SIMONE RAIA - Departamento de História · O europeu, como conquistador, dominou o território a...
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SIMONE RAIA
POLÍTICA INDIGENISTA NO SÉCULO XIX: O CASO DO ALDEAMENTO
INDÍGENA DE SÃO PEDRO DE ALCÂNTARA
Monografia apresentada para obtenção do grau de Bacharel e Licenciada no curso de graduação em História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes. Universidade Federal do Paraná. Professor orientador: Igor Chmyz. Professora Co-Orientadora: Maria Luísa Andreaza.
CURITIBA 1999
SIMONE RAIA
POLÍTICA INDIGENISTA NO SÉCULO XIX: O CASO DO ALDEAMENTO
INDÍGENA DE SÃO PEDRO DE ALCÂNTARA
Monografia apresentada para obtenção do grau de Bacharel e Licenciada no curso de graduação em História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes. Universidade Federal do Paraná. Professor orientador: Igor Chmyz. Professora Co-Orientadora: Maria Luísa Andreaza.
CURITIBA 1999
iii
Agradecimentos
Agradeço a orientação do Professo Igor Chmyz,
que tornou possível este trabalho e o apoio dos
amigos Jefferson, Gisele e Márcia Pedro.
iv
SUMÁRIO
1. Introdução 01
2. Indígenas e Europeus no Brasil 03
3. Política Indigenista no Século XIX: O Caso do Aldeamento de
São Pedro de Alcântara 09
3.1 O Aldeamento de São Pedro de Alcântara 17
3.2 O Barão de Antonina e os Aldeamentos 20
3.3 Razões para a Construção do Aldeamento 24
3.4 Aldear Índios no Paraná na Segunda Metade do XIX:
As Novas Reduções ? 25
3.5 Populações 26
3.6 Para dirigir um aldeamento, um frei 30
3.7 A Administração 33
3.8 Trabalho e Catequese X Espoliação e Brinde 34
4. Conclusão 40
5. Anexos 41
6. Fontes 45
7. Referências Bibliográficas 46
v
A conquista da terra, que significa
basicamente tomá-la dos que possuem uma
compleição diferente ou um nariz um pouco
mais achatado que o nosso, não é uma coisa
bonita, se você olhar bem de perto. O que a
redime é apenas a idéia. Uma idéia por
detrás dela; não uma ficção sentimental,
mas uma idéia; e uma crença altruísta na
idéia – algo que você pode erigir, e curvar-
se diante dela, e lhe oferecer um
sacrifício...
Joseph Konrad, Heart of
darkness [O coração das trevas]
1
1. INTRODUÇÃO
Escolhi o aldeamento de São Pedro de Alcântara como objeto de estudo deste trabalho
pela oportunidade que teria de conhecer um pouco mais sobre a história dos índios, ainda tão
pouco estudada, principalmente no Paraná.
A curiosidade de saber como seria um aldeamento levou-me a essa pesquisa. Para nortear
o andamento deste trabalho, foi preciso saber um pouco mais sobre o indígena, esse ser fascinante
e tão pouco conhecido.
Por esse motivo, há sempre a preocupação, no texto que se segue, de situá-lo no contexto
histórico analisado.
O estudo feito o coloca (ao contrário do que comumente se pensa), sempre como senhor
de si mesmo perante seu dominador europeu.
Porque não obstante a obstinação do europeu em subjugá-lo, ele (o índio) procurava
sempre manter sua identidade e cultura.
E, como o conquistador, ainda que forçosamente, se valia dele, ele também se valia
daquele fazendo alianças e negociações conforme lhe convinha.
Para desenvolver o estudo foi preciso analisar a maneira como relacionavam-se
conquistador e conquistado. Esse relacionamento resultou desastroso ao indígena, devido as
consequências que dele advieram.
Uma dessas consequências foi a construção de aldeamentos, nos quais procurava-se reunir
o maio número possível de indígenas, para que ficassem sob as vistas do Estado.
Para permitir ao indígena ser totalmente subjugado, a política indigenista era feita de
modo unilateral, não levando em conta os interesses do índio, beneficiando assim claramente os
conquistadores.
3
2.INDÍGENAS E EUROPEUS NO BRASIL
Quando o europeu chegou ao território brasileiro e deparou
com o indígena, teve início toda uma problemática que envolvia o
relacionamento entre ambas as partes.
São bem conhecidas as conseqüências do contato entre europeus
e indígenas. O europeu, como conquistador, dominou o terri tório a
seu modo e submeteu o autóctone sem reconhecer-lhe a cultura e
identidade própria.
Na dinâmica da conquista, para submeter o indígena, o europeu
usou de vários expedientes, desde a guerra e matança
indiscriminada, até a tentativa de fazer com que o outro (o
indígena), assimilasse sua cultura pela imposição da moral do
trabalho e da cristianização pela catequese. Tentava-se isso com os
índios aldeados.
Por essa perspectiva, a empresa dos aldeamentos pode ser
entendida como conseqüência desse relacionamento conquistador-
conquistado e está inserida em todo um processo histórico.
Por isso, para melhor compreensão do assunto, antes de falar
especificamente de aldeamentos, farei um breve comentário, sem
grandes pretensões, apenas para dar uma leve noção da relação
entre europeu e índio.
A relação entre ambos no Brasil é analisada por alguns
estudiosos, que nos dão uma idéia de como tal ocorria. Comecemos
4
com o que diz Manuela Carneiro da Cunha. Para ela o papel que
tem sido delegado aos índios é o de ser apenas instrumento ou
espectador da História. Esta premissa (a de ser apenas testemunha e
não agente de sua história)traz em si a noção de que os ameríndios
não possuem história. Eles teriam entrado nela com a chegada dos
europeus que: ”São os descobridores que inauguram e conferem aos
gentios uma entrada - de serviço - no grande curso da História”1
Segundo a autora, logo após o reconhecimento da humanidade
dos índios (confirmada pelo Papa em 1537), os relatos sobre a
América refletirão mais sobre a história da Europa, de como esta se
percebia, do que qual quer coisa sobre os índios. Esta que aponta os
povos indígenas como vít imas dos europeus e do capitalismo
mercantil. Uma nova visão nascida da Teoria Evolucionista de
meados do século XIX afirma que os indígenas teriam estacionado
na escala evolucionária no que tange a sua organização social .
Seriam pois o retrato “fossilizado” do que outrora fora a sociedade
européia (esta sim com história). E, como estão (ou estavam)
parados no tempo, não há porque recuperar-lhes a história:
“Hoje, por lhes desconhecermos a
história, por ouvirmos falar, sem entender-lhe
o sentido ou alcance(...) e porque nos agrada a
ilusão de sociedades virgens, somos tentados a
1 CUNHA, Manuela Carneiro da. Introdução a uma História Indígena In: CUNHA, Manoela C.(org.) História dos Índios no Brasil. São Paulo :FAPES/SMC e Cia das Let ras , 1992 .
5
pensar que as sociedades indígenas de agora
são imagem do que foi o Brasil pré-
cabralino(...), sua história se reduz
estritamente à sua etnografia”.2
Se para Carneiro da Cunha o indígena ocuparia um lugar apenas de
testemunha de sua própria história, nas palavras de John Manuel Monteiro, o que
acontecia é que os portugueses não compreendiam o índio. Por isso resumiam a
organização social dele (do índio), pelo “Sem Fé, nem Lei, nem Rei”3. Suas
diferenças étnicas não eram devidamente reconhecidas, apontava-se que existiam
os povos tupis (ou tupis-guaranis) e os tapuias (não-tupis). O que desnorteava os
portugueses era o fato de que as similaridades culturais entre os tupis do ponto de
vista linguístico e organizacional não se traduziam em união política. Os tupis
povoavam o litoral da América Portuguesa desde o litoral do Maranhão até a
capitania de São Vicente e viviam em constantes guerras entre si. Conheciam a
agricultura, plantavam milho, feijão, abóbora e especialmente mandioca. Os
portugueses não conseguiram compreender o significado das guerras entre os tupis
e nem o caráter da sua agricultura, embora tentem se beneficiar de ambas.
Mesmo assim, desde o início, os traficantes de pau-brasil e os colonos irão,
através do escambo, adquirir tanto a cooperação do trabalho indígena quanto
mantimentos. Entretanto, logo este comércio se esgotaria, devido a dois motivos
fundamentais: primeiro a saturação do comércio de quinquilharias fez com que os
índios exigissem mercadorias melhores e mais caras (ferragens, armas de fogo
pág.9
6
etc). Segundo, o aumento do número de traficantes provocará maior disputa por
mão de obra e alimentos. E os indígenas regulavam o fornecimento de mão de
obra bem como de alimentos conforme uma dinâmica interna própria, pela qual,
segundo Schwartz “não era preciso explorar toda a força de trabalho e a técnica.
