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    FUNDAO GETLIO VARGASCENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAO DE

    HISTRIA CONTEMPORNEA DO BRASIL CPDOCPROGRAMA DE PS GRADUAO EM HISTRIA POLTICA E BENS

    CULTURAIS PPHPBCMESTRADO PROFISSIONALIZANTE EM BENS CULTURAIS E PROJETOSSOCIAIS

    TRABALHO DE CONCLUSO DE CURSOAPRESENTADO POR

    CLAUDIA ROSE RIBEIRO DA SILVA

    MAR:A INVENO DE UM BAIRRO

    ORIENTADOR: PROF. CARLOS EDUARDO SARMENTO

    ______________________________________________________________________

    ASSINATURA DO ORIENTADOR ACADMICO

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    FUNDAO GETLIO VARGASCENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAO DE

    HISTRIA CONTEMPORNEA DO BRASIL CPDOCPROGRAMA DE PS GRADUAO EM HISTRIA POLTICA E BENS

    CULTURAIS PPHPBCMESTRADO PROFISSIONALIZANTE EM BENS CULTURAIS E PROJETOSSOCIAIS

    MAR:A INVENO DE UM BAIRRO

    TRABALHO DE CONCLUSO DE CURSO APRESENTADO PORCLUDIA ROSE RIBEIRO DA SILVA

    EAPROVADA EM 17/04/2006PELA BANCA EXAMINADORA

    ____________________________________________________

    PROF. DR. CARLOS EDUARDO SARMENTOORIENTADOR

    ____________________________________________________

    PROF. DR. MARIETA DE MORAES FERREIRA

    ____________________________________________________

    PROF. DR. MARIO DE SOUZA CHAGAS

    FUNDAO GETLIO VARGAS

    CENTRO DE PESQUI

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    Para minha me La (in memoriam) e meu pai Silas;

    tia Lcia e s irms Cleide e Andra;

    aos sobrinhos Felipe, Thamires, Lucas e Luiz;

    para o amigo Raimundo;

    ao companheiro Carlinhos e Jlia, fruto do nosso amor,

    com muita ternura.

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    AGRADECIMENTOS

    Este trabalho no apenas o resultado de meus esforos pessoais. Ele fruto de uma

    jornada coletiva, h tempos iniciada, da qual muitos participaram e continuam contribuindo,

    influenciando minhas opes. Para mim um privilgio poder contar com tantos amigos e

    companheiros que me incentivam nesta caminhada.

    Em especial, gostaria de agradecer aos moradores e moradoras da Mar, que to

    gentilmente cederam seus depoimentos e me inspiraram na escolha do tema deste trabalho.

    Agradeo Diretoria do CEASM, que muito felizmente optou por investir na

    formao acadmica de seus membros. de se louvar tambm o trabalho de todos aqueles

    que militam nesta instituio para manter viva a sua mstica.

    Boa parte da realizao desta pesquisa foi possvel graas aos arquivos mantidos pela

    Rede Memria e pelo jornal O Cidado. Agradeo s equipes desses projetos, que

    desenvolvem um trabalho de grande importncia para a preservao da memria local e para

    o enriquecimento da histria da cidade.

    Aos professores e colegas da escola Tenente General Napion, agradeo o entusiasmo

    com o qual receberam a notcia da minha aprovao para o mestrado. Em particular, agradeo

    compreenso das diretoras Acyrema e Simone; e ao prof. Srgio, pelas inspiradoras

    conversas durante os intervalos entre as aulas.Ao prof. Carlos Eduardo Sarmento, pela pacincia e por sua confiana. Mas,

    principalmente agradeo orientao respeitosa, que sempre valorizou minhas idias e

    opinies.

    Aos professores Marieta de Moraes Ferreira e Mrio Chagas, pelas relevantes

    contribuies dadas a este trabalho, o que resultou em significativas e salutares mudanas no

    desenvolvimento da pesquisa.

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    Aos professores do Colegiado do Mestrado, em particular ao prof. Mario Grynszpan,

    pelo grande apoio e pela compreenso.

    Aos colegas e professores da turma do mestrado, pelo companheirismo e pelo

    compartilhamento das experincias acadmicas, profissionais e pessoais, que contriburam

    sobremaneira para a realizao deste trabalho.

    Aos funcionrios das secretarias do mestrado e do CPDOC, pelas informaes e pelo

    apoio durante todo o curso.

    s amigas e professoras Slvia Regina e Dulce, pela colaborao na traduo do

    resumo deste trabalho.

    Por ltimo, gostaria de agradecer s pessoas que partilharam comigo o cotidiano de

    angstia e alegria durante o desenvolvimento deste trabalho. Em especial, agradeo ao

    Carlinhos, pelo afeto e pela contribuio intelectual que me apoiaram nesta caminhada.

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    O cho que dado, aqui teve que ser construdo.

    Fazer a casa sem ter o cho algo absolutamente incrvel.

    O processo de ocupao da Mar tem um carter herico

    Lilian Fessler Vaz

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    APRESENTAO

    Sim, outrora eu era de aqui; hoje, a cada paisagem, nova para mim que seja, regresso

    estrangeiro, hspede e peregrino da sua presentao, forasteiro do que vejo e ouo,

    velho de mim (Fernando Pessoa).

    Filha de pai aposentado e me dona de casa, nasci em 1966, e, at os 32 anos morei na

    Mar. Vivi a infncia e a juventude nesse lugar, andando livremente pelos becos, ruas e

    pontes de madeira sobre palafitas; correndo atrs de doces no Dia de So Cosme e So

    Damio; fugindo apavorada dos homens mascarados da Folia de Reis; sambando nos

    ensaios do bloco carnavalesco Coraes Unidos; indo de arraial em arraial, vestida de caipira

    para danar quadrilha; visitando as casas dos vizinhos durante as noites de Natal e Ano Novo;

    fazendo trabalhos escolares nas casas dos colegas...

    Aos 13 anos, comecei a participar da parquia Nossa Senhora dos Navegantes, que

    abrangia toda a rea reconhecida at ento como Mar: do Conjunto Esperana, em frente FIOCRUZ, at o Parque Unio, na entrada para o Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro.

    A parquia possua quatro capelas, cada qual em uma localidade diferente: capela Nossa

    Senhora da Paz, no Parque Unio; Sagrada Famlia, na Nova Holanda; Jesus de Nazar, no

    Parque Mar; e a capela So Jos Operrio, na Vila do Joo. A matriz localizava-se prximo

    Avenida Brasil, na altura do Morro do Timbau. Andvamos muito naquele tempo,

    participando dos encontros, procisses, celebraes etc., que ocorriam em cada comunidade.

    Minha participao na parquia tornou-se ainda mais intensa a partir de 1982, quando

    entrei para a Pastoral de Juventude. Aquele foi um momento de profcuo debate em torno da

    Teologia da Libertao do qual os jovens participaram ativamente. A militncia na pastoral

    me impulsionou a assumir, juntamente com outros jovens, um papel de liderana na parquia.

    Ao mesmo tempo, comecei a cursar o Ensino Mdio em meio s mudanas

    significativas que estavam ocorrendo na poltica do estado do Rio de Janeiro, com a eleio

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    de Brizola para governador. Muitos de meus professores eram simpatizantes ou militantes

    dos partidos de esquerda. Por isso, enquanto na Pastoral de Juventude discutamos nossa

    militncia extra-eclesial - insero dos jovens em instituies e movimentos que pudessem

    contribuir para a transformao das estruturas injustas da sociedade -, no colgio, os debates

    sobre temas sociais eram constantes.

    Lembro-me de uma pesquisa sobre racismo que os alunos fizeram para a disciplina de

    histria. Minha turma ficou responsvel por realizar entrevistas com internos da FUNABEM,

    na Ilha do Governador. Os resultados da pesquisa foram apresentados em um seminrio, que

    envolveu todos os alunos. Tal atividade ampliou minhas perspectivas a respeito do estudo

    daquela disciplina, alm de ter contribudo para aprofundar minha formao poltica.

    Em virtude dessa trajetria, em 1986, ajudei a fundar o ncleo do Partido dos

    Trabalhadores na Mar; em 1987, fiz o Vestibular para Histria, na UERJ; e, em 1997,

    participei da fundao da ONG Centro de Estudos e Aes Solidrias da Mar (CEASM).

    Atualmente, sou professora de histria numa escola da rede pblica municipal na Mar, e

    trabalho a questo da identidade dos moradores locais na Rede Memria do CEASM.

    A escolha do tema deste trabalho, portanto, est diretamente relacionada ao caminho

    que percorri at aqui. Tal caminho levou-me a perceber e atuar na Mar sempre a partir de

    uma viso comunitria e globalizante. Tratar esse lugar, to familiar, como um objeto de

    estudo, sem dvida foi o maior desfio que tive que enfrentar durante o desenvolvimento destapesquisa.

    Mas, se foi necessrio tornar-me estrangeira, hspede e peregrina, por outro

    lado, continuei sendo de aqui. Foi essa condio privilegiada que enriqueceu sobremaneira

    a experincia de produo deste trabalho. Espero ter conseguido traduzi-la nas pginas que se

    seguem.

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    RESUMO

    Estudo de caso sobre a construo de identidades sociais no bairro da Mar. Descreve o

    processo de formao das favelas cariocas e, em particular, da Favela da Mar, desde o incio

    de sua ocupao at a criao do bairro, institudo pelo poder pblico municipal, na XXX

    Regio Administrativa, que abrange 15 localidades, comumente reconhecidas na cidade do

    Rio de Janeiro como o Conjunto de favelas da Marou Complexo da Mar. Discute

    as reaes dos moradores locais ao fato do bairro ter sido criado a partir da favela, espao

    cujas representaes esto hegemonicamente associadas a tudo o que se ope existncia da

    cidade. Analisa as aes empreendidas pela organizao no governamental Centro de

    Estudos e Aes Solidrias da Mar (CEASM), no sentido de inventar o bairro, tendo como

    princpios norteadores de sua atuao, a valorizao do lugar e de sua histria; as memrias

    dos moradores; e o protagonismo dos prprios agentes sociais locais. O estudo apia-se na

    anlise de fontes orais, e na pesquisa documental e bibliogrfica.

    Palavras-chave: Memria. Identidade. Mar. Favela. Bairro. CEASM.

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    ABSTRACT

    This case study is about the construction of social identities in the neighborhood named Mar.

