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Sob a bruma paulistana Paulo de Poty

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Sob a bruma paulistana Paulo de Poty

Sob a bruma paulistana

Paulo de Poty

Obra registrada na Biblioteca Nacional

sob o número 413.938, livro 773, folha 98.

http://www.paulo.depoty.nom.br

http://paulodepoty.blogspot.com

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Sob a bruma paulistana Paulo de Poty

Dedico...

...ao meu amor e aos que são meus:

minha mãe,

minhã irmã e

meus amigos.

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Sob a bruma paulistana Paulo de Poty

Índice

Apresentação 061. O salto 072. Canção dos pássaros 083. Cristal de sal 114. A bruma 125. Madre minha 156. Casulo 167. São Paulo 178. Sangue e poesia 189. O homem 1910. Pesadelo de Gaia 2111. À toa 2312. O verso 2413. Artérias de aço 2514. Via expressa 2715. Recomeço 2916. Estrela anã 3017. O espiral 3118. Seu nome 3219. Pedra Grande 3420. Encontro das águas 3521. Canção das ruas 3622. Quero ser bicho 3823. O gato 3924. Eros 4125. Dias frios 4226. Saudade 4327. Esvaziando gavetas 4528. Beijo de minha garôa 4729. Outro prumo 4830. Olhar através da janela 49

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Sob a bruma paulistana Paulo de Poty

31. Primavera 5032. O anjo da morte 5133. Um rio sinuoso 5234. Carta de Remo 5435. Apesar de tudo 5536. A sombra 5637. Ferruada 5738. Errantes 6039. Nau e cadafalso 6340. Rubra doçura 6441. Poema de caminhar 65

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Sob a bruma paulistana Paulo de Poty

Apresentação

Os esquadros geométricos da cidade de São Paulo encontram um contorno poético

em Sob a bruma paulistana. As adversidades e oportunidades de uma cidade-mundo

monstradas pela ótica de um migrante nordestino que se deslumbrou pela bruma de

uma metrópole ávida por trabalho. Símbolo máximo do desenvolvimento econômico e

cultural do Brasil, São Paulo inspirou no passado muitos artistas e literatos e continua a

inspirar, até hoje, muitos que encontram nas ruas, nas esquinas, nos becos, nos cafés,

nos teatros, em todos os lugares obscuros, em cada reentrância da urbe, os vestígios dos

sentimentos humanos impregnados por todos os lugares.

Através dos versos é possível ver que em meio a monotonia cinza e fria da cidade

salpicam cores quentes. Quem passa despercebido talvez não veja, mas lendo Sob a

bruma paulistana, reconhecerá cada nuance poética que paira na trama de ruas e

viadutos. São Paulo, destino de tantos nordestinos que erguem e dão grandeza a ela no

braço, foi o destino de mais esse poeta que se deixou misturar embriagado pelo sotaque

carregado de 'erres', que inalou a bruma e de pulmões cheios cantou suas frustrações,

emoções e belezas. Versando em tom totalmente intimista, Sob a bruma paulistana

deixa a mostra os medos que foram matados em um surrealismo vivo e rico de imagens e

delírios.

Ser paulistano ou estar paulistano, pouco importa. Entende-se que viver a paulicéia

é ter vocação de megalomaníaco, é ser intenso, é ser lutador, é ser franco consigo. Por

vezes essas sensações são representadas em poemas longos que tem o próposito,

descarado, de deixar o leitor sem fôlego, pois viver a experiência paulistana causa isto.

Ela enfada, exaure, suga as forças de quem sangra por ela. Estar paulistano é estar num

contexto de guerra; Uma batalha diária, onde o único lado que sempre sai ganhando é a

metrópole. O gladiador tem sua parte da batalha, mas ela sim, sempre será a grande

vitoriosa.

Verdejar rios que são breu, sujar os pés de barro vermelho como sangue, criar asas

para escapar de gaiolas abertas, ver anjos descer dos céus, são ações poéticas presentes

nesse livro. Ao ler Sob a bruma paulistana o leitor vai passear pelos paradoxos inerentes

dessa terra onde comungam tantos desiguais. A paulicéia, tão lindamente cantada por

tantos outro poetas é um nascedeuro de idéias, um berço, um porto seguro, uma porta

(salvação e condenação no mesmo arco) que está escancarada à todos que se

aventurarem a respirar a bruma da metrópole. Você está convidado para passar pelos 41

poemas compostos entre 2005 e 2007 escolhidos especialmente para este volume.

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Sob a bruma paulistana Paulo de Poty

O salto

(São Paulo, Março de 2005)

Viver não é apenas

Contemplar o mundo do alto do penhasco.

É mergulhar no vazio,

É admirar a beleza do horizonte durante a queda

E se comprazer com a incerteza,

Antes que o fundo certamente alcance.

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Sob a bruma paulistana Paulo de Poty

Canção dos pássaros

Quando gozava do caminhar nas areias do meu país eu tive um sonho:

No abraço da brisa, meus pensamentos venciam as distâncias físicas

Que meu corpo não aceitava, não entendia.

Via os pássaros e mirava-os com inveja tamanha,

Pois tamanho era o afã de envergar minhas asas tal como eles

Buscar outros horizontes

Naquele tempo os dias passavam vazios

Ó, fracassado sonho humano: não era tua a pretensão de voar?

Onde está, então, a tua liberdade?

No meu país cultua-se a liberdade, embora não haja ação para ela.

Falam em conquistas, mas não saem da comodidade de seus malogrados desejos.

Falam em vencer, mas não querem correr riscos.

Falam em ser livres, mas permanecem presos em seus clãs:

uma casa, um carro e uma festa popular, pronto, eis a felicidade

E quando vi os pássaros que caçavam nos maceiós, nos mangues e no espelho da praia,

Desafiei meu coração: onde está a tua vontade de ser livre?

Descobri, então, onde estavam as correntes que me prendia a dolorosa mediocridade dos

dias: era o medo.

Perguntei novamente ao meu coração pálido e sem vida: medo de que?

Não obtive resposta robusta, consistente e verdadeira.

Tudo passava pelo simples não ser, vivendo em busca de segurança.

Uma segurança tênue, falsa e inatingível.

A segurança da morada, dos afetos e dos prazeres limitados (quanta tolice).

Minha angústia e inquietação se alimentavam da indiferença e ignorância

Cresciam com o passar dos dias de nada,

Com os dias de sol e dias de chuva, iguais.

Com os dias de efêmeras alegrias,

Com os dias de labor inútil,

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Sob a bruma paulistana Paulo de Poty

Com os dias de desespero silencioso, não compartilhado, calado.

Via os pássaros nas praias de meu país e chorei mais de mil vezes de inveja.

Se minhas lágrimas transmutassem em notas musicais, seriam acordes de violão,

Se fossem rabiscadas em versos, cantariam uma história triste sem refrão,

Se fossem aquarelas, borrariam uma mácula no coração.

Elevei minha voz ao céu e implorei por ter asas,

Por ter a simples e mágica capacidade de voar.

Quando não suportava mais de tanta dor, só então meu coração falou:

Não está aqui o que procuras, o homem não é prisioneiro do seu ninho.

O que seriam dos sinuosos rios, se suas águas nunca deixassem a nascente?

(deixariam os vales inférteis).

O amor de quem te ama estará contigo onde estiveres,

Não precisa ver, nem estar ao alcance dos olhos, basta sentir a saudade,

E ela, a agridoce saudade, lhe trará todos os dias os beijos de quem te ama.

Fui assim, temeroso e ao mesmo tempo cheio de vontade de ser livre, até a beira do

precipício

(era o limite da sanidade).