O status não derivava da capacidade econômica.”4 Já que os indígenas
praticavam uma economia de uso e não de troca; esta somente fará sentido dentro
da lógica das sociedades indígenas. As relações estavam vinculadas, em muito, ao
interesse de muitas tribos em estabelecer alianças com os portugueses.
Ora, se os indígenas estabeleciam alianças e norteavam suas ações de acordo
com interesses próprios, eram, de certa forma, agentes de sua história e tinham
seus motivos para aliarem-se aos portugueses, franceses ou holandeses. Do mesmo
modo que os índios se valiam dos europeus nas suas disputas, estes buscavam
aliados indígenas para guerrearem também entre si. Tamoios e tupiniquins no
século XVI, já em guerra, aliaram-se respectivamente a franceses e portugueses. A
política indigenista dos europeus tinha como contrapartida a política indígena e o
resultado será o fracionamento étnico dos mais fracos.
A partir do fracasso do comércio via escambo e do aumento das
necessidades dos colonos (principalmente após a instauração do governo colonial)
os portugueses precisarão de mais mão-de-obra. Dada a recusa dos índios em
trabalhar para os portugueses estes adotaram práticas com intuito de adquirir
escravos. A primeira será a do resgate. Percebendo a grande importância da guerra
nas sociedades indígenas os portugueses decidiram delas aproveitar-se para a
obtenção de mão-de-obra (como já tinham feito na África). Após os combates os
2Ibid. pág. 11 3 Id. ibid. pág.21
7
prisioneiros que ritualisticamente seriam devorados pela tribo eram “resgatados”
pelos portugueses via escambo. Estes prisioneiros seriam usados como escravos na
nascente cultura da cana:
“O período de 1540 a 1570 marcou o
apogeu da escravidão do gentio nos engenhos
do litoral brasileiro em geral, em especial, nos
da Bahia. Em 1545, a capitania de São
Vicente, no sul, possuía seis engenhos e 3000
escravos , dos quais a grande maioria eram
índios.”5
Estas guerras se tornarão catastróficas para os indígenas. Após as guerras
seguiram-se fomes e a desestruturação das aldeias será continuada. De modo que
os indígenas serão mais facilmente seduzidos pelos aldeamentos e pelo trabalho
“livre” junto aos engenhos. A alternativa proposta pelos jesuítas era igualmente
destrutiva para as sociedades indígenas. Isso porque os aldeamentos agrupavam
indivíduos de várias etnias e assim destruíam laços sociais. Simultaneamente os
índios eram educados para viverem como cristãos, ‘‘conceito que incluía não só a
moralidade, mas também os hábitos de trabalho dos europeus”6. Os jesuítas
justificavam os aldeamentos a partir do ponto de vista moral (evangelização e não
4SCHWARTZ, S. B. Uma geração exaurida: agricultura comercial e mão-de-obra indígena. In: Segredos Internos. Brasília, Cia das Letras/CNPq, l998. pág. 46 5 SCHWARTZ, S. B. exaurida Uma geração exaurida: agricultura comercial e mão-de-obra indígena. In: Segredos Internos. Brasília :Cia das Letras/CNPq , l998. pág. 46
6 SCHWARTZ, S. B.. Op. cit.pág.48-9
8
escravização), os aldeamentos propiciariam fornecimento de uma mão de obra
camponesa para os colonos e, posteriormente, os índios aldeados serviriam como
muralha viva (força militar), contra os índios hostis. Também serão os índios
aldeados a ajudarem nos descimentos de outros indivíduos do sertão e na defesa
contra ataques a engenhos. Novamente a se salientar que o envolvimento dos
índios nessas guerras provinha de sua própria dinâmica histórica, de seus próprios
interesses.
“...foi a consciência de um passado
indígena que forneceu bases para sua ação
perante a situação historicamente nova da
conquista. Destacam-se, aqui, os seguintes
elementos desta dinâmica: o processo de
fragmentação e reconstituição dos grupos
locais, os papéis de liderança desempenhados
pelos chefes e xamãs e, finalmente, a
fundamental importância do complexo
guerreiro na afirmação da identidade histórica
destes grupos.”7
Esta apreciação direciona novamente nossa atenção para o papel de uma
política indígena (historicamente constituída) ante uma política indigenista
9
européia. Antes de mais nada, há de se compreender a participação e interesses dos
índios que, por muito tempo, foram importantes aliados. Estas alianças eram
moldadas por interesses e as nações indígenas ou européias conseguiram fazer
valer os seus conforme as forças em questão.
3.POLÍTICA INDIGENISTA NO SÉC.XIX : O CASO O ALDEAMENTO
DE SÃO PEDRO DE ALCÂNTARA
Para melhor entendermos a questão dos aldeamentos no
Brasil da segunda metade do século XIX, faremos antes, de modo
bastante sucinto, uma análise geral do que foi a polít ica indigenista
nesse período.
Inicialmente é bom salientar que o século XIX foi uma época bastante
turbulenta no que se refere à organização do aparato legal do Brasil. Basta lembrar
que até 1815 o Brasil foi colônia, de 1815 a 1822 Reino Unido e, de 1822 à 1889,
nação soberana sob regime monárquico sendo que, no ano de 1889 torna-se
república. Com tantas mudanças, a política indigenista também sofreu
conseqüências.
Desde 1789 quando se revogou o Diretório Pombalino não se institui
nenhuma política indigenista para o Brasil-colônia ou nação. Prova disso é que
muitos projetos foram enviados às Cortes Gerais Portuguesas, mas nenhum foi
7MONTEIRO, John Manuel. As populações indígenas no litoral brasileiro no século XVI: Transformação e resistência. In: O Brasil às vésperas do mundo moderno. Dias, Jil (org.)
10
aprovado.Com a Independência, alguns desses projetos, reformulados, foram
apresentados à assembléia Constituinte de 1823, (inclusive um de autoria de José
Bonifácio), porém nenhum deles chegou a ser formulado na carta constitucional.
Constar na constituição aliás não alteraria em nada a situação dos índios no
Império, posto que a carta constitucional não será reconhecida por D. Pedro I, que
outorga uma constituição diferente, onde sequer se reconhece a existência do
indígena. Manuela Carneiro da Cunha aponta que a legislação indigenista no
século XIX, principalmente até 1845 é
“flutuante, pontual e, como era de se
esperar, em larga medida subsidiária de uma
política de terras [não havendo uma política
indígenista geral do Império] as Assembléias
Legislativas Provinciais legislaram
cumulativamente com a Assembléia e Governo
Geral”8.
Às Assembléias e Governos Provinciais competia formular leis que seriam
sancionadas pelo poder central. Este tipo de política se refletirá em ações anti-
indígenas em várias províncias, como Goiás e Maranhão, onde se declara guerra
aberta aos índios para que seja possível colonizar suas terras9. Ao hiato na
política indigenista soma-se o da política de terras, o que irá gerar um período de
Lisboa 1992 p.125 8 CARNEIRO DA CUNHA, Manuela.. Política Indigenista no século XlX In: CUNHA, Manoela Op. Citada p.135-138
11
assalto às terras indígenas, principalmente na década de 1830. Mesmo terras de
índios aldeados serão tomadas, situação que vai ocorrer por exemplo na região de
Guarapuava10, onde o Cacique Viri e os seus são expulsos da sesmaria que haviam
recebido em nome das “irrecusáveis provas de lealdade” no combate que davam
às tribos hostis em auxílio aos colonos, tão logo afastaram os “botocudos” – nome
dado aos índios que hostilizavam os pioneiros guarapuavanos.
O debate sobre a questão da posse da terra se deve a revogação da lei de
concessão de sesmarias em 1822 sem que nenhuma lhe substitua até 1850, ou seja
não existiu nenhuma legislação de terras por vinte e oito anos, fato que afetou
diretamente os índios, uma vez que privilegiou-se a comprovação da posse da
terra para que fosse reconhecida a propriedade.
Com a publicação do Decreto 426 (24/07/1845) que trata do “Regulamento
acerca das Missões de Catechese e Civilização dos Índios”, se estabelece uma
ordenação jurídica para os índios no país. Este decreto possui um caráter
basicamente administrativo, regulamenta detalhadamente a constituição de
aldeamentos, mas pouco se refere a uma política indigenista geral para o Império.
Segundo Manuela Carneiro da Cunha o decreto é o único no Império, tal decreto
possui um caráter de sujeição do índio ao jugo da lei e ao trabalho, ou seja, busca-
se, antes de mais nada, a assimilação do elemento indígena aos padrões culturais
“brancos”. A intenção do governo era transformar os índios em trabalhadores
através da assimilação que estes fariam de nossos costumes (trabalho) e
necessidades (comércio, roupas, etc.), o próprio frei Timotheo de Castelnuovo
adverte da necessidade de criar “nelles alguma ambição de possuir, tirandolhes da
9 KARASCHI, Mary. Catequese e Cativeiro: Política indigenista em Goiás 1780-1889. In: CUNHA, Manoela . Op. Citada
12
indolencia e aphatia natural, preparandolhes assim para a Catiqueze”11. Desse
modo criam-se necessidades como tecidos, por exemplo, que inicialmente são
dados como presentes, e que posteriormente os índios terão que adquirir sozinhos.