    This research describes the formation process of the favelas in Rio de Janeiro City,

    particularly of Favela da Mar, since its beginning until the creation of the neighborhood,

    instituted by the municipal public power, in the XXX Regio Administrativa, that encircle 15

    localities, generally recognized in the City as Conjunto de Favelas da Maror Complexo da

    Mar. It discusses the dwellers reactions to the fact that the neighborhood to have been

    created from the favela, a space whose representations are chiefly associated with everything

    that is against the existence of the City. It analyzes the actions enterprisinged by Centro de

    Estudos e Aes Solidrias da Mar (CEASM), a non governmental organization, in the sense

    of invent the neighborhood, based on the appreciation of the place and its history; on the

    dwellers` memories; and the protagonism of the own local social agents. The study is

    founded on the oral narratives analysis and on the documental and bibliographical research.

    Keywords: Memory. Identity. Mar. Favela. Neighborhood. CEASM.

    SA E ULTURAIS PPHPBC

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    LISTA DE QUADROS

    QUADRO 1 Remoes de favelas realizadas durante o governo Carlos

    Lacerda, no perodo de 1961 a 1964 ........................................ 93

    QUADRO 2 Projeto Rio: demonstrativo de metas previstas e obras

    realizadas ................................................................................. 112

    QUADRO 3 Plano Diretor da Cidade do Rio de Janeiro: diretrizes para

    urbanizao de favelas e aes para regularizao urbanstica

    das favelas ................................................................................ 124

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    LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

    1 BCC 1 Batalho de Carros de Combate

    22 BPM 22 Batalho da Polcia Militar

    ACB Ao Comunitria do Brasil

    ADA Amigos dos Amigos

    AEP rea Especial de Planejamento

    AGCRJ Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro

    ALERJ Assemblia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro

    AMANH Associao de Moradores e Amigos de Nova Holanda

    AMMT Associao dos Moradores do Morro do Timbu

    AN Arquivo Nacional

    ANL Aliana Libertadora Nacional

    AP rea de Planejamento

    BNH Banco Nacional de Habitao

    CCDC Centro Comunitrio de Defesa da Cidadania

    CEASM Centro de Estudos e Aes Solidrias da Mar

    CEDAE Companhia Estadual de guas e Esgotos

    CEE Comisso Estadual de EnergiaCEHAB Companhia Estadual de Habitao

    CEMASI Centro Municipal de Assistncia Social

    CHISAM Coordenao de Habitao de Interesse Social da rea

    Metropolitana do Grande Rio de Janeiro

    CHP Centro de Habitao Provisria

    CIEP Centros Integrados de Educao Popular

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    CMRJ Cmara Municipal da Cidade do Rio de Janeiro

    CNBES Comisso Nacional de Bem-Estar Social

    CODESCO Companhia de Desenvolvimento Comunitrio

    COHAB Companhia de Habitao do Estado da Guanabara

    CPDOC Centro de Pesquisa e Documentao de Histria Contempornea

    do Brasil

    CPV-MAR Curso Pr-Vestibular da Mar

    CV Comando Vermelho

    DCM Dirio da Cmara Municipal

    DF Distrito Federal

    DNOS Departamento Nacional de Obras e de Saneamento

    DO RIO Dirio Oficial do Municpio do Rio de Janeiro

    DSP Departamento de Segurana Pblica

    ECO 92 Conferncia Mundial para o Meio Ambiente e Desenvolvimento

    EMAQ Estaleiro Engenharia & Mquinas S/A

    FAETEC Fundao de Apoio Escola Tcnica do Estado do Rio de Janeiro

    FAFEG Federao de Favelas do Estado da Guanabara

    FAFERJ Federao de Favelas do Estado do Rio de Janeiro

    FBN Fundao Biblioteca NacionalFIOCRUZ Fundao Oswaldo Cruz

    FUNABEM Fundao Nacional de Bem-Estar do Menor

    FUNDREM Fundao para o Desenvolvimento da Regio Metropolitana do

    Rio de Janeiro

    GB Estado da Guanabara

    IAB Instituto de Arquitetos do Brasil

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    IAPAS Instituto de Arrecadao da Previdncia e Assistncia Social

    INFRAERO Infra-estrutura Aeroporturia S/A

    IPHAN Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional

    LAMSA Linha Amarela S/A

    LIGHT Servios de Eletricidade S/A

    M.D Mui Dignssimo

    MT Ministrio do Trabalho

    ONG Organizao No-Governamental

    PADF Partido Autonomista do Distrito Federal

    PCB Partido Comunista Brasileiro

    PDT Partido Democrtico Trabalhista

    PETROBRAS Petrleo Brasileiro S/A

    PMDB Partido Movimento Democrtico Brasileiro

    PROFACE Programa de Favelas da CEDAE

    PROMORAR Programa de Erradicao da Sub-habitao

    PT Partido dos Trabalhadores

    PTB Partido Trabalhista Brasileiro

    PUC Pontifcia Universidade Catlica

    SAS Secretaria de Sade e AssistnciaSERFA Servio de Recuperao de Favelas

    SERFHA Servio Especial de Recuperao de Favelas e Habitaes Anti

    Higinicas

    SESI Servio Social da Indstria

    SFH Sistema Financeiro da Habitao

    STE Servios Tcnicos de Engenharia S.A.

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    TC Terceiro Comando

    UDMPPBS Unio de Defesa dos Moradores do Parque Proletrio da Baixa do

    Sapateiro

    UDN Unio Democrtica Nacional

    UERJ Universidade do Estado do Rio de Janeiro

    UEVOM Unio Esportiva Vila Olmpica da Mar

    UFF Universidade Federal Fluminense

    UNIMAR Unio das Associaes do Bairro Mar

    UNIRIO Universidade do Rio de Janeiro

    UTF Unio dos Trabalhadores Favelados

    XXX RA XXX Regio Administrativa

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    SUMRIO

    INTRODUO....................................................................................... 19

    1 A INVENO DA FAVELA E A CONSTRUO DO ESTIGMA 32

    1.1 RIO, UMA CIDADE DE CONTRADIES ......................................... 32

    1.2 DA CRISE DE HABITAO INVENO DA FAVELA ................. 37

    1.3 E O DOUTOR PASSOS NO V A FAVELA ....................................... 46

    1.4 E A FAVELA O PROBLEMA .............................................................. 54

    2 A POLTICA REINVENTA A FAVELA............................................. 63

    2.1 E O PREFEITO SOBE O MORRO .......................................................... 63

    2.2 A VARIANTE RIO ... MAR .................................................................. 67

    2.3 UMA BATALHA SEM VENCEDORES ................................................. 73

    2.4 PROIBIDA A ENTRADA: REA MILITAR ........................................ 76

    2.5 DONA OROZINA E O PRESIDENTE .................................................... 78

    2.6 E O MAR VIROU CHO ........................................................................ 81

    2.7 A UNIO FAZ A FORA ....................................................................... 84

    3 DO CHP AO PROJETO RIO: O PROCESSO DE INVENO DA

    MAR .......................................................................................................

    91

    3.1 SANTA CRUZ LOGO ALI ................................................................... 913.2 A PALAVRA REMOO! .................................................................. 94

    3.3 CHAGAS, UM PROJETO DE MAR ..................................................... 100

    3.4 UM PROJETO POLTICO: O PROJETO RIO ........................................ 103

    4 A INVENO DO BAIRRO DA MAR: DOS PROJETOS DE

    LEI VIVNCIA DOS MORADORES............................................... 116

    4.1 UM NOVO LUGAR MERECE UM NOVO NOME ........................ 116

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    4.2 A LEI CRIOU O BAIRRO? ...................................................................... 121

    4.3 COM A PALAVRA, OS MORADORES ................................................. 130

    4.3.1 Mar, favela-comunidade .......................................................................... 130

    4.3.2 E como fica o bairro? ................................................................................ 136

    5 OS NARRADORES DO CEASM E O PROJETO DO BAIRRO..... 141

    5.1 PANORAMA GERAL DO SURGIMENTO DAS ONGs NO BRASIL . 141

    5.2 A CRIAO DO CEASM ...................................................................... 144

    5.3 OS INSTRUMENTOS DE DIVULGAO DO BAIRRO ..................... 151

    5.3.1 Os projetos da Rede Memria .................................................................. 151

    5.3.2 O Cidado, o jornal do bairro da Mar ...................................................... 155

    5.4 OS NARRADORES DO CEASM ........................................................... 157

    CONSIDERAES FINAIS................................................................. 162

    BIBLIOGRAFIA..................................................................................... 168

    APNDICES............................................................................................ 183

    ANEXOS.................................................................................................. 204

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    INTRODUO

    1. O LUGAR

    O bairro da Mar, criado em 1994, compreende um conjunto de 15 localidades1onde

    moram cerca de 132 mil pessoas2. A regio margeia a Baa de Guanabara e se localiza entre

    importantes vias expressas que cortam a cidade do Rio de Janeiro: a Avenida Brasil, a Linha

    Vermelha e a Linha Amarela.

    Das 15 localidades que foram reunidas sob a designao de bairro, 12 esto situadas

    na rea conhecida como Favela da Mar. Essa rea se estende paralelamente pista de

    subida da Avenida Brasil (sentido Zona Oeste da cidade), desde a FIOCRUZ (antigo prdio

    do Ministrio da Sade), at a altura da entrada para o Aeroporto Internacional do Galeo.

    A regio da Mar, assim chamada por causa dos mangues e praias que dominavam sua

    paisagem, foi sendo ocupada desde o perodo colonial, quando exerceu preponderante papel

    econmico, seja por nela existirem dois portos3por onde se escoava a produo das fazendas

    locais, seja por ter alimentado com seus mangues, os engenhos de cana-de-acar e as olarias

    que ali se instalaram.

    1Em seu estudo sobre favelas, Leeds (1978) trabalha o conceito de localidadeem contraposio ao conceito decomunidade,que ele considera inadequado anlise de determinadas realidades sociais, em especial as urbanas.Aqui, no entanto, preferi utilizar o termo localidadeapenas para estabelecer a distino entre a anlise proposta ea opinio dos moradores entrevistados, pois o termo comunidade recorrente em seus depoimentos. Cadalocalidade do bariro representada por uma associao de moradores. O Censo Mar 2000, realizado peloCEASM, considerou Salsa e Merengue e Mandacaru, como localidades, apesar de no haver associao demoradores nesses lugares (sua representao est vinculada s associaes da Vila do Pinheiro e de MarclioDias, respectivamente). Dessa forma, contabilizou-se um total de 17 localidades: Conjunto Esperana, Vila doJoo, Vila do Pinheiro, Salsa e Merengue, Conjunto Pinheiros, Bento Ribeiro Dantas, Morro do Timbau, Baixado Sapateiro, Parque Mar, Nova Mar, Nova Holanda, Rubens Vaz, Parque Unio, Roquete Pinto, Praia deRamos, Marclio Dias e Mandacaru. Neste estudo, considerei o total de 15 localidades.2De acordo com o ltimo censo realizado pelo IBGE, a Mar possui 113.817 habitantes. A diferena em relao

    ao nmero apresentado pelo CEASM (132.176) se deve, dentre outros motivos, ao fato dessa instituio terutilizado as referncias geogrficas fixadas pela prefeitura para o bairro da Mar. Essa escolha ampliou oterritrio recenseado pelo CEASM.3Portos de Inhama e de Maria Angu.