Deixei crescer minhas unhas tal como as garras das feras mais selvagens,

Mais instintivas, mais verdadeiramente puras.

Minha força seria minha única arma nas batalhas que iria enfrentar nas terras distantes.

Para partir cravei com força estas garras no meu próprio peito e o rasguei até sangrar

(deixei a mostra para todo mundo ver).

Contorci-me de dor e cravei estas mesmas garras sujas de sangue em minhas costas e

rasguei a pele fina,

Libertando minhas asas que estavam escondidas.

As asas do meu querer eram poderosas asas negras como a mais negra noite prateada de

estrelas,

Envergadas para voar.

(realmente estava pronto)

Quando os pássaros passaram na beira do precipício fui com eles.

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Sob a bruma paulistana Paulo de Poty

Mergulhei nesse sonho seguindo a rota cortando o ar velozmente.

Voamos, voamos, voamos.

E do ponto mais alto pude medir a pequenez do que eu era.

Tive a perspectiva dos anjos sobre a terra,

Tive a certeza da mediocridade que vivia,

Tive pena.

(é... piedade mesmo).

Piedade dos que ficaram tristes por mim do lado de dentro, na segurança da gaiola.

Já estava feliz, só pela coragem de ousar,

Pela coragem de ver algo diferente,

De viver de forma diferente.

Estava livre, e por minha sorte.

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Sob a bruma paulistana Paulo de Poty

Cristal de sal

(São Paulo, Março de 2005)

Meus sonhos são como um cristal de sal nesse fim de mundo.

- Sou de brisa e de sol, sou potiguar.

Atei meus sonhos nas asas de um pássaro,

E eles foram voar, procurar por outro mar.

Num vôo solitário errei e mirei o horizonte escuro,

Às vezes rubro, às vezes azul e às vezes claro,

Mas nunca próximo, nunca raro.

Desprendendo-se das asas do pássaro, esse cristal de sal caiu em águas rasas

Que a brisa e o sol dragaram.

E o resto do sonho ficou seco, translúcido e árido como todos os outros na mesma salina.

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Sob a bruma paulistana Paulo de Poty

A bruma

Pisei a terra de vermelho sangue

Terra pisada pelos homens de pele vermelha,

Num passado revestido de verde vivo,

Banhado pelos rios que descem a serra com suas águas limpas

Uma terra encharcada pelo sangue vermelho e vivo

Dos que ali sangraram para defender seus vales férteis,

Contra os homens de pele branca e fria

Fria como a bruma densa que cobria de orvalho todas as manhãs,

Nos vales dos rios que sulcam a terra vermelha

Os homens e a terra vermelha ficaram esquecidos num passado distante,

Sepultados nas páginas dos livros, nos bustos de cobre e debaixo do asfalto

Os rios já não cortam vales férteis: agonizam na fedentina canalizada pelo concreto

Nas manhãs de Outono, o orvalho ainda trás a bruma densa e fria,

Mas ela se transformou e agora paira sobre nossas cabeças

Na primeira manhã, quando abri meus olhos eles ardiam

Quando abri meus olhos a saudade veio feri-los, e eu chorei

Quando acordei do sonho e abri os meus olhos que ardiam,

Vi colossos de concreto e espelhos erguendo-se aos céus

Moais uniformemente cinzas, prateados e brilhantes

Eram como sequóias gigantes, sem a mesma seiva doce,

Sem a doçura do brotar da terra e crescer em direção aos céus,

Adorando o azul, buscando o sol,

Sem a doçura de desejar alcançar as nuvens,

Sem esquecer suas raízes bem firmes no chão

Não, não tinham o toque da divindade, eram colossos geometricamente humanos,

Sedutoramente humanos

Colossos erigidos pelo poder do metal,

Que avançam ao céu sem a poesia de adora-lo,

Arranhando o horizonte cinza,

Imprimindo um labirinto de vias de concreto e asfalto,

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Sob a bruma paulistana Paulo de Poty

Onde eu e outros Teseus perdíamos

Todos andavam sob aquela bruma cinza carregando seus fardos sonhos nas costas,

Eu via, eu podia ver as esperanças pesando sobre seus ombros,

Curvando suas costas e tirando o fôlego

Quando acordei do meu sonho e os dias se fizeram meus únicos companheiros,

Comecei a lembrar da praia e do abraço da brisa

Procurei os pássaros naquele céu cinza, mas não encontrei os mesmos,

Nem as mesmas cores

Os pássaros que encontrei mendigavam nas praças e nas ruas

Comiam da piedade dos sonhadores que passavam ou redor

Eu, alheio e distraído com as novidades das ruas,

Desbravava o asfalto dentro dos veículos lotados de nós,

Onde os sonhadores comprimiam seus corpos cansados e suados.

Ia descobrindo a cada nova esquina a crueza do cotidiano do lugar que escolhi pousar

Eu, alheio e distraído,

Ia sendo seduzido dia-a-dia pela possibilidade de fazer do novo lugar um sonho possível

de se viver

Sob a bruma caminhei dias e dias

Descobri os guetos e os becos,

As deformidades das esquinas nas belas formas dos corpos à venda,

Na escuridão quebrada pelos faróis que serpenteam a decadência do coração da

Metrópole, iluminando a sujeira, o prazer barato e o crack

Eu gozei do caminhar na noite, alheio e seduzido pelo falso brilho das esquinas das

Ruas dos colossos de espelho

Meus olhos ardiam quando acordei do sonho

Despertado na manhã cinza e gelada sob a bruma paulistana,

Procurei lembrar do abraço quente da brisa do meu país

Meus olhos ardiam da bruma suspensa no ar ou do desconsolo da saudade?

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Sob a bruma paulistana Paulo de Poty

Ao contrário do que pode ser, fiz do meu choro e do meu desconsolo aliados

Na minha fragilidade busquei a força para acordar naquelas manhãs frias e

Novamente enfrentar a compressão de corpos em espaços mínimos.

Transmutei.

Na terra de colossos de pedra e espelhos transmutei o sonho em teimosia.

Vagando nas ruas e becos mal cheirosos converti a teimosia em fé

Perdendo-me na luxuria das esquinas sufoquei a saudade no prazer efêmero,

O vazio perene nos intermitentes instantes de gozo

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Sob a bruma paulistana Paulo de Poty

Madre minha

(São Paulo, Fevereiro de 2007)

Tens a legitimidade de mãe, madre minha.

Madona retratada sem a auréola dos santos,

Pois concebeste em natural pecado,

Não ti deram a candura dos mantos

Para mim não importam os dogmas,

Já tens a doce divindade das fêmeas

Matrona de sua casa,

Senhora de minha vida

Quando convertes de teus olhos as lágrimas da dor,

Batizas meu caminho e meu amor

Quando imprimo esses versos meus,

Quero converter minhas palavras em beijos,

Meus desejos em preces

Oração de gratidão à Deus

És fêmea, és mulher.

Força reprodutora de vida e luz

- Que Deus lhe dê a felicidade constante dos dias.

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Casulo

(São Paulo, Janeiro de 2007)

Encontro na poesia o refúgio de meu silêncio

Vou costurando os versos com um fio de medo,

O medo que me vela a vida inteira

Quero ir além dos carinhos do teu corpo,

Quero imprimir na tua alma a verdade de meu amor

Quero tecer em volta de ti um casulo,

Uma capa protetora e transformadora de teus sentimentos.

Tenho medo de perdê-lo, por minha própria culpa

Quero ser o tecelão hábil de tuas vontades,

Teus desejos e quereres

Quero proteger meu amor nesse casulo,

Amadurecer teus sentimentos e os meus,

Converter o egoísmo em amizade verdadeira

Assim descobrirmos juntos a substância real do amor

Exijo de mim o mais difícil dos exercícios:

Não te fazer sofrer

E ridiculamente eu sofro.

