutivos. Proponho s/aos leitoras/es acompanhar o processo de

    anlise dos discursos sobre direitos sexuais e direitos reprodutivos, assim como os embates polticos e

    tericos entre os diferentes atores envolvidos neste processo eminentemente poltico. Focalizei,

    especificamente, a interferncia da Igreja Catlica neste processo.

    O primeiro capitulo apresenta o campo terico e metodolgico em que apresento as principais

    teorias que inspiraram as anlises dos processos polticos acompanhados. A escolha da teoria

    feminista deve-se ao fato de consider-la a mais apropriada ao processo de desnaturalizao deconcepes essencialistas da sexualidade, da famlia, e da reproduo. Fao uma descrio do

    trabalho de campo a modo de introduo que me situa a respeito das instituies com as que

    estaremos dialogando e os materiais utilizados para analise dos debates.

    O segundo captulo apresenta o Congresso Nacional, como o mbito legislativo onde acontece

    o debate sobre os direitos sexuais e reprodutivos, como este funciona e como se da interferncia da

    Igreja Catlica por meio das articulaes com os grupos que tm interesses comuns.

    O terceiro captulo ajudara entender como um Estado laico, como o brasileiro, convive com

    uma instituio religiosa chamada Igreja Catlica, instituio presente na formao do pas e da nao

    desde os seus primrdios, tornando-se um elemento essencial na cultura brasileira e participando

    ativamente na poltica nacional sempre que estavam em causa temticas relativas sexualidade e

    reproduo humanas.

    No captulo quarto, estarei apresentando o processo de construo do conceito Direitos

    Sexuais - DDSS e Direitos Reprodutivos DDRR, processo liderado fundamentalmente pelo

    Movimento Feminista e de Mulheres em lutas de mbito internacional, nas Conferncias Internacionais

    sobre Desenvolvimento e Populao e sobre a condio da Mulher promovidas pelas Naes Unidas

    ONU e no contexto nacional atravs das lutas pela sade da mulher, pela legitimao de direitos na

    elaborao da Constituio Nacional em 1988 e na implementao das conquistas internacionais neste

    campo nas leis e polticas pblicas do pas. Mostrarei, tambm, como o movimento feminista teve

    sempre a presena opositora da Igreja Catlica neste processo.

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    J o captulo quinto apresentar os principais documentos da Igreja Catlica a respeito de

    sexualidade e reproduo humanas, a fim de entender os fundamentos tericos das suas posies

    polticas neste mbito. Penso ser de fundamental importncia o conhecimento da Tradio Catlica

    sobre sexualidade e reproduo para que se possa perceber a fora da tradio que vai se acumulando

    de documento em documento e sendo reafirmada cada vez que a temtica vem tona, seja nos meios

    de comunicao de massa, seja nos parlamentos ou em outras instncias polticas, como sejam, as

    Conferncias promovidas pelas Naes Unidas. Somente a anlise dos documentos oficiais da Igreja

    Catlica ajudar a entender o porqu da impossibilidade da mesma aceitar a modernidade que d

    autonomia s/aos cidads/aos, inclusive sobre seu corpo.

    Entrando no terreno do embate poltico pela construo dos direitos reprodutivos e sexuais, ocaptulo sexto apresentar um projeto de lei tramitando no Congresso Nacional desde 1995, o

    PL1151/95 que prope o reconhecimento oficial de unies homossexuais. Embora no tenho a

    possibilidade de entrar profundamente neste aspecto dos direitos sexuais, julgo de fundamental

    importncia abordar este ngulo da temtica que nos ocupa para demonstrar que o grande embate

    entre a doutrina hegemnica da Igreja Catlica e as teorias que defendem a autonomia dos/as

    cidados/s sobre seu corpo e sua conscincia atinge mbitos profundos da subjetividade humana que

    tm repercusses decisivas na vivncia da cidadania e, conseqentemente, na estruturao poltica da

    sociedade, reclamando a re-estruturao da prpria democracia representativa e das fronteiras entre

    pblico e privado.

    Finalmente, reservo para o captulo stimo o grande embate poltico entre os mais

    representativos atores sociais envolvidos na atribuio de significado aos direitos reprodutivos e

    sexuais: o captulo tentarmostrar como nossos atores atuaram ao longo do processo de tramitao de

    dois projetos fundamentais na atribuio de sentido aos direitos sexuais e reprodutivos: o Pl20/91 tratada regulamentao do chamado Aborto Legal e da obrigatoriedade do Sistema nico de Sade SUS

    em atender os casos previstos em lei e da proposta de emenda constitucional enquanto a PEC25/95

    objetiva inviabilizar qualquer forma de interrupo voluntria da gravidez. Este captulo pretende

    apresentar o contexto em que ditos projetos tramitaram no Congresso Nacional refletindo o embate

    poltico entre as posies da Igreja Catlica e do Movimento Feminista. Analisarei tambm os

    argumentos que se apresentam nos debates que buscam defender posies sobre estes projetos.

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    Para encerrar o trabalho, coloquei nas Consideraes Finais as reflexes sobre os aspectos

    mais significativos que me permitiram assinalar a confirmao das hipteses e a levantar novos

    questionamentos.

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    INTRODUO

    Reproduo e sexualidade so duas temticas que, pensadas como direitos humanos, so alvo

    de grandes polmicas nas diversas instncias em que se debate sua definio ou se legitima seus

    procedimentos. Dois exemplos recentes podem ilustrar nossa afirmao:

    a) No Brasil, no ms de julho de 2004, o Ministro Marco Aurlio de Mello, do Supremo Tribunal

    Federal STF, expediu uma liminar autorizando o aborto no caso de m formao fetal grave que

    inviabiliza a vida do feto fora do tero1. Esta medida garantia, tambm, o direito humano da mulher de

    escolher prosseguir ou no com uma gestao marcada por riscos e sofrimento. Porm a liminar

    precisava ser votada por todos os membros do STF. Enquanto se decidia a data de votao, houve uma

    grande presso de diferentes atores sociais interessados nesta problemtica: a Conferncia Nacional

    dos Bispos do Brasil - CNBB entrou com pedido de Amicus Curiae, apresentando seus argumentos

    para impedir a autorizao desta prtica. Ja entidade Catlicas pelo Direito de Decidir, juntamente

    com o movimento de mulheres, avaliou a importncia de manifestao de apoio a essa liminar, contra-

    argumentando com razes de cunho humanstico-cristo fundamentadas na tradio religiosa catlica

    para se contrapor posio da Igreja Catlica. Do ms de julho at outubro de 2004, essa liminar

    permitiu que, em todo o territrio brasileiro, as mulheres grvidas portadoras de feto anenceflico

    recorressem antecipao teraputica do parto. No ms de outubro essa liminar foi suspensa,

    iniciando-se o julgamento da pertinncia da Argio de Descumprimento de Preceito Fundamental