Os índios são aldeados também para que cessem suas “correrias” e deixem
de assustar os colonos, fornecendo simultaneamente mão de obra. O caso do
Paraná é bastante representativo nessa questão; ao mesmo tempo que os
presidentes de Província reforçam a necessidade de “desinfestar” o território a fim
de colonizá-lo também apontam o melhor modo de faze-lo: através do ensino da
catequese e do trabalho. Há o consenso de que esses são os dois elementos que
mais sucesso conseguem na civilização do gentio, sendo importante, pois, elucidar
algumas questões quanto ao caráter deste “trabalho” e desta “catequese’’.
Tomando como princípio a questão da “colonização interna”, percebe-se
que o poder central desejava colonizar seu próprio território. Sendo assim pode-se
adotar a visão de Tzevetan Todorov sobre o encontro colonizador-colonizado, na
qual o colonizador pensará que todo colonizado - nesse caso particular os índios –
‘‘são seres completamente humanos,
com os mesmos direitos que ele, e aí
considera-os não somente iguais, mas
idênticos, e este comportamento desemboca no
assimilacionismo, na projeção de seus próprios
valores sobre o outro. Ou então parte da
10 HELM, Cecília Maria Vieira. A integração do Índio na estrutura agrária no Paraná – O caso Kaingáng. Tese de mestrado, UFPR 1974. p. 61 11 Frei Timotheo de Castelnuovo, Diretor da Colonia Indigena de São Pedro de Alcantara em ofício enderaçado ao Ilustrissimo e Excelentissimo Senhor Prezidente de Provincia em 5 de Janeiro de 1857
13
diferença que é imediatamente traduzida em
termos de superioridade e inferioridade [...]
recusa a existência de uma substância humana
realmente outra, que possa não ser meramente
um estado imperfeito de si mesmo.’’12
Assim, na convicção de que o “mundo é um”: é uma só a religião cristã,
uma só civilização, aquela que se sustenta no trabalho, o trabalho induz o índio a
novos costumes, principalmente quando se trata da venda desse trabalho. É notória
a intenção de instituir o indígena como camponês onde este faltasse ou então como
mão de obra. Sendo a escravidão indígena de largo uso, mas ilegal, procura-se
substituir esta pela contratação de trabalhadores índios. No caso do Paraná Cecília
Helm aponta que
“a pobreza dos senhores da terra não
permite a importação de africanos para a
mineração [...] durante o século XVIII e
grande parte do seguinte, nos campos de
Curitiba, e nos campos gerais ‘a fazenda de
criar se tornou a empresa fundamental da
economia paranaense’. Dá informações sobre
a condição de escravos a que foram
12TODOROV, Tzevetan. A Conquista da América: A questão do outro .Martins fontes p.41
14
submetidos os grupos indígenas que habitavam
o litoral e os campos.”13
Na falta de mão de obra escrava africana opta-se por aquela que está mais à
mão e é muito mais barata. É preciso notar, não obstante, que o uso feito dessa
mão de obra indígena possuía diferentes características. Se em áreas de expansão
agrícola se mantinham largos contingentes para a lavoura, em lugares de atividade
pecuária a existência de tribos que possam caçar o gado ou ocupar pastagens não é
tolerada14. Não é gratuita, portanto, a situação de constante conflito ocorrida na
região de expansão criadora de Guarapuava no início do século, que irá causar tal
clamor a ponto do próprio D. João VI declarar guerra aos índios ferozes. Deve-se
lembrar também que após a expulsão destes, mesmo aqueles considerados mansos,
que foram aliados dos criadores, se tornarão incômodos, perdendo inclusive as
terras em que se encontravam.
O caso do aldeamento de São Pedro de Alcântara constitui uma questão
específica, pois ao aldear os indígenas junto a uma Colônia Militar buscava-se o
uso de mão de obra em função do Estado. A instituição da Colônia militar do Jataí
em 1853, bem como a do aldeamento buscavam facilitar a navegação e o
transporte rumo à província do Mato Grosso. Comprova isto o fato de o mesmo
Joaquim Francisco Lopez, encarregado de estudos sobre a construção de estrada
em direção ao Mato Grosso, ter sido também o responsável, sob ordens do Barão
de Antonina, de aldear índios desde 185315.
13 HELM, Cecília Maria Vieira apud Brasil Pinheiro Machado p.43-4 14 KARASCH, Mary op. cit. p.402 15 LOPES, Joaquim Franscisco. Memoria sobre a vereda mais facil da estrada para Matto-Grosso. Typographia de Candido Martins Lopes. Curityba 1871 p.11
15
São Pedro de Alcântara e a colônia militar do Jataí serão parada obrigatória
para quaisquer expedições de sertanistas ou de militares que desejem chegar a
Cuiabá. O aldeamento funcionaria como entreposto, o que favorecia a
oportunidade de comerciar os excedentes produzidos, bem como a incidência de
epidemias entre os aldeados16.
O aldeamento de São Pedro, apesar de suas dificuldades iniciais, como a
falta de instrumentos agrícolas (enxadas, foices, etc.) e carência até de tecidos, irá
florescer, sendo o que mais sucesso obteve, o que se deve muito à administração
de seu diretor.
Seguindo o regulamento de 1845 compreendemos, em primeira instância,
que a administração dos índios deveria ser levada a cabo por leigos, mas na prática
tal não ocorria. Tal fato pode ser debitado a uma série de fatores, desde a falta de
funcionários, à inexistência de pessoas probas o suficiente para a função, como
aponta Manuela Carneiro da Cunha. Outro ponto que ajuda a explicar o fato de o
Frei ter assumido duas funções era a quase inexistência de recursos para os
aldeamentos, bem como a desatenção para com estes por parte da esfera do poder
provincial e central. Devido a isso é bastante significativa a ameaça do Frei em
pedir demissão já em 1856.
Por outro lado a instrução da catequese aos índios como meio de “amansá-
los” ainda era reconhecida como a melhor estratégia. Sendo assim, e fazendo uso
do Padroado Régio, D. Pedro II irá solicitar o envio de capuchinhos para o Brasil.
A contratação de capuchinhos italianos para a catequese dos indígenas era
defendida já em meados de 1830, sob argumentos de que a Ordem dos
16 FRIGO, Adelino, Frei. Memórias de um herói – Frei Timóteo de Castelnuovo. Prefeitura Municipal de Jataizinho – Paraná. 1995. p.24.
16
Capuchinhos e os italianos não estavam envolvidos com nações tradicionalmente
coloniais (França, Holanda, Espanha ou Portugal)17.
Frei Timotheo assume o aldeamento em 06 dezembro de 1854 quando
havia ali aproximadamente mais de 300 índios. Estes ali estavam sob
responsabilidade de um sertanista que obedecia as ordens do Barão de Antonina, o
qual havia doado terras para que fosse construído o aldeamento que irá se chamar
São Pedro de Alcântara.
Deve-se notar que o Frei era diretor dos índios de São Pedro de Alcantara,
título com o qual assinava todos os ofícios remetidos ao Presidente ou ao Vice
Presidente de Província, seus relatos a estes, portanto, estavam condizentes com a
função para a qual havia sido designado. Deve-se lembrar também, para que não
sejamos precipitados, que a questão indígena deixa de ser no século XIX apenas
tema para evangelização, para se tornar uma questão de terras18, isto é, da
usurpação das terras dos índios. Esta situação não deveria ser estranha ao Frei,
principalmente a partir de meados do século XIX quando tal espoliação se acirra.
17 FRIGO, Adelino, Frei. Idem p.9
17
3.1 ALDEAMENTO INDÍGENA DE SÃO PEDRO DE ALCÂNTARA
Até o presente momento este trabalho tem optado em analisar algo que se
configura como a história dos índios, - não confundir com a visão que eles
possuem de sua própria história, já que não se trata de um trabalho antropológico.
Partindo de preocupações apresentadas por Manuela Carneiro da Cunha, se busca
“compreender os dois lados da moeda”. Busca-se uma compreensão da trajetória
histórica do Brasil Meridional do século XIX, mais precisamente dos índios
aldeados na região que compreende o norte do Paraná, sul do Mato Grosso e
sudeste de São Paulo. Elegeu-se o Aldeamento de São Pedro de Alcântara para se
entender as relações – conflitos e interações - entre populações indígenas e a
política indigenista da segunda metade do XIX.