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    Com a criao das estradas de ferro, no final do sculo XIX, a regio entrou em

    declnio, pois a atividade econmica, antes situada em torno dos portos, voltou-se para os

    centros comerciais que se formaram junto s estaes da linha da Leopoldina Railway4

    .

    Na dcada de 1940, com a abertura da Avenida Brasil, a regio conheceu novo e

    paulatino desenvolvimento, devido implantao de um cinturo industrial s margens da

    avenida que, somado ao isolamento dos terrenos na orla da Baa de Guanabara e facilidade

    de acesso a tais reas, criou condies bastante favorveis para o crescimento de sua

    ocupao.

    Desde sua inaugurao em 1946, a Avenida Brasil passou a ser parte inseparvel da

    fisionomia da regio, facilitando a migrao, o acesso dos moradores aos locais de trabalho, e

    a chegada do material necessrio aos aterros e construo das casas.

    A ocupao da regio atingiu seu auge na dcada de 1970, tendo se espraiado sobre as

    guas da Baa de Guanabara, como um impressionante aglomerado de habitaes construdas

    sobre palafitas. Na dcada de 1980, por meio do chamado Projeto Rio5, houve a erradicao

    desse tipo de habitao. Foram realizados grandes aterros e construdos conjuntos

    habitacionais na regio para o reassentamento das famlias removidas das reas palafitadas.

    Na dcada de 1990, a Mar foi objeto de outro processo de reassentamento promovido

    pela Prefeitura6, principalmente de populaes desabrigadas e moradores de reas de encostas

    e margens de rios, consideradas de risco. No mesmo perodo, ocorreu o fortalecimento dochamado poder paralelo. Organizado em faces criminosas rivais, o trfico de drogas

    passou a dificultar, no cotidiano, o processo de integrao das localidades.

    4Em 1886, foram inauguradas as estaes ferrovirias de Olaria, Ramos, Bonsucesso e Carlos Chagas. Taisestaes faziam parte do trecho So Francisco Xavier-Merity (atual Caxias) e pertenciam empresa The Rio deJaneiro Northen Railway Company. Em 1897, essas estaes passaram ao controle da companhia inglesa TheLeopoldina Railway(VIEIRA, 1998, p. 28).

    5Projeto do Ministrio do Interior lanado em 1979, e executado pelo Banco Nacional de Habitao (BNH). OProjeto Rio tinha como um de seus objetivos o saneamento da orla da Baa de Guanabara ocupada por palafitas.6Programa da Secretaria Municipal de HabitaoMorar sem Risco(VIEIRA, 1998, p. 78).

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    Durante a primeira gesto do Prefeito Csar Maia7, foi criado o bairro da Mar por

    meio da Lei Municipal n 2.119 de 19 de janeiro de 1994, publicada em Dirio Oficial de 24

    de janeiro do mesmo ano. Tendo sido alvo de inmeros projetos governamentais e de acordo

    com diversos interesses polticos, a Mar, at ento considerada como favela, passou a ser

    tratada pelo poder pblico como uma rea totalmente urbanizada, condio esta que viabilizou

    a criao do bairro. Mas, desde sua origem, a existncia do bairro da Mar no foi

    reconhecida pela maioria dos moradores, que prefere se identificar com os bairros vizinhos

    regio: Bonsucesso, Manguinhos, Ramos ou Penha.

    2. OS NARRADORES

    evidente que os diferentes processos de ocupao das 15 localidades, a violncia e

    as inmeras modificaes operadas pelo poder pblico na geografia da regio, so fatores que

    geraram obstculos constituio do bairro da Mar enquanto um lugar de memria

    (NORA, 1993), onde as diferentes identidades e as inmeras memrias dos moradores

    pudessem encontrar um ancoradouro. No entanto, esses fatores tambm podem ser

    percebidos, ainda que em graus diversos, na maioria das regies da cidade tradicionalmente

    reconhecidas como bairros, o que no impediu a seus moradores desenvolver uma identidade

    com o lugar.Mas, ao contrrio desses outros lugares, concebidos como partes integrantes da cidade,

    o bairro da Mar foi criado a partir da favela, espao historicamente associado a tudo o que se

    ope vida urbana. A subjetividade, as memrias e o cotidiano dos moradores da regio so

    7 Poltico carioca, nascido em 1945, no bairro da Tijuca. Iniciou sua carreira poltica em 1983, no PartidoDemocrtico Trabalhista (PDT), pelo qual foi eleito prefeito da cidade do Rio de Janeiro. Filiou-se ao Partido daFrente Liberal (PFL), em 1996. Por esse partido foi eleito para a segunda gesto da Prefeitura (2001-2004), ereeleito em primeiro turno para sua terceira gesto (2005-2008).

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    marcados por esse estigma, que tambm permanece profundamente arraigado nas pessoas que

    vivem nesta cidade.

    Partindo dessa realidade, me propus a investigar como tal representao da favela

    vista como anttese da cidade -, somada aos demais fatores expostos acima, influenciou a

    constituio de memrias individuais e coletivas dos moradores da Mar, e a criao da

    identidade em relao ao bairro, uma vez que a memria um elemento constituinte do

    sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela tambm um

    fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerncia de uma pessoa

    ou de um grupo em sua reconstruo de si (POLLAK, 1992, P. 204, grifo do autor).

    Por isso, para melhor compreender o objeto estudado, optei por realizar entrevistas

    com os moradores que, por meio de suas narrativas contriburam para ampliar o meu

    entendimento sobre o processo de constituio das memrias pessoais e coletivas relacionadas

    Mar.

    Para iniciar o trabalho de coleta de depoimentos, selecionei cinco localidades:

    Conjunto Esperana e Marclio Dias, por estarem situadas nos dois extremos geogrficos da

    regio; Morro do Timbau e Baixa do Sapateiro, por serem as localidades mais antigas; e Nova

    Holanda, que teve sua origem na dcada de 1960, como Centro de Habitao Provisria,

    criado pelo poder pblico. Alm disso, todas essas localidades esto em reas de atuao de

    algum dos trs comandos rivais do trfico de drogas presentes na Mar.Ao todo foram 25 moradores entrevistados entre idosos e jovens, homens e mulheres.

    A escolha dos idosos se deveu ao fato de terem presenciado e participado de inmeras

    transformaes no espao fsico da Mar, e nas relaes entre os diversos atores sociais. Os

    jovens foram escolhidos por circularem com maior freqncia dentro e fora da Mar, e por

    terem mais facilidade de acesso a diferentes meios de informao.

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    Os perfis dos entrevistados so bastante variados. Alm das diferentes faixas etrias,

    outros fatores foram levados em considerao, tais como: gnero, engajamento poltico,

    profisso (trabalhador, aposentado, dona-de-casa, desempregado) etc.

    Na contramo das representaes dominantes sobre as favelas, podemos encontrar na

    Mar algumas organizaes no governamentais que formularam um discurso de valorizao

    do lugar, tratando-o como uma unidade territorial, que engloba as l5 localidades da regio.

    Por isso, alm dos depoimentos orais, analisei tambm as aes desenvolvidas por

    uma dessas instituies. A princpio, pretendia investigar a atuao de trs ONGs locais.

    Mas, ao pesquisar seus documentos e avaliar os projetos que realizam, pude constatar que,

    apesar de todas as instituies trabalharem na perspectiva de unidade da regio, somente o

    CEASM atua de forma consciente no sentido de constituir uma memria coletiva em torno do

    bairro. Por isso, decidi restringir minha anlise atuao dessa ONG.

    Segundo Pandolfi e Grynszpan (2003), o CEASM uma das ONGs mais importantes

    que atuam na regio, destacando-se o fato da instituio ter sido criada por moradores e ex-

    moradores locais.

    Na minha avaliao, um dos motivos da importncia de tal instituio, justamente o

    fato de ter sido criada por moradores que, mesmo tendo alcanado formao universitria e

    estabilidade profissional, continuaram atuando em movimentos coletivos na Mar. A insero

    desses agentes sociais no espao local, e a identidade que eles desenvolveram com o lugar,foram fatores que contriburam para tornar o CEASM uma experincia singular.

    Alm disso, a ONG desenvolve projetos, cujas aes divulgam claramente a idia de

    bairro. Um desses projetos aRede Memria da Mar, que objetiva preservar a histria local

    e contribuir para a criao do sentido de pertencimento dos moradores ao bairro.

    A Rede Memria produziu um texto ilustrado sobre a histria da Mar. Seu autor,

    Antnio Carlos Pinto Vieira, um dos fundadores do CEASM. O texto ordena

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    cronologicamente os fatos histricos ocorridos na regio e na cidade, desde o perodo colonial

    at o final da dcada de 1990.

    Outro projeto desenvolvido pelo CEASM intitula-se O Cidado O Jornal do Bairro

    Mar. Esse instrumento de comunicao possui tiragem mensal de 20 mil exemplares,

    distribudos gratuitamente em residncias, nos estabelecimentos comerciais, escolas,

    associaes de moradores, postos de sade, bancas de jornal, das 15 localidades da regio.

    O poder pblico municipal tambm foi um importante agente social estudado neste

    trabalho. A investigao dos discursos oficiais sobre as intervenes realizadas na regio, me

    permitiram analisar e cotejar as mltiplas narrativas sobre a criao do bairro, produzidas

    tanto pelo poder pblico, como pelo CEASM e os moradores da regio.

    3. REFERNCIAS TERICAS, METODOLOGIA E FONTES

    Considero que a relevncia deste trabalho est em apresentar vrias verses sobre a

    criao do bairro da Mar e o processo de construo de uma identidade coletiva a partir

    desse novo lugar. Como j coloquei acima, a memria um elemento privilegiado da

    constituio do sentimento de identidade. Portanto, a fim de compreender tal fenmeno, alm

    de documentos escritos, utilizei os depoimentos dos moradores como fontes de anlise do

    objeto proposto, fazendo uso da metodologia de histria oral.Ao optar por tais fontes, acabei reforando a subjetividade que norteou todas as

    escolhas que fiz at aqui, e que esto diretamente relacionadas a minha trajetria pessoal,

    relatada na apresentao deste trabalho. evidente que esse fato no representou nenhum

    obstculo ao desenvolvimento da pesquisa, pois todo esforo de anlise feito sempre a partir

    de fontes. Em outras palavras, toda a construo do conhecimento, mesmo a mais

    positivista, sempre tributria da intermediao do documento (POLLAK, 1992, p. 207).