    ADPF. A suspenso prolongou-se atos dias de hoje.

    b) Aos 3 de junho de 2003, o Vaticano, atravs da Congregao para a Doutrina da F, lanou

    o documento Consideraes sobre os projetos de reconhecimento legal das unies entre pessoas

    homossexuais, fazendo um chamado aos parlamentares do mundo para no aprovar leis que

    legitimem as unies homossexuais. O teor do chamado era o seguinte:

    Na presena de projetos de lei favorveis s unies homossexuais, hque seter presentes as seguintes indicaes ticas:

    1 O aborto em caso de mformao fetal grave que inviabiliza a vida do feto fora do tero uma prtica possvel, desde queautorizada judicialmente. No entanto, ainda existem posturas dos magistrados que no garantem tal possibilidade. Foi ento que oMinistro do STF propus a liminar autorizando tal prtica. Segundo dados levantados pela Ong Catlicas Pelo Direito de Decidir,publicados seu informativo N 09 de Julho-Agosto de 2004, durante os trs meses, aproximadamente 60 mulheres foram beneficiadaspela liminar. O julgamento da pertinncia da ADPF (Argio de Descumprimento de Preceito Fundamental) foi votada no STF emmaio de 2005 vencendo por 7 votos a favor e 4 contra. Isto significa que o STF disse que da sua competncia estudar essa liminarde antecipao do parto e no do legislativo. Assim sendo este Tribunal vai iniciar audincias pblicas para estudar o assunto.

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    - No caso que se proponha pela primeira vez ao Poder Legislativo um projeto delei favorvel ao reconhecimento legal das unies homossexuais, o parlamentar catlico tem odever moral de manifestar clara e publicamente o seu desacordo e votar contra esse projetode lei. Conceder o sufrgio do prprio voto a um texto legislativo to nocivo ao bem comumda sociedade um ato gravemente imoral.

    - No caso de o parlamentar catlico se encontrar perante uma lei favorvel sunies homossexuais jem vigor, deve-se opor-lhe nos modos que lhe forem possveis (...)

    Tanto em nvel nacional como internacional, a Igreja Catlica e os Movimentos Feministas e de

    Gays Lsbicas Transexuais Travestis e Bissexuais - GLTTB participam ativamente na luta em prol das

    suas posies com relao ao aborto e livre orientao sexual e, nos diversos fruns e processos

    polticos que debatem estes temas, suas prticas e discursos permitem o avano na definio dos

    direitos sexuais e dos direitos reprodutivos, mesmo que sua implementao apresente tanto avanos

    como recuos, decorrentes do prprio debate e da fora poltica dos atores sociais envolvidos nesses

    processos.

    Por outro lado, nas ltimas dcadas, conferncias internacionais promovidas pela ONU, como a

    Conferncia de Viena sobre Direitos Humanos (1993), a Conferncia Internacional sobre Populao e

    Desenvolvimento realizada no Cairo (1994), e a Conferncia Internacional da Mulher ocorrida em

    Beijing (1995), tiveram, como uma das preocupaes centrais, a eliminao de todas as formas dediscriminao contra a mulher, defendendo e explicitando seus direitos, inclusive os sexuais e

    reprodutivos proclamados em Beijing nos seguintes termos:

    Os direitos humanos das mulheres incluem seu direito a ter controle sobre asquestes relativas sexualidade, includa sua sade sexual e reprodutiva, e decidirlivremente a respeito dessas questes, sem se verem sujeitas coero, discriminao ouviolncia. As relaes sexuais e a reproduo, includo o respeito integridade da pessoa,exigem o respeito e o consentimento recprocos e a vontade de assumir conjuntamente aresponsabilidade das conseqncias do comportamento sexual.2

    No mundo contemporneo, as Naes Unidas tm-se constitudo em lugar privilegiado para o

    dilogo internacional, principalmente em questes que atingem os direitos humanos - DDHH. Por certo,

    a ONU encontra dificuldades para se expressar numa linguagem comum frente s diversas vises de

    mundo presentes nos pases-membro. Por muito tempo e enquanto durou o predomnio absoluto do

    Ocidente nessa organizao internacional, a linguagem comum foi ditada por outra organizao

    quase universal, a Igreja Catlica. Nas palavras das feministas catlicas: durante cerca de mil anos, a

    2 Naes Unidas: Plataforma de Ao de Pequim, Seo C - Pargrafo 97.

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    Santa Scontrolou o vocabulrio com o qual o mundo ocidental se comunicou. Tanto a lngua (latim)

    como as categorias (teolgicas) eram eclesisticas e cada vez mais romanas 3Agora que a ONU

    mais plural, contando com o concurso dos pases populosos e no-cristos do Oriente, a participao

    da Santa Scomo pessoa jurdica em nvel internacional e membro das Naes Unidas, caracteriza-se

    pela beligerncia, especialmente nos debates internacionais que definem o que se entende por direitos

    sexuais e reprodutivos, os quais constituem o objeto central deste estudo. Nas conferncias

    internacionais acima mencionadas, a Santa S, juntou-se ao consenso global sobre os Programas de

    Ao como um todo, mas interps ressalvas, principalmente s resolues relativas aos direitos

    sexuais e reprodutivos.

    Isso no impediu que as decises tomadas nessas instncias fossem assinadas pela maioriados governos do mundo, inclusive pelo Brasil que participou e se comprometeu com esses acordos. E,

    um dos atores responsveis pela qualidade da participao brasileira nessas Conferncias, tem sido o

    Movimento Feminista que, desde a dcada de 80, desenvolveu uma ofensiva importante no que diz

    respeito defesa dos direitos sexuais e reprodutivos, travando diversas batalhas, como a formulao

    do Plano de Assistncia Integral Sade da Mulher PAISM (1983), a luta pela legalizao e

    descriminalizao do aborto e todo o processo para incluir os direitos das mulheres na Constituio de

    1988.

    Apesar da implementao do PAISM desde 1983, o Brasil continua com um alto ndice de

    mortalidade materna, (141 mortes por 100.000 nascidos vivos), sendo que o aborto clandestino

    constitui-se ainda como a quarta causa da mortalidade das mes. A violncia domstica e sexual

    continua presente nos lares e casas noturnas; hum incremento considervel nos ndices de mulheres

    portadoras do HIV contaminadas em seus prprios lares4. Igualmente as discriminaes por orientao

    sexual so mltiplas, a violncia contra homossexuais, denunciada pelo movimento GLBTT, uma dasfacetas mais duras desta discriminao, situaes que envolvem assassinatos e outras formas de

    violncia.5Tudo isto reflexo de que os direitos humanos, principalmente das mulheres, incluindo os

    sexuais e reprodutivos, continuam sendo sistematicamente desrespeitados no Brasil.