Antes de falar especificamente do Aldeamento de São Pedro de Alcântara,
é preciso discorrer sobre o processo de ocupação do território, para situar assim o
Aldeamento no contexto histórico da ocupação paranaense .
Maria Ligia Moura Pires, nos informa que a penetração do povoamento no
atual estado do Paraná não se deu devido a cata do ouro em Paranaguá, como quer
parte da historiografia, com mineiros vindo de São Vicente, mas sim por causa da
busca de escravos indígenas:
“A primeira referência à presença
portuguesa no litoral de Paranaguá se dá,
quando em 1585, sob o mando do capitão-mor
18 CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Política Indigenista no século XlX. In: História dos Índios no Brasil id. ibid. p133
18
de Santos, Jerônimo Leitão, uma bandeira
cativadora de índios [...] foi lançada contra os
“carijó’’ de Paranaguá.” 19
Posteriormente, com a subida da Serra do Mar e a cata do ouro – que só foi
encontrado a posteriori – também ali foi utilizado o trabalho indígena. É digno de
nota o fato de que uma das primeiras expedições provenientes de São Vicente a ter
‘‘subido a serra’’ era de preadores e foi dizimada pelos nativos.
O surto da mineração foi muito curto na região, a ele se segue a chamada
economia dos Campos Gerais. A nova atividade econômica hegemônica
dominante consistia no aluguel da pastagem (invernadas) para as tropas de gado
muar e bovino provenientes de Vacaria que rumavam a feira de Sorocaba. Tratava-
se do Caminho do Viamão. As regiões de campos (de pastagens naturais) foram
logo paulatinamente “ocupadas” – o sentido dado aqui a ocupar ou povoar se
traduz em retirar as terras de forma inequivocamente violenta de seus antigos
donos.
Segundo Brasil Pinheiro Machado, as primeiras posses nas terras dos
Campos Gerais eram originárias de sesmeiros paulistas interessados na
possibilidade de lucro futuro devido ao transporte vacum. Isso resultou na
apropriação “especulativa” das referidas terras20.
Se a apropriação do ponto de vista cartorário das referidas terras ocorreu
sem maiores problemas, o mesmo não se pode dizer do seu uso. Os conflitos com
grupos indígenas eram constantes, como se pode bem atestar na fundação de
19 PIRES, Maria Ligia Moura. p. 41 ibid
19
Guarapuava ou nos constantes ataques, mesmo em áreas mais próximas a
Curitiba, como a Vila do Príncipe (Lapa) ainda no início do século XIX. Não é
gratuita pois a atenção que Brasil Pinheiro Machado chama sobre o uso de força de
trabalho cativo ou sobre a violência com que estes eram aprisionados. Os grupos
indígenas “bravios” eram obstáculo as fazendas pioneiras sob dois aspectos .
Primeiro por ocuparem as terras (i.e., por existirem naqueles locais que poderiam
propiciar lucro sem investimento), segundo pelo fato de atacarem tropas ou
abaterem gado para se alimentarem.
A situação dos índios da região não chega a se configurar em algo
especificamente novo, principalmente em se tratando de uma região de expansão
de pecuária, onde “desinfetar” o território para seu uso comercial possui
características mais explícitas do assassínio de nativos , ao menos se compararmos
a agricultura ou ao extrativismo. O que ocorre é uma ‘‘política’’ diferenciada de
apropriação e colonização das terras indígenas nativas como. Mary Karasch, em
seus estudos sobre a expansão da frente colonial pioneira na agricultura e pecuária
em Goias no século XVIII ira observar que
“Um dado importante dessa política era o fato
dos colonizadores serem agricultores ou criadores do
gado [...] , os agricultores precisavam de muita mão-
de-obra e, assim, desejavam políticas de trabalho
forçado; já os criadores do gado precisavam de pouca
20 MACHADO, Brasil Pinheiro. Formação Histórica. In. Campos Gerais Estruturas Agrárias Altiva Pillati Balhana , Brasil P. Machado et alli. UFPR 1968 pág. 30
20
gente para cuidar do gado e dos cavalos, e viam os
índios apenas como predadores de seus rebanhos”.21
Desnecessário dizer que quaisquer tentativas de resistir a espoliação de
suas terras significava uma declaração formal de guerra.
Nesse contexto, a idéia de reunir indígenas em aldeamentos foi vista como
uma maneira de livrar o território que eles habitavam e foi colocada em prática
pela política indigenista da época. Surge assim, entre outros, o Aldeamento de São
Pedro de Alcântara.
3.2 O BARÃO DE ANTONINA E OS ALDEAMENTOS
Em 1853, aldeamentos do Yvinhema e Varadouro já se encontravam sobre
a direção do Barão de Antonina e sob as responsabilidades do presidente de
província (do Paraná). Estes aldeamentos ficavam na Província do Mato Grosso,
mas eram muito mais próximos a capital paranaense do que daquela
outra província, por conta disto ficavam sob direção do Barão de
Antonina22.
KARASCH, Mar y. “Catequese e Cat iveiro”: Pol í t ica Indigenista em Goiás: 1780-1889 In: História dos Índios no Brasi l . Op. c i t .p .402.
22 VASCONCELOS, Zacarias de Goes. Presidente da Província. Relatório pág.5-6 1855
21
O aparecimento de personagens como João da Silva Machado, futuro
Barão de Antonina, podem ser compreendidos como parte integrante do quadro
supra citado.
João da Silva Machado é uma figura exemplar daqueles pioneiros que,
bons empreendedores, aparecem nas obras apologéticas às elites tradicionais.
Nascido no Rio Grande do Sul em 1782, fará fortuna com as tropas de gado que
viajavam do Rio Grande do Sul a Sorocaba. Torna-se grande conhecedor de boa
parte dos sertões brasileiros, em suas viagens vendendo e comprando gado,
chegará à cidade de Caxias no Maranhão. Além de lucrar com o comércio de
tropas, também se estabelece como “fazendeiro” ao se associar a curitibanos e se
apropriar das pastagens dos campos Gerais. Tanto para os proprietários destas
terras quanto para os tropeiros, os índios eram no mínimo um obstáculo a ser
contornado ou eliminado; “os criadores do gado precisavam de pouca
gente para cuidar do gado e dos cavalos, e viam os índios apenas
como predadores de seus rebanhos.”23
Portanto, não causa espanto o fato de a defesa da nação estar associada ao
“aproveitamento” das terras indígenas e da circunscrição destes em pequenas
parcelas de terras.
Por um lado, arrebanhar índios junto a aldeamento implicava também em
inculcar neles a moral do trabalho, da faina diária, o que gera necessidades e novos
usos e costumes.
23 KARASCH, Mar y. “Catequese e Cat iveiro”: Pol í t ica Indigenista em Goiás: 1780-1889 In : História dos Índios no Brasi l . Op. c i t .p.402
22
“Desde que dediquei-me ao
serviço daí Missoens no Brazil tenho
observado que a melhór maneira de
desenvolve-los eh a lavoura e a
Religião destes tenho feito a base da
minha sistema, [ ..] de pouco a pouco
trabalhar, criando nelles alguma
ambição de possuir, tirandolhes assim
da sua indolencia e aphatia natural,
prepadandolhes assim para a
catiqueze”24 e “espera que este
Aldeamento têm hum futuro
prospero .”25
Pensava-se que aldear transformaria o “selvagem” errante em súdito, se
constituiriam barreiras humanas contra o avanço inimigo, se protegeriam fronteiras
através de alianças e do conhecimento e desenvoltura que os autóctones possuem
em seus territórios e rotas fluviais.26
O barão constantemente se aproveita para fins particulares das verbas que
recebe para “Catequese e Civilização”. Aproveita-se no sentido de desinfestar as
24 CASTELNUOVO, Frei Timoteo de. Diretor do aldeamento de São Pedro de Alcântara Relaório ao Pres idente de Província 1856
25CASTELNUOVO, Frei Timoteo de. Diretor do aldeamento de São Pedro de Alcântara Relaório ao Pres idente de Província 1856 26 “O aldeamento de índios obedecia , com efeito, a conveniencias várias[...]. Podia-se assentá-los em rotas fluviais , como a que ligava São Paulo ao Mato Gosso, ou o Paraná ao Mato Grosso, ou como a do Tocantins e do Araguaia ligando Centro-Oeste ao Pará e ao Maranhão. Podiam-se estabelecer aldeamentos em rotas de tropeiros como a que ligava [Paraná] São Pedro do Rio Grande do Sul e Santa Catarina.’’p.144
23
regiões onde possuía terras O fato desses elementos se associarem a projetos
particulares do Barão não desabonava suas ações (o barão possuía canaviais na
região do rio Verde e Ivinheima em São Paulo), se encontrava infestada.
“Em 1846, os sertanistas Elliot e
Lopes organizam a expedição dos
campos situados nas margens
ocidentais do rio Tibagi [....]. Baseados
nessa localidade, começam a fazer roça
e ocupar as terras para o barão. [ ....]
O barão de Antonina toma posse dessas
terras Kaingang e mais tarde vai doá-
las ao governo imperial para aí
construir o aldeamento indígena de São
Jerônimo da Serra.’’ 27
Aliás sendo bem provável que o oposto ocorresse, caso conseguisse que os
índios auxiliassem, como no caso de São Pedro de Alcântara, o que facilitou a
entrada de colonos na região . Segundo M. Amoroso será o próprio Barão a
instituir um plano para a construção de aldeamentos conjugados com colônias
militares na região.
27 MOTA, Lúcio Tadeu. As guerras dos índios Kaingang: a história épica dos índios Kaingang no Paraná (1789-1924). EDUEM Maringá 1994. pág.149-150.
24
3.3. RAZÕES PARA CONSTRUÇÃO DO ALDEAMENTO
Traço agora algumas explanações baseadas em ofícios e outros documentos
de época sobre as razões da fundação do referido aldeamento. Como salienta
Carneiro da Cunha (no que se referiu também Joaquim Francisco Lopez), a função
deste e de outros aldeamentos, como o do Pirapó, será o de facilitar a navegação
fluvial rumo a província de Mato Grosso. Em particular, São Pedro de Alcântara
possuirá a sorte (e o infortúnio, como já foi salientado) de avizinhar-se de uma
Colônia Militar e de um tradicional caminho rumo ao sertão, o que trará epidemias
e também um relativo sucesso se comparado a aldeamentos como São Jerônimo e
Pirapó.
Quando do início da Colônia Militar do Jataí em 1853, lá se encontrava
Joaquim Francisco Lopez, sertanista experiente, com a incumbência de aldear os
índios da margem direita do Ivinheima, que ficava para além do rio Paraná.
Função que exercia sob ordens do senador Barão de Antonina, o qual tinha sob sua
responsabilidade os aldeamentos de Ivinheima e Varadouro das províncias
vizinhas (Mato Grosso e São Paulo), uma vez que estes tinham. maior facilidade
de contato com Curitiba do que com suas respectivas capitais. Visto isso, o Barão
de Antonina manda “convidar” os índios kaiowas e coroados da região da margem
direita do Ivinheima para que venham ao Jataí. Ao que parece os índios estavam
na Colônia Militar quando da chegada do frei, que juntamente com o sertanista
Joaquim Francisco Lopez, iniciará a construção do aldeamento de São Pedro de
25
Alcântara em abril de 1855, o qual será “inaugurado” em agosto do mesmo ano28.
O decreto imperial de 1857 que manda fundar São Pedro de Alcântara, não se
constitui, portanto, em nada mais do que a ratificação de algo que já se encontrava
em efetivo funcionamento.
3.4 ALDEAR ÍNDIOS NO PARANÁ NA SEGUNDA METADE DO
XIX: AS NOVAS REDUÇÕES?
Não obstante a distância de mais de 200 anos que separam as primeiras
tentativas de aldeamentos de indígenas na América do Sul pelos jesuítas, (século
XVI e XVII) e os aldeamentos capuchinhos aqui estudados, pode-se notar que
estes últimos tinham como exemplo idealizado/ideologizado as reduções
jesuíticas. O fato de alguns aldeamentos capuchinhos terem sido erigidos sobre
ruína de antigas missões, apenas vem coadunar este raciocínio.29
Comparações entre capuchinhos e jesuítas estavam presentes no discurso
do poder central, pelo menos no que se refere à Província30
É certo que os objetivos eram diferentes, mas alguns pontos norteadores
ainda continuavam os mesmos. Evocações sobre jesuítas podem ser encontradas
28Frei Timotheo de Castelnuovo idem 5 de Janeiro de 1857 29 BORBA, Telemaco Actualidade Indígena. Typographia e Litographia a vapor Impressora Paranaense . Curitiba,1908 pág.45 O aldeamento indígena de Paranapanema “estava fundada sobre as ruínas da reducção jesuítica de Santo Ignácio.” 30 DIR ÍNDIOS 1855“Não basta confiar no capuchinho, para os reduzir, revelam apenas (devo dizê-lo com franqueza) pouco estudo em tão interessante matéria. [..] Senhores, no modo de proceder , para com os selvagens, devemos tomar por mestres os jesuí tas . ”
26
na documentação Oficial como no fato de alguns aldeamentos serem construídos
sobre as ruínas de missões do Guairá.
3.5 POPULAÇÕES
Inicialmente tentarei caracterizar as populações que habitavam o
aldeamento: índios, africanos e colonos “nacionais”.
Falar sobre índios em São Pedro de Alcântara implica em dividi-los em três
grupos, Frei Timóteo usava critérios para diferenciar o tipo de ligação que cada um
destes grupos possuía com o aldeamento, critérios como
“processo de conversão ao catolicismo,
através de marcadores como a participação
nos rituais católicos (batismo, crisma,
casamento e enterro católico); relacionados
nos registros da administração como
produtores assalariados, beneficiários dos
bens e serviços fornecidos pelo governo.”31
Surgiram as categorias: Índios aldeados, Índios agregados e Índios do
sertão.32
31 AMOROSO, Marta Rosa. Catequese e Evasão: Etnografia do Aldeamento Índigena de São Pedro de Alcântara, Paraná (1855-1895). Tese de Doutoramento em Antropologia USP 1998 pág. 81 32 AMOROSO, Marta Rosa. Pág.81
27
Índios aldeados: os índios aldeados eram aqueles que instalavam-se junto
ao aldeamento e nele residiam. Apenas estes eram contados nos censos anuais.
Índios agregados eram os grupos que, embora vinculados ao aldeamento
mantinham um certo afastamento. Algumas tribos estabeleciam-se nas
proximidades de São Pedro de Alcântara mas se recusavam a adotar quaisquer
ritos católicos, afirmando sempre sua identidade, mas por outro lado, participavam
de sua rede de trocas. Como exemplo temos o caso do grupo kaiowá-guarani com
cerca de 200 indivíduos liderados pelo Xamã Cuiabá, que se recusava a abandonar
os sinais distintivos de sua cultura – como o uso do bodoque labial ou a poligamia
– e mantinha relações de troca de produtos extrativistas por sal e ferramentas. Este
grupo manteve-se próximo ao aldeamento desde seu início na década de 1850. O
não abandono dos hábitos ancestrais por parte do Xamã Cuiabá o colocava em
posição diametralmente oposta a outras lideranças, como os caciques Pahi e
Libanio, que abandonaram o bodoque labial após a conversão.
Índios do sertão: categoria na qual se inseriam tribos que visitavam
eventualmente o aldeamento, para efetuarem trocas ou reencontrarem parentes, ou
apenas buscarem brindes. Esta rede de afinidades irá extrapolar os limites do
aldeamento, fazendo com que os acordos estabelecidos no aldeamento de São
Pedro de Alcântara tenham validade também na região de Sete Quedas.33
Quanto aos índios aldeados, é importante salientar que também
mantinham seus padrões culturais tradicionais. A antropóloga Marta Amoroso
aponta que os diverso grupos étnicos que conviviam no aldeamento mantinham-se
em aldeias próximas e não no que usualmente se chamava de “circulo urbano do
aldeamento”:
28
“a Aldeia Kaiowá, localizada ao norte
do aldeamento, tres léguas a correr do rio
Tibagi, a Aldeia Guarani, localizada no norte
da Colônia militar do Jataí, do outro lado do
rio Tibagi; a Aldeia dos Coroado ficava ao sul
do aldeamento, ocupando três léguas da
extensão do rio.”34
Existiam três grupos indígenas, os Kaingang, os Kaiowá e os Guarani.
Kaingangs ou Coroados constituiam o grupo étnico predominante na
região do Tibagi (eram também o maior grupo do Paraná).
“O território ocupado pelos Kaingang
não foi claramente delimitado pelos cronistas.
Encontravam-se espalhados pelo norte do Rio
Grande do Sul, pelos campos de Palmas e
Guarapuava, sertões dos rios Tibagi e Ivaí no
Paraná e penetravam em São Paulo [...] eles
dominavam a costa atlântica de Angra dos
Reis a Cananéia”35
33 AMOROSO, Marta Rosa. Pág.84 34 AMOROSO, Marta Rosa. Pág.81 35 PIRES, Maria Lígia Moura. Guarani e Kaingang no Paraná: um estudo de relações intertribais. Tese de mestrado apresentado ao programa de pós-graduação em Antropologia social da UnB. Brasília 1975 p.28.
29
O etnônimo Kaingang servia para identificar os vários grupos Jês que
ocupavam o Brasil Meridional. No caso dos aldeamentos indígenas do XIX o
grupo Kaingang apresentava duas divisões internas que por sua vez subdividiam-
se em dois subgrupos formando, portanto, quatro subgrupos: Kamé, Wonhéty,
Kairu e Votor. Segundo Amoroso essas divisões são essenciais para que se
compreenda a complexa teia de relações constituída em São Pedro de Alcântara e
que em 1870 irá ocasionar conflitos intra-étnicos.
Cabe notar que os Kaingang somente irão adentrar em São Pedro de
Alcântara em 1859, sendo que até então este era habitado apenas por Kaiowás e
Guaranis. A ocasião de sua chegada quase beirou o conflito.
Mesmo vivendo nas proximidades do aldeamento e estabelecendo relações
de dependência mútua com este e com a colônia militar do Jataí, os Kaingang
mantiveram uma sociabilidade própria e também o plantio de produtos exclusivos
para seu consumo, que eram vedados ao comércio externo, como é o caso de um
tipo de milho. “os Coroados utilizavam em suas roças qualidades especiais de
milho diferentes da plantada para fins comerciais no aldeamento.”36
Kaiowá e Guarani
Aqui cabe um esclarecimento, embora ambos os grupos supra citados
pertençam ao tronco Guarani, no período estudado, esses aparecem diferenciados.
36 AMOROSO, Marta Rosa. Pág.125
30
Assim sendo, o grupo Kaiowá (Cayoá para o século XIX) torna-se um grupo, ao
passo que o grupo Ñandevá (também Guarani) será chamado simplesmente de
Guarani nos aldeamentos do norte do Paraná. Um terceiro grupo do tronco
Guarani, os Mbyá eram assim chamados nos aldeamentos de Guaranis do
Paraguai, isso porque haviam se retirado daquele país quando da proximidade do
conflito.37
Kaiowás: seu território no período colonial brasileiro abrangia a região ao
“norte dos rios Apa e Dourados ao sul a Serra de Maracajú e os afluentes do rio
Jejui; a oeste a serra de Amambaí’’38
Ñandevá: população guarani que em meados do século passado vivia no
extremo sul de Mato Grosso e na região de Bauru, de onde teria saído o grupo que
conviveu com Curt Numuendaju.39
Os Kaiowá foram os únicos a permanecerem propriamente no aldeamento,
sendo que os outros dois grupos (Guarani e Kaingang) permaneceram nas
categorias de “índios do sertão” ou “índios agregados”. Os Kaiowás estarão
registrado também como diaristas ou funcionários em São Pedro de Alcântara, irão
trabalhar também no plantio e lavoura de cana para o comércio de açúcar com a
colônia militar do Jataí.
3.6 PARA DIRIGIR O ALDEAMENTO, UM FREI
37FRANCA, Arthur Martins. “Frei Timotheo de Castelnovo”. Revista do Círculo de Estudos Bandeirantes N 1/5 1934 Quando chegou em 1855 o Frei afirma que os indígenas iam para a aldeia fugindo do Paraguai. Pág. 208 38 AMOROSO, Marta Rosa. Pág. 127
31
Lendo algumas notas biográficas (bastante apologéticas) do frei Timóteo
passamos a melhor compreender os liames entre a História tradicional e a
ideologia de destruição do “outro”, indígena. Nas cartas do frei pouco se fez para
compreender o índio, o frei parece nunca sair do “centro urbano” do aldeamento.
Diferente de seu irmão de ordem, frei Cemitili, ou de outros funcionários como
Telêmaco Borba e Joaquim Francisco Lopes, não produz quaisquer análises menos
vagas dos índios.
Suas observações fluem desde o início de seu trabalho até sua morte, no
sentido de afirmar primeiro a potencialidade, depois a bestialidade de seus
prosélitos.
“Não tem duvida que desta nação de
Indigenas podesi esperar algum proveito mas
não jajá; e por ora não podem ser senão um
censo passivo”40.[1856] “Achei nos índios uma
intranponível barreira na falta de inteligência para
aprender, uma intranponível instinto para seu modo
de viverem, e na desconfiança nêles de serem por nós
um dia sacrificados.”[Memorial Testamentário] 41
39
NIMUENDAYÚ, Curt. “Apontamento sobre os Guarani” trad. e notas de Egon Schaden. Revista do Museu Paulista vol. VIII nova série. São Paulo 1954, p.9-59 40 CASTELNUOVO, Frei Timoteo de. Relatór io ao Presidente de Província 1856 v.08 ap .0032
32
Esta sendo uma imagem provavelmente já concebida no Rio de Janeiro ou
na Europa: selvagem, bruto, inimigo do trabalho e pagão.
O frei Timóteo, i.e., o homem que viria a ser frei nasceu em Gênova 1823
e entrou na ordem com 18 anos, desembarcou no Rio de Janeiro em 185142 veio
para o Brasil em janeiro de 1851, tendo ficado na capital do país até agosto de
1852, quando foi transferido para São Paulo, onde se torna pároco. É enviado para
os sertões do Paraná em agosto de 1855 e oficia a missa inaugural do Aldeamento
Indígena de São Pedro de Alcân0tara. O frei permanecerá no aldeamento até seu
óbito em 1895, exceto pelo período entre 1873 –1878, quando será Telêmaco
Borba diretor do aldeamento.
A vinda desse capuchinho para o Brasil imperial foi resultado da política
indigenista do Império, a qual pode ser compreendida como um belo rumo à
definitiva laicização da questão indígena. Após o cunho radical da política
indigenista pombalina que expulsou os jesuítas, o retorno do frei se configuraria
como um arremedo da história passada. Deve se ressaltar que o Estado fazia uso
do expediente do padroado, sendo que os freis capuchinhos ficavam sujeitos à sua
administração, bem como dependentes deste para seu soldo.43
Os freis dependiam do estado para suas necessidades básicas, era o Estado
que definia o local de atuação do missionário, do qual este somente poderia
ausentar-se com autorização prévia, e também era ao Estado que eles deveriam
responder por suas atividades não eclesiásticas. Ao que parece, frei Timóteo não
41 MOTA, Lúcio Tadeu. As guerras dos índios Kaingang: a história épica dos índios Kaingang no Paraná (1789-1924). EDUEM Maringá 1994. Pág. 181 apud. FREI Casimiro M. de Orleans. Pai dos Coroados Tipografia Max Roesner .Curitiba 1957 42 FRANCA, Arthur Martins. “Frei Timotheo de Castelnovo”. Revista do Círculo de Estudos Bandeirantes N 1/5 1934 p. 204
33
irá sentir-se muito desconfortável nessa posição – a não ser quando lhes atrasavam
o pagamento.
3.7 A ADMINISTRAÇÃO
Outro ponto importante na análise de Marta Amoroso é o fato de a
administração dos aldeamentos estarem sujeitos a uma hierarquia militar. Nem
mesmo os aldeamentos administrados pelos capuchinhos escapava a esta regra.44
O caso dos Estados da fronteira sulina representavam bem essa política ). De modo
que não se deve estranhar a adoção por parte dos índios destas instituições a partir
de uma significação própria. Nimuendaju irá relatar que alguns chefes indígenas se
dirigiam a São Paulo a fim de obterem suas patentes de “capitão”.
A instituição dos aldeamentos indígenas, sua hierarquia militarizada devem
ser compreendidas historicamente. Pensar em história consiste em enquadrar os
acontecimentos dentro de complexas teias de relações que são tão mais imbricadas
quanto mais se aproxima o olhar.
Se de um lado, analisando de maneira mais global, a instituição de
aldeamentos e colônias militares nas fronteiras com o Paraguai pode ser melhor
compreendidas à luz das disputas do Prata envolvendo até o imperialismo inglês,
também existem questões que concernem à própria formação do Estado brasileiro.
43 CUNHA, Manuela Carneiro. Política Indigenista no século XlX. In: História dos Índios no Brasil “Os capuchinhos italianos ficam inteiramente a serviço do governo, que os distribui segundo seus próprios.”p.140-141 44
AMOROSO. Marta Rosa .“No Paraná a missão capuchinha nascia junto a Colônias Militares [...] e apoiava-se nos destacamentos para estabelecer-se em campo, reunir os índios e conter conflitos.” Nestes aldeamento os frei capuchinhos recebiam soldo de capelães militares. p.31
34
Este procurava agilizar suas vias de comunicação com o interior, situação comum
a qualquer país recém formado, pois anteriormente voltava-se para metrópole.
Outra questões relevantes dizem respeito a ingerência da hierarquia militar dentro
dos aldeamentos, acontecimento que não é estranho aos países recém
descolonizados. Estes possuíam nos quadros militares um dos poucos parâmetros
para sua organização interna, visto que nesses novos países o exército é um dos
poucos órgãos que resiste com a retirada dos quadros burocráticos da antiga
metrópole.
A partir disto é bem conhecido o fato destes se autoproclamarem os
maiores e mais legítimos defensores da pátria (contra perigos externos ou
internos).
3.8 TRABALHO E CATEQUESE X ESPOLIAÇÃO E BRINDE
A política indigenista no Império brasileiro no século XIX possuía como
principal diretriz a apropriação das terras de seus legítimos donos, para isso
procurava retirar os índios de suas terras e colocá-los sob tutela dos diretores de
aldeamentos, inculcá-los dos ideais do trabalho e da religião para que eles se
tornassem também súditos do Império..
O frei, diretor de São Pedro de Alcântara e sertanistas, aldeadores são
unânimes em apontar que boas perspectivas se apresentavam “Não tem duvida
35
que desta nação de Indigenas podesi esperar algum proveito mas
não jaja; e por ora não podem ser senão um censo passivo”45.
Os índios deveriam ser atraídos para os aldeamentos através da distribuição
de brindes (facas, tesouras, espelhos, etc.) com o estabelecimento de tribos nos
aldeamentos os índios seriam instruídos nos “místeres” do trabalho, fariam roças
para venderem excedentes e para a subsistência do aldeamento. Através da venda
desses excedentes os índios passariam a adquirir os brindes e também a ter outras
necessidades .
Está implícito nessa ideologia a tentativa de se destruir a base cultural do
modo de viver do indígena, isto é, sua relação com a terra. Se a noção de
territorialidade era destruída, também era implodida a ligação com a natureza e
abria-se espaço para que uma nova mentalidade fosse constituída. Se até então o
status não decorria das posses econômicas, a coisificação da terra destruiria
também parte da coesão social, da ligação com a natureza e com a divindade. A
percepção de que tudo constituísse um sistema onde abalar-se um dos pontos faria
com que todo ele ruísse poderia não estar claro para todos, mas sob o ponto de
vista pragmático, rondava as políticas do “colonialismo interno”.
Os sertanistas aldeadores, os freis capuchinhos, as autoridades, todos
sabiam que a tarefa a que se propunham era árdua, com muitos obstáculos e cujo
fruto só poderia ser colhido a longo prazo O Frei reconhecia que os índios teriam
inclinações morais para o trabalho, mas que isso demora. O mesmo se dá com
Telêmaco Borba em Actualidades Indígenas, quando se refere aos Kaingang e aos
Guaranis e às propensões morais deles e suas roças. Uns são desconfiados. Outros
45 CASTELNUOVO, Frei Timoteo de. Relaório ao Pres idente de Província 1856 v.08 ap .0032
36
são mais leais, uns plantam e guardam e outros apenas plantam e vivem das
colheitas dos produtos, não armazenando-os.
Disto resulta que os Kaiowás (Cayoás ou Caiguás) serão os que mais
facilmente se adaptarão ao aldeamento (e este às suas necessidades), sendo eles
que chegarão antes na Colônia do Jataí e constituirão um posto indígena. Já os
Kaingang se manterão mais à distância.
Os Kaiowás fazem parte do grupo étnico guarani e o conhecimento que
possuíam da agricultura era notório, desde Cabeza de Vaca, passando pelos
bandeirantes e chegando até o interesse dos aldeamentos no XIX
A aproximação dos Kaiowás, Kaingangs e guaranis em direção aos
aldeamentos deve ser compreendida dentro da própria lógica interna desses povos.
Se, por um lado os diretores de aldeamento, capuchinhos e sertanistas aldeadores
apontavam que estes para lá se dirigiam em busca da proteção do Barão, também
reconheciam que os maiores gastos do aldeamento se deviam à distribuição de
brindes. Reconheciam também que os índios quando pressionados ou contrariados
facilmente abandonavam os aldeamentos.46
As tribos que permaneciam no Jataí beneficiavam-se ao máximo do
aldeamento, o que muito indignava o Frei
“sem a lavoura que
consiga traz a abundancia de
generos alimenticios nada de
46 Nimuendayú, Curt. “Frei Timóteo[ . . .] aconselhava os Guarani a t rabalharem,[ . . .] Entretanto os Guarani[ . .] não quer iam viver à manei ra que ele propunha, não quer iam tomar café ou comer carne de gado. ‘Para que ? Então havemos de
37
permanente se faz com estes
selvagens, poque e somente com
um commodo e fácil sustento que
pode induzilos a deixar a vida
errante.”47
O frei também não conseguia manter o controle sobre os índios. Os
Kaiowás, por exemplo, irão fazer petição junto ao governador provincial em 1877,
no sentido de possuírem seu próprio engenho e alambique, solapando o controle –
e, por conseguinte a autoridade – do frei. Se é certo que havia roçados do
aldeamento, para este revertiam e administrados pelo frei, também é certo que a
subsistência dos índios era garantida por cultivos próprios, alimentos vinculados a
seu modo tradicional de vida. Como foi notado por vários etnógrafos, uma das
maiores preocupações com o modo tradicional de vida situava-se na alimentação:
não ingerir carne de gado é importante. Tanto Kaingangs quanto Kaiowás faziam
uso desse expediente (re)afirmando sua identidade, o caso dos Kaiowás e coroados
que plantavam um tipo diferente de milho e não comercializavam é bastante
significativo sobre o grau de diferenciação existente.
Outra maneira de os índios aldeados apropriarem-se da estrutura do
aldeamento dentro de sua própria lógica estava evidente no fato destes receberem
visitas e visitarem seus aliados e parentes. Os índios mantinham afastados do
“centro urbano” do aldeamento em seus próprios toldos, onde mantinham seu
modo de vida tradicional.
morrer aqui de tanto t rabalhar?’ . Uma noi te ret i raram-se às escondidas e foram reuni r-se aos Guaianã do Rio Verde ’ ’ Ib ib .p .15 -17
38
Nestes locais o Frei tinha pouco acesso, visto que eram distantes do
aldeamento. Os índios ficavam fora de sua vigilância, alguns toldos poderiam ser
alcançados apenas com auxílio de outros índios ou funcionários do aldeamento,
como por exemplo o toldo Guarani que ficava do outro lado do rio a quatro léguas
de distância.
Também é digno de nota que as trocas efetuadas pelos índios do
aldeamento com as outra tribos que os visitavam, se davam, entre outras coisas,
por objetos que eram parte do modo tradicional do modo de vestir e agir48. Não é
muito improvável que os índio aldeados e agregados funcionassem como
“mascates” ou intermediários entre os índios do sertão e os brindes fornecidos pelo
aldeamento. É correto supor que tribos rivais não se aproximariam do aldeamento
ou ao menos teriam dificuldades para faze-lo. Primeiro, porque muitos empecilhos
poderiam ser interpostos para alguma permanência, mesmo que curta, ou para o
recebimento dos brindes. Segundo porque o frei tinha fornecido além de facões,
armas de fogo aos índios do aldeamento, o que traria desvantagem em caso de
conflito.
Conflito aliás, que eclodiu na década de 1870 quando os Guaranis
chegaram de forma intempestiva ao aldeamento. Eles tiveram literalmente que
forçar a sua entrada. Os Guarani atacaram as roças dos Kaiowás ( mas não do
aldeamento); do conflito não resultaram mortes, já que essas atraíram a repressão
do destacamento do Jataí. Mesmo assim, um destacamento de 12 praças
permanecerá em São Pedro de Alcântara por um ano para garantir a convivência
pacífica entre os diferentes grupos indígenas.
47CASTELNUOVO, Frei Timoteo de. Relaório ao Pres idente de Província
39
A partir da década de 1870, o aldeamento configura-se como um
microcosmos de relações intertribais. Os espaços estavam bem delimitados e sua
violação não raramente redundava em conflitos com mortes. Os conflitos eram
evitados pela ação do Frei associado com os militares (além, é claro, do próprio
senso de territorialidade e política dos índios). Parceria que não ocorreu em São
Jerônimo, onde um conflito generalizado causará dezenas de mortes contribuindo
para o fim do aldeamento.
Se alguns grupos ou etnias poderiam ter problemas para aproximarem-se
dos aldeamentos, por outro lado, os índios aldeados teciam acordos em São Pedro
de Alcântara que tinham validade em regiões mais distantes. Evidenciando que a
situação de permanência junto ao poder colonial não tinha como contrapartida o
abandono da “geopolítica” indígena; afinal, alianças são feitas para estabelecer ou
sedimentar a paz, ou como preparo para guerras futuras.
Uma teia de relações ligava os índios aldeados e os nacionais, mas isso não
implicava diretamente que os índios de São Pedro auxiliassem os nacionais em
seus conflitos. A contrapartida mais comum que aparece nas fontes etnográficas
era o apoio dado aos sertanistas – como na expedição fluvial que Telêmaco Borba
fez à região das Sete Quedas contando com o auxílio do filho do cacique Libânio
como guia e intérprete – ou como remadores dos “trens bélicos” quando da Guerra
do Paraguai.49
48 LOVATO, Leda A. A contribuição de Franz Keller à etnografia do Paraná. In. Boletim do Museu do Índio n.1 , Rio de Janeiro 1974 p.21
40
4. CONCLUSÃO
Nem sempre a tentativa de submeter o indígena deu certo.
No caso do aldeamento de São Pedro de Alcântara, o fato de aldear-se os índios não os
fizeram assimilar a cultura européia.
Esse aldeamento reuniu indígenas de diversos grupos étnicos, mas eles guardaram certa
distância entre si e mantiveram suas diferenças, sua cultura e identidade próprias.
Mesmo no aldeamento, os índios continuavam a viver de maneira própria, abandonando-o
se sentissem lesados de alguma maneira.
É importante dizer que, se o aldeamento objetivava aproveitar o índio de diversas formas,
o índio também não se mantinha passivo, aproveitando-se, por sua vez, dos recursos que o
aldeamento oferecia.
Ao fim deste trabalho é válido dizer que, no seu relacionamento com o
conquistador, o indígena brasileiro foi, embora na situação de dominado, agente de sua
própria história.
49 BORBA, Telemaco BORBA, Telêmaco. Actualidade Indígena. Typographia e Litographia a apor Impressora Paranaense . Curitiba,1908 pág. 149
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5. ANEXOS:
1. Ofício endereçado ao Presidente da Província do Paraná, escrito por Francisco Ferreira
da Rocha Loures, Curitiba, 1856
“A par dos esforços, que fazemos em prol da colonização, convém,
senhores não nos esquecermos desses milheiros de selvagens, que,
habitando os nossos sertões, partilham a sorte das fera, e são mais hostis
que ellas. Segundo cálculos, que não estão muito longe da verdade, orça-se
em 10.000 o número de selvagens contidos no território incueto de nossa
província.
No estado de embrutecimento, em que vivem, são entes perfeitamente inúteis, quando não
se tornam prejudicados.
Não basta confiar no capuchinho, para os reduzir, revelam apenas (devo dizê-lo
com franqueza) pouco estudo em tão interessante matéria.
Não basta confiar no capuchinho, que, encarando a questão pelo lado
puramente eclesiástico, entende satisfeita a sua missão, quando tem
explicado, em linguagem initelligivel, a metaphysica do evangelho,
pregando a estes espíritos rudes, as vantagens do jejum e da castidade.
Outros são os meios, a que devemos recorrer, para colher bons frutos das
nossas tentativas, em favor das tribos, que jazem no mais lamentável estado
de degradação. Senhores, no modo de proceder, para com os selvagens,
devemos tomar por mestres os jesuítas. Elles marcharão sempre com tino,
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na resolução desse problema, que interessava, de mui perto, a glória da
sua ordem.”
*A redução dos selvagens depende de três condições essenciais:
conquista, catechese e civilização.
A primeira é uma questão de polícia; a segunda o predicado da
religião; a terceira resultado da industria.
Pela primeira questão, isto é. , pela conquista, que devemos tomar a
iniciativa, neste importante objecto. Não penseis, senhores, que a palavra
conquista, na acepção em que a tomo, envolve a idéia dessas bandeiras
sangüinárias, que, mais uma vez, tem levado a devastação ao meio dos
nossos sertões.
Eu quero, certamente, a intervenção da força armada; mas quero-a
empregado com intelligencia e mais como meio de defesa, que de ataque.
Se, pois, uma numerosa escolta penetrasse os nossos sertões, e fosse em
procura dos alojamentos dos selvagens, e, longe de lhes fazer a menor
aggressão, os mimoseasse com utensís e ornamentos, procedendo, para com
elles, de modo a lhes captar a confiança, posso assegurar que, dentro de
cinco anos estariam, amansados todos os selvagens, que hoje prejudicam as
nossas fazendas.
Foi justamente o que aconteceu em Guarapuava, por ocasião da
expedição de 1809, e mais tarde em Palmas, onde o cacique Virí , e outros,
se submeterão completamente, e nos tem, desde então, dado irrecusáveis
provas de lealdade e dedicação.
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Convém utilizar estas forças, que vivem dispersadas pelos desertos,
procurando addicioná-las a população civilisada, que cobre uma pequena
parte de nosso território.
Parece que áquelles, que lanção uma vista d’olhos superficial sobre
nossa statisticie moral, que os povos da raça tupí, tão numerosos outr’ora,
desaparecerão da superficie do Brazil, sob pressão dos vício e da miséria,
é esse, pôrem, um erro, que não parti lharão aqueles que conhecerem a
questão pelo lado da sciencia.
A presença da raça caucasicia tende certamente a extinguir todas as
mais raças, em que se divide a especie humana; mas é pelo cruzamento que
se deve operar esse phenomeno provincial, como já entre nós se pode
observar, tanto a respeito da raça ethiopicia, de que futuramente não
haverá um só em nossa população.
Assim, pois, senhores, todos os nossos esforços nesse sentido, não
podem ter senão um resultado benéfico. Como homens de religião,
cumprimos com o dever que nos impões o evangelho, chamando a grey
chrestã esses infelizes que jazem imersos nas trevas o gentilismo; como
políticos temos de proporcionar ao nosso paiz todos os meios de
incremento, que nos oferece a própria natureza.
Submetendo a vossa illustrada consideração as minhas idéias sobre os
meios de melhorar a sorte dos nossos selvagens, devo entretanto expor-vos
o estado que se achão, não só a directoria geral dos índios, como as aldéas
que lhe são subordinadas .”
44
2. Ofício de Frei Timóteo de Castelnuovo ao Presidente de Província ,
agosto de 1856
“estes Indigenas são um gentio muito docil , sebem medrosos e
cobardes e não inimigos do trabalho, sebem requerem vestuario, e sostento1
, a sua vida e a caça e por consequencia a vadiação2 , mas preferem o
trabalho a vadiação tendo que comer. São de natureza muito intl igentes e
espertos, sebem estremamente desconfiados, faltalhe, porém ainda a
ambição. Não tem duvida que desta nação de Indigenas podesi esperar
algum proveito mas não jaja3; e por ora não podem ser senão um censo
passivo”.
3. Ofício de Frei Timóteo de Castelnuovo Diretor [de índios ao] Ilm.
e Exm. Snr Prezidente da Província do Paraná. 9/Janeiro/1857.
“Desde que dediquei-me ao serviço daí Missoens no Brazil tenho
observado que a melhór maneira de desenvolve-los e a lavoura e a Religião
destes tenho feito a base da minha sistema, sem a lavoura que consiga traz a
abundancia de generos alimenticios nada de permanente se faz com estes
selvagens, poque e somente com um commodo e fácil sustento que pode
induzilos a deixar a vida errante[..] de pouco a pouco trabalhar, criando
nelles alguma ambição de possuir, tirandolhes assim da sua indolencia e
aphatia natural , prepadandolhes assim para a catiqueze’.
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6.FONTES
1 BORBA, Telemaco. Actualidade indígena. Curitiba : Typographia e Litographia a vapor
Imprensa
Paranaense, 1908
2 CASTELNUOVO, Frei Timóteo de. Ofício ao Presidente da Província v. 08 ap. 0032, 1856
3 _____________________________ Ofício [ de índios ao] Ilmo e Exm. Snr. Prezidente
da Província do Paraná. 9 de janeiro de 1857
4 FRANCO, Arthur Martins . Frei Timóteo de Catelnuovo. Revista do Circulo de Estudo
Bandeirante, vol. 1/5, 1934
5 FRIGO, Frei Adelino. Memórias de um herói - Frei Timóteo de Castelnuovo. Jataizinho:
Prefeitura Municipal , 1995
6 LOPES, Joaquim Francisco. Memória sobre a vereda mais fácil da estrada para
Mattogrosso Typographia de Candido Martins Lopes. Curityba 1871
7 LOURES, Franciscoco Ferreira da Rocha. Oficio endereçado ao Presidente da
Província do Paraná Henrique de Beaurepaire Rohan. Curityba : Typographia
Paranaense Candido Martins Lopes, 1856
8 NIMUEDAYÚ, Curt. “Apontamento sobre os Guarani” Curt Nimuedayú, , tradução e notas
de Egon Schaden. Revista do Museu Paulista. volume VIII (nova série). São Paulo 1995
9 NUÑEZ Cabeza de Vaca, Don Alvar Nuñez. Comentários. Curitiba : Coleção Farol do
Saber, Prefeitura Municipal de Curitiba 1995
46
7 . REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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de São Pedro de Alcântara, Paraná 1855-1895. Tese de Doutoramento em
Antropologia , USP, 1998
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CUNHA CARNEIRO, Manoela (org. ) História dos Índios no Brasil. São Paulo
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__________, John Manuel Os Guarani e a história do Brasil Meridional:
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