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    Segundo Portelli (1996),

    [...] por muito controlvel ou conhecida que seja, a subjetividade existe, e constitui,alm disso, uma caracterstica indestrutvel dos seres humanos. Nossa tarefa no ,pois, a de exorciz-la, mas (sobretudo quando constitui o argumento e a prpriasubstncia de nossas fontes) a de distinguir as regras e os procedimentos que nospermitam em alguma medida compreend-la e utiliz-la. Se formos capazes, asubjetividade se revelar mais do que uma interferncia; ser a maior riqueza, amaior contribuio cognitiva que chega a ns das memrias e das fontes orais (1996,p. 63-64, grifo do autor).

    Assim como as fontes orais, todos os tipos de documentao so construdos

    socialmente, estando portanto tambm carregados de subjetividade. Dessa forma, possvel

    concluir que tal problemtica no se concentra tanto nas fontes orais, mas sim no antigo

    embate entre subjetividade e objetividade da produo cientfica.

    Os debates em torno dessa questo surgiram no sculo XIX, que trouxe consigo a

    fora da cincia influenciando toda a produo acadmica, inclusive aquela ligada aos estudos

    dos feitos humanos - as cincias sociais e, particularmente, a histria.

    As concepes metafsicas que permeavam a historiografia at ento, gradativamente

    foram sendo abandonadas com o advento da razo, ainda que no tenham sido totalmente

    esquecidas8. De acordo com essa nova postura metodolgica, a histria teria o compromisso

    com a produo objetiva do conhecimento. Assim, as discusses cientficas apontavam para

    uma questo crucial: a verdade histrica.

    Essa busca incessante da verdade precisava trilhar um caminho seguro, caminho este

    que conduziu extrema valorizao dos documentos, enquanto provas objetivas dos fatos

    histricos. Essa foi uma das caractersticas marcantes da historiografia positivista do sculo

    XIX. O rigor e a neutralidade do historiador ao analisar o documento garantiriam a ele atingir

    a verdade.

    8Sobre este tema, ver REIS (2003).

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    No sculo XX, a movimento dos Annalesampliou a noo de documento, incluindo

    nessa categoria toda e qualquer produo humana, e no apenas os documentos escritos. Esse

    fato foi um passo importante para o que J. Le Goff (1984) chamou de revoluo

    documental. Desse momento em diante, iniciou-se um movimento de crtica pretensa

    objetividade do historiador e das fontes.

    Essas mudanas propiciaram o surgimento dos debates em torno da memria como um

    novo objeto de estudo da histria. A partir desse momento, diversos pesquisadores

    comearam a explorar as relaes entre memria e histria, dando um novo sentido ao papel

    dos agentes sociais na construo de processos histricos recentes. Tal movimento conferiu

    plausibilidade aos depoimentos orais enquanto fontes para anlise desses processos:

    Poucas reas, atualmente, tm esclarecido melhor que a histria oral o quanto pesquisa emprica de campo e a reflexo terico-metodolgica estoindissociavelmente interligadas, e demonstrado de maneira mais convincente que oobjeto histrico sempre resultado de um elaborao: em resumo, que a histria

    sempre construo (AMADO; FERREIRA, 2005, p. xi).

    Alm das fontes orais, utilizei outros documentos importantes para o estudo sobre a

    criao do bairro da Mar, e para a anlise da constituio da identidade coletiva dos

    moradores desse lugar. Foi de grande valia a pesquisa bibliografia sobre os temas abordados

    neste trabalho. Tambm foi preciosa a consulta aos documentos que se encontram nos

    cdices do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, principalmente aqueles que tratam das

    primeiras ocupaes dos morros da cidade, ainda no final do sculo XIX. A pesquisa aos

    originais me possibilitou aprofundar o conhecimento sobre a construo do fenmenofavelae

    dos estigmas e preconceitos, que j estavam presentes desde sua origem.

    Tal documentao, ainda que incompleta, pode ser encontrada nos cdices que tratam

    do arrasamento do morro de Santo Antnio, e da explorao de pedreiras no morro da

    Providncia. So ofcios, requerimentos e manifestaes em processos, que do um

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    testemunho pioneiro sobre os fatores que contriburam para o surgimento da favela,

    destacando sobremaneira o papel contraditrio do poder pblico que, conforme seus

    interesses, defendia sua permanncia ou exigia sua extino.

    Tambm no Arquivo Geral da Cidade, pude ter acesso legislao municipal do incio

    do sculo XX, publicada nos Boletins da Intendncia, bem como s notificaes e editais,

    que me deram a dimenso do controle exercido pela municipalidade, atravs de seus agentes

    fiscais, com relao observncia das normas de construo e represso s moradias

    consideradas anti-higinicas, nos primeiros anos da Reforma Passos.

    No desenvolvimento de todo o trabalho utilizei notcias e artigos veiculados atravs da

    imprensa carioca que, apesar de seguirem linhas editoriais tendenciosas, ora afinadas com o

    governo e a servio das elites ora numa linha editorial mais crtica, no deixam de ter sua

    importncia como registro de fatos e das disputas ideolgicas pela verdade histrica. Alm

    disso, pude comparar as opinies expressas nesses jornais com as vrias matrias publicadas

    pelo jornal O Globo, durante o ms de outubro de 2005, sobre as favelas cariocas e os debates

    em torno de sua remoo.

    Tive acesso a esse material por meio de consulta na diviso de peridicos da

    Biblioteca Nacional, que disponibiliza os antigos jornais em suporte de microfilme. E

    tambm na hemeroteca do Arquivo Orozina Vieira, localizado na Casa de Cultura da Mar

    onde, alm de peridicos, pude encontrar farto material iconogrfico, e documentos sobre operodo do Projeto Rio. Esse arquivo projeto desenvolvido pela Rede Memria do CEASM

    - foi de fundamental importncia para a pesquisa, e cabe destacar o quanto necessria uma

    poltica que favorea a organizao de arquivos populares e comunitrios. Pude ter acesso a

    muitos documentos que estariam perdidos no fosse esse trabalho de preservao da histria

    local.

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    Tambm foram fundamentais para o desenvolvimento deste trabalho, os Projetos de

    Lei que instituram a XXX Regio Administrativa e o bairro da Mar, a partir dos quais foi

    possvel a anlise das razes alegadas pelos representantes do poder pblico para propor a

    criao do bairro.

    Os documentos produzidos pelo CEASM (Estatuto, exemplares do jornal O Cidado,

    o Histrico da Mar, Caderno do Censo 2000, dentre outros), representaram uma contribuio

    valiosa para a anlise do objeto proposto, pois foram produzidos com a clara inteno de

    transmitir uma certa memria sobre a regio e influenciar a construo da identidade coletiva

    dos moradores em torno do bairro.

    De acordo com Chagas (2003), a transmisso da memria por meio de documentos9

    possui tambm uma inteno pedaggica. Em outras palavras, os grupos sociais fazem uso de

    documentos para reinterpretar o passado, conferindo-lhe sentido atual que permita seu

    compartilhamento, criando uma articulao entre os agentes sociais do passado e do presente.

    essa articulao que est explcita nos documentos produzidos pelo CEASM.

    No entanto, esse processo no ocorre de forma linear, muito menos tranqila. Como

    j foi dito, a maior parte dos moradores da Mar no aceita a existncia do bairro, preferindo

    se identificar com outros bairros prximos ou com a localidade onde vive: Morro do Timbau,

    Nova Holanda, Marclio Dias etc.

    Principalmente os moradores mais antigos rejeitam a idia do bairro, sempre seremetendo ao passado da comunidade. Dessa forma, eles evocam a memria dos bons

    tempos, quando todos os vizinhos se conheciam e era possvel dormir de janelas abertas ou

    ficar at tarde sentado na porta de casa durante o vero... Essa idealizao da comunidade,

    de acordo com Bauman (2003), fruto dos tempos difceis em que vivemos, marcados pela

    insegurana produzida pela globalizao.

    9O autor utiliza o conceito de documento de forma ampla, abarcando neste conceito tudo o que possa adquirirsentido de suporte de informao: livros, desenhos, filmes, discos, selos, medalhas, fotografias, edifcios,espcies animais, vegetais, minerais etc.

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    Bauman afirma que nesse processo de globalizao, a quebra da fronteira e o

    conseqente enfraquecimento da soberania do territrio, so acompanhados por uma

    valorizao do lugar:

    No que diz respeito experincia diria compartilhada pela maioria, umaconseqncia particularmente pungente da nova rede global de dependncias,combinada ao gradual mas inexorvel desmantelamento da rede institucional desegurana que costumava nos proteger das oscilaes do mercado e dos caprichos deum destino determinado por ele, paradoxalmente (embora no surpreendente deum ponto de vista psicolgico) o aumento do valor do lugar(p. 100, grifo do autor).

    Nesse lugar - chamado de comunidade por grande parte de seus habitantes, e

    reconhecido em toda cidade como favela - diversos agentes sociais, em particular o

    CEASM, esto atuando no sentido de fortalecer e/ou criar uma identificao com o bairro, a

    partir da valorizao da histria da regio da Mar, e do estreitamento dos laos comunitrios

    entre os moradores.

    Apesar do tempo de existncia oficial do bairro da Mar ser ainda muito curto, foi

    possvel identificar prticas que fortalecem a idia de uma origem comum a seus moradores.

    O Histrico da Mar, trabalho elaborado pela Rede Memria do CEASM, pode ser tomado

    como um exemplo dessas prticas que esto sendo engendradas e, gradativamente difundidas

    nas 15 localidades da regio.

    Autor do trabalho sobre a histria da Mar, Antnio Carlos Pinto Vieira - um dos

    fundadores do CEASM -, afirma que a comunidade mais antiga da regio o Morro do

    Timbau e confere a sua primeira moradora o papel de fundadora do bairro. Dona Orozina,

    mulher negra, migrante e viva, teria sido a primeira pessoa a construir um barraco na parte

    alta e vazia do morro, dando incio ao processo de ocupao da Mar, na dcada de 1940.

    evidente que nem todos os moradores conhecem ou aceitam essa verso, mas ela

    pode ser analisada dentro de um processo ainda recente, e que eu chamei aqui de inveno do

    bairro da Mar, tomando de emprstimo o termo utilizado por Eric Hobsbawm:

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    O termo tradio inventada (...) inclui tanto as tradies realmente inventadas, construdase formalmente institucionalizadas, quanto as que surgiram de maneira mais difcil de localizarnum perodo limitado e determinado de tempo s vezes coisa de poucos anos apenas e seestabeleceram com enorme rapidez (HOBSBAWM, 1997, p. 9, grifo nosso).