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São Paulo

(São Paulo, Junho de 2006)

Metro,

Metrô,

Métrica,

Metropolitano

São,

Santo,

Sanha,

Santuário

Pau,

Pedra,

Ferro,

Fogo,

Cimento,

Asfalto

Paulo,

Bernardo,

Caetano,

André

Frio de Outono,

Inferno glacial,

Cerejeiras floridas,

Calor invernal

Sou potiguar de fato e coração,

Nasci no gozo das praias das areias brancas

Paulistano por vocação,

Renasci nesse berço de pedra.

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Sangue e poesia

(São Paulo, Junho de 2005)

É dito que o dom divino,

Aquele inatingível, inexplicável, incompreensível,

Reserva para cada um o tamanho da sina,

E afere o peso do fardo.

É pesado o fardo e é difícil a sina do poeta.

Fui feito assim, poeta.

Com raízes em terra seca,

E coração de sal, fino e quebradiço.

Tal como pássaro de arribação,

Tinha os olhos voltados para além da serra mais alta.

Chegada à hora, era tempo de voar para longe.

O dom divino então cavou a terra

E arrancou as raízes (sua mãos ficaram sujas).

O vento soprou e empurrou a arribação (são as estações da vida).

Foi então que o peito sangrou

Em um vermelho vivo de saudade.

O mesmo dom divino há de me reservar

A consciência do compasso do tempo.

Sem a angústia pelo tempo a viver,

Nem o saudosismo paralisante de um tempo morto.

Pois a arribação volta sempre ao seu lugar.

Até lá o peito vai sangrando.

Uma hemorragia de verso e dor,

Tingindo de saudade o papel alvo e leviano, que aceita tudo.

Coagulando nele a poesia adormecida no coração.

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O homem

Quando me disseram:

- do barro nasceste

Gritou minha soberba:

- que barro é esse?

Barro vermelho, terra roxa ou massapé?

Não sei ao certo, só ouvi dizer

Há os que dizem que a origem é una,

Muitos dizem que somos divinos,

Há os que crêem no caos,

Muitos duvidam de Deus

Sorvo o doce da cana cortada pelo preto que pisa o massapé,

Cuspo o bagaço e arroto palavras

Não sou preto, não sou beiçudo,

Sou eu do melhor barro branco?

Seria se o preto forro que dilacera as mãos nos canaviais,

Não fosse feito do mesmo barro

Desse lamaçal perdido no tempo venho eu e o preto

Vem também o amarelo e o vermelho

Vem o bom e o mau,

Vem o assassino e o poeta,

Vem o homem e a mulher,

Vem o forte e o fraco,

Vem você e eu,

Vem o fogo de Prometeu

Fico perdido nas calçadas de pedras

Contra o chão o eco de meus passos vão reverberando nos becos fétidos,

Nas praças depredadas,

E nos vãos dos viadutos

O eco dos meus passos embala o sono

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Daqueles que foram esquecidos - melhor não acorda-los

Foi dito: deixe-os dormir.

Mas meus pés fazem eco no chão,

Para que os que dormem acordem,

Para os que esqueceram lembrem-se,

E um dia eu mesmo possa dormir

O lamaçal da gênese ainda está vivo,

Ainda está fresco, sendo moldado, misturado.

A grande obra ainda não chegou ao fim,

Apesar dos colossos de pedra e espelhos,

Apesar da virtualidade da vida contemporânea,

A roldana do artesão invisível continua a girar

O homem de barro ainda está úmido e sem forma definida

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Pesadelo de Gaia

(São Paulo, Abril de 2006)

Era uma chuva prata,

E os clarões dos relâmpagos nasciam do brilho dos meus olhos,

Os trovões eram ecos dos meus gritos de dor

Jurei esquecer essa agonia,

Jurei selar esse segredo,

E agora juro outra vez: serão estas as últimas palavras que chorarei por ti

Depois do temporal a bruma se dissipou

O azul de um céu temperado brilhou como na Idade do Ouro

A metrópole submersa conservava no topo dos colossos de pedra e espelhos,

A humanidade flagelada – A humanidade posta em seus mais rotos pedestais

Desequilíbrio, fome, dor, morte

A chuva ácida gerou o mar negro da inundação

Não quero mais lembrar,

Quero voltar ao mar,

Começar tudo de novo

Jurei nunca revelar minha agonia,

Jurei selar meu sonho numa caixa de ouro

Ó, alma humana rica em soberba e ignorância,

Olha para o céu agora limpo, só mais uma vez,

E olha nos meus olhos,

Deixa-me ver nos teus o verde brilho do mar,

Um fio sequer de esperança em tua alma

Ó, humanidade surda aos meus gritos de dor,

Ó, humanidade alheia aos meus apelos,

Ó, humanidade hipnotizada em seus espelhos

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Mobiliza tua força em favor de tua dignidade

Trava nas ruas a guerra contra a intolerância,

Semeia a gentileza, o amor

Abre teu peito e vê que está tudo aí, guardado e ultrajado pelo negro veneno do vil querer

Percorre as ruas, os presídios, os templos,

Os becos, os bordéis e as casas.

Dize que estou triste e doente

Foi um pesadelo,

No entanto verossímil

Que a garoa sobre a metrópole seja prateada pela luz do sol,

Que minha pele verdeje nas matas,

Que meus cabelos corram fluidos nos vales dos rios,

E meu perfume se espalhe na atmosfera azul

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À toa

Ando à toa na rua,

Estou inteiro na tua

Saudade dói de sentir

Chove então nos meus olhos,

Faróis de carros distorcem

As lembranças que vêm me ferir

Sinta,

Muito mais que um segundo,

Muito mais que o mundo

Deixa,

Abraçar seu abraço,

Alma, corpo e espaço

Se chove, então deixa chover

Vejo a cidade em espelhos

Um reflexo perfeito

Contra o avesso de tudo que vi

A cada esquina procuro

Encharcado e mudo

Correr do passado, fugir

Atravesso a rua depressa,

Por favor não me peça:

De te nunca vou esquecer

Estou só e a cidade,

Me mostrando a verdade:

Se chove, então deixa chover

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O verso

(São Paulo, Março de 2005)

Com quantas letras se faz uma poesia?

A beleza do verso nasce do que sentimos?

O que estou sentindo não é belo, é triste

E sinto forte

Um sentimento consoante

Não se expressa

Vogal muda de mim mesmo.

Queria fazer um verso,

Mas não sei quantas letras usar.

Certamente muitas

E nenhuma delas dirá a verdade.

Nem todas juntas seriam capazes

De expressar meu medo.

Quantas e quais letras sou eu?

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Sob a bruma paulistana Paulo de Poty

Artérias de aço

Um toque: piiiii!

E nesse agudo as portas fecham-se atrás de mim,

Enquanto o solavanco da composição tira o corpo da inércia.

Crescente e continuamente avança o expresso

Pela veia de trilhos até a próxima estação.

Sangue novo na madrugada de damas-da-noite.

Muitas embarcam e seus perfumes misturam-se me embriagando.

Mulheres geradas para laborar e seduzir-me.

- sangue arterial.

Corre pelos trilhos o sangue que dá vida ao labor.

Bombeado a cada expresso, corre para o coração da metrópole obesa,

Que arfando o carbono de seus ares, numa bruma espessa e infinita,

Queima-me no mormaço do asfalto e ensurdece-me no ruidoso arranjo de seus autos.