    Talvez esta situao seja responsvel pela proliferao de Projetos de Lei a respeito dessas

    temticas tramitando no Congresso Nacional. No inicio desta pesquisa, em 1998, tramitavam no

    Congresso Nacional 198 proposies relativas aos direitos das mulheres: 48 delas diziam respeito

    3 CDD/Br: Caderno 2/1999.

    4 AVILA, Maria Betania, 1993

    5 VIANNA, Adriana & LACERDA, Paula, 2004

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    rea de sade e sexualidade; 43 tratavam do trabalho da mulher e 38 projetos eram relativos aos

    direitos humanos e violncia contra a mulher6. Jem 2001, o boletim FMEA trazia os seguintes

    nmeros: 23 a respeito de projetos relativos sade materna; 05 sobre reproduo assistida; 16 a

    respeito da preveno de doenas sexualmente transmissveis; 12 relativas preveno de doenas

    relacionadas ao aparelho reprodutor (masculino e feminino); 13 sobre aborto; sobre clonagem e

    reproduo humana in vitro havia 9; sobre educao sexual eram 07 e 02 tratavam do planejamento

    familiar.

    Mas, se por um lado, huma listagem enorme de aes parlamentares inscritas nos anais do

    Congresso Nacional, por outro, a tramitao e aprovao de matrias na rea da vida sexual e

    reprodutiva de brasileiros e brasileiras extremamente parca. Tanto verdade que os poderesExecutivo e Judicirio acabaram tomando duas iniciativas relacionadas interrupo da gravidez em

    casos especiais e contemplados em Projetos de Lei com longo tempo de tramitao no Congresso

    Nacional, como a Norma Tcnica editada pelo Ministrio da Sade para Preveno e Tratamento dos

    Agravos Resultantes da Violncia Sexual contra Mulheres e Adolescentes e o Supremo Tribunal

    Federal com a liminar referente interrupo da gravidez nos casos do feto anencefalico, acima

    mencionado.

    Essa lacuna na determinao e implementao dos DDRR e DDSS tem graves conseqncias

    para a vida dos brasileiros e das brasileiras, levando-se em conta que sexualidade e reproduo so

    determinantes das relaes sociais e da vida poltica, na medida em que interferem significativamente

    na forma como homens e mulheres, mulheres e mulheres, homens e homens interagem nas

    instituies e sociedades. Ao definir e institucionalizar direitos reprodutivos e direitos sexuais instituem-

    se direitos e deveres que passam a ser regulados por leis, permitindo que sejam cobrados pelos

    cidados junto aos rgos governamentais e vice-versa, assim como entre os cidados e suasinstituies. Somente a partir dessa institucionalizao, os DDRR e DDSS passam a fazer parte efetiva

    dos direitos humanos, elemento fundante e imprescindvel de toda e qualquer teoria poltica moderna.7

    Mas a relao do direito com Sexualidade e Reproduo relativamente recente nos debates

    acadmicos e nos foros polticos, e pouco presente nas conversas onde prevalece o senso comum,

    pois apredominam os tabus sobre tais questes. Podemos encontrar abundante bibliografia sobre

    sade sexual e reprodutiva, assim como sobre questes relativas ao planejamento familiar,

    6 Boletim FEMEA, Jan/1998.

    7 CORRA, Snia, 1995

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    principalmente quando as mesmas so ligadas problemtica demogrfica. Mas as questes de direito

    nessa rea, s se perfilam como um debate a partir da segunda metade do sculo XX. E, nessa

    temtica, os direitos reprodutivos tm mais historia que os direitos sexuais.

    Como no campo dos direitos a luta se trava no mbito poltico, necessrio analisar os atores

    polticos nela envolvidos para compreender o desenrolar do processo. Neste trabalho, focalizaremos o

    Congresso Nacional e a Igreja Catlica, privilegiando o embate poltico com o Movimento Feminista,

    sujeito social que prioriza na sua agenda a luta pelos direitos sexuais e reprodutivos. Isto no significa

    que ignoremos a atuao de outros atores, como o Movimento GLTTB, a BEMFAM, a Federao

    Brasileira de Ginecologia e Obstetrcia- BEBRASGO, o prprio Movimento Feminista e o Movimento de

    Mulheres entre outros, os quais, com maior ou menor nfase, entram na cena poltica deste debate emdiferentes momentos, dependendo da conjuntura e dos interesses dos mesmos. Escolhemos a Igreja

    Catlica e o Congresso Nacional pelas razes que esboaremos a seguir.

    Um dos principais atores sociais8 na construo dos DDRR e dos DDSS de brasileiros e

    brasileiras o Congresso Nacional. Na Repblica Federativa Brasileira, o Congresso Nacional o foro

    legal do debate, da elaborao e da regulamentao das leis, no qual repercutem os interesses dos

    mais diversos atores sociais envolvidos nessa temtica. Sendo o Congresso Nacional a instncia do

    sistema decisrio do Estado e, ao mesmo tempo, espao poltico sensvel, em maior ou menor escala,

    aos apelos do Governo Federal e s presses dos grupos sociais, o mesmo representa uma arena

    poltica privilegiada para o estudo desta temtica9.

    Leila Linhares10argumenta que huma histria dos direitos sexuais e reprodutivos na ao

    legislativa do Brasil: Na rea do direito, o legislador brasileiro nunca se descuidou das questes da

    reproduo e da sexualidade. O Cdigo civil de 1916, e em vigor at incio de 2003, tem inmeras

    disposies nesse sentido11

    . A autora afirma tambm que, a partir da dcada de 60, houve maiordiscusso no Congresso Nacional sobre a temtica, na medida em que novos atores entravam em cena

    tornando-se novos interlocutores do mesmo; o mais ativo destes , sem dvida, o movimento feminista,

    o qual introduz e leva maior visibilidade temas como: planejamento familiar, assistncia sade

    materna, direitos sexuais e direitos reprodutivos. Neste dilogo com o Estado, mais do que o Poder

    8 Seguimos a def inio de Ator Social definida por Alain TOURAINE onde o Ator no aquele que age em conformidade como lugarque ocupa na organizao social, mas aquele que modifica o meio ambiente material e sobretudo social no qual esta colocado,modificando a diviso do trabalho, as formas de deciso, as relaes de dominao ou as orientaes culturais. (TOURAINE, 1999,p..220)

    9 Rocha:1996, p. 92.

    10 LINHARES, Leila, 1998,p.149

    11 Cdigo de Direito Civil: 1916, p.148.

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    executivo, todos os atores interessados em legitimar seus significados sobre DDRR e DDSS tm

    privilegiado o Legislativo como locusonde as diferentes posies e argumentos so explicitados. Esta

    mesma autora afirma que, mesmo tendo presses contrrias s do movimento feminista, o Congresso

    Nacional tem-se mostrado sensvel s suas demandas, mas que ainda tmida a ao do mesmo

    nessa rea, talvez pelo variado leque de competncias a ele atribudas.