    E continua na definio do termo:

    Por tradio inventada entende-se um conjunto de prticas, normalmente reguladas porregras tcita ou abertamente aceitas; tais prticas, de natureza ritual ou simblica, visaminculcar certos valores e normas de comportamento atravs da repetio, o que implica,automaticamente, uma continuidade em relao ao passado. Alis, sempre que possvel,tenta-se estabelecer continuidade com um passado histrico apropriado(Ibidem, grifo nosso).

    Ainda que a inveno do bairro da Mar no se estabelea enquanto uma tradio, isso

    no afeta a importncia deste estudo, pois meu objetivo no foi avaliar a viabilidade dessa

    inveno, mas sim analisar e compreender a complexidade e a dinmica do processo que

    tenta institu-la..

    4. ESTRUTURA DA DISSERTAO

    Com o propsito de melhor analisar as questes apresentadas por este trabalho,

    estruturei a dissertao em cinco captulos. No primeiro, tracei um panorama geral do

    processo de origem das favelas na cidade do Rio de Janeiro, desde a segunda metade do

    sculo XIX, at a dcada de 1920, quando o termo favelapassou a ser usado para designar

    genericamente as ocupaes que, em sua maioria, ocupavam os morros da cidade. Tambm

    neste captulo, analisei a formao do estigma que pesa sobre as favelas h mais de um

    sculo.

    Nos captulos dois e trs, percorri um longo perodo da histria do Brasil (do incio da

    dcada de 1930 ao final dos anos de 1980), focalizando o processo de crescimento e

    consolidao das favelas cariocas e, em particular, a formao da Favela da Mar, no incio

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    dos anos de 1940. Nestes captulos, privilegiei a anlise das aes desenvolvidas pelo poder

    pblico em relao s favelas que, dependendo da conjuntura poltica, visavam sua

    erradicao ou contribuam para o seu crescimento.

    J no quarto captulo, apresentei e discuti os vrios projetos de lei que propuseram a

    criao da XXX Regio Administrativa na regio da Mar, a alterao do nome do lugar e a

    instituio do bairro. O objetivo principal deste captulo foi confrontar as justificativas

    apresentadas por tais projetos com os depoimentos orais dos moradores, buscando analisar as

    contradies entre essas diferentes narrativas.

    Finalmente no quinto captulo, apresentei os trabalhos desenvolvidos pelo CEASM;

    situei sua criao no contexto mais amplo do surgimento das ONGs no Brasil; e analisei os

    objetivos definidos pela instituio. Nesta anlise, priorizei os projetos da Rede Memria e

    do jornal comunitrio O Cidado, por considerar que tais aes so as que melhor

    materializam a proposta poltica da ONG de construir uma identidade dos moradores em

    relao ao bairro.

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    CAPTULO 1 - A INVENO DA FAVELA E

    A CONSTRUO DO ESTIGMA

    1.1- RIO, UMA CIDADE DE CONTRADIES

    Durante a segunda metade do sculo XIX, o mundo capitalista passou por mudanas

    significativas, advindas da nova fase da Revoluo Industrial. No Brasil, essas mudanas

    contriburam para acelerar a dissoluo das relaes escravistas de trabalho, favorecendo a

    implantao de uma dinmica capitalista na economia do pas10.

    Principal centro cultural, poltico e econmico do pas, o Rio viveu mais intensamente

    tais mudanas. Mas, apesar de sua importncia, a cidade apresentava um quadro de

    contradies que dificultavam sua integrao nova ordem internacional capitalista. Toda

    sua beleza natural no encobria a permanncia de uma estrutura urbana antiga, herdada do

    perodo colonial.

    O Rio no possua um porto moderno, que agilizasse as atividades de importao e

    exportao de mercadorias. A principal mudana realizada na velha estrutura do porto foi a

    introduo da energia a vapor, que substituiu o trabalho escravo. Entretanto, apesar de

    significativa, essa mudana no foi suficiente para atender s novas exigncias porturias da

    cidade, que

    [...] tornara-se tambm ponto quase obrigatrio de transferncia e trnsito demercadorias europias e norte-americanas, alimentando um ativo comrcio decabotagem. Realizado por navios que redistribuam os artigos estrangeiros ao longodo vasto litoral brasileiro, esse comrcio inclua o recebimento dos produtosescoados pelos portos regionais, transportados em seguida para o Rio de Janeiro(LAMARO, 1991, p. 55-56).

    10O processo de transformaes que a economia mundial capitalista conheceu durante a segunda metade dosculo XIX, chamado de segunda revoluo industrial. A influncia desse processo sobre as mudanasocorridas no Brasil so apresentadas por Benchimol (1992).

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    Outra contradio evidente era o sistema virio do Rio. As ruas estreitas,

    congestionadas e lgubres, os esgotos a cu aberto, a falta de padro nas construes,

    dificultavam a circulao de pessoas e mercadorias dentro da cidade. Tambm, vagava pelas

    ruas centrais uma populao numerosa de escravos de ganho, de trabalhadores livres e

    libertos, procura de algum bico que lhes garantisse a sobrevivncia diria.

    Dentre as contradies da cidade, no se pode deixar de analisar com maior

    profundidade, a mais perturbadora de todas: a questo da habitao popular.

    Ao longo de todo o perodo imperial, a preocupao com as casas de cmodos,

    estalagens, hospedarias e os cortios, norteou os discursos formulados pelas elites e pelo

    Estado, por dois motivos principais: em primeiro lugar, esse tipo de moradia, considerado

    insalubre, era apontado como sendo foco de varola, febre amarela, e outras epidemias que

    assolavam a cidade. Em segundo lugar, nessas habitaes estavam concentradas as massas

    empobrecidas, por isso mesmo perigosas, que poderiam causar vrios distrbios sociais.

    Segundo Chalhoub,

    As classes pobres no passaram a ser vistas como classes perigosas apenas porquepoderiam oferecer problemas para a organizao do trabalho e a manuteno daordem pblica. Os pobres ofereciam tambm perigo de contgio. Por um lado, oprprio perigo social representado pelos pobres aparecia no imaginrio polticobrasileiro de fins do sculo XIX atravs da metfora da doena contagiosa: asclasses perigosas continuariam a se reproduzir enquanto as crianas pobrespermanecessem expostas aos vcios de seus pais [...]. Por outro lado, os pobrespassaram a representar perigo de contgio no sentido literal mesmo. Os intelectuais-

    mdicos grassavam nessa poca como miasmas na putrefao, ou como economistasem tempo de inflao: analisavam a realidade, faziam seus diagnsticos,prescreviam a cura, e estavam sempre inabalavelmente convencidos de que s suareceita poderia salvar o paciente. E houve ento o diagnstico de que os hbitos demoradia dos pobres eram nocivos sociedade, e isto porque as habitaes coletivasseriam focos de irradiao de vcios de todos os tipos (1996, p. 29).

    Dessa forma, a insalubridade, uma das grandes contradies a ser superada, foi

    rapidamente associada existncia das habitaes coletivas populares, condenadas a

    desaparecer para dar lugar a novas moradias higinicas. Pretendia-se com isso no s conter

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    as epidemias, mas, principalmente estabelecer o controle sobre a populao pobre, pois tais

    habitaes eram vistas como redutos de desordeiros, malandros e facnoras.

    A partir de 1856, o Estado passou a dificultar as construes de novas habitaes

    populares nas reas centrais da cidade e, nos anos seguintes proibiu sua construo, passando

    ao fechamento e demolio de algumas dessas moradias. Com o advento da Repblica, novos

    esforos foram empreendidos no sentido de modernizar a cidade. Nesse contexto, a capital

    republicana sofreu um processo de remodelao do seu espao urbano, no qual a questo das

    moradias insalubres assumiu importncia central nos discursos da poca.

    Ao analisar esse perodo, Llian Vaz afirma que,

    No processo de substituio de um tipo de moradia por outro, mais higinico,destacaram-se os sanitaristas e os empresrios do setor imobilirio, responsveispela introduo de um modelo na tipologia da habitao coletiva no Rio de Janeiro.Este processo se deu atravs da desqualificao do padro de organizao espacialvigente, da proposta de um novo modelo, de sua realizao e de suainstitucionalizao pelos sanitaristas, empresrios imobilirios e pelo Estado [...].Com o poder de irradiao de porta-vozes como empresrios, engenheiros e

    mdicos, o discurso higienista disseminou a condenao das habitaes popularescoletivas (insalubres ou no), fazendo abstrao das ms condies de higiene queimperavam igualmente nas moradias no-populares, nas fbricas, escolas e quartisetc. Com a divulgao deste discurso o termo cortio se generalizou e foi definidopelo seu contedo negativo, passando o Cabea de Porco a simbolizar as habitaescoletivas insalubres cariocas (2002, p. 33 e 35).

    Nesse processo de erradicao das habitaes coletivas, todos os tipos de moradias

    populares passaram a ser reconhecidos genericamente como cortios, tendo sido o Cabea de

    Porco11o maior e mais famoso cortio da poca. Por isso, sua demolio em 26 de janeiro de

    1893, revestida de um carter simblico para a cidade, representou uma verdadeira operao

    de guerra, que contou inclusive com a presena do prprio prefeito Barata Ribeiro.

    O combate aos cortios e a tudo o que eles representavam foi uma das bandeiras

    assumidas pelos primeiros governos da Repblica. A erradicao de tais moradias era

    considerada essencial para a modernizao do Rio e sua adequao s exigncias da nova

    11A histria desse cortio apresentada por Vaz em Notas sobre o Cabea de Porco, 1986.

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    ordem internacional capitalista: uma estrutura porturia condizente com o novo ritmo das

    atividades comerciais de importao e exportao de mercadorias; uma cidade higinica, livre

    das constantes epidemias que matavam milhares de pessoas, comprometiam a poltica de

    incentivo imigrao e dificultavam muitos investimentos do capital privado estrangeiro; um

    espao urbano estratificado socialmente, onde no houvesse a promiscuidade de convivncia

    entre as elites e os pobres.

    No entanto, os esforos empreendidos pelos grupos dominantes e pelo Estado para

    transformar a cidade em uma nova capital federal, obtiveram poucos resultados. As crises

    polticas e a instabilidade econmica dos primeiros governos republicanos limitaram seu

    poder de interveno no sentido de efetivar a to desejada reforma urbana, o que somente

    ocorreu durante a administrao do prefeito Pereira Passos.