Um par de mãos (minhas mãos) e dezenas de outras seguram firmes as

Hastes frias de metal.

– mãos de labor.

Um par de olhos (meus olhos) e dezenas de outros que vêem velozes vultos nas janelas

- imagens deformadas da vida que corre apressada pelas artérias da cidade.

Mais uma estação. Mais mãos, olhos e sangue arterial.

Piiii!

Os ouvidos feridos novamente e novamente a inércia vencida.

O impulso leva os corpos a deslizar sobre os trilhos como fantasmas,

Trilhos que gritam nas curvas, chiando de dor.

Fluxo e contra-fluxo,

Ir e vir.

Em sentido contrário ao meu terror, corre também sangue humano.

- sangue venoso.

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Sob a bruma paulistana Paulo de Poty

Outras mãos e olhos fadigados e fustigados.

A composição que corre oposta à minha leva de volta aos

Alvéolos de seus lares o sangue que precisa ser oxigenado no amor,

Que na madrugada seguinte serão despertados

Pelo perfume das damas-da-noite.

A glutona metrópole é furiosa.

Na combustão do corpo, meu sangue humano “desumaniza-se” nas rodas da produção de

riquezas alheias.

Ela se alimenta, se fortalece e cresce todos os dias.

Sou apenas uma peça no vai e vem do expresso que cruza e alimenta a urbe

No ciclo cáustico do trabalho.

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Sob a bruma paulistana Paulo de Poty

Via Expressa

(São Paulo, Maio de 2006)

Procuro o fluxo da fila.

Para lá?

Para cá?

Flui bem a via expressa,

Pé em baixo para quem tem pressa.

Pressa de chegar?

(não, só pressa por apressar).

Pressa sem sentido,

Hoje é Domingo.

Não se apresse meu senhor,

Deixe livre o corredor.

Dê sinal na conversão,

Não ultrapasse o caminhão.

Buzinaço de enlouquecer,

O que falta acontecer?

Flui o trânsito devagar,

Temos pressa de chegar.

(sei lá para que lugar)

É o fluxo e o contra-fluxo,

É um ir e um voltar.

É o vetor sem sentido,

É correr, é esperar.

É a fileira dos dias,

O alinhamento das horas,

A precisão do tempo,

E o abandono do sossego.

Congestão,

Contra-mão.

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Sob a bruma paulistana Paulo de Poty

Parar é proibido, não há vaga.

Preferencial?

Que nada, sinalização ignorada.

Vale a premissa da oportunidade,

O afã da vantagem,

Tudo é permitido.

(melhor voltar para casa).

Sincronia de cores.

Os olhos atentos e os corações batendo acelerados na margem da rua:

Verde,

Amarelo,

Vermelho.

Vermelho das sirenes,

Vermelho das lanternas dos carros,

Vermelho dos meus olhos cansados,

Vermelho do meu sangue que pulsa no ritmo da pressa.

Não há como esperar, o risco é iminente, eu sei,

Mas à hora marcada devo chegar (compromisso).

Sou rápido e posso me esquivar por entre os carros,

Afinal não são só eles que têm pressa.

A fila flui para o indeterminado.

Os destinos são muitos,

Os objetivos são múltiplos,

Os meios são diversos,

E os ganhos são poucos.

Vejo filas em linha reta,

Vejo filas em círculos perfeitos,

Outras serpenteiam rios,

Outras tramam geometricamente as ruas da cidade malhada.

Nesse fluir de todos os dias,

Sou uma célula dentre milhões.

Procuro o fluxo da fila,

Fiando o fio da vida,

Tramando meu destino.

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Sob a bruma paulistana Paulo de Poty

Recomeço

(São Paulo, Janeiro de 2007)

no café teatro

Vou voltar,

Vou voltar.

Sei que vou voltar.

Há o que purgar,

Há o que resgatar,

Ainda há o que limpar.

Serei mameluco, pigmeu, caucasiano,

Amarelo ou negro?

Sei lá.

Só sei que vou voltar.

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Sob a bruma paulistana Paulo de Poty

Estrela anã

(São Paulo, Janeiro de 2007)

à minha Ana

Meu astro estrela anã.

Guardiã da casa, flor da manhã,

Cria da loba, guerreira Iansã

Ama tua sina e tua espada,

Ama teu irmão que sou eu,

Ara tua lavoura com tuas unhas,

Colherás os frutos teus

Doçura,

És mulher, és artesã

Teu choro é um grito reprimido,

É teu medo, é teu afã.

Empunha tua espada, guerreira minha

Vitória na batalha de hoje,

Vitória na batalha de amanhã,

Vitória e glória, para lá tu caminhas

Louvo em anáfora a simetria do teu nome -

Sê Ana pátria anajá, sê Ana doce ananás

Sê Ana nobre dama, sê Ana e nada mais

Se navegares no mar revolto da fé,

Não haverá tormenda maior que tua na

Sê firme na guerra, terás tua Sé,

Depois das vagas medonhas e dos demônios

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Sob a bruma paulistana Paulo de Poty

O espiral

(São Paulo, Janeiro de 2007)

Estou sujo desse barro vermelho

A cada ano vivido nessa terra,

Perco o cheiro salobro de mangue e o sal da pele

Os ciclos vão se fechando ao meu redor em espiral,

Sulcando a pele, descolorindo os fios de cabelos,

Aguçando a percepção da vida ao meu redor.

Tenho a pele empoeirada da fuligem do ar - adoro isto

Tenho saudade do meu ninho,

Tenho saudade do Potengi,

Tenho saudade dos amigos e do ócio dos Domingos

Mas minhas raízes manguezinas cresceram e se aprofundaram nesse barro vermelho

Não me tirem o centro velho,

Não me tirem o Trianon,

Não me tirem o Chá

Ficarei por longo tempo a me lambuzar nessa lama vermelha

Quero semear minhas sementes por cá,

Colher as flores outonais e o vendaval do tempo,

Antes de chegada a hora do descanço, do desfolhar

Aí voltarei pro meu manguezal,

Lá sim, sepultar tudo que foi vivido

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Sob a bruma paulistana Paulo de Poty

Seu nome

(São Paulo, Janeiro de 2007)

ao meu amor

Qualquer palavra será menor que você.

Nem essa canção te retrata.

És a conversão do meu querer,

A realização dos meus sentidos.

Minha melhor poesia,

Minha conecção com o mundo real.

Deito em teu peito e a música do teu coração me adormece.

Não sei falar de amor,

Ouço quieto assim,

Seu sono, sua prece.

E quando os anjos te ouvirem vou me alegrar,

Os anjos vão se alegrar.

Falarei a língua de Deus,

Vou reclamar teu amor unicamente.

Qualquer alegria será fugaz sem você,

Nenhuma alegria tem o fulgor de você.

Na canção dos anjos teu nome é a mais doce nota,

Na minha canção teu nome é refrão.

Te ver é o verso dos dias,

O avesso da saudade,

A construção das palavras,

O exercício do amor.

Ó Amor.

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Sob a bruma paulistana Paulo de Poty

Sou o caminhante dessas calçadas de pedra-sabão,

O redentor de minha própria via-crúcis.

Sou o pássaro migrante com fome de sonhos.

Seu nome é meu óasis nessa metrópole obesa e árida.

Qualquer palavra será menor que você.

Ainda não aprendi a língua de Deus,

E quando conhece-la serei digno de pronunciar seu nome.

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Sob a bruma paulistana Paulo de Poty

Pedra Grande

(São Paulo, Janeiro de 2007)

Sigo a trilha do asfalto

Nessa floresta cinza

Vou ao mirante,

Vou mirar.

Visão da urbe gigante,

Vou pisar na Pedra Grande

É o verde da muralha,

É o gris dos colossos,

Tudo misturado na aquarela,

Lápis carvão, giz de cera,

Pincel e "pixels"

Retrato de bugio,

Sol de primavera, céu anil

Cortina de fumaça,

Sob meus pés a metrópóle surgiu

Vou mirar do mirante,

Vou errrar, sou errante,

Vou girar 360,

Vou parir meu poema

Estou de tocaia como infante,

Arfando o ar do horto,

Sou poeta, sou de pedra,

Sou bicho de cidade grande

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Sob a bruma paulistana Paulo de Poty

Encontro das águas

(São Paulo, Abril de 2006)

Quando o Potengi desaguar no Tietê,

Vou construir um barco de cana-caiana,

Vou navegar nesse leito alargado,

Vou verdejar o cinza sob a bruma,

Vou cantar meu verso misturado,

Vou fazer plantio na margem.

Vai brotar pé de caju entre os ramos de acácias,

Vai brotar a carnaúba no pé de jequitibá.

“Vamo” ver jangada de vela branca deslizar no espelho d’água,

Ver pescador puxar na tarrafa lagosta graúda para “nóis” comer,

Vou fazer sushi de pescada na margem do Tietê.

Quando o Potengi desaguar no Tietê,

Vai trazer o mangue verde, o caranguejo e as caiçaras.

Ah, vou esticar minhas pernas na proa do meu barco,

Vou marejar meus olhos vendo as searas das margens desse rio misturado,

Vou esperar o tempo de brotar por toda a cidade as flores da felicidade nos ramos das

cerejeiras.

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Sob a bruma paulistana Paulo de Poty

Canção das ruas

Deixo uma batida diferente em cada esquina

Tum-tum!

Cadenciada

Tum-tum!

Entorpecida

Tum-tum!

Meu peito dita a marcha

Respiro a bruma venenosa desses ares e me delicio nesse torpor

Drago a cadência dessas ruas e vou ao seu ritmo

É aquela batida que eu quero,

Aguerrida e misturada canção de rua, fervor

Ferve a batida de meu coração, tum-tam-tum,

Cadenciado e entorpecido, tum-tam,

Apaixonado, tum

Oh, humano dom de cantar

Reverencio-te com o mais humilde gesto a minha paixão

Com meu canto de contemplação infesto as ruas,

Calhadas em minhas palavras à exaustão,

Ladeadas de música e lembranças nuas

A mesma alvorada em milhares de esquinas,

Em toda malha do negro asfalto,

O sol brilha e aquece – fim da escuridão, nascedouro da esperança

As calçadas vão se enchendo de passos e os espaços são poucos

Revoada de pombos, logradouro de desocupados, lixo e sobras

Todos seguem o ritmo, e eu sigo com eles,

E ocupo o pouco que sobra na vaga tenebrosa da oportunidade

Revoada de pombos e os desocupados não tem mais logradouro,

Até que a noite chegue e restabeleça os espaço e as vagas,

Recolhendo o lixo e as sobras dos que passaram sem perceber

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Sob a bruma paulistana Paulo de Poty

No meu peito bate um coração ruidoso,

Furioso e sem o menor pudor

Compassado e ofegante samba nas vagas da emoção,

Ondas de ansiedade em cada esquina

Os espaços estão ocupados, as vozes misturadas,

O torpor inebriante e lúdico da sedução dos corpos

Meu peito é surdo, teimoso, preguiçoso, se deixa levar

As ruas são luxuriosas, cândidas e disfarçadamente melodiosas

Música em ritmo acelerado nos corredores de carros,

Gritos agudos de terror nas favelas,

Gritos afônicos de tesão nas camas,

Gritos graves de um pai sem esperança nem moral

Essa música verbalizada que arranha e desafina “erres” nas vozes de um povo misturado,

E que embala a dança dos desocupados, bêbados de álcool e cola,

Bailando nas esquinas de pedras e bueiros,

Esperando a noite restabelecer espaços

Meu peito surdo e ruidoso não me deixa pensar,

Nem tão pouco resistir a sedução das ruas

Só me permite cantar, um canto apaixonado e incondicional.

Nesse labirinto de raças encontrei a ponta de um fio, tum-tum!

Nas ruas dos condenados, encontrei uma esperança, tum-tum!

Ofuscado pelo reflexo dos colossos de pedra e espelho,

Restabeleci meu espaço, contornei as esquinas e cruzei as ruas

Não pensei, não ponderei,

Só puxei o fio

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Sob a bruma paulistana Paulo de Poty

Quero ser bicho

(São Paulo, Janeiro de 2007)

Ouço o uivo de um cão

Aprissionado num apartamento

Ele está sozinho e triste

Um canto melacólico

De dá dó

Ouço o uivo de um cão

Que denuncia seu lamento.

Gostaria de fazer o mesmo, mas sou gente.

Meu canto cacófano,

De silêncio só

Há muito o que aprender com os bichos.

Sua honestidade e despudor.

A verdade estampada em orelhas eriçadas,

Em presas expostas,

Em caudas nervosas,

No coito na rua

Há muito o que jogar fora

Quero uivar como os bichos também

Exorcizar minhas tristezas livremente,

Eriçar meus pêlos sem vergonha,

Tocar no corpo de outros bichos-gente.

E quando saciar minha vontade,

Quero uivar sim,

Mas de felicidade

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Sob a bruma paulistana Paulo de Poty

O gato

(São Paulo, Abril de 2006)

Ah, esse lusco-fusco por trás dos arranha-céus

Que tinge de púrpura a bruma translúcida da metrópole

Enquanto luzes de néon contraem as pupilas do bicho

Ele cai no mimetismo da noite,

Erra equilibrando-se nos muros,

Negro expectro, silente viril

Bicho na caça

Inala o ar impregnado da luxúria dos becos

Olhos focados em qualquer movimento:

Silhuetas de corpos,

Silhuetas de sombras,

Reais ou não

Predador negro sem gravidade,

Gato negro fantasmagórico,

Assusta a mulher que esconde o rosto no véu:

A mulher e o escudo da verdade

Bicho na caça

Seu corpo tem fome e seu instinto arde.

Inala o ar: odor de outros.

Outros iguais estão próximos agora.

Gatos e matizes: negros, pardos, brancos e vermelhos,

Machos viris, fêmeas férteis.

Amam em becos imundos,

Gato burguês, proletário, suburbano

Bichos na caça

Viciados carregam na alma a luxúria das ruas

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Sob a bruma paulistana Paulo de Poty

A rua e a vitrine da promiscuidade do consumo

Gato confinado é morto-vivo,

Gato casto é vivo-morto,

É obeso, lento, frágil

Vai, celebra a noite nos telhados, na orgia dos bandos

Seu cio ruidoso, selvagem, indomado.

Lambam-se acarinhem-se como expectadores do alvorecer que morde a madrugada.

E depois, extasiados, durmam tranqüilamente, livre da culpa e de medo.

Nobre gato, exalto tua beleza.

Venturoso gato, rogo por tua sorte.

Pródigo gato, hás de encontrar minha janela aberta.

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Sob a bruma paulistana Paulo de Poty

Eros

(São Paulo, Março de 2005)

Respiração e hálito quente

Assim, sossego o coração e repouso em teu ombro

E fadigada a boca em beijos,

Marcam na alma o fruto de todos os sentidos

Pele molhada, sabor de sal

Gozo da carne e espírito

Farol do instinto humano

Instintivamente bom

Um cheiro forte de querer,

A necessidade de convencer:

Gostas assim?

Boca e hálito quente

Úmido suor, odor que me entorpece

Febre que queima o corpo nu

Aglutinação de almas, eu e tu

Se tal encontro for pecado,

Quero morrer pagão,

Quero morrer saciado,

Quero morrer são

Nos braços do amor sou divino,

Encontro nele o que é sagrado,

Secretamente amado,

Humanamente lindo

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Sob a bruma paulistana Paulo de Poty

Dias frios

(São Paulo, Junho de 2006)

Nesses dias de Junho de eterno frio,

Quando o vento corta a carne nos refluxos das esquinas,

É permanente também a saudade

Uma saudade que congela o pensamento e seu nome,

E que me prende à noite quente e breve, minha e tua

Digo: bom dia amor,

E mergulho na rua

Misturo-me aos anônimos das calçadas,

Aos velhos dos cafés,

Aos jovens de farda e ofício

Recupero seu beijo na memória e sua voz que é canto e mansidão

Levo-te comigo de mãos dadas para aquecer minhas mãos do frio dessa bruma cinza,

Para tornar tua falta minha companheira

Na intimidade do frio de Junho,

Minha fonte de calor é você,

Você que não me pertence,

Mas que tomei para mim

Você que me acorda com um beijo,

E sossega meu coração,

Você que guardarei na minha alma quando a carne apodrecer

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Sob a bruma paulistana Paulo de Poty

Saudade

(São Paulo, Junho de 2006)

Apenas minhas e puramente minhas

E apesar de serem de saudades as palavras que pronunciei ao meu amor,

Verdadeiramente peço a elas que se espalhem (não as guardarei)

Ditas em confidência só,

Costuradas entre um soluço e outro,

Temperadas no sal das lágrimas, eram elas próprias as testemunhas de minha dor

Guardava nos frios dias de Junho sussurros inaudíveis

Eram quase orações,

Eram apelos inúteis, pois os anjos estavam surdos

Fluía por cada canto do quarto uma expressão de angústia, lamento e esquecimento

Eu fora esquecido por ti,

E Deus consumou tua sentença

Tenho agora toda a intimidade do tempo para me consolar,

Tenho a companhia da massa fria que tempera a cidade,

Tenho o som do meu próprio coração, ao menos até ruir o império do silêncio

Poderia só chorar

Viver definitivamente na ausência das luzes e sofrer no escuro,

Ficar quieto e apático, sofrendo no frio que ocupou o vazio que você deixou

Mas não, não é só isso

A saudade não é só ausência, não é só vazio

A saudade também é cheia e plena

Poderia ficar sussurrando os sons inaudíveis,

E de nada valeria esse canto se permanecesse confinado no egoísmo da minha

autopiedade

Peço a essa mesma saudade que espalhe meus versos como se fossem folhas secas no

vento

Versos de folhas secas e mortas que quebram o silêncio ao serem pisadas nos bosques da

poesia

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Sob a bruma paulistana Paulo de Poty

Quero que pisem em meus versos

É preciso deixar que outros caminhem nesse campo coberto de amor convertido em

palavras

Estalar com as solas dos pés os versos de desencanto,

Sentir a textura desses fragmentos de morte seca

Os caminhantes que peregrinarem por esses campos vão sentir o vento em seus rostos,

Embaralhando seus cabelos e misturando os meus versos no ar

Quero que pisem em meus versos

Quero o desavisado caminhante descalço de seus pudores literários,

Quero que ele encontre a beleza no seu caminhar,

Uma beleza simples de crisântemos brancos,

Que brotam à margem do asfalto

Mas se não houver caminhantes,

Permanecerão puras as minhas palavras consoantes,

E o campo estará imaculado e o vento uivará sozinho

E indiferente a isto,

Permanece confidenciadas à saudade as palavras que são apenas minhas

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Esvaziando gavetas

(São Paulo, Abril de 2006)

Reviro as lembranças mergulhadas na saudade,

Atiro taças no espelho para me exorcizar,

Racho ao meio minha imagem inerte e plana,

Sem contornos,

Sem adornos,

Sem par.

Saia,

Tenha coragem,

Diga qualquer bobagem e feche a porta.

Saia,

Faça as malas,

Mas leve embora todos as marcas das paredes.

Cada palavra impregnada,

Cada gargalhada ecoada,

Cada suspiro nos travesseiros.

Leve tudo, não quero nada.

Não quero sua lembrança,

A beleza de teu sorriso a me azucrinar.

Nem a terrível indiferença de teu olhar.

Leve tudo, não quero nada.

Suprima tudo que contenha o menor vestígio de você.

Extraia toda a memória, remova cada pedaço de vida que você me presenteou.

Quero o oco,

Quero o nada.

Não penses que sofro,

Meu legado é minha alma – pura, lavada e purgada no sal de minhas lágrimas.

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Sob a bruma paulistana Paulo de Poty

Saia,

Deixe a chave na porta.

Leve consigo minha memória, apague a luz e deixe-me sozinha,

Sem ter nada do que me lembrar.

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Beijo de minha garoa

(São Paulo, Janeiro de 2007)

Você me abraça ao fim do dia,

Fina garoa, garoa minha.

Beijo delicado das nuvens,

Lágrimas dos anjos.

Precipita em minha boca, em minha nuca,

Fina garoa, garoa minha.

Abençoa meu corpo fadigado,

Lava minha alma.

Abre os flancos do céu,

Garoa temporã.

Alvorada de redenção,

Era de amor,

Primazia do calor,

Benção da nova estação.

Garoa minha,

Molha a rua nua,

Úmidos lábios de mulher,

Encantadas sereias urbanas, feiticeiras da beleza.

Ó, fina garoa,

Só não molhas meu amor,

Pois abrigado está de teus beijos,

Encasulado de lar.

Vou trazê-lo pra rua,

Pra que o beijos também.

Estou feliz nesse róseo azul de fim de tarde,

Vou para casa, p'ros braços do meu querer,

Vou encharcado de vontade,

Beija-me minha garoa, não me deixe fenecer.

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Sob a bruma paulistana Paulo de Poty

Outro prumo

(São Paulo, Janeiro de 2005)

Quando eu criar asas

Vou voar sem direção.

Mas não sou anjo do céu,

Nem ave de arribação.

Sou escravo de formigueiro,

Sou martelo de construção.

Na virada da pá,

Sou da pá virada.

Na tocada do boi,

Sou mugido na alvorada.

Minha boca aberta tá com sede de mar.

Tô parado no porto, meu caminho tá torto,

Na virada da pá.

Tô caiando a alma,

Tô virando a massa,

A vida é um melaço que quero me lambuzar.

Essa lida é terminada,

Tomo rumo nessa virada,

Tô no prumo de outra jornada.

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Sob a bruma paulistana Paulo de Poty

Olhar através da janela

(São Paulo, Abril de 2006)

Não foi mais que um enquadramento.

Foi um momento, um breve instante,

E eu lembrei.

Lembrei do meu olhar naquela janela sobre a sacada ornada de flores brancas e

vermelhas.

O casarão e o cheiro de chá do Barão.

Do lado de dentro, abrigado do sol que me procurava,

Vi a vida passar emoldurada:

Pensei ser aquele menino jornaleiro de calça curta,

Pensei ser o homem velho de cartola e bolsos cheios de prata,

Pensei ser a mulher gorda de luvas de renda,

Pensei ser o cocheiro que açoitava os cavalos,

Pensei ser o belo estudante e seu amante,

Pensei ser sua linda noiva que o esperava.

Foi um breve instante.

Logo estava de volta, no presente tedioso.

Através da janela eu chorei de saudade de um tempo que nunca vi.

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Sob a bruma paulistana Paulo de Poty

Primavera

(São Paulo, Abril de 2006)

Depois que o branco se dissipou,

A vida latente explodiu em cores.

A monotonia fria foi quebrada em pitadas de alegria.

Foi nas primícias dos tempos,

Quando as crianças cantaram as cirandas pela primeira vez,

Quando a brutalidade era o sentimento primevo da alma humana,

Quando matar a fome era a primazia da raça,

Veio a primavera.

Ah, eram tão doces as cantigas,

Tão saborosas as melodias,

Tão puras as risadas,

Que até o mais rude rachou a cara num sorriso.

Dálias, margaridas e orquídeas.

As azaléias,

Ah, as azaléias,

Floriam mais coloridas e vistosas a cada nova gargalhada.

Ri Aninha para florir a alfazema,

Ri Pedrinho para florir o jasmim,

Ri Marianinha para florir a calêndula,

Ri Joãozinho para florir o alecrim.

Ri menina,

Ri menino,

Que a mais bela flor nascerá do teu sorriso.

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Sob a bruma paulistana Paulo de Poty

O anjo da morte

(São Paulo, Abril de 2006)

Tenho, além da precisão das horas, o poder de parar os ponteiros.

Sou intangível e infalível.

Sou impiedoso.

Torço entre meus dedos as esperanças vis – quebro uma a uma.

Bato em cada porta, esteja ou não tingida de vermelho sangue.

- Sangue dos Cordeiros.

Pouco me importam os crucifixos,

Pouco me importam as rezas.

Ignoro os ícones, sejam negros ou amarelos.

Pouco me importam os livros,

Nem tão pouco as palavras.

Ignoro o orador e os dogmas.

Sou o redentor de asas negras,

De beleza maior e mais doce que a mais augusta imaginação do poeta.

E estarei a sua espera,

Em tua porta.

Quando eu tocar os ponteiros de tuas horas,

Não importa o que me digas, nem para quem rogues.

Eu não chorarei por ti.

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Sob a bruma paulistana Paulo de Poty

Um rio sinuoso

(São Paulo, Março de 2005)

Foi então, que de certa maneira, me perguntaram:

- de onde vens rio sinuoso?”

(como responder se não navegares na minha história?)

A montante de minhas águas encontrarás minha nascente:

Obscura, incerta e frágil.

As lágrimas de uma mãe me fizeram ganhar volume

E fui descendo o leito do meu destino.

Ainda rasas, mas claras, minhas águas atravessaram matas.

E elas, as águas, transformaram em verde vivo as folhas secas que

Caíam do Outono de muitos olhos.

- matavam a sede de uma vaga felicidade.

Mas cresci e aí veio a corredeira bravia.

O leito do meu destino era rochoso e traiçoeiro.

Chocando-se contra as pedras deste leito, minhas águas

Se feriam e eu sangrava.

A lei do inevitável me conduzia sempre a descer esse leito,

E cruzei as duras pedras.

Muitos provaram de minhas águas,

E quase ninguém conseguiu perceber o sabor

Daquelas águas insípidas.

Continuei descendo meu destino e

Encontrei nesse curso uma enorme garganta:

Era o salto para o novo. E eu caí.

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Sob a bruma paulistana Paulo de Poty

(tive medo, mas eu caí)

Uma longa queda com um final incerto.

Descobri, depois da queda, que havia um lindo vale.

Esse vale de pradarias e estepes verdes com o frescor

Do orvalho das manhãs sagradas.

Então pude entender:

Vim do incerto, do escuro, da dúvida.

Hoje corro sinuoso na planície do amor e

Viajo de encontro a outras incertezas,

Sonhando com a certeza do mar.

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Sob a bruma paulistana Paulo de Poty

Carta de Remo

(São Paulo, Março de 2005)

À minha mãe

Porque choras mulher?

Não sabes que o esplendor de tua alma

ilumina os caminhos de tuas crias?

Amamentaste a cria tua e da outra,

Tal loba de Roma em fúria e doçura.

Dividiste o pão de tua casa,

aceitaste o filho do rio da vida.

Mar de amor, deserto de egoísmo.

Liberta-te dos grilhões do pesado zelo materno,

tu és mãe e filha,

e assim como Lourdes agora choras.

Ria-te, alegra-te de tua obra,

pois vive e se compraz

com o viver dos que são seus.

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Sob a bruma paulistana Paulo de Poty

Apesar de tudo

Mais um dia cruzou meu caminho.

- Apesar de tudo.

Apesar de tudo, sou muito pouco

Enchendo de nada um tempo que passa

Rápido demais.

Mais um dia cruzou o céu.

E o sol, ignorando o que for meu,

Corta o azul que, como ele,

Ignora-me.

Mais um dia fadou meu braço.

Na fagulha que cinge o aço,

Suo e dobro a dor,

Enchendo de nada, seja o que for.

Apesar de tudo, ainda sou nada.

Não importa o que faça,

Há quem rouba e há quem mata,

E há quem seja assim, de nada.

Mais um dia somou meus anos.

- Sê jovem, sê velho.

Minha alma me divide ao meio.

- Sê belo, sê feio.

Mais um dia findou.

E apesar do fadado braço e

Do suor da pele queimada,

Ainda sou assim, de nada.

Pois de nada adianta ser mais,

Quando quem rouba e quem mata

À mim são iguais.

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Sob a bruma paulistana Paulo de Poty

A sombra

(São Paulo, Novembro de 2006)

Estou no final da linha diante de portas fechadas.

Todas translúcidas e maçanetas de metal fosco.

Por trás de uma delas, a sombra.

Fico quieto.

E ela dança um movimento sem ritmo,

Por vezes desaparece

E num novo instante surge.

Fico quieto, paralisado.

Da mesma forma que assusta,

A sombra me seduz.

Incide sobre ela uma luz intensa.

Até ali foi um arriscado e longo caminho,

E estou com medo de errar.

Ó medo, eterno companheiro, deixa-me só.

Ainda tenho a segurança insípida das portas sem sombras.

Posso resistir ao meu alumbramento e nunca saber o que me espera.

Abrindo as portas erradas, sem mistério nenhum para descobrir.

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Sob a bruma paulistana Paulo de Poty

Ferruada

(São Paulo, Janeiro de 2007)

De todas as minhas confissões a mais difícil,

Verdadeiramente,

Será esta: não sei fazer poesia de alfinin.

Essa é minha ferruada.

Versinhos coloridos e doces,

Cantando o amor de literatura,

Glorificando a eternidade dos sentimentos,

E a monotonia dos prazeres únicos.

Poesia tem que ter vida,

Energia e sedução.

Poesia é sangue na veia,

É tesão.

Rasgue esses versos,

Jogue-os no lixo se você for um ursinho de pelúcia.

Eu sou humano e tenho fome.

Tenho fome de prazer e conhecimento,

Fome dos Titãs.

Poesia é sangue na veia,

É a erupção do suor,

É atitude,

É fazer.

Poesia tem poder de fé,

Move montanhas,

Transpõe rios, vales e fronteiras.

Conquista paixões,

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Sob a bruma paulistana Paulo de Poty

Abraça os amigos,

Beija na boca e extende a mão.

A poesia é megalomaníaca,

É urbana e viril.

É dizer o que pensa,

É se expor e ser verdadeiro.

Poesia é abrir o coração e tirar as máscaras,

Misturar as peles, as cores, as religiões e os sexos.

Grafitar a arte nos muros,

Ser estátua viva nas praças,

Churrascada e essaio de escola de samba,

É vender biju na feira.

As palavras têm poder de modificar as almas,

Construir um mundo melhor, ou pior.

Depende de sua verdade.

Eu quero a poesia modernista dos Andrades,

De sapos vaiados,

De paulicéia eternamente desvairada.

Eu odeio poesia de alfinin.

Esse é minha ferruada.

Poesia é o respeito à diferença,

É o lúdico sexual,

É o amor verdadeiro, sem egoísmo, sem mentira.

Poesia é o exercício do amor.

Um amor livre de ódio e hipocrizia,

Livre de rótulos e preconceitos.

Um amor sedento de prazer de carne e afeição.

Poesia é o que está na rua,

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Sob a bruma paulistana Paulo de Poty

Nas pessoas, nas famílias,

Nos becos e guetos.

Poesia agridoce é melhor.

Docinho de côco é bom para festa de nenên,

Eu gosto de chocolate amargo,

Mel só se for com limão,

Gosto do abraço de um amigo e a distância do não.

Poesia é olhar no olho quando se fala com o irmão,

Não ter vergonha de errar,

Não ter vergonha de cantar desafinado,

Não ter medo de ser verdadeiro,

Não ter medo de ser por inteiro.

Eu não sei fazer poesia de alfinin.

Essa é minha ferruada.

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Sob a bruma paulistana Paulo de Poty

Errantes

(São Paulo, Janeiro de 2007)

Deixo cair sobre o papel as lágrimas das minhas confissões,

A aspereza de muitas palavras que não digo,

O vômito das impurezas, das incertezas, dos medos, dos erros.

Carrego toda sorte de pecados impregnados na minha alma,

E para minha sorte são pecados comuns à todos,

Não peco sozinho.

Mas todos os pecados deixam de ser capitais,

Quando o capital valida seu exercício.

- Como eu não tenho capital, sou pecador.

Carrego na alma os pecados de minha raça,

Criados a partir dela, sob a ditadura de seu juízo, sob a conveniência de seus ganho$.

Elegi de meus pecados o maior deles, o mais legítimo.

Invejo a irracionalidade pura e santificada dos animais - melhor ser bicho.

Quando caminho nas tramas das ruas da capital, observo os bichos de minha raça ao

meu redor.

Errantes como eu mantendo num pretencioso mimetismo a prática normalidade.

Errantes pecadores, carregando o capital nas bolsas e nos bolsos das bundas,

Trajando frias luzes artificiais, mas a pele do corpo ardendo na verdade da carne.

Tenho inveja da santidade dos animais,

Sua naturalidade aceita, despercebida, venerada.

Sou um errante pecador e condenado pelos outros pecadores como eu.

Sou condenado por vomitar o que me faz mal,

Não aceitar os venenos doutrinados nas conveniências,

Não deglutir a vergonhosa hipocrizia citadina,

Por deixar as impressões de minhas lágrimas no papel.

Como todos os outros de minha raça,

Habito a fluidez do meu corpo sob a pele,

E compartilho com eles do medo de ser verdadeiro,

Do medo de exercer o amor,

Do medo de deixar a alma fluir além da pele,

De deixar cair a máscara, de espelhar o outro nos olhos,

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Sob a bruma paulistana Paulo de Poty

De ajoelhar e ser humilde.

Quando choro, choro por mim e por eles.

O fardo dos poetas é invisível aos olhos da maioria,

Nos rótulos equivocados, julgamentos distorcidos.

Todo o pecado humano está impresso na poesia ao redor do mundo,

Nos livros de ontem, de hoje e em todos de amanhã.

Sob as mais variadas formas de expressão,

Os pecados marcam e pautam todos os versos, crônicas e contos de nossa raça.

O caminho para a condição divina do homem é longa,

Os atalhos são abertos, mas insistimos em usar desvios dogmáticos.

Os atalhos estão abertos na essência pura e simples dos animais e seus pecados,

Na essência pura e simples dos nossos pecados,

Na essência pura e simples do exercício do amor,

Na essência pura e simples da arte poética que une isto.

Errantes você e eu,

Meninos e meninas,

Filhos do planeta que erra no universo.

Quando aceitamos o moralismo dos templos, aceitamos a mais vil das torturas humanas,

Deixamos nos torturar na castidade que nos desumaniza,

Negamos veementemente a nossa própria natureza,

Negamos o amor que nos faz feliz, em troca da conveniência que nos amargura.

Somos errantes pecadores ácidos,

Cozidos no azedume do caldeirão dos dogmas de falsa racionalidade,

Dissolvendo a natureza,

Cerceando nossa liberdade,

Nossa felicidade.

Invejo a irracionalidade dos animais - santificados sejam.

Conservam em seus habitos a mais pura essência da criação,

Nas savanas africanas, nos rios do amazonas,

Nos desertos do oriente ou os mares do ocidente,

Nos casulos dos insetos,

Nas tocas das feras,

Nos ovos da aves,

Nos ventres das fêmeas - templos da vida,

No uivo do lobo, na presa abatida,

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Sob a bruma paulistana Paulo de Poty

No vôo de um abutre,

No coito incestuoso de um felino.

Vivemos num mundo de valores invertidos,

Onde a soberba é confudida com "glamour",

A honestidade é confundida com tolice,

Um mundo que aplaude e se compadece de assassinos e ladrões,

Glorifica a forma, despreza o conteúdo,

Qualifica o ter, ignora o ser.

Deixo cair sobre o papel a minha dor cética.

É a melhor forma de purgar meus pecados.

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Sob a bruma paulistana Paulo de Poty

Nau e cadafalso

(São Paulo, Janeiro de 2007)

Folheio as folhas e sinto a brisa no nariz

Leio as linhas dos versos do testemunho que escrevi

Aturdido na confusão das palavras,

Admiro a cruz de mármore que eu mesmo esculpi

Cada poema um novo cadafalso,

E os versos laçam meu pescoço

A máscara do carrasco já não o esconde mais,

Sou eu por trás do pano negro

Folheio as folhas a esmo,

Sorvo do meu próprio veneno.

Meu trabalho são folhas ao vento, é nau ao mar.

Meus sonhos já não são só meus,

Minha ferida está aberta,

E quando a calmaria acabar, estarei pronto pra velejar

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Sob a bruma paulistana Paulo de Poty

Rubra doçura

(São Paulo, Fevereiro de 2007)

Pétala de delicadeza e amor,

Sua pele, rubra flor.

Germinaste da simplicidade das sementes

E na mansidão do tempo erqueste teus galhos

Em louver aos céus.

És a noiva dos outonais ventos de Maio,

Resplandecente na beleza de tuas flores.

E danças,

E danças,

E danças.

No balé dos ventos cobres de cor o chão escuro,

Devolvendo a terra a fecundidade que dragas.

Lá está o poeta,

Colorindo com imaginação,

Sonhando com tua beleza,

Estasiado de facinação.

(encantada cerejeira)

Violáceas madrepérolas,

Maduros sabor e rubor,

Contas do colar da deusa,

Vênus vestida de amor.

(nobre madeira)

E danças,

E danças,

E danças.

Quando tuas flores choram, os anjos descem a Terra

Para te contemplar e sorver a doçura de teus frutos rubros.

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Sob a bruma paulistana Paulo de Poty

Poema de caminhar

(São Paulo, Julho de 2007)

Preciso de um poema pra me deixar partir

Exausto e mudo,

Uma lápide de negro granito,

E o sol vai reluzir em ouro

Vou despido nesse campo aberto de feridas vivas,

Ronronando minhas lembranças e receios,

Açoitado pela brisa amiga, fria

Brisa de mar

Preciso de um poema pra me deixar viver

Um século a mais sequer,

Quieto e empoeirado em prateleiras,

Vivamente sepultado nