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1 SIMPÓSIO 31: CIÊNCIA, TECNOLOGIA E HISTÓRIA ECONÔMICA Problemas de Periodização de uma História Econômica da Ciência e da Tecnologia Tamás Szmrecsányi (Universidade Estadual de Campinas) dpct@ ige.unicamp.br No âmbito das ciências humanas e sociais, todo trabalho acadêmico acaba vinculando-se a determinados espaços territoriais e a uma ou algumas poucas épocas individuais. Estas são as coordenadas que delimitam o alcance das descobertas e a validade das generalizações que as mesmas podem almejar. No campo específico dos estudos históricos é a periodização que assume uma importância particular, devido ao fato do tempo constituir um elemento essencial da própria definição de seus objetos de estudo -- quais sejam as mudanças de conjunturas, estruturas e instituições (econômicas, políticas, sociais e culturais) através do tempo. Mudanças essas que envolvem não apenas os vários agentes socioeconômicos e suas respectivas atividades, mas também os diversos processos que deles se originam. Estas características obviamente também se aplicam à historiografia econômica da ciência e da tecnologia (ambas entendidas como conjuntos de conhecimentos), a qual, junto com o estudo histórico das políticas que presidem a formulação e reformulação delas através do tempo, diz respeito á evolução das relações entre elas de um lado, e delas com as conjunturas, estruturas e instituições socioeconômicas do outro. Trata-se, portanto, da análise das mudanças ocorridas no relacionamento entre duas modalidades de produção e reprodução econômica e social: a produção e reprodução dos conhecimentos científicos e tecnológicos, e a produção e reprodução dos sistemas socio- econômicos nos quais eles se inserem, ambas abrangendo pessoas, grupos, atividades e organizações constantemente interagindo entre si.

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SIMPÓSIO 31: CIÊNCIA, TECNOLOGIA E HISTÓRIA ECONÔMICA

Problemas de Periodização de uma História Econômicada Ciência e da Tecnologia

Tamás Szmrecsányi(Universidade Estadual de Campinas)

dpct@ ige.unicamp.br

No âmbito das ciências humanas e sociais, todo trabalho acadêmico acaba vinculando-se a determinados espaços territoriais e a uma ou algumas poucas épocas individuais. Estas são as coordenadas que delimitam o alcance das descobertas e a validade das generalizações que as mesmas podem almejar. No campo específico dos estudos históricos é a periodização que assume uma importância particular, devido ao fato do tempo constituir um elemento essencial da própria definição de seus objetos de estudo -- quais sejam as mudanças de conjunturas, estruturas e instituições (econômicas, políticas, sociais e culturais) através do tempo. Mudanças essas que envolvem não apenas os vários agentes socioeconômicos e suas respectivas atividades, mas também os diversos processos que deles se originam.

Estas características obviamente também se aplicam à historiografia econômica da ciência e da tecnologia (ambas entendidas como conjuntos de conhecimentos), a qual, junto com o estudo histórico das políticas que presidem a formulação e reformulação delas através do tempo, diz respeito á evolução das relações entre elas de um lado, e delas com as conjunturas, estruturas e instituições socioeconômicas do outro. Trata-se, portanto, da análise das mudanças ocorridas no relacionamento entre duas modalidades de produção e reprodução econômica e social: a produção e reprodução dos conhecimentos científicos e tecnológicos, e a produção e reprodução dos sistemas socio-econômicos nos quais eles se inserem, ambas abrangendo pessoas, grupos, atividades e organizações constantemente interagindo entre si.

Do ponto de vista da historiografia convencional da ciência e da tecnologia, as análises histórico-econômicas das mesmas configuram uma perspectiva essencialmente externalista, devido à prioridade que elas conferem e às constantes referências que fazem ao contexto em que se dá a evolução dos conhecimentos científicos e tecnológicos. Na prática, todavia, essa orientação, além de não esgotar as análises em questão, não se contrapõe necessariamente às chamadas visões internalistas da referida historiografia, que se dedicam a examinar prioritariamente nessa evolução as mudanças intelectuais ocorridas na produção e no conteúdo dos conhecimentos em questão. As análises que nelas se baseiam não deixam de ser válidas e respeitáveis em si, além de se mostrarem úteis na indicação das determinações e especificidades não-econômicas ou extra-econômicas das pesquisas científicas e tecnológicas, as quais nunca se reduzem a simples mecanismos geradores de novos conhecimentos aplicáveis à produção de bens e serviços.

Ao mesmo tempo, contudo, é preciso convir que essas análises específicas e especializadas, pelo fato de se limitarem via de regra ao mundo das teorias e das técnicas da ciência e da tecnologia, nem sempre conseguem captar e caracterizar em toda sua plenitude as origens, o desenvolvimento e os efeitos da evolução de ambas. Assim, sem deixar de lado as visões internalistas, mas apenas procurando transcendê-

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las, a historiografia econômica da ciência e da tecnologia pode vir a prestar uma importante contribuição à elucidação dessas questões, seja mediante a incorporação de variáveis contextuais à análise da evolução dos conhecimentos científicos e tecnológicos, seja pela vinculação dessa evolução ao exame de mudanças ocorridas em outras esferas da vida econômica e social, seja principalmente ao procurar inserir os referidos conhecimentos na totalidade do desenvolvimento histórico

Em outras palavras, e procurando fazer uma síntese do que foi dito até aqui, a historiografia econômica da ciência e da tecnologia propõe-se a não perder de vista as interações que mutuamente relacionam entre si o progresso científico, o progresso técnico, e o progresso (ou melhor, o desenvolvimento) econômico. A questão de como conseguí-lo foi devidamente equacionada há quase quarenta anos numa breve mas importante comunicação de Bertrand Gille no Quarto Congresso Internacional de História Econômica.1 Mas nela ficou em aberto o problema da época desde a qual podemos começar a pôr em prática os procedimentos aí recomendados – isto é, a partir de quando e de que circunstâncias torna-se possível conceber a elaboração de uma história econômica da ciência e da tecnologia, não do mundo como um todo ou de qualquer uma de suas partes, mas, pelo menos, no que se refere aos países mais ricos e mais desenvolvidos da atualidade, dotados de amplas bases de dados e já detentores de uma ampla e diversificada produção historiográfica.

Trata-se de um problema menos complexo em relação á tecnologia do que no tocante à ciência, já que as técnicas sempre constituíram uma parte integrante dos processos produtivos, consubstanciando relações mais ou menos diretas entre o progresso técnico (suscitado e condicionado pelo desenvolvimento tecnológico) e o progresso ou desenvolvimento econômico a nível micro e macro. Isto quer dizer que, pensando apenas numa historia econômica da tecnologia, podemos dar início a ela em qualquer país e período que sejam de nosso interesse sem ter que procurar maiores justificativas e explicações do que as inerentes ao nosso eventual objeto de estudo. Mas, no que se refere às relações entre a ciência e o desenvolvimento econômico logo surge o problema de que, além de serem historicamente mais recentes, essas relações raramente são diretas, tendendo geralmente a ser mediadas pela tecnologia, induzindo assim a necessidade suplementar de se estudar o relacionamento desta com a ciência.

Em termos históricos, sabe-se hoje em dia que a tecnologia só chegou a adquirir um caráter mais científico a partir da Segunda Revolução Industrial, cujo desenvolvimento nos países economicamente mais avançados da atualidade estendeu-se de meados do século XIX até o final da década de 1950 (podendo-se, assim, situar o início da Terceira, ainda em curso, na época da Segunda Guerra Mundial). Ocorre, porém, que a reestruturação produtiva determinada pela Segunda Revolução Industrial somente se torna plenamente inteligível quando posta em confronto com as causas, o desenrolar e os desdobramentos da Primeira Revolução Industrial que a precedeu, iniciada na Grã-Bretanha em meados do século XVIII e completada nos países então mais desenvolvidos durante as primeiras décadas do século seguinte. Pelas razões apresentadas no parágrafo anterior deste texto, não há maiores dificuldades em fazer recuar para aquele período o início de um eventual estudo das relações entre o progresso técnico e o desenvolvimento econômico. O problema está em saber se podemos fazer o mesmo com as relações entre o progresso científico e o desenvolvimento tecnológico, e as de ambos com o desenvolvimento econômico.

O equacionamento desse problema tem dado origem até o momento a duas

1 GILLE, Bertrand (1975) "Progrès Scientifique, Progrès Technique et Progrès Economique", Fourth International Congress of Economic History, Bloomington 1968. Paris: Mouton, pp. 209-22.

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classes de discussões: uma mais antiga e mais conhecida, entre os que defendem e os que negam a existência de vínculos mais ou menos diretos entre a Primeira Revolução Industrial e a Revolução Científica dos séculos XVI e XVII; e outra, mais recente e ainda menos divulgada, relativa ao início da formação histórica das ciências modernas –isto é, das disciplinas científicas atualmente cultivadas e desenvolvidas no mundo. Deixando de lado a primeira dessas classes, cujos termos já se acham consolidados numa ampla e diversificada bibliografia2, concentrar-nos-emos na segunda, mais diretamente vinculada a este nosso problema de periodização, o qual envolve não apenas uma explicitação mas também a justificativa dos critérios a serem adotados na análise.

Nosso interesse por essa última vertente foi em parte suscitado pelo teor polemizante e pelo tom provocativo de dois artigos de Andrew Cunningham apontando para a especificidade e o caráter eminentemente atual das ciências modernas, que, segundo ele, não apenas diferem das que eram praticadas até meados do século XVIII, como tampouco podem automática e diretamente ser vinculadas a estas.

O primeiro destes artigos, publicado há quase vinte anos3, chama a atenção para o fato de que, em épocas pretéritas de um passado mais remoto, os conhecimentos científicos não tinham a mesma função, significado e relevância de hoje em dia, e frequentemente se confundiam com reflexões e proposições de natureza filosófica e religiosa. Vendo na produção e reprodução desses conhecimentos uma atividade humana e deliberada praticada por pessoas específicas -- os cientistas do passado e os de hoje -- Cunningham mostra que os conceitos atuais de ciência e de cientista simplesmente inexistiam naquelas épocas, motivo pelo qual não se pode fazer retroceder a historiografia das ciências atuais até elas. A reconstrução histórica dos eventos, fenômenos e processos de qualquer época deve levar em conta a realidade vigente na mesma, e não partir das nossas concepções atuais dos mesmos eventos, fenômenos e processos. Dentro dessa perspectiva, as ciências de nosso tempo não podem ser simplesmente equiparadas à filosofia natural ou à filosofia tout court do passado; deve-se respeitar o sentido histórico tanto do conteúdo como dos títulos das obras de um Boyle e de um Newton, assim como o significado na época dos termos estatutários da Royal Society de Londres, cujo periódico, não por acaso, tinha o título de Philosophical Transactions...

A palavra "ciência" (scientia em Latim, e science em francês e inglês) já existia naquela época, mas tinha um significado equivalente ao termo grego episteme, referindo-se aos conhecimentos em geral, e não a conhecimentos de caráter científico, não tendo portanto o mesmo significado que hoje em dia. Até o final do século XVIII, costumava-se incluir entre as ciências disciplinas como a lógica, a gramática, a ética e a

2 Pode-se mencionar, de um lado, as posições defendidas pelos livros de A. E. Musson & E. Robinson, Science and Technology in the Industrial Revolution (Manchester University Press, 1969) e de M.C. Jacob. Scientific Culture and the Making of the Industrial West (Oxford University Press, 1997), e do outro, as críticas expressas a eles por A.R. Hall, "What did the Industrial Revolution in Britain owe to Science?", in Neil McKendrick (Ed.) Historical Perspectives; Studies in English Thought and Society in Honour of J. H. Plumb (London; Europa Publishers, 1974) pp.129-51; e, mais recentemente, por Ulrich Wengenroth, "Science, Technology and Industry", in David Cahan (Ed.) From Natural Philosophy to the Sciences; Writing the History of Nineteeath-Century Science (University of Chicago Press, 2003), pp. 221-53.3 CUNNINGHAM, Andrew (1988) "Getting the Game Right: some plain words on the identity and invention of science", Studies in History and Philosophy of Science 19(3), pp.365-89.

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teologia4. Não se pode duvidar de que houve, entre a filosofia natural daquele século (e dos anteriores) e as ciências de nosso tempo uma evolução tanto quantitativa como qualitativa, cujos principais aspectos e efeitos são facilmente perceptíveis. A questão está em saber como e quando se deu a transição de uma realidade para a outra. No final desse artigo, Cunningham situou a "invenção" das ciências modernas num período entre 1780 e 1850, relacionando-a de modo difuso às grandes mudanças políticas e sociais, econômicas e intelectuais que ocorreram naqueles anos, traçando um paralelo entre a produção especializada de novos conhecimentos nos laboratórios da época, e a produção de todo tipo de mercadorias pelas fábricas então recém-instituídas.

Os mesmos temas foram retomados por Cunningham cinco anos mais tarde num artigo em coautoria,5 em que passou a situar a referida "invenção" entre os anos de 1760 e 1848, tomando como referencial empírico e teórico o período revolucionário abrangido pelo primeiro volume da conhecida série de livros da autoria de Eric Hobsbawm.6 Lembrando que atualmente os historiadores das ciências estão deixando de acreditar na existência de um único método científico fazendo convergir todas as disciplinas para os princípios e evidências da física, bem como na equiparação da busca de novos conhecimentos à liberdade de pensamento e à prosperidade material, e na presença dessa atividade e destes atributos em todos os tempos e lugares, o artigo se volta para a discussão específica não apenas da delimitação precisa da época em que se deu o surgimento das ciências modernas, mas também da identificação dos mecanismos e das origens que presidiram a formação das mesmas.

O artigo nega taxativamente que isso tenha ocorrido na época e em função da Revolução Cientifica dos séculos XVI e XVII, assinalando que a historiografia tradicional sobre esse tema sempre esteve preponderantemente centrada no presente, em vez de procurar focalizar os períodos em questão a partir e através dos seus próprios valores característicos.7 Como lembram seus autores, foi somente a partir do início do século XIX que o termo "ciências" passou a ser universalmente utilizado no seu presente sentido, para designar os conhecimentos e as atividades que atualmente vinculamos a ele. Esses conhecimentos e atividades eram tão novos como a palavra que passou a designá-los; não se tratava portanto de atividades preexistentes sob outra denominação, como se poderia inferir através do surgimento e da difusão naquela mesma época da palavra "cientista" (scientist) na língua inglesa (palavra que não tem equivalentes em francês ou em espanhol).8 Também datam daquela época neologismos

4 Sobre a evolução semântica da palavra science em inglês, veja-se as considerações de Raymond Williams em Keywords: a Vocabulary of Culture and Society (Oxford University Press,1983), pp. 276-80. A primeira edição deste livro, agora traduzido para o português, data de 1976.5 CUNIHGHAM A. & WILLIAMS P. (1993) “De-centering the Big Picture: the Origins of Modern Science and the Modern Origins of Science", British Journal for the History of Science, 26, Dezembro, pp. 407-32.6 The Age of Revolution 1760-1848. Publicado pela primeira vez em 1962, este livro foi traduzido para várias línguas, inclusive o português. Cunningham & Williams destacam a ocorrência no período de três revoluções; a econômica da Primeira Revolução Industrial, a política representada pelas revoluções americana e francesa e os desdobramentos de ambas, e a intelectual iniciada pelo Kantismo no final do século XVIII.7 Essa crítica era particularmente dirigida a tradicionais obras de síntese como as de Herbert Butterfield, The Origins of Modern Science 1300-1800 (London:Bell,1949), e de A.R. Hall, The Revolution in Science 1500-1750 (London;Longman's,1983), cuja primeira edição, publicada em 1954, tinha o titulo de The Scientific Revolution 1500-1800; the transformation of modern scientific attitude. 8 Veja-se a respeito ROSS Sydney (1962) "Scientist: the story of a word". Annals of Science 18(2), junho, pp. 65-85; artigo publicado em abril de 1964. Segundo o Autor, a criação dessa palavra refletiu a passagem das atividades científicas de um âmbito genérico de amadores para o mundo especializado de

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como "biologia" e "biólogo", "geologia" e "geólogo", e até os termos de "física" e "físico" (physics e physicist em inglês) ao mesmo tempo que novos significados passaram a ser atribuídos ações tradicionais como "astrônomo", "matemático" e "químico".9

Antes do advento das ciências atuais, o que havia, segundo Cunningham e Williams, eram conhecimentos e atividades de história natural, de matemática aplicada (mixed mathematics) e principalmente de filosofia natural. O significado atribuído naquela época a esses termos pelas pessoas que os utilizavam não tem sido devidamente investigado, chegando até às vezes a ser grosseiramente falsificado, como no caso de uma tradução para o inglês do titulo da famosa obra de 1687 de Isaac Newton como "Princípios Matemáticos da Ciência Natural" (Mathematical Principles of Natuaral Science) sendo que o original (em latim) se intitulava Philosophiae Naturalis Principia Mathematica.

A completa matematização da física Newtoniana realmente chegou a ocorrer, mas só no início do século XIX através do Tratado de Mecânica Celeste de Pierre Laplace. Nos próprios Princípios, conforme assinala Cunningham em outro trabalho, encontrava-se explicitada a crença de que os estudo da filosofia natural constitui um baluarte contra o avanço do ateísmo.10 Embora já estivesse formalmente separada da teologia, a filosofia natural da época de Newton, assim como na primeira metade do século XVIII sempre se manteve atrelada a explicações da origem do mundo e das causas últimas da ocorrência de seus fenômenos.

Por causa de tais motivos, não se pode deixar de atribuir a devida importância ao sentido das mudanças de nomenclatura, assim como aos momentos a partir dos quais elas se fazem presentes e começam a se difundir e intensificar. Tais mudanças passaram a ocorrer de forma crescente no início do século XIX, principalmente na França e na Alemanha (então ainda não unificada). Elas coincidiram no tempo e no espaço com a progressiva profissionalização e secularização da pesquisa científica e tecnológica, que teve por cenários iniciais as universidades e outros centros de ensino superior, as academias de ciências que passaram a surgir em toda parte, e até algumas repartições governamentais vinculadas às forças armadas, à exploração de recursos minerais, e ao aperfeiçoamento e ampliação da infraestrutura de transportes e comunicações.

Em têrmos socioeconômicos, qualquer processo de profissionalização requer a prévia existência ou simultânea formação de um mercado --isto é, de uma demanda e oferta de bens e serviços, bem como de pessoas ou organizações capazes de custeá-los e de adquiri-los. Trata-se no caso em pauta tanto da demanda e oferta de determinados conhecimentos como da existência de recursos humanos e materiais necessários para a geração e utilização dos mesmos. Conforme acaba de ser assinalado, essa demanda e oferta foram sendo primordial e principalmente proporcionados pelo desenvolvimento dos Estados nacionais no século XVIII, e também de forma crescente pelas nascentes empresas industriais do setor privado. E foi este o âmbito no qual se estabeleceram e consolidaram as relações entre o progresso científico, o progresso técnico (suscitado e condicionado pelo desenvolvimento tecnológico) e o progresso (ou desenvolvimento) tanto macro como microeconômico. Cabe agora tentar precisar melhor como isto se deu.

Apesar de haver situado tais mudanças quase exclusivamente no século XIX, e profissionais.9 CAHAN David (2003) "Looking at Nineteenth Century Science; an Introduction", in From Natural Philosophy to the Sciences; Writing the History of Nineteenth-century Science University of Chicago Press, p.4.10 CUNNINGHAM Andrew (1991) "How the Principia got its Name; or taking natural philosophy seriously", History of Science, vol. 29, pp. 377-92.

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de repetidamente enfatizar o conservantismo das universidades, Everett Mendelsohn, num artigo pioneiro de meados da década de 1960, apontou para o lento desaparecimento, durante o século anterior, dos chamados filósofos naturais e para a progressiva substituição deles por estudiosos voltados para temas cada vez mais limitados.11 Isto, segundo ele, era fundamentalmente devido à crescente expansão e complexificação dos conhecimentos disponíveis, uma evolução que fazia com que a formulação de teorias relevantes e a realização de experimentos significativos estivessem cada vez mais apenas ao alcance de especialistas trabalhando em tempo integral e sendo devidamente remunerados para tanto. A era do diletantismo e do enciclopedismo estava ficando para trás, dando lugar ao domínio da especialização. Com o passar do tempo, tanto as organizações setoriais como as entidades regionais e nacionais tiveram que se adaptar a essa nova situação.

É interessante registrar uma observações do mesmo gênero já haviam sido feitas em 1776 por Adam Smith no capitulo de abertura de A Riqueza das Rações, em que assinalava, usando os termos da época, que

"Nem todos os aperfeiçoamentos da maquinaria foram contudo devidas àqueles que tiveram a ocasião de utilizar as máquinas. Muitas melhorias foram introduzidas pelo engenho de seus produtores, a partir do momento em que a elaboração das mesmas tornou-se o negócio de um ramo específico; e algumas foram devidas aos chamados filósofos, ou homens dedicados à reflexão, cujas atividades não consistem em fazer algo, mas antes em tudo observar; e os quais, por este mister, mostram-se capazes de combinar as forças dos objetos mais distantes e mais diversos. No progresso da sociedade, a filosofia ou reflexão acaba se tornando, como qualquer outro emprego, a primeira ou única atividade e ocupação de uma classe especial de cidadãos. Também como qualquer outro emprego, ela se subdivide num grande número de ramos diversos, cada um dos quais possibilita o emprego de uma tribo ou classe peculiar de filósofos; e essa subdivisão do emprego na filosofia, assim como a de qualquer outro negócio, melhora a destreza e poupa tempo. Cada indivíduo se torna mais especializado no seu ramo peculiar, mais trabalho passa a ser feito no conjunto, e a quantidade de conhecimentos é consideravelmente ampliada por ele."12

Esta longa citação das considerações de Adam Smith, extraída do seu famoso capitulo sobre a divisão do trabalho, ratifica o registro feito por Mendelsohn da crescente fragmentação da filosofia natural e da progressiva especialização e profissionalização de seus praticantes, além de deixar entrever, já na segunda metade do século XVIII, a presença de relações entre a tecnologia e a(s) ciência(s). Relações essas que podem ter estado mais presentes na Grã-Bretanha do que alhures, devido a ocorrência naquele país do início da Primeira Revolução Industrial.

Uma outra parte do trabalho de Mendelsohn refere-se justamente a esse dinamismo da tecnologia britânica, em contraste com o lento, descontínuo e assistemático progresso científico daquele país face ao que estava ocorrendo na mesma época no continente europeu, notadamente na França e na Alemanha. Durante o último quartel do século XVIII, houve na Grã-Bretanha uma transferência do centro das

11 MENDELSOHN Everett (1964) "The Emergence of Science as a Profession in Nineteenth-Century Europe", in Karl Hill (Ed.) The Management of Scientists Boston; Beacon Press, pp. 3-48.

12 SMITH Adam (1776) An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations, livro I, capitulo l, 10° parágrafo. Tradução própria de trecho extraído de uma edição norte-americana (New York; Modern Library, 1937), pág. 10.

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atividades e organizações dos cientistas de Londres para as cidades industriais das Midlands, com o estabelecimento de academias e sociedades científicas em lugares como Leeds, Birmingham, Bristol, Newcastle e Manchester, fortalecendo as relações da ciência com a tecnologia, e dando origem ao tom utilitário e produtivista dos discursos científicos do início do século seguinte.

Essas tendências já haviam sido detectadas e examinadas anteriormente com maior profundidade por Roberb Schofield em relação à Lunar Society de Birmingham13, e por A. E. Musson & E. Robinson no que se refere à Sociedade Literária e Filosófica de Manchester.14

O núcleo da primeira fora estabelecido por volta de 1760 através do encontro e da amizade entre Matthew Boulton (1728-1809), um industrial que mais tarde iria associar-se a James Watt para a produção em série de máquinas a vapor, e o médico e filósofo natural Erasmus Darwin (1751-1802), avô do naturalista Charles Darwin. De acordo com o relato de Schofield, essa sociedade de Birmingham, que teve entre seus membros mais ativos o químico e pastor protestante Joseph Priestley (1753-1804) e o empresário ceramista Josiah Wedgwood (1750-1795), constituía acima de tudo um grupo de amigos vivendo próximos uns dos outros, encontrando-se quase diariamente ou trocando cartas pelo menos uma vez por semana, e cujas reuniões mensais tiveram uma importância menor do que as atividades conjuntas que eles desenvolveram. Atividades que, segundo o mesmo autor, permitiriam classificá-la como uma entidade tecnológica informal, e pelas quais se pode perceber que não eram as ciências que estavam então norteando o desenvolvimento industrial, mas os problemas deste induzindo e orientando os interesses e as pesquisas dos cientistas.

Por seu lado, a Manchester Literary and Philosophical Society foi formalmente criada em 1781 por diversos empresários daquela cidade industrial e teve entre seus membros o químico e físico John Dalton (1766-1844). Da discussão dos problemas técnicos da época, principalmente os relacionados a indústria têxtil, essa entidade logo passou a oferecer cursos de extensão em áreas de interesse empresarial, como o branqueamento e a coloração de tecidos. Vários de seus associados também se dedicaram à tradução de obras estrangeiras, não apenas sobre os mesmos temas, mas também de caráter teórico mais geral, além de verterem para o francês e o alemão os anais (Memoirs) da Sociedade. Essas atividades deram origem a numerosas publicações técnicas, e contribuiram para enriquecer o acervo da biblioteca pública da cidade, a mais antiga da Inglaterra.

As relações entre as ciências e a indústria na França durante o mesmo período não tiveram o mesmo caráter e foram avaliadas de maneira bastante crítica num artigo publicado há meio século por Charles Gillespie.15 Em termos da história econômica de ramos como a indústria têxtil, não era muito difícil, segundo este autor, constatar de um lado o grande atraso francês em relação a Grã-Bretanha, e do outro que a produção mantinha, quando muito, relações apenas indiretas com a ciência da época. Como estudioso da história da invenção do processo Leblanc de fabricação de soda cáustica, ele mostrou que esse invento não resultou de alguma inspiração teórica original e bem fundamentada, mas da concepção de uma analogia falaciosa dos procedimentos inerentes àquele processo com os da fundição do minério de ferro; e que,

13 SCHOFIELD R.E. (1957) "The Industrial Orientation of Science in the Lunar Society of Birmingham", Isis 48(4.) n°154, Dezembro, pp.408-15.14 MUSSON A. E. & ROBINSON E. (1960) "Science and Industry in the Late Eighteenth-Century", Economic History Review, 13(2) Dez. pp. 222-44.15 GILLESPIE C.C.(1957) "The Natural History of Industry", Isis, 48(4) n° 154, Dez., pp. 398-407.

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posteriormente, nem o seu inventor nem outros produtores da época que usaram o processo chegaram a fazer quaisquer tentativas de elucidar as reações químicas nele envolvidas. O próprio Nicolas Leblanc (1742-1806), que era químico, só se interessou em garantir a sua patente e na obtenção de um subsidio governamental para a fabricação do seu produto.

Face a esses episódios, Gillespie recomendava em seu artigo não apenas um uso cauteloso dos relatos históricos oficiais produzidos naquela época e em anos posteriores, mas também sempre ter em mente as diferenças que existem entre a exploração de conhecimento científicos disponíveis por inventores, artífices ou industriais, e a aplicação consciente destes mesmos conhecimentos ao equacionamento de problemas concretos do processo produtivo. E lembrava também que, inclusive nesta segunda modalidade, só raras vezes chegam a ser utilizados os conhecimentos mais avançados de cada época. Obtidos através de pesquisas científicas ou tecnológicas, esses conhecimentos podem manter-se por longo tempo a margem dos processos produtivos correntes.

É interessante observar que, em escritos posteriores, esse mesmo autor não poupou elogios às realizações da ciência francesa16, assinalando que, no período entre as revoluções de 1789 e 1830, a comunidade científica e tecnológica daquele país definitivamente deixara para trás as posturas genéricas da filosofia natural da Ilustração do século XVIII, assumindo de vez os princípios e categorias das ciências modernas em gestação nas primeiras décadas do século XIX. Este salto para a modernidade não se deu sem abalos institucionais e sem afetar, às vezes tragicamente, o destino das pessoas envolvidas.17 Mas o resultado final dessas mudanças dificilmente poderia ter sido mais positivo em todos os domínios, quer em termos das inovações geradas (como a do sistema decimal de pesos e medidas), quer no que se refere à formação de grandes quantidades de cientistas e engenheiros de alto nível, todos destinados mais a postos governamentais do que ao setor privado da economia. Estes avanços foram promovidos e acompanhados pelo desenvolvimento do ensino superior francês, cujos estabelecimentos passaram a atrair numerosos estudantes estrangeiros e serviram de modelo para iniciativas semelhantes em outros países. Por meio dos tratados e de outras publicações de seus docentes, pode-se perceber que foi na França daquela época que, pela primeira vez, muitos dos melhores e mais ativos cientistas e tecnólogos puderam tornar-se professores universitários, incorporando-se por essa via às elites culturais e profissionais daquele país.

Isto tudo não impediu, porém, que, após o referido período, ela viesse a perder a sua liderança científica para a Alemanha, deixando ao mesmo tempo de conseguir melhorar a sua posição tecnológica face às potências rivais. Mas estes são temas que só indiretamente chegam a ser do nosso interesse aqui. Mais importantes para nossos fins específicos são as constatações de Gillespie com respeito à evolução secular das ciências e da tecnologia. Esta continuou sob domínio britânico no período em pauta, tendo no desenvolvimento da máquina a vapor o seu carro-chefe. Tratava-se de um desenvolvimento que já havia sido iniciado nas décadas anteriores, que foram também 16 GILLESPIE C.C. (1957) "Science and Technology", in C.W. Rawley (Ed.), War and Peace in an Age of Upheaval, l783-1830, vol. IX da Cambridge Modern History Cambridge University Press, pp. 118-45; GILLESPIE C.C. (1983) "The Flourishing of French Science" segunda parte de sua conferência The Profissionalization of Science: France, 1770-1830 compared to the United States, 1910-1970 (Kyoto: Doshisha Press) pp. 21-40.17 No seu segundo trabalho, mencionado acima na nota anterior, Gillespie adotou como marcos cronológicos os últimos anos de vida de D'Alembert (1717-1783) e a morte de Laplace em 1827, chamando a atenção para o advento do positivismo de Augusto Comte.

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um período de significativos inventos mecânicos no setor industrial.18 As ciências, por sua vez, foram, no conjunto, ampliando progressivamente seu alcance e suas perspectivas, ao mesmo tempo que individualmente foram restringindo seus escopos e aprofundando suas abordagens.

O aumento do número de disciplinas e do grau de especialização de cada uma foram sendo gradativamente acompanhado pela crescente matematização de muitos de seus conteúdos, pela transformação dos laboratórios em salas de aula das ciências experimentais, pelo estabelecimento de anfiteatros de demonstração em certos ramos do ensino superior (particularmente, mas não apenas, no de medicina) e pela incorporação dos seminários de discussão entre os procedimentos didáticos adotados pelas universidades e outros estabelecimentos de ensino de terceiro grau. Tratava-se de profundas mudanças, tanto quantitativas como qualitativas, que foram atingindo todas as disciplinas, uma depois da outra, dando origem em numerosos casos a outras novas, por meio de fusões e/ou desdobramentos das já existentes. Foram todas essas mudanças em conjunto que promoveram o desaparecimento da filosofia natural e, quase logo em seguida, também da historia natural, configurando segundo alguns a ocorrência de uma segunda revolução científica.

Ao final de seu ensaio de 1983, Gillespie apresentou três atributos que, segundo ele, definem a existência de uma profissão: I. O envolvimento de uma associação, mais do que de uma simples ocupação, pressupondo o domínio de uma área do conhecimento, assim como o prestígio associado a essa cognição; II. O estabelecimento de um vínculo econômico através da remuneração dos serviços prestados, os quais deixam da constituir assim uma simples condição estatutária de direito; III. Um grau de autogovernança e uma jurisdição sobre os requisitos educacionais, éticos e comportamentais do exercício profissional. Antes da Revolução Francesa, segundo o Autor, esses três atributos só podiam ser encontrados nas profissões clericais, jurídicas e médicas; as ciências emergentes e a filosofia natural que as precedeu só detinham, quando muito, o primeiro deles. As pessoas dedicadas a atividades cientificas e tecnológicas só começaram a adquirir definitivamente os demais atributos a partir do final do século XVIII, com a criação na França de novas instituições, como a Escola Politécnica de Paris em 1794, e a École Normale Supérieure no ano seguinte.

Embora fossem novas e inovadoras, essas instituições e outras semelhantes desenvolvidas mais tarde ou em outros países não surgiram do nada nem repentinamente. Nunca é demais lembrar que a institucionalização, ou formação de instituições, constitui sempre um processo, e nunca um simples evento isolado. Como todo processo histórico, ela tem raízes no passado e leva tempo para completar-se, além de sempre envolver pessoas e grupos capazes de conceber instituições, de formalizá-las e consolidá-las, bem como pessoas e grupos capazes de agir em sentido contrário, impedindo que isso ocorra, dificultando e retardando o processo. Tampouco essas pessoas costumam surgir do nada e repentinamente. Em outras palavras, para conhecer as origens e entender o significado de quaisquer instituições, precisamos, ainda mais do que em acontecimentos isolados, ou mesmo fenômenos, remontar no tempo, a fim de vislumbrar e reconstituir a trajetória inicial das mesmas. No caso em pauta, esse modo de proceder faz parte e constitui um importante aspecto do equacionamento de nosso

18 Veja-se a respeito McKIE D. (1965) "Science and Technology" in A. Goodwin (Ed.) The American and French Revolutions. 1763-1793, vol.VIII da Cambridge Moden History Cambridge University Press, pp. 115-42.

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problema de periodização relativo à formulação de uma historia econômica da ciência e da tecnologia dos países atualmente mais desenvolvidos, cujo estudo esteja voltado especificamente para a evolução das relações mutáveis no tempo entre o progresso científico, o progresso técnico e o desenvolvimento econômico dos referidos países.

Nas partes anteriores deste ensaio, vinculamos a gênese e formação dessas relações ao processo de profissionalização da pesquisa científica e tecnológica, o qual teve início, como já indicamos, em diversos contextos institucionais. Com vistas a completar o presente trabalho, vamos privilegiar o exame da evolução no século XVIII de dois desses contextos institucionais: as universidades, oriundas de séculos anteriores, e as escolas de engenharia, cujas primeiras foram criadas precisamente no século XVIII. Não por acaso, ambos se vinculam ao ensino de terceiro grau, responsável pela formação educacional das pessoas e dos grupos que desencadeiam ou dificultam os processos de institucionalização, e cujas mudanças refletem, direta ou indiretamente, com ou sem defasagens, a evolução dos conhecimentos científicos e tecnológicos disponíveis.

Nossa análise do contexto universitário no século XVIII baseia-se num recente trabalho de Laurence Brockliss sobre o ensino das ciências físicas e naturais nas universidades e faculdades (colleges) da Europa e das Américas.19 Vista em seu conjunto, a estrutura desse ensino não parece ter mudado muito durante aquele século. O número total de alunos atingidos por ele provavelmente se manteve inalterado. Apesar do crescimento demográfico em ambos lados do Atlântico, o sistema só chegou a expandir-se mais visivelmente nos países de língua inglesa: na América do Norte, a partir da fundação de Princeton em 1746, e de modo mais acentuado apôs a independência dos Estados Unidos em 1776; já na Inglaterra, devido ao impedimento do acesso de não-anglicanos as universidades de Oxford e de Cambridge, foram criadas várias academias paralelas ao e independentes do sistema oficial, as quais se mantiveram funcionando até o início do século XIX, quando as referidas restrições foram lentamente desaparecendo. No Continente Europeu, cumpre apenas mencionar o estabelecimento da Universidade de Göttingen em 1733, cujo impacto qualitativo será discutido mais adiante. Em termos gerais, esse nível de ensino continuou sendo reservado às novas gerações das elites e a estudantes do sexo masculino.

Tal como nos séculos anteriores, as universidades eram habitualmente compostas de quatro faculdades --as de artes, teologia, direito e medicina-- com os estudos relativos à natureza estando repartidos entre as primeiras e as últimas. Nas faculdades de artes, onde também se ministravam os cursos de matemática, eles faziam parte dos cursos de filosofia, integrada por suas quatro disciplinas tradicionais: a lógica, a ética, a física e a metafísica. A ordem de apresentação das três ultimas foi variando através do tempo, mas o ensino de lógica sempre se manteve em primeiro lugar, como porta de entrada ao estudo das demais.

Dentro da concepção aristotélica vigente desde a Idade Média, a física, ou ciência (isto é, os conhecimentos) relativa (ou relativos) aos corpos naturais, era uma disciplina analítico-dedutiva, da mesma forma que a ética e a metafísica. Durante o século XVIII, essas concepções milenares foram sendo lentamente suplantadas e substituídas primeiro pelo mecanicismo Cartesiano e, mais adiante, pela chamada filosofia natural de cunho matemático-experimental de origem Newtoniana. Por seu

19 BROCKLISS Laurence (2003) "Science, the Universities, and Other Public Spaces: Teaching Science in Europe and the Américas", in Roy Porter (Ed.) Eighteenth-Century Science, vol. 4 da Cambridge History of Science. Cambridge University Press, pp.44-86.

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lado, os conhecimentos mais diretos dos fenômenos da natureza eram proporcionados nas faculdades de medica na por aulas de disciplinas descritivo-classificatórias como a anatomia, a botânica e a química. Disciplinas essas que na época eram ainda pouco formalizadas e tinham um caráter subsidiário dentro do ensino médico, então como hoje centrado em estudos de cunho fisiológico, patológico e terapêutico.

A organização curricular e programática dessas diversas disciplinas também se manteve praticamente inalterada ao longo do tempo. Os estudantes continuavam tendo que preparar-se para seu aprendizado universitário através de estudos de latim e de grego. Nas faculdades de artes, o ensino da física mantinha-se atrelado ao das disciplinas filosóficas, e muitas vezes todas elas eram ministradas pelos mesmos professores. Essa ausência de mudanças no ensino, em contraste com a pletora de novos conhecimentos surgidos a partir da Revolução Científica dos séculos XVI e XVII, refletia em boa parte a visão conservadora das elites mantenedoras das universidades, vinculadas aos governos e/ou ao clero das religiões preponderantes. Na visão dessas autoridades, o ensino universitário tinha por função e objetivos básicos a formação de profissionais para a Igreja, para o poder judiciário e outras áreas da administração pública, e para cuidar da saúde pelo menos das próprias elites. Tudo isto, segundo elas, poderia continuar sendo devidamente alcançado através de uma sólida formação clássica, um conhecimento genérico dos vários ramos da filosofia, e períodos variáveis de treinamento profissional no exercício dos próprios ofícios, sem qualquer necessidade de ampliar ou aprofundar os conhecimentos físico-naturais já disponíveis.

Contudo, diversamente do que vinha ocorrendo até então, esses pontos de vista já não eram universalmente aceitos dentro das universidades. Com o passar do tempo, começaram a ser formuladas e adotadas propostas alternativas, baseadas nos novos conhecimentos propiciados pelas descobertas científicas de épocas anteriores e do próprio século XVIII, visando modificar o escopo e a duração dos estudos de matemática e de filosofia natural na s faculdades de artes. Em meados daquele século, a liderança desse movimento foi assumida pêlos Enciclopedistas franceses, e, por volta de 1790, os seus ecos já se faziam ouvir por toda a Europa, embora seus efeitos mais concretos somente iriam tornar-se mais visíveis no início do século XIX, a partir do momento em que, na França, foram sucessivamente suprimidas as universidades tradicionais e criadas no lugar delas novas instituições de ensino de terceiro grau.

Estes acontecimentos, como se sabe, influenciaram o desencadeamento e a ocorrência de eventos, fenômenos e processos similares ou correlatos em outros países. Mas, as condições para as mudanças inerentes a todos eles já haviam sido iniciadas antes por pessoas e grupos imbuídos de propósitos que se foram constituindo e manifestando através do tempo.

Até o início do século XVIII, a teologia era considerada a "rainha das ciências" --ou seja, a principal modalidade de conhecimento possível, motivo pelo qual as faculdades de teologia se mantinham como as mais importantes em todas as universidades, mesmo quando o número de seus alunos fosse menor que os das faculdades de direito e de artes. Naquela época, os estudantes de medicina eram ainda pouco numerosos, fazendo com que as questões atinentes aos seres vivos e à natureza fossem relativamente pouco discutidas. Nas faculdades de artes, os estudos de filosofia tinham uma função essencialmente propedêutica, visando preparar os alunos para o aprendizado teológico, inclusive porque os estudos jurídicos nem sempre tinham como requisito uma prévia e completa formação em artes. Dentro desse contexto, as disciplinas filosóficas, inclusive a física, só poderiam convergir para a teologia, em nada comprometendo os princípios da ortodoxia religiosa, mas antes contribuindo para

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fornecer-lhe conceitos e instrumentos lógicos para o realce de suas verdades reveladas, assim como elementos extra-bíblicos para melhor compreensão das obras divinas do universo.

Contudo, naquela mesma época, essas relações entre a teologia e a filosofia passaram a ser contestadas, particularmente nos Estados protestantes do norte da Alemanha, numa tendência que teve como prenuncio a criação da universidade de Halle em 1693, e que foi completada quarenta anos mais tarde pela já citada fundação da universidade de Göttingen, a primeira de caráter multiconfessional na Europa. Esta nova universidade, como seria de se esperar, não tardou a atrair para seus quadros alguns dos principais expoentes da matemática, da medicina e da filosofia natural daquele tempo, também se transformando ipso facto na primeira universidade de pesquisas da historia.

O exemplo dela não tardou a ser imitado por outras universidades alemãs da mesma região, como as de Helmstedt e de Leipzig, que, na segunda metade do século XVIII, criaram um curso de análise matemática junto com o primeiro periódico cientifico exclusivamente dedicado a essa disciplina. E, no final daquele século, tanto a filosofia natural como determinadas ciências naturais já haviam ampliado consideravelmente seus espaços de atuação no sistema universitário então existente. Tanto assim que, em 1798, na universidade prussiana de Königsberg, o filósofo Immanuel Kant (1724-1804), inclusive por ter ministrado muitas aulas de física, divulgou um trabalho intitulado Streit der Fakultäten (Disputa das Faculdades), no qual propunha o estabelecimento de faculdades de filosofia, e não mais de artes, independentes das demais, assim como da tutela de autoridades eclesiásticas ou governamentais, uma idéia que seria posta em prática dez anos mais tarde por seu discípulo Wilhelm von Humboldt (1767-1855) na fundação da universidade de Berlim.

Embora fossem menos evidentes do que na Alemanha, mudanças semelhantes também ocorreram em outras partes da Europa durante o século XVIII, particularmente no que se refere ao ensino da física, o qual, acompanhando a progressiva emergência da própria disciplina, assim como o apoio que esta começou a receber dos governos através do crescente número de academias de ciências oficiais, foi gradativamente deixando de se preocupar com as causas e efeitos de princípios fundamentais de caráter apriorístico, para dedicar-se cada vez mais a promover e difundir análises explicativas dos fenômenos e das leis da natureza. Isto se deu tanto através do uso instrumental de categorias da matemática, como, principalmente, por meio de procedimentos experimentais. Em vários países católicos, essa nova orientação chegou a ser introduzida pêlos governos apôs a expulsão dos Jesuítas, um processo iniciado em 1758 por Pombal em Portugal.

Na França, durante a segunda metade do século XVIII, os cursos de filosofia natural foram substituídos por cursos de física matemática, e isto se deu em todas as faculdades de artes daquele país, fazendo com que essa disciplina essencialmente quantitativa e cada vez mais técnica e especializada fosse cursada anualmente por alguns milhares de estudantes. Foi dessa maneira e nesse contexto que o jovem Pierre Simon de Laplace (1749-1827) tomou contato com as idéias de Newton no final dos anos 1760.

Ao mesmo tempo que ocorreram essas transformações qualitativas e quantitativas no ensino da física, em função das quais também a matemática foi se modificando e especializando, deu-se uma verdadeira explosão no número de cursos de química oferecidos nas faculdades de medicina, cujo alunado cresceu contínua e consideravelmente no decorrer do século XVIII. Particularmente na França, esses cursos deixaram de ser esporádicos e subsidiários, e, aumentando seu grau de formalização,

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passaram a ser permanentes. Com o passar do tempo, e através das contribuições de expoentes como Lavoisier (1743-1794) e Berthollet (1748-1822), ela rapidamente deixou de ser apenas descritiva para tornar-se cada vez mais analítica e experimental, com aplicações abrangendo tanto a agricultura como a indústria.

Também nas faculdades de medicina, várias outras disciplinas subsidiárias e descritivas --como a botânica, a geologia e a zoologia passaram a ser reunidas numa só, denominada historia natural, da qual elas iriam separar-se durante o século XIX, ao assumirem sucessivamente a identidade de novas disciplinas autônomas, analíticas, e até experimentais. No que se refere ao período anterior aqui examinado, cumpre destacar que tanto a expansão da física como as da química e da historia natural começaram a exigir investimentos oficiais na aquisição de instrumentos e gabinetes científicos, de coleções de espécimes minerais e vegetais etc. Nas últimas décadas do século XVIII, esses investimentos coincidiram com a reestruturação aos cursos de medicina, que passaram a ter uma duração maior (de cinco a seis anos, em vez dos três a quatro anteriores), assim como uma melhor fundamentação teórica e empírica, vinculando a anatomia a fisiologia e aprimorando o relacionamento entre a patologia e a terapêutica.

Essas mudanças todas no âmbito das universidades, apesar de terem sido muitas vezes lentas, demoradas e difíceis de perceber a curto prazo, acabaram gerando efeitos amplos e profundos ao longo do tempo, desmentindo o imanente conservantismo atribuído por Mendelsohn a essas organizações. Ao mesmo tempo, é importante acrescentar que elas não foram as únicas a promover no campo do ensino superior, já a partir do século XVIII, o início da profissionalização da pesquisa científica e tecnológica, bem como o estabelecimento de relações ainda incipientes entre o progresso científico, o progresso técnico e o desenvolvimento econômico. Junto com as referidas transformações, cumpre mencionar as que ocorreram na mesma época em decorrência da criação das primeiras escolas de engenharia.

Com relação ao surgimento e à evolução das mesmas, além de continuar a basear-nos no trabalho de Brockliss, valemo-nos também das informações apresentadas por um estudo mais antigo da autoria de Peter Lundgreen, comparando a história da formação de engenheiros inicialmente promovida por governos do Continente Europeu (França e Alemanha) com a que se deu posteriormente no contexto anglo-americano (EUA e Grã –Bretanha).20 Tendo em vista os objetivos e a temática do presente ensaio, limitamo-nos aqui a discutir apenas o que aconteceu durante o século XVIII no caso dos dois primeiros países.

Tanto no ancien régime francês como durante muitas décadas após a Revolução, a palavra ingénieur era usada para designar uma categoria especial de funcionários públicos, os engenheiros estatais, seja os vinculados as forças armadas, pertencentes ao génie militaire, seja os envolvidos na elaboração de projetos e na construção de obras de caráter civil (pontes, estradas, canais, edifícios governamentais), membros do génie civil. Os profissionais da primeira categoria foram inicialmente formados nas academias militares, através de cursos destinados ao treinamento de oficiais de artilharia e de intendência, estes últimos versados na construção de fortificações e no estabelecimento da infra-estrutura de transportes e comunicações destinada a facilitar a movimentação de tropas terrestres e de forças navais.

Em ambos casos tratava-se de profissões cujas origens remontavam ao século

20 LUNDGREEN Peter (1990) "Engineering Education in Europe and the USA, 1750-1930: the rise and dominance of school culture in the engineering profession'', Annals of Science, vol. 47, pp. 33-75.

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XVII, e cujas atividades, devido ao progresso técnico, foram se tornando cada vez mais aperfeiçoadas e complexas, passando a exigir uma formação prévia mais apurada de seus praticantes, principalmente no campo matemático (cálculo e geometria) bem como nas áreas ligadas à física, a química e à mineralogia dos materiais empregados. Foram estes fatores que acabaram levando ao estabelecimento da École des Ponts et Chaussées entre 1747 e 1775, assim como à criação da Êcole du Génie et de 1'Artillerie nos anos de 1748 a 1755, ambas baseadas num ensino matemático avançado, cujo alto nível chegou inclusive a induzir em 1768 a pioneira formulação de uma geometria descritiva da autoria de Gaspard Monge (1746-1818), então professor da Êcole du Génie.

Diversamente do que continuava ocorrendo nas academias militares, nem os docentes nem os alunos dessas escolas eram exclusiva ou preferencialmente recrutados na aristocracia. Por sua vez, os egressos dos seus cursos técnico-profissionais de terceiro grau desfrutavam de amplo prestígio social devido ao esmero das qualificações por eles obtidas. Por causa disso, eles passaram a exercer numerosas funções e a ocupar diversos cargos na administração pública francesa já no período anterior à Revolução. E, depois de 1789, ao contrário do que sucedeu com as universidades, o sistema escolar do qual eles se originavam não só deixou de ser afetado pelo novo regime, como acabou sendo reforçado por ele através da já citada fundação da Escola Politécnica de Paris, seguida pela recriação da Êcole des Mines (originalmente fundada em 1783) e pelo estabelecimento da famosa rede de grandes écoles da França, um sistema que, a partir do século XIX, passou a destinar-se cada vez mais à capacitação técnica e científica das novas elites daquele país. Ao sistema universitário estatal, implantado por Napoleão entre 1804-1808, caberia apenas a tarefa de formar os profissionais necessários a seu desenvolvimento econômico e social.

Por sua vez, o ensino de engenharia que foi sendo estabelecido em várias regiões da Alemanha (e também na Austria) no decorrer do século XVIII apresentou inicialmente diversas semelhanças com o sistema francês, e também uma forte influência deste na sua concepção original, revelada inclusive pela incorporação do vocábulo ingénieur à língua alemã. Na Prússia, a criação de um corpo de engenheiros militares foi seguida em 1755 pelo estabelecimento de uma École du Genie (sic), posteriormente rebatizada e reformulada como Ingenieurakademie em 1788. Algo semelhante ocorreu com a Genieakademie austriaca, fundada em 1717 o reorganizada sessenta anos mais tarde.

Fora do âmbito militar, a profissão era integrada por engenheiros civis e por engenheiros de minas. As escolas em que se formavam estes últimos, notadamente a Bergakademie de Freiburg na Saxonia, criada em 1765, gozavam de muito prestigio em toda a Europa. A Prússia também estabeleceu a sua escola de minas cinco anos mais tarde, mas a sua contribuição mais original talvez tenha sido a Bauakademie, fundada em 1799, reunindo na mesma entidade o ensino de engenharia civil com o de arquitetura. Acontece, porém, que os egressos dessas escolas não foram chamados de Ingenieure, mas receberam os nomes de Baubeamte e Bergbeamte (respectivamente, funcionários de obras civis e de minas). Eles tampouco chegaram a ter o mesmo prestígio social de seus colegas franceses, apenas desempenhando funções subalternas e ocupando postos de menor relevância na administração dos diversos Estados alemães na passagem dos séculos XVIII para XIX.

Isto acabou se refletindo na qualidade do ensino ministrado pelas respectivas escolas profissionais, as quais em consequência se mantiveram numa posição de inferioridade face as universidades alemãs, contrariamente ao que sucedia na França naquela mesma época. Foi só a partir de 1850, com a consolidação das Technische

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Hochachulen (escolas politécnicas alemãs) que a formação dos engenheiros iria equiparar-se à das universidades da Alemanha, uma mudança acarretada pelo advento da Segunda Revolução Industrial.

Complementando esta exposição fundamentada nos trabalhos originais de diversos especialistas, pode-se apresentar as seguintes conclusões parciais e preliminares:(1) No que se refere aos países atualmente mais ricos e mais desenvolvidos, parece lícito adotar a segunda metade do século XVIII como marco inicial de uma história econômica da ciência e da tecnologia. Isto se deve não apenas à simultânea eclosão naquele período de várias revoluções (políticas, econômica e intelectual), enfaticamente apontada por Cunningham e tacitamente aceita por todos os outros autores aqui citados, mas também aos efeitos então já sentidos da gradativa profissionalização da pesquisa científica e tecnológica, ensejada pela progressiva formação e institucionalização das ciências modernas a partir da chamada filosofia natural de origem newtoniana e dos diversos ramos ainda pouco estruturados da historia natural que se constituiu naqueles anos.(2) Estes dois processos foram em boa parte gerados por mudanças do ensino ao longo do tempo, tanto no contexto tradicional das universidades como através da criação naquele período das primeiras escolas superiores de engenharia. E foi em torno deles que começaram a manifestar-se e multiplicar-se as relações entre o progresso científico, o progresso técnico e o desenvolvimento econômico, as quais se encontram no cerne e constituem o principal objeto de estudo da história econômica da ciência e da tecnologia.(3) A essência dos processos históricos reside no surgimento de novas estruturas (ou conjuntos de relações), bem como na contestação, superação e substituição das estruturas preexistentes. Dentro desta perspectiva, a história econômica da ciência e da tecnologia dos países atualmente mais ricos e mais desenvolvidos não precisa necessariamente preocupar-se com a diferenciação entre as atuais disciplinas científicas e a filosofia natural e/ou a história natural do passado, podendo antes encarar estas como antecessoras daquelas. O mais importante é a identificação e caracterização do período no qual se deu a transição de umas para as outras, algo que só passa a ser possível através do acoplamento das visões internalistas do pensamento cientifico e tecnológico a uma perspectiva externalista que vise contextualizá-lo, vinculando-o às transformações da vida econômica e social, e, principalmente, inserindo-o na totalidade do desenvolvimento histórico.