    Antes de Passos, vrios prefeitos haviam tentado realizar as reformas urbanas e, como

    bem analisa Abreu,

    bom lembrar que a chamada Reforma Passos (nome indevido, j que grande partedas obras de remodelao da cidade estava a cargo da Unio) no surgiu do nada.Como bem demonstra Lefebvre, as intervenes, ou mesmo as reflexes de cunhourbanstico, sempre so posteriores a mudanas nas relaes sociais, destinando-se,por conseguinte, a resolver contradies engendradas por essas mesmas mudanas.E essas reflexes j vinham acontecendo h bastante tempo, acompanhando oprocesso de desagregao do sistema escravista (1986, p. 52).

    Durante a presidncia de Rodrigues Alves (1902-1906), a conjuntura poltica e

    econmica era favorvel realizao dos projetos de interveno urbanstica pensados at

    ento. Alis, no programa de governo apresentado pelo presidente, a remodelao da cidade

    aparecia como uma das principais metas e assumia papel de destaque.

    Mas, de qualquer forma, no se pode negar o papel preponderante exercido por esse

    prefeito frente do mais importante processo de reforma empreendido na cidade at ento:

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    No difcil entender, pois, porque Pereira Passos ocupa um lugar especial namemria poltica do Rio de Janeiro e, por isso mesmo, na ocasio do centenrio doincio de seu governo, torna-se objeto de reflexo para estudiosos da histria urbanae poltica carioca. Afinal, ele foi a primeira, e ainda hoje a principal referncia dalinhagem de governantes cujas administraes se caracterizaram pela realizao de

    obras urbansticas que deixaram marcas indelveis no tecido da cidade (MOTTA,2004, p.235-236).

    Pereira Passos recebeu formao de engenheiro em Paris, onde presenciou a reforma

    urbanstica realizada por Georges Eugne Haussmann na capital francesa12. Logo aps sua

    nomeao por Rodrigues Alves, Passos empreendeu no Rio de Janeiro um amplo projeto de

    reformas que visava remodelar, sanear e embelezar a cidade, chamado na poca de bota-

    abaixo.

    Rodrigues Alves dividiu a responsabilidade das reformas em dois setores: as obras

    principais ficaram a cargo do governo federal que, por exemplo, abriria a Avenida Central e

    modernizaria o porto; j a abertura da Avenida Beira-Mar e o alargamento de vrias ruas

    seriam realizados pela prefeitura.

    Ao trmino da administrao de Passos, em 1906, mais de 1.600 habitaes haviam

    sido derrubadas. Passos abriu novas ruas e alargou outras, canalizou rios, criou espaos

    arborizados para o lazer e o embelezamento da cidade, construiu palcios e pavilhes. O

    governo federal, por sua vez, comandou a campanha de saneamento, liderada por Oswaldo

    Cruz; construiu o novo porto; e rasgou o centro do Rio para abrir a Avenida Central.

    De fato, as reformas modificaram o cenrio urbano: As ruas mais amplas

    possibilitaram a livre circulao de bondes eltricos e dos primeiros automveis; a Avenida

    Central tornou-se a passarela por onde desfilavam as elites republicanas, a arte e a cultura

    europias.

    Mas, e o problema das habitaes coletivas populares foi resolvido? Na verdade, a

    preocupao explicitada nos discursos das elites, antes centrada na questo do tipo de

    12Em seu livro Pereira Passos: Um Haussmann Tropical (1992), Benchimol analisa a influncia da concepourbanstica do prefeito de Paris sobre as reformas empreendidas por Passos.

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    moradia, foi deslocada para o espao ocupado por essas habitaes. Em outras palavras,

    pouco ou quase nada foi feito para resolver o problema. As reformas no criaram

    habitaes populares suficientes para abrigar a populao trabalhadora, que foi expulsa das

    reas centrais da capital da Repblica, sendo empurrada para reas perifricas cidade, para

    os subrbios e os morros prximos ao centro.

    1.2 DA CRISE DE HABITAO INVENO DA FAVELA

    Durante a segunda metade do sculo XIX, a crise de moradias para a populao pobre

    do Rio de Janeiro foi uma das caractersticas marcantes da cidade, principalmente em suas

    reas centrais. Tal situao tornava-se ainda mais grave devido aos fluxos migratrios que a

    cidade recebia constantemente. Se por um lado, a poltica de incentivo imigrao contribua

    para alimentar esse fluxo, a liberao gradativa da mo-de-obra escrava, e sua completa

    abolio em 1888, foram fatores que decididamente favoreceram o crescimento populacional

    do Rio.

    Segundo Benchimol (1992), a populao da cidade praticamente duplicou entre 1872 e

    1890: de um total de 274.972 habitantes, pulou para 522. 651. Dessa forma, o Rio passou a

    ser a nica cidade brasileira a possuir mais de 500 mil habitantes ainda no sculo XIX, sendo

    23,80% dessa populao composta por estrangeiros

    13

    .A instaurao da Repblica, em 1889, no representou uma soluo para a crise

    habitacional da cidade. Muito pelo contrrio, como o crescimento populacional no foi

    acompanhado por uma poltica pblica de habitao popular, a crise tornou-se mais aguda nos

    primeiros anos do novo governo.

    13Vaz (2002) diverge ligeiramente dos nmeros apresentados por Benchimol. Ela coloca que, entre 1870 e 1890,a populao passou de 235.381 para 518.292 habitantes. De qualquer forma, ambos concordam que essaexploso populacional da cidade pode ser compreendida, sobretudo, devido aos constantes fluxos migratrios.

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    Os investimentos no setor de transportes, que vinham sendo realizados desde o

    perodo imperial, favoreceram a ocupao da cidade para alm de suas reas centrais.

    Copacabana e Botafogo, por exemplo, se caracterizaram como bairros para as elites; e os

    subrbios, como uma opo para as populaes mais pobres.

    Sem dvida, os trens e os bondes contriburam para a expanso geogrfica da cidade,

    mas, apesar disso, no conseguiram modificar as feies coloniais da capital da Repblica,

    muito menos resolveram sua crise habitacional. A maior parte da populao pobre continuava

    residindo no centro do Rio de Janeiro, pois no possua recursos para se manter afastada dos

    locais de oferta de trabalho:

    Com efeito, morar na rea central significava muito mais do que no ter gastos comtransporte. Para muitos, trabalhadores livres ou escravos de ganho, o trabalho tinhaque ser procurado diariamente, e sob condies cada vez mais adversas, dada acrescente concorrncia da fora de trabalho imigrante. Estar prximo ao centrosignificava garantir a sobrevivncia, mesmo porque, para grande parte da populaoativa, constituda de vendedores ambulantes e de prestadores dos mais variadosservios, o trabalho no existia enquanto local, mas s era obtido como decorrncia

    das demandas advindas da aglomerao de um grande nmero de pessoas e deatividades econmicas. E isso ocorria quase que exclusivamente no centro, razopela qual o nmero de cortios continuava a crescer nas freguesias centrais, noimportando que as condies de moradia fossem, a, as mais precrias possveis(ABREU, 1986, p. 48).

    A precariedade de moradias para a populao pobre agravou-se ainda mais com o

    movimento de combate aos cortios e as obras de remodelao da cidade, como assinalou o

    engenheiro Everardo Backheuser, cuja atuao ser abordada adiante. Em relatrio de 1906,Backheuser discutia o problema da seguinte forma:

    A populao que se deslocava no tinha onde morar, alojava-se aqui para amanh denovo, com armas e bagagens, se remover para um outro ponto. Foi se afastando docentro quando os meios de fortuna o permitiam; foi se aglomerando no centro,tornando mais perigosa a sua estadia, quando os recursos ordinrios eram parcos(BACKHEUSER, 1906, p.6).

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    nesse contexto que deve ser analisado o surgimento das favelas cariocas. A falta de

    polticas pblicas conseqentes que visassem acabar com a crise habitacional, que h dcadas

    marcava profundamente a cidade, pode ser apontada como um dos principais fatores que

    favoreceu a formao e o crescimento das primeiras favelas:

    Pode-se dizer que as favelas tornaram-se uma marca da capital federal, emdecorrncia (no intencional) das tentativas dos republicanos radicais e dos tericosdo embranquecimento incluindo-se a os membros de vrias oligarquias regionais para torn-la uma cidade europia. Cidade desde o incio marcada pelo paradoxo,a derrubada dos cortios resultou no crescimento da populao pobre dos morros,charcos e demais reas vazias em torno da capital. Mas isso tambm se deveu

    criatividade cultural e poltica, capacidade de luta e de organizao demonstradaspelos favelados nos 100 anos de sua histria (ZALUAR; ALVITO, 2004, p.7).

    De acordo com Vaz (2002), a crise da habitao popular era to grave, que nem a

    proliferao de moradias coletivas (cortios, casas de cmodos, estalagens etc.) era suficiente

    para abrigar a enorme quantidade de trabalhadores sem recursos que se concentrava nas reas

    centrais do Rio. Assim, todo espao disponvel nas antigas edificaes coloniais era ocupado

    por essa populao: stos, pores, andares improvisados a partir da diviso do p-direito das

    casas, jiraus, fundos de lojas etc. Alm disso, surgiam alternativas menos usuais, como as

    ocupaes de cavernas nos morros da cidade.

    A presena de casebres nos morros prximos ao centro, surge como uma alternativa

    adotada por parte do proletariado urbano, desde a segunda metade do sculo XIX. Alguns

    pesquisadores, inclusive Vaz, levantam a hiptese desse tipo de ocupao representar a forma

    embrionria das favelas cariocas, o que parece se confirmar nos casos dos morros da

    Providncia e de Santo Antnio, consideradas as mais antigas da cidade.

    No se pode datar com preciso o surgimento da favela, mas sua origem est

    definitivamente relacionada aos inmeros fatores conjunturais que nos remetem,

    considerando o aspecto temporal, para fins do sculo XIX e incio do sculo XX, e, quanto

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    ao aspecto espacial, para o centro da cidade, compreendido entre os morros de So Bento,

    Castelo, Santo Antnio e Conceio, mas j avanando para a Cidade Nova.

    No caso do morro da Providncia comum associar sua ocupao ao retorno, em 1897,

    dos soldados que combateram em Canudos. Entretanto, h vrios registros que confirmam a

    existncia de uma numerosa populao no local, anos antes do fim da campanha de Canudos

    (ZYLBERBERG, 1992, p.57).

    Em fotografia de 1885, Marc Ferrez14 registrou a fachada do Quartel General do

    Exrcito, tendo ao fundo o morro da Providncia. Nessa imagem j se percebem alguns

    pequenos casebres nas encostas, justamente na parte do morro que d para os fundos da

    estao ferroviria, na regio conhecida como morro da Formiga, que anos mais tarde, com o

    adensamento dessa ocupao, passou a ser chamada de morro da Favela.

    Por outro lado, desde a dcada de 1840, foi desenvolvida no morro da Providncia a

    atividade de explorao de pedreiras, atividade esta imprescindvel para a cidade em franca

    expanso, que demandava grande mo-de-obra no especializada, e atraa para seu entorno

    uma populao pobre, carente de trabalho e moradia.

    Alusio Azevedo, em sua obra O Cortio, descreve, os aspectos da relao de trabalho e

    moradia em fins do sculo XIX, utilizando como cenrio justamente a pedreira e o cortio:

    Aqui, ali, por toda a parte, encontravam-se trabalhadores, uns ao sol, outros debaixode pequenas barracas feitas de lona ou de folhas de palmeira. De um ladocunhavam pedra cantando; de outro a quebrarem a picareta; de outro afeioavamlajedos ponta de pico; mais adiante faziam paraleleppedos a escopro e macete.E todo aquele retintim de ferramentas, e o martelar da forja, e o coro dos que l emcima brocavam a rocha para lanar-lhe fogo, e a surda zoada ao longe, que vinha docortio, como de uma aldeia alarmada; tudo dava a idia de uma atividade feroz, deuma luta de vingana e de dio (AZEVEDO, 1997, p.41).

    14Marc Ferrez (1843-1923) foi importante fotgrafo, que se notabilizou pelo registro, entre o final do sculo

    XIX e incio do sculo XX, de imagens de personagens e paisagens brasileiras, principalmente da cidade do Riode Janeiro. Seu trabalho teve o reconhecimento do Imperador D. Pedro II que o sagrou Photografo da MarinhaImperial. A foto citada no texto se encontra nas pginas 150 e 151, do lbum O Rio antigo de Marc Ferrez,editado em 1985 pela Joo Fortes Engenharia.

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    Portanto, provvel que os primeiros habitantes daquelas encostas, incentivados pela

    proximidade com o local de trabalho e pela impossibilidade de arcarem com o custo de

    moradia, tenham sido os trabalhadores daquelas pedreiras, a quem se atribui inclusive a

    abertura das primeiras ruas do local: o caminho da Formiga e a rua da Providncia

    (ZYLBERBERG, 1992, p.45).

    Outro aspecto importante que certamente incentivou a ocupao do morro, foi a sua

    proximidade com a Estao Central do Brasil. No se pode ignorar que era pelos trilhos da

    ferrovia que chegavam muitos migrantes cidade, principalmente do interior do Rio de

    Janeiro e Minas Gerais. Esses, ao aqui chegar, tinham como primeiro desafio o

    enfrentamento das necessidades de trabalho e moradia. A viso da ocupao da encosta

    voltada para a linha frrea estava a sugerir uma soluo aos que chegavam.

    Como prope Vaz (1986), esses antigos moradores tambm podem ter sido oriundos do

    Cabea de Porco, que se situava na rua Baro de So Flix - diante da antiga rua de Santana

    -, e se estendia at a pedreira dos Cajueiros, no morro da Providncia, onde os proprietrios

    daquele cortio tambm eram donos de terrenos.

    Segundo Vaz, provvel que esses proprietrios, mesmo antes da demolio do

    cortio, tivessem incentivado a ocupao do morro, alugando lotes para a populao que no

    tinha opo de moradia. Ainda de acordo com Vaz, a ocupao do morro tambm foi

    facilitada pela concesso que fez o prefeito Barata Ribeiro aos moradores do cortio,facilitando-lhes a retirada das madeiras que sobraram de sua demolio, material este que

    teria sido utilizado na construo de casebres nas encostas do morro da Providncia.

    Porm, o mito fundador da favela que ganhou maior fora, foi aquele baseado na

    ocupao do morro da Providncia por parte de soldados, que tendo participado da campanha

    de Canudos vieram capital da Repblica pedir assistncia ao governo. Esse contingente sem

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    moradia, acabou por se estabelecer nas encostas do morro, localizado bem prximo ao Quartel

    General do Exrcito:

    (...) decidiram ento vir Capital da Repblica solicitar apoio e assistncia doGoverno. Estabeleceram-se no Morro da Providncia que dominava a Praa daRepblica e, por conseguinte, o Quartel General do Exrcito. Promessas oficiais,atrasos e indiferena os obrigaram a se adaptar ao precrio habitat onde seergueram numerosos barracos. E assim nasceu a primeira favela do Rio de Janeiro(MEDINA apud ZYLBERBERG, 1992, p.55).

    Outras verses falam de uma ocupao pacfica que teria sido autorizada e financiada

    pelo prprio Exrcito:

    [...] Ao regressarem das expedies contra Antnio Conselheiro, no fim dosculo passado, receberam os soldados do Coronel Moreira Csar e do GeneralArtur Oscar alguns recursos para instalar-se em casa prpria no Rio, e foi ali, nasabas da Providncia, que eles o fizeram , e logo disseram que era sua favelacarioca, numa aluso ao morro do serto baiano de onde a artilharia legalistabombardeava o reduto daqueles jagunos msticos [...] (GRSON, 1965, p.347).

    Ainda uma outra verso sobre o mesmo fato, atribui a ocupao do morro da

    Providncia s chamadas vivandeiras, que no podendo permanecer no quartel, se instalaram

    no morro:

    (...) foram as vivandeiras dos soldados (mulheres que acompanham as tropas paravender comestveis) da guerra de Canudos que ao chegarem ao Rio, no podendoficar no ptio do Quartel General com os praas, instalaram-se nas encostas do

    morro (...) E como essas mulheres vinham do morro da Favela, do interior baiano,comeou-se a chamar o lugar onde eles acamparam de Favela e Favela ficou (...)(CRUZ apud ZYLBERBERG, 1992, p.55)

    Apesar de tantas verses, o certo que na cidade do Rio, a palavra favela surgiu na

    toponmia do morro da Providncia, nos anos que marcaram o final do sculo XIX e o incio

    do sculo XX.

    Na parte do morro da Providncia, acessvel pela rua Senador Pompeu, prxima

    Estao da Central do Brasil, localizava-se o chamado morro da Formiga. Foi justamente

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    nesta parte da Providncia - prximo aos tneis construdos para fazer a ligao entre a ento

    Estrada de Ferro D. Pedro II e a Estao Ferroviria Martima - que ocorreu a mudana do

    antigo nome do morro deFormigaparaFavella.

    A Planta da Cidade do Rio de Janeiro e parte de seus subrbios, organizada e

    desenhada em 1890 pelo Major Masheck, indica na toponmia local o Morro da Formiga. J a

    Planta Central Monumental do Rio de Janeiro, de autoria de Carlos Aenishnslin,

    confeccionada em 1914, indica para o local a dupla denominao Morro da Favella ou da

    Formiga15, o que endossa a verso corrente de ter sido ali o lugar onde surgiu, na cidade do

    Rio de Janeiro, o termo favela16, que posteriormente tornou-se sinnimo de uma forma

    especfica de habitao.

    Outro caso de ocupao de um morro ainda no sculo XIX, na rea central da cidade,

    foi o morro de Santo Antnio. Abreu (1994) afirma que os soldados, que haviam lutado na

    Revolta da Armada (1893-94), foram autorizados pelo governo a ocupar o convento de Santo

    Antnio, localizado no morro de mesmo nome. Como as acomodaes no foram suficientes,

    os soldados, muitos dos quais j casados, receberam permisso para construir barraces de

    madeira numa das encostas do morro.

    J em 1898, diante de reiteradas reclamaes da Prefeitura, o Major Comandante do 7

    Batalho de Infantaria, Affonso Pinto de Oliveira, prestando informaes ao Ministro da

    Guerra, saiu em defesa daquela ocupao, conforme documento transcrito abaixo:

    Commando do 7 batalho de infantaria Capital Federal, 3 de Fevereiro de 1898.Nmero 261 Ao Cidado General de Diviso Joo Thomaz Cantuaria, M.D.Ministro da Guerra Dando cumprimento ao vosso despacho exarado na inclusa

    15A Planta da Cidade e a Planta Central Monumental se encontram no Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro IHGB. No entanto, no tive acesso direto a tais documentos, restringindo a pesquisa ao catlogo da exposioDo Cosmgrafo ao Satlite, realizada no Centro de Arquitetura e Urbanismo do Rio de Janeiro, que nas pginas73 e 74, apresenta tais documentos.16Os estudos sobre esse tema associam o termo favelaao evento de Canudos. Euclides da Cunha, que registroucom detalhes a campanha contra aquele arraial baiano, cita vrias vezes o morro da Favellae tambm descreve aplanta leguminosa chamada favela,prpria daquela regio. Para aprofundar os significados da palavra favela,ver Zylberberg (1992).

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    informao prestada pelo Sr. Major Araripe Meirelles, digno official technico daRepartio de Quartel Mestre General, sobre os inclusos papeis relativos reclamao que faz a Prefeitura do Districto Federal contra a construo dediversos barraces feitos por praas deste corpo, os quaes me foram enviados peloSr. Director da Secretaria da Guerra em officio do 1 do corrente, tenho a informar-

    vos que effectivamente existem alguns casebres de madeira construidos por praasdeste batalho que declaram ter para isso obtido licena do fallecido CoronelAntonio Moreira Csar e outros antecessores. Esses casebres, porem, com quantodesprovidos de esgotos conservam-se em tal estado de asseio que me parecem nocausam perigo saude publica nem vida de seus moradores. Attento o grandenumero de praas casadas neste batalho e a deficiencia de casas nas proximidadesdeste quartel em condies de serem por ellas habitadas pos que todas so deelevados preos e ainda conveniencia ao servio e disciplina, me parece, podemser tolerados os ditos casebres e nesse sentido peo a vossa interveno, certo deque alem de poupardes grande sacrifcio pecuniario s praas que os occupam,evitareis prejuizos saude das mesmas que se vero obrigadas a procurarestalagens, onde no pode este commando intervir no asseio que devem observar.Remetto-vos a inclusa relao das praas moradoras nos referidos casebres e que se

    julgam com direito de posse (AGCRJ, cdice 46-3-55, p.14).

    A ocupao no parou de crescer ao longo dos anos, o que motivou o Jornal do

    Commercio de 14/10/1901, a publicar um artigo-denncia sob o curioso ttulo de Bairro

    Novssimo, demonstrando assim que os barracos construdos no morro de Santo Antnio,

    logo chamaram a ateno das elites cariocas, e estas no tardaram a criticar tais habitaes e

    seus moradores, pressionando principalmente o governo local em busca de providncias.

    Em pronta resposta de 16/10/1901, encaminhada ao Diretor Geral de Higiene e

    Assistncia Pblica, preocupado em justificar a inrcia da autoridade pblica diante da

    denncia formulada, assim manifestou-se o comissrio de higiene do 2 Distrito, Duarte

    Flores:

    Cumprindo vossas ordens relativamente publicao inserta no Jornal doCommercio sob o titulo Bairro Novissimo onde, entre muitas asseresverdadeiras, h uma menos exacta que vem a ser a de que jamais fra aquella parteda cidade visitada pela authoridade sanitria, cumpre-me vos informar o seguinte desde poca bastante remota que este mesmo Commissariado de hygiene reclamacom urgencia e insistencia sobre esse assumpto, como podereis verificar pelosmeus officios e relatorio dirigidos Directoria de Hygiene, em cujo archivopodero ser encontrados, com as datas de 15 de Fevereiro 1898 18 de Janeiro, 1de Fevereiro e 7 de maro de 1899 9 de Julho de 1900 24 de maro de 1901;bem assim (...) officios no mesmo sentido do meu saudoso chefe de districto, Dr.Gerarque (?) Murta. No a 1 ves, Sr. Dr. Diretor G. de Hygiene, que com justa

    raso a imprensa se occupa com essas innumeras habitaes, indecentes e anti-hygienicas, construidas de madeira e zinco, sem esgotos nem gua, cavalleiro doMorro de Santo Antonio, na sua maior parte occupadas por soldados e inferiores daBrigada Policial. (...) No tendo, at hoje, sido possvel este commissariado de

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    hygiene tomar as precisas e urgentes providencias, penso que estas s podero sertomadas pela Prefeitura de accordo com os Snrs. Ministro do Interior eCommandante da Brigada Policial, fasendo evacuar e demolir todas essashabitaes ahi construidas illegalmente, para que posteriormente possa esteCommissariado de hygiene agir com efficacia, no mesmo sentido contra os poucos

    moradores no militares (AGCRJ, cdice 32-4-6, p. 99-101).

    interessante notar que somente a partir da publicao do citado artigo na imprensa, as

    autoridades iniciaram um processo que culminou com a visita do Prefeito Xavier da Silveira

    ao morro de Santo Antnio, tendo este, ao verificar in loco a precariedade da ocupao,

    determinado a imediata remoo dos casebres ainda naquele ano de 1901.

    Essa foi a primeira de uma srie de remoes e novas ocupaes que surgiram no

    mesmo morro, numa verdadeira queda de brao entre os seus ocupantes e o poder pblico.

    Outro fato curioso, conforme demonstra Abreu (1996), a partir de notcias de jornais da

    poca, diz respeito reconstruo dos barracos que era feita principalmente com o material

    retirado das demolies realizadas para a abertura da Avenida Central, num verdadeiro

    paradoxo: a cidade que se modernizava seguindo os padres da elite, produzia a matria-

    prima para a construo dos barracos nos morros.

    Reforando a relao contraditria mantida pelo poder pblico com os favelados, a

    Prefeitura Municipal chegou a barganhar, em 1910, com os ocupantes do morro de Santo

    Antnio, a remoo pacfica dos barraces em troca de autorizao para a construo de

    novos barracos no morro do Telgrafo.

    H dois aspectos a serem destacados no caso do morro de Santo Antnio nesses anos

    que marcaram as dcadas de 1890 a 1910. Em primeiro lugar, durante esse perodo no se

    utilizava a palavra favelapara designar aquela ocupao, o que demonstra que o termo estava

    ainda restrito ao nome da ocupao especfica do morro da Providncia. O segundo aspecto

    diz respeito ao papel preponderante e contraditrio do poder pblico no episdio: o Exrcito

    e a Brigada Policial incentivavam, patrocinavam e defendiam a ocupao; a Prefeitura

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    inicialmente omitiu-se, depois ensaiou a tomada de providncias e, por fim, sob a presso da

    imprensa, efetivou a remoo dos moradores e a destruio dos barracos.

    Como possvel perceber, a origem das favelas cariocas est relacionada crise

    habitacional que, por dcadas, marcou profundamente o Rio de Janeiro e segregou a grande

    maioria de sua populao. Assim, as favelas que j se encontravam em gestao nos morros

    prximos s reas centrais, surgem como resultado das contradies de uma cidade pr-

    capitalista, em processo de modernizao.

    Dessa forma, a favela foi sendo inventadapelo poder pblico que, mesmo com o rpido

    crescimento da populao carioca e, apesar das reformas urbanas empreendidas no incio do

    sculo XX, no adotou qualquer poltica eficiente de construo de moradias que pudesse

    solucionar a crise habitacional do Rio. Em alguns momentos v-se que as autoridades agiam

    de forma contraditria, inclusive patrocinando e estimulando a ocupao dos morros

    conforme seus interesses. Por outro lado, a favela tambm se constituiu enquanto inveno

    das classes populares, que desenvolveram um conjunto de estratgias para permanecer no

    centro da cidade e garantir sua sobrevivncia.

    1.3 E O DOUTOR PASSOS NO V A FAVELA

    A promulgao em 10 de fevereiro de 1903, pelo Prefeito Pereira Passos, do Decreto n391, se converteu em mais uma tentativa frustrada em resolver a questo habitacional na

    cidade. Esse decreto, por meio de um conjunto de disposies, regulamentava as construes

    e reformas dos prdios no centro do Rio, alm de condenar as casas de madeira, os cortios,

    estalagens e casas de cmodos. A aplicao de tais disposies afetava as reas centrais da

    Capital Federal, e se estendia s novas regies ocupadas na Zona Sul e nos subrbios, por

    meio de uma rgida fiscalizao que disciplinava as construes, verificava o funcionamento

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    dos estabelecimentos comerciais, e fazia cumprir o pagamento dos diversos impostos

    municipais.

    O carter de controle que inspirava o novo regulamento, dificultava em muito a

    realizao de novas construes, e impunha uma srie de exigncias para a concesso de

    licenas para as obras:

    Art. 2. - Para obteno da licena instruir o proprietario o seu requerimento, emque declarara o tempo de que precisa para concluso das obras e qual o nivel emque se acha o terreno em relao ao do passeio da rua, com os seguintesdocumentos, sellados na forma da lei:1 - Plano completo da obra, comprehendendo planta de cada pavimento, elevaogeomtrica das fachadas principaes e as seces longitudinaes e transversaes queforem necessrias para fcil comprehenso do projeto;2 - Plano, nas mesmas condies, de todas as dependencias a construir;3 - Prova da posse do terreno, quando a respeito houver duvidas;4 - Procurao legalmente passada , quando o proprietrio delegar os seus poderesa outrem. (DISTRITO FEDERAL, 1903, p. 90-105)

    O modelo de construo proposto era bastante oneroso e no levava em conta as

    classes pobres que no teriam condies de atender aos padres exigidos pela nova legislao.Por outro lado, foram tratadas com rigor as alternativas at ento existentes de moradia

    popular, com a proibio expressa da construo de novos cortios, apenas permitindo-se a

    pintura ou caiao dos j existentes. Tambm as chamadas casas de cmodos casas de

    vastas dimenses divididas por cubculos de madeira, de modo a se estabelecerem sob o

    mesmo teto famlias diversas - foram proibidas, por serem consideradas contrrias higiene

    e prejudiciais sade pblica.

    As casas de madeira tambm tiveram sua construo restrita a algumas poucas reas

    suburbanas, assim mesmo com distncia mnima de cinco metros umas das outras e

    principalmente, nopodendo ser construdas em grupo.

    No entanto, em relao s construes nos morros, reas pouco valorizadas pelo

    mercado imobilirio, e que demandavam maior custo na construo pela necessidade de

    muros de conteno, a legislao mostrou-se menos rigorosa.

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    De acordo com o referido decreto, os terrenos nos morros, ao invs de muros, poderiam

    ser cercados com madeira ou zinco matria-prima que se consagrou nas construes das

    favelas - e a construo de barraces toscos, terminantemente proibida sob qualquer

    pretexto na cidade, poderia ser permitida nos morros ainda no habitados, mediante licena:

    Art. 12 - Todo o terreno em que houver construco ser fechado por muro egradil mediante requerimento e pagamento da arrumao, tolerando-se nasfreguezias da Gvea, Engenho Novo, Inhama e Iraj, na Copacabana, VillaIpanema, nos morros, nas ilhas do Governador e Paquet, mediante o mesmorequerimento e pagamento de arrumao, ascercas de zinco ou madeira, a juzo daDirectoria de Obras, o que no isenta o proprietrio de novo pagamento, quando no

    terreno se construir definitivamente. Os proprietarios dos predios existentes queno satisfizerem esta condio sero intimados a fazel-o.(...)Art. 36. Os barraces toscos no sero permittidos, seja qual for o pretexto de quese lance mo para obteno da licena, salvo nos morros que ainda no tiveremhabitaes e mediante licena. (DISTRITO FEDERAL, 1903, p. 90-105, grifonosso)

    Nota-se que a ao do governo municipal diante da crise habitacional e do desafio de

    implantar um plano de remodelamento da cidade, foi tentar exercer o controle absoluto; impor

    um modelo caro e inacessvel de construo maior parte da populao; restringir ao mximo

    os modelos de habitao coletiva at ento existentes, inclusive com proibies de construo

    e reforma; e tudo isso, sem apresentar qualquer alternativa para o problema de moradia das

    classes populares.

    Apesar de no estar claro, a questo da favela j surge de forma subliminar no

    regulamento de Passos: na proibio das construes em madeira, principalmente em grupos;

    na tolerncia de cercas de zinco e madeira nos morros; no controle que se pretendeu

    estabelecer sobre a construo de barraces toscos, proibidos sob qualquer pretexto em

    qualquer outro lugar da cidade, mas permitidos nos morros ainda no habitados, com o devido

    licenciamento. Tal permisso, ao considerar e destacar o pr-requisito no habitado,

    parece confirmar e reconhecer o fato de que tais reas da cidade vinham sendo ocupadas h

    algum tempo pela populao mais pobre.

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    Tal disposio marcou uma diferenciao entre os morros at ento habitados e os que

    seriam posteriormente ocupados com o controle da municipalidade. Se a inteno era

    controlar as ocupaes j existentes e regular, atravs do licenciamento, a construo em

    morros ainda no habitados, a administrao pblica acabou por criar verdadeiro incentivo

    ocupao dos mesmos, principalmente num momento em que no eram oferecidas

    alternativas de habitao s classes populares. Assim, de forma intencional ou no, o

    governo fez da favela uma inveno com a qual conviveria contraditoriamente ao longo do