    Alm das inmeras competncias a ele atribudas, ainda ressoam no Congresso Nacional os

    interesses divergentes de grupos envolvidos com questes relativas sexualidade e reproduo, tais

    como: a hierarquia da Igreja Catlica, segmentos da categoria mdica, do movimento feminista, do

    movimento GLTTB e das igrejas de denominao evanglica. Destes, a Igreja Catlica foi o primeiro

    ator a entrar no debate sobre o aborto: segundo os estudos de Rocha, ainda em 1949, na primeira

    legislatura que se seguiu ao Estado Novo, o deputado Monsenhor Arruda Cmara apresentou proposta

    que buscava suprimir do Cdigo Penal os dois permissivos legais concernentes ao aborto. Muitos anos

    depois, em 1986, jnum clima tenso de debate sobre o assunto no Congresso Nacional, o deputado

    Nilson Gibson enviou projeto de lei sobre a matria, inspirado tambm nas idias da hierarquia da

    Igreja Catlica.12

    No minha inteno e nem caberia neste trabalho historiar a participao da Igreja Catlica

    na sua interveno sobre o Congresso Nacional para fazer valer seus pontos de vista sobre

    sexualidade e reproduo. Ater-me-ei atuao da mesma no Congresso Nacional no perodo

    referente s legislaturas de 1990, ou seja: a de 1990 a 1994 e a de 1995 a 1998. Minha expectativa

    de que, baseada em outras experincias semelhantes13, o acompanhamento da tramitao de projetos

    de lei relativos aos direitos sexuais e reprodutivos permita conhecer os fundamentos tericos (doutrinas

    filosficas, antropolgicas, sociolgicas), assim como os significados que orientam os legisladores do

    Congresso Nacional e os grupos que atuam junto ao mesmo no sentido de influenciar a definiodesses direitos.

    Ns partimos da hiptese de que a dinmica de funcionamento do Congresso Nacional,

    quando se trata de Projetos de Lei sobre DDRR e DDSS, no segue os mesmos parmetros que

    orientam a tramitao de aes parlamentares sobre temas polticos e/ou econmicos. Nesses casos,

    as alianas entre partidos se redesenham segundo a religio praticada pelos parlamentares ou

    segundo as questes de conscincia ou de foro ntimo, como afirmam parlamentares por ns

    12 Rocha: 1996, p.391.

    13 Pesquisa que realizei em 1999 sobre Projetos de Lei relativos ao Aborto, no Congresso Nacional durante a Legislatura 1995-1998:

    pesquisa financiada pela Fundao Mac Arthur, atravs da Fundao Carlos Chagas.

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    entrevistados. Por outro lado, embora se saiba que muitas leis sem regulamentao devem-se prpria

    organizao e funcionamento do Congresso Nacional, seja pela sua composio, pelos confrontos

    entre situao e oposio, seja pela falta de vontade poltica de munir o Poder Executivo e Judicirio de

    instrumentos que regulamentem as atividades do povo brasileiro, independente das mudanas de

    pessoas no governo, no caso concreto dos direitos sexuais e reprodutivos, alm da lenta dinmica do

    Congresso Nacional, a tramitao dessas inmeras proposies e projetos de lei encontra outro

    empecilho pela frente: os interesses da Hierarquia e do Magistrio da Igreja Catlica nesse campo e

    suas tentativas de impor a doutrina catlica como critrio nico na definio de leis relativas aos direitos

    em questo.

    A Igreja Catlica presente no Brasil desde a chegada dos portugueses, ajuda a constituir acultura brasileira, atravs de sua doutrina pregada desde os plpitos, nas ctedras dos seus colgios e

    universidades, nos meios de comunicao social e tambm no Congresso Nacional, hcinco sculos

    vem inculcando o que se pode ou no se pode, o que se deve ou no se deve fazer em termos de

    reproduo humana e de manifestaes da sexualidade. No relatrio sobre uma pesquisa realizada

    entre os anos de 1997 e 199814, tive a oportunidade de constatar o trabalho e a fora desta instituio

    na sociedade brasileira sempre que se trate do tema reproduo humana ou direitos reprodutivos.

    A Igreja Catlica desenvolve uma atividade poltica em nveis nacional e internacional que

    busca preservar uma concepo religiosa da sexualidade e da reproduo, embora amplamente

    rejeitada pela maioria da populao catlica15 .Segundo Maria Jose Rosado, sociloga das religies,

    faz a seguinte anlise sobre a interferncia da Igreja Catlica do Brasil no Congresso Nacional:

    A Igreja Catlica age como importante grupo de presso junto ao Estado.Utilizando-se do poder social de que detentora, influi sobre os meios de comunicao demassa, atua com seu lobby junto aos parlamentares e, evidentemente, transmite a seus fiis,

    especialmente s suas fiis, atravs de seus quadros especializados, a doutrina oficialcatlica sobre o assunto16.

    Embora a Igreja Catlica j no tenha hegemonia religiosa absoluta sobre a populao

    brasileira devido ao crescimento acentuado das Igrejas Evanglicas e do uso que as mesmas fazem

    dos meios de comunicao de massa, inegvel a influncia histrica da hierarquia catlica sobre as

    elites e, conseqentemente, sobre o governo que continua privilegiando-a como interlocutor,17

    14 SANTIN, Myriam A . Direitos Reprodutivos: Congresso Nacional e Igreja Catlica.15 Rosado:2000 e Kissling:1999.

    16 Rosado, M. Jos. In: Revista Estudos Feministas: 1997. p.413.17 BARSTED, Leila, 1992

    22

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    principalmente quando se trata de questes no campo da sexualidade e reproduo humanas. Apesar

    de estar oficialmente separada do Estado desde a 1 a Repblica (1889), a Igreja Catlica sempre

    encontrou maneiras de se fazer presente junto ao poder central do pas com a inteno de garantir a

    defesa dos seus pontos de vista no que toca ao foro do direito liberdade de conscincia, ao ensino

    religioso escolar, ao matrimnio indissolvel, contracepo com mtodos no-naturais e

    condenao da interrupo da gravidez. Para tanto, sua hierarquia faz uso de vrios expedientes que,

    ora se alternam, ora funcionam concomitantemente, de acordo com a conjuntura eclesial e com a

    correlao de foras entre ela e o governo. Os principais instrumentos so os movimentos de leigos

    catlicos, os partidos e/ou organizaes polticas organizados por militantes cristos, a pastoral familiar,

    a pastoral parlamentar e a ao direta da hierarquia sobre os parlamentares, atravs de documentos eda presena/presso no Congresso Nacional.

    Na perspectiva de uma maior compreenso desta problemtica, propus-me a elaborar um

    quadro de anlise atravs do qual pudesse acompanhar e entender as conseqncias tericas e

    polticas que se gestam na passagem da compreenso da sexualidade e da reproduo ao status de

    direitos, focalizando o embate poltico entre o Movimento Feminista e a Igreja Catlica nesse processo,

    assim como a interferncia desta no Parlamento Brasileiro atravs do acompanhamento dos debates

    em torno da tramitao de algumas aes parlamentares (PL20/91; PEC25/95; PL1151/95) relativas ao

    aborto e unio civil entre pessoas do mesmo sexo na dcada de 90.

    Especificamente me proponho a:

    - Conhecer as estratgias e os expedientes utilizados pela instituio Igreja Catlica para

    influenciar os/as parlamentares no sentido de convenc-los a defender seus pontos doutrinais nos

    projetos referentes vida sexual e reprodutiva.

    - Identificar e analisar as estratgias utilizadas entre atores sociais envolvidos na atribuio de

    significados aos direitos sexuais e direitos reprodutivos, baseados em diferentes concepes de famlia,

    sexualidade, reproduo, defesa da vida, mas todos empenhados em defender condutas socialmente

    legtimas, moralmente corretas, eticamente aceitveis, juridicamente asseguradas.

    - Entender o que representa para um Estado laico a convivncia de trs sculos com uma

    instituio religiosa que procura impor a toda a nao seus princpios doutrinrios sobre sexualidade e

    reproduo.

    23

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    Identificar os motivos que me levaram escolha dessa temtica e perseguio de tais

    objetivos faz parte da construo do conhecimento. o que me proponho a explanar na seqncia,

    recorrendo a autores que sustentam teoricamente minhas afirmaes.

    Ao definir o campo temtico desta investigao e querendo acompanhar as conseqncias

    tericas e polticas dos discursos que aparecem quando a sexualidade e a reproduo so pensadas

    como direitos, assim como a interferncia da Igreja Catlica nestes debates que definem leis e direitos

    de cidads/os, considero que tal definio resultado de pesquisas construdas e guardadas ao longo

    do tempo, nas quais estimersa a vida e experincia do/da pesquisador/a. Como afirma Irlys Bareira

    ao explicar a construo de seu campo temtico de investigao:

    O material de pesquisa que serviu de base s reflexes no foi fruto de coletanica. Atravessou, assim, anos de trabalho que iluminaram reflexes tericas esistematizadas (...) referente ao sentido lgico e cumulativo de experincias que, parecendoinicialmente descontnuas, expressam na realidade a constituio de um campo temtico. 18

    Concebida assim a constituio do campo temtico, podemos afirmar que este se d num

    processo dialtico entre a objetividade e a subjetividade, seja pela complexidade da realidade social,

    seja pelo fato de que a teoria e a prtica da pesquisa no esto isentas de interesses, de preconceitos

    e de incurses subjetivas.19

    Nesse sentido, uma inquietao pessoal que me persegue h mais de uma dcada a de

    compreender mais a fundo a interferncia da Igreja Catlica no Congresso Nacional a fim de ver se

    confirmava uma hiptese a respeito da demora na tramitao dos Projetos de Lei relativos aos direitos

    sexuais e direitos reprodutivos.

    Por outro lado, minha condio decatlica ligada aos setores que seguem as orientaes do

    Conclio Vaticano II e do Documento de Medelln20e trabalhando com mulheres que buscam seguiressa mesma orientao, interessa-me entender melhor a participao da instituio catlica nesses

    processos, pois o envolvimento militante com bases da Igreja me impulsiou a ter uma compreenso

    18 Barreira:1998:p.17.

    19 Minayo:1994, p.10..

    20 O Conclio Vaticano II aconteceu entre os anos de 1962 e 1965 e produziu uma srie de documentos que definiram uma novarelao da Igreja com o Mundo e novas orientaes teolgicas e pastorais para os catlicos, inclusive a respeito do matrimnio e dareproduo humana. Sobre ele alaremos mais longamente no captulo sobre Igreja e Estado. O Documento Concluses de Medellnfruto da reunio do Conselho Latinoamericano do Episcopado da Amrica Latina CELAM, acontecido na cidade de Medell n Colmbia, em 1968 e que traduziu o esprito dos documentos do Conclio Vaticano II para a Igreja deste continente, aprofundando seucompromisso com as camadas populares dos pases do terceiro mundo.

    24

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    estrutural e conjuntural da atuao da mesma na medida em que tem conseqncias para a vida de

    mulheres e homens dos setores populares.

    As razes que me ligam a esses setores provm de longa data: como estudante em minha terra

    natal, a Colmbia, estive vinculada aos movimentos sociais e acompanhei de perto o trabalho com

    mulheres, impressionando-me sobremaneira a violncia sexual e domstica por elas suportada. Desde

    ento, percebia que a submisso das mulheres estava fortemente enraizada na dimenso da

    sexualidade e de sua vida reprodutiva marcadas pela crena religiosa. Daminha convico de que

    seria importante entender as posies doutrinais e polticas da Igreja Catlica com relao s questes

    da sexualidade e da reproduo.

    Nessa busca de entender a problemtica envolvendo religio e reproduo, em minha

    dissertao de mestrado21fiz uma sistematizao da experincia vivida na Nicargua, onde, ao longo

    de seis anos acompanhei o processo revolucionrio nicaragense e centroamericano. Nessa

    experincia, chamou-me a ateno o carter religioso das guerras ocorridas nesses processos

    revolucionrios. Na dissertao trabalhei a relao entre o Estado e a Igreja Catlica no interior de um

    processo revolucionrio, analisando Os Interesses em conflito entre a Revoluo, a Igreja Catlica e o

    Movimento de Mulheres. Constatei que, embora existissem interesses comuns, divergiam no debate

    sobre Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos. Foi nessa ocasio (1990-94), que a descoberta da

    categoria relaes de gnero facilitou-me um novo olhar sobre o processo revolucionrio e, no interior

    do mesmo, da luta pelos direitos das mulheres.

    Outro motivo da minha escolha foi a realizao de duas pesquisas relativas a essa temtica em

    solo brasileiro, as quais marcaram minha vida profissional: a primeira, realizada no litoral do Par,

    buscava elucidar de que maneira o fator religioso interferia nas prticas anticoncepcionais das

    mulheres.22 A outra, foi sobre a atuao da Igreja Catlica - Igreja Catlica no Congresso Nacional CN, durante a tramitao do Projeto de Lei sobre aborto legal.23

    H, ainda, minha participao na fundao da ONG Catlicas pelo Direito de Decidir no

    Brasil24- CDD/BR: minha vinculao com esta organizao permite-me, por um lado, acompanhar mais

    21 Dissertao defendida para obteno do Grau de Mestre em 1994 na Universidade Metodista de So Bernardo do Campo. Mulheres,Revoluo e Igreja Catlica: Interesses em Conflito.

    22 Esta pesquisa se encontra publicada pela Universidade Da Amaznia UNAMA ano 1999. Na srie Relatrios de Pesquisa: Religio ePrticas Anticoncepcionais.

    23 Fundao Carlos Chagas, VIII Concurso de Dotaes para Pesquisa sobre Mulheres e Relaes de Gnero: Direitos Humanos dasMulheres: Congresso Nacional e Igreja Catlica Agosto 1999.

    24 CDD/BR.fundada em agosto de 1993 em So Paulo- SP, tendo entre seus objetivos promover os direitos das mulheres,especialmente os que se referem sexualidade e reproduo humans. Lutar pela eqidade nas relaes de gnero e pelacidadania das mulheres, tanto na sociedade como no interior da Igreja Catlica e de outras igrejas. Democracia e participao

    25

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    de perto os diversos discursos e posies que, no interior da Igreja Catlica, so debatidos quando o

    tema sexualidade e reproduo e, por outro, constitui um alerta para a necessidade de um

    distanciamento ou estranhamento do meu objeto de anlise.

    Atualmente, como professora numa Universidade do Oeste de Santa Catarina, UNOCHAPECO

    residindo no oeste catarinense desde 1996, chama-me a ateno o quanto difcil falar sobre aborto

    e/ou homossexualidade dois tabus fortemente arraigados na cultura local. Para ilustr-los, contarei um

    dilogo que tive com um pr-adolescente de 11 anos que freqentava nossa casa por causa da

    amizade com nossos filhos. Numa conversa a respeito de hetero e homossexualidade, perguntei-lhe:

    Se voctivesse um irmo homossexual, o que faria? Ao que ele respondeu sem pestanejar: - Eu

    buscaria uma mulher bem boazuda e colocaria ela pelada num quarto s com ele. Se ele notrepasse nela, eu pegaria uma cinta e daria uma surra de deix-lo lastimado.

    Essa reao do menino representa, sem a menor sombra de dvida, a fora raivosa do

    preconceito contra a homossexualidade presente na regio. Por isso, embora no tenha acompanhado

    mais de perto a atuao do Movimento Gay e GLTTB na construo dos direitos sexuais e reprodutivos,

    insisti no acompanhamento do PL 1151 que me permitiria uma maior aproximao temtica e assim

    poder trat-la nos contatos com os/as alunos/as, assim como junto aos colegas de trabalho e no

    prprio Movimento de Mulheres em que participo.

    Com essas experincias e motivaes como motores de propulso e munida de teorias, como

    os estudos de gnero que serviro de lanternas para abrir caminhos na busca de explicaes e da

    construo de um instrumental de anlise, desenvolvo esta tese que est organizada em sete

    captulos: essa diviso tem como finalidade facilitar a leitura e entendimento do trabalho, tendo tambm

    a expectativa de situar as/os leitoras/res a respeito do caminho percorrido, das diversas maneiras que

    encontrei para me comunicar, conhecer, abordar aquilo que me propunha compreender.

    .

    caracterizam seu trabalho. Carta de Principios.

    26

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    1. O CAMPO TERICO E METODOLGICO

    Neste captulo apresentarei o processo metodolgico desenvolvido na construo do trabalho.

    Numa primeira parte abordarei o conjunto de teorias que me auxiliaram na anlise do material coletado.

    Justifico a opo pelas teorias feministas que utilizam a categoria de gnero nos estudos a respeito de

    sexualidade e reproduo, trabalhando com a desconstruo de concepes naturais de sexo,

    sexualidade e reproduo, explicitando a separao entre estas, mostrando a construo de gnero e

    suas implicaes polticas. Na segunda parte, apresentarei a delimitao do campo emprico e os

    espaos escolhidos para a coleta da informao, situando o contexto do embate poltico que se

    desenvolve em torno dos direitos sexuais e reprodutivos.

    Diversos metodlogos expem as fases que devem ser consideradas numa pesquisa em

    Cincias Humanas,25. Cada autor confere-lhes diferentes nomes assim como prope um nmero

    variado de fases em que o contedo da pesquisa deve ser trabalhado. Interessa-me aqui enfatizar,

    especificamente, a relao entre dados e teoria. Para esta tarefa encontro clareza e simplicidade na

    posio do antroplogo Roberto Da Matta quando afirma:

    No campo das Cincias Sociais, uma pesquisa implica necessariamente nasseguintes etapas: a) uma (ou vrias) questes relativas a um problema que se desejainvestigar. Em geral essas questes esto contidas em teorias que nada mais so do queconjunto de idias sobre um dado fato ou conjunto de fatos com uma certa dose deverificao emprica; b) a tentativa de atestar ou apreciar essas questes com base em umaexperincia relativamente controlada da realidade social que se deseja estudar. E finalmente,c) a crtica das questes iniciais que, rebatidas de encontro aos nossos achados, germinamem novas idias, questes e abrem caminho a outras indagaes.26

    Nesse dilogo entre dados e teorias e vice-versa, que se concentra a riqueza da pesquisa

    propriamente dita, como o expressa Ceclia Minayo, ao afirmar que a relao entre teoria e realidade

    emprica se dem um processo dialtico, na medida em que a realidade informa a teoria que, por sua

    vez, a antecede. A teoria aprofundada de forma crtica, permite desvendar dimenses no pensadas a

    respeito da realidade que no evidente e que no se d, revela-se a partir de interrogaes

    elaboradas no processo de construo terica 27.

    25 Tomo com,o referncia os trabalhos de: Minayo (1994), Da Matta (1981), Zaluar (1980), Rudio (1988), Hernndez (1998), Oliveira(1997).

    26 Da Mata, 1981:87

    27 MINAYO, Ceclia ,1994, 41

    27

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    Fundamento este trabalho nas teorias feministas, motivada por seu carter interdisciplinar.

    Miriam Adelman, por exemplo, debate o lugar das Teorias Feministas no Campo das Cincias Sociais.

    destacando a nfase no carter multi e transdisciplinar da mesma, afirmando que nasce a partir dos

    dilogos entre diversos campos disciplinares, com a tarefa de resgate e/ou construo de uma

    perspectiva baseada nas experincias femininas e da desconstruo do vis masculinista que permeia

    esses campos. Como discurso alternativo, acaba somando-se, em maior ou menor grau, aos corpos

    tericos desses campos disciplinares, circulando dentro e fora deles, tentando transform-los, mas

    tambm respeitando suas fronteiras. 28

    Consideramos tambm, que o feminismo tem tratado de desenvolver novos paradigmas de

    crtica social, os quais no tm como base fundamentos filosficos tradicionais como o essencialismo,entre outros. Pelo contrrio, tem criticado as epistemologias fundacionalistas29e teorias polticas, como

    as liberais, deixando explcito o carter parcial, contingente, historicamente situado daquilo que sempre

    se tem feito passar por verdades necessrias, universais, ahistricas. As teorias feministas tm,

    igualmente, questionado o projeto filosfico dominante de buscar objetividade disfarada na viso de

    um olho de Deus a qual transcende qualquer situao ou perspectiva.30

    Quando leio o material emprico coletado, percebo, nos discursos de representantes do poder

    legislativo, a relao naturalizada entre sexualidade e reproduo. O texto abaixo, exposto por um

    parlamentar do Congresso Nacional por ocasio da Comisso Geral onde foi debatido o Projeto de Lei

    sobre aborto legal - PL20/91 , ilustra o acima exposto:

    Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados, senhoras e senhores, a questo que sediscute aqui clara: vida humana - vida humana, repito - versus direito de a mulher usar oseu corpo como bem entende. Trata-se do uso do corpo pela eliminao de outro corpo (nocaso do aborto permitido por lei).No uma questo de moral sexual, mas de direito vida.A gravidez no um problema de sade da mulher. Pelo contrrio, a gravidez fortalece a

    sade da mulher. (Palmas.) No fundo, a manipulao da mulher uma questo poltica.Aproveitam-se do sentimento de revolta delas contra injustias sofridas durante sculos,inclusive o estupro, sem a penalizao devida, para que se consiga, em nosso Pas, ocontrole da populao brasileira, que um objetivo estratgico das naes do PrimeiroMundo, nas quais, sem exceo, o crescimento populacional estem queda ou negativo.Esses pases controlam a ONU que estimula, por sua vez, inmeras entidades internacionaisa serem favorveis esterilizao, ao aborto e legalizao da unio entre homossexuais,financiando as campanhas para legalizao dessas medidas. (Palmas.)31

    28 ADELMAN, Miriam, 2004.

    29 Linda, Nicholson define o Fundacionalismo biolgico quando analisa as relaes entre a biologia e a socializao, essa noo derelacionamento entre corpo, personalidade e comportamento a fim de indicar suas diferenas e semelhanas em relao aodeterminismo biolgico. ( NICHOLSON, Linda, 2000)

    30 NICHOLSON, Linda J. 1992

    31 Comisso Geral - Depto de Taquigrafia, Reviso e Redao - Sesso 20: 216.3.50.O Data: 25.11.97 - Local: Cmara dos Deputados-p. 33.

    28

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    Nos debates travados no Congresso Nacional sobre regulamentao do aborto legal e sobre a

    unio civil de homossexuais, so inmeras as ocasies em que, semelhana do que acontece no

    texto acima, aparecem imbricadas as questes de sexualidade, reproduo, direitos, relaes de poder,

    moral, representaes sobre o corpo. Para a anlise dessas temticas, necessita-se de perspectivas

    tericas que permitam uma aproximao adequada a esse objeto de estudo.

    Embora esteja conscientes que sexualidade e reproduo no se encontram naturalmente

    ligados, metodologicamente trabalha-los-ei como conjunto. Nos discursos sobre estes direitos,

    dificilmente aparecem desvinculados estes dois conceitos. Pude constatar isto nas entrevistas com os

    parlamentares, que, perguntados a respeito do projeto de lei sobre aborto legal, sempre incluam na

    resposta o tema da parceria civil de homossexuais, como no depoimento abaixo:

    Alm dessas atividades, tem uma parte desse grupo (Grupo ParlamentarCatlico), que tem algumas bandeiras aqui, que a bandeira da famlia da vida, nos leva auma luta muito grande aqui dentro do Congresso, de projetos abortistas, de projetos queatentam contra valores cristos, um deles quer atentar contra valores cristos, um deles aregulamentao do casamento de homossexuais, de gays.32

    Propondo-me a trabalhar com a categoria relaes de gnero, entendida como a organizaosocial da diferena sexual, adentro necessariamente interdisciplinaridade e transversalidade que

    caracterizam o surgimento desta categoria de anlise. Huma interdisciplinaridade exigida pelo recurso

    a conceitos tericos, como gnero, desconstruo e diferena. Igualmente, o carter de

    transversalidade do conceito de gnero que marca uma diferena e uma relao, o faz entre tantas

    outras relaes, isso transversal s outras dimenses do social e no as exclui. Como afirmam Costa

    & Bruschiini: a partir das noes de desconstruo e de diferena, que permeiam a epistemologia

    ps-estruturalista e ps-moderna, que a noo de gnero foi sendo reconstituda, perpassando as

    diferentes reas da Psicanlise, Lingustica, Histria, Antropologia e Sociologia.33

    1.1 Gnero - Direitos Sexuais e Direitos ReprodutivosO pensamento feminista tem desenvolvido um debate constante sobre gnero e sexualidade no

    tratamento dos temas, como sade reprodutiva, polticas de planejamento familiar, direitos sexuais e

    32 6 Entrevista com deputado do Grupo Parlamentar Catlico do PP da Paraba.33 Costa&Bruschini: 1991, pp.9-10

    29

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    direitos reprodutivos, tanto em nvel internacional (nas Conferncias propostas pelas Naes Unidas),

    como em nvel nacional.

    Nosso objetivo aqui no fazer uma reviso aprofundada das correntes de pensamento que

    informam o campo de estudos sobre sexualidade e gnero dentro das correntes feministas, mas, como

    afirma Gayle Rubin, Especificar a relao ntima entre sexo e gnero, mostrando que no so a

    mesma coisa, mas constituem a base de duas arenas distintas das prticas sociais34e faz-lo de tal

    forma que nos permita circunscrever o campo deste estudo.

    Diversas autoras tm sistematizado a trajetria e o surgimento dos estudos de gnero. Mirian

    Grossi35 sinaliza dois fatores que produzem o terreno propcio para o surgimento dos mesmos. O

    primeiro seriam as lutas libertrias dos anos 60, mais particularmente dos movimentos sociais de 1968,

    uma vez que, em meio luta por uma vida mais justa e igualitria, visualiza-se a problemtica de

    gnero, quando as mulheres que delas participavam, apesar da sua militncia em pde igualdade com

    os homens, perceberam seu papel secundrio na conduo das mesmas e na canalizao dos

    resultados. O segundo fator paralelo a essas lutas o grande questionamento da sexualidade ocorrido

    tambm nos anos sessenta, tais como a comercializao da plula anticoncepcional, a virgindade

    enquanto valor essencial das mulheres para o casamento, a importncia do prazer na vivencia da

    sexualidade deixando de lado a finalidade exclusiva da procriao.

    No Brasil, os estudos sobre gnero ou relaes de gnero surgem nos anos 70/80. Mirian

    Grossi, no texto acima citado, faz uma distino entre o que seriam os estudos sobre a condio

    feminina, os estudos sobre mulheres e os estudos de gnero; enfatiza tambm que o conceito de

    gnero estcolado, no Ocidente, ao de sexualidade, o que ocasiona uma imensa dificuldade no senso

    comum, e que se reflete na teoria feminista, de separar a problemtica da identidade de gnero da

    sexualidade, marcada, esta ltima, pela escolha do objeto de desejo.

    34 Rubim, G,1993

    35 Grossi, M.irian 1998.

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    Teresita de Barbieri36 tambm mostra como os movimentos feministas dos anos 60 foram

    desafiados a dar uma explicao sobre as condies de subordinao das mulheres. Como as cincias

    sociais e humanas no tinham, atesse momento, um corpo terico capaz de fornecer tal explicao, o

    feminismo latino-americano parte do conceito de patriarcado como tentativa de explicar a subordinao.

    Porm este conceito, sendo mais descritivo do que analtico, no preencheu o objetivo central, ou seja,

    explicar o processo de subordinao das mulheres. Isto no significa negar que a analise do

    patriarcado tenha ajudado na mobilizao das mulheres por sua emancipao.

    Segundo Marta Lamas37, a crise dos paradigmas macro-estruturais nas Cincias Sociais dos

    anos 80, a busca das causas da dominao/explorao foi cedendo espao nfase nos significados

    das relaes sociais constitutivas das relaes de poder, desenvolvendo-se uma nova possibilidadeterica para anlise das relaes sociais. De fato uma nova angulao terica far-se-ia possvel a

    partir do momento em que ocorresse o deslocamento terico do conceito de patriarcado na direo do

    uso dos sistemas de sexo/gnero como categoria de analise38

    Esta concepo de sistema sexo/gnero que estuda a construo social do sexo traz uma

    ruptura epistemolgica nas cincias sociais, pois se trata do reconhecimento de uma dimenso da

    desigualdade social que sempre estava subsumida na dimenso econmica, nas categorias de classe

    ou de estratificao social, mas que no era trabalhada diretamente.39Essa perspectiva terica do

    sistema sexo/gnero, por mim assumida neste trabalho, segue a orientao de duas autoras que,

    embora trabalhem campos disciplinares diferentes, (Histria e Antropologia), seriam as mais

    representativas defensoras desta linha: Gayle Rubin (1975) e Joan Scott (1979). Ambas enfatizam a

    necessidade de analisar gnero como sistema de poder, resultado, por um lado, de conflitos e, por

    outro, de transformaes culturais sociais e econmicas.

    Gayle Rubin40

    introduz o conceito de sistema sexo/gnero, que consistiria num conjunto dearranjos atravs dos quais uma sociedade transforma a sexualidade biolgica em produtos da atividade

    humana na qual essas necessidades sexuais transformadas so satisfeitas. Teresita de Barbieri, em

    consonncia com Rubin, entende esse sistema como

    36 BARBIERI, Teresita de, 1991.

    37 LAMAS, Marta, 199638 Corra 199639 Barbieri 1990.

    40 Rubin Gayle, 1975

    31

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    um conjunto de prticas, smbolos e representaes, normas e valores sociaisque as sociedades elaboram a partir da diferena sexual antomo-fisiolgica que do sentido satisfao dos impulsos sexuais, reproduo da espcie humana e, em geral, dosrelacionamentos entre pessoas41.

    Algumas autoras, como Sandra Harding e Nancy Fraser, fazem a crtica ao conceito de Rubin

    na medida em que o biolgico foi assumido como base sobre a qual os significados culturais so

    constitudos. Assim, no momento mesmo em que a influncia do biolgico estsendo minada, est

    sendo tambm invocada42. Joan Scott, com relao a este ponto, afirma que:

    Gnero a organizao social da diferena sexual. Mas isso no significa que ognero reflita ou produza diferenas fsicas fixas e naturais entre mulheres e homens; mais

    propriamente, o gnero o conhecimento que estabelece significados para diferenascorporais. (...) No podemos ver as diferenas sexuais a no ser como uma funo de nossoconhecimento sobre o corpo, e esse conhecimento no puro, no pode ser isolado de suaimplicao num amplo espectro de contextos discursivos43.

    A produo feminista que trata da discusso deste debate sobre a distino entre sexo e

    gnero extremamente variada44. Cada posio assume determinadas possibilidades e limites da

    categoria de gnero. Utilizamo-la neste trabalho por causa de seu grande potencial desnaturalizador,

    particularmente de temas como sexualidade e reproduo, os quais, na cultura ocidental, geralmente

    so tratados como naturais

    Seguindo o pensamento de Snia Correa45, a definio de Jean Scott acima citada, favorece a

    desconstruo das diferenas de gnero quando este pensado como algo natural e imutvel, de

    ordem biolgica, esquecendo sua construo histrico-social. Na viso por mim adotada, as

    diferenas de gnero so sujeitas transformao pela ao social e poltica. Esta definio

    igualmente importante para dar passo desnaturalizao definitiva da sexualidade, a qual deixa de ser

    fora natural para ser encarada como um segundo sistema de mediao, tambm construdo

    socialmente.

    Na perspectiva das relaes de gnero so especialmente significativas as reflexes tericas

    de Corra e Petchesky46. Para as mesmas, um excelente ponto de partida para deflagrar a reflexo

    sobre direitos sexuais e reprodutivos pensar estes conceitos como produo de novos sentidos no

    41 Barberi, Teesita de, 1991, p 30

    42 NICHOLSON, Linda, 2000 p.11

    43 SCOTT, apud NICHOLSON, 2002, p.10

    44 Donna Haraway, Judith Butler, Marilene Strathern, entre algumas ps-modernas tm levantado questionamentos ao conceito degnero. Nesta introduo no entraremos neste debate, mas sinalizaremos algumas posies que foram teis para nossa anlise.

    45 Correa, Sonia, 1996

    46 CORRA &PETCHESKY. Population Policies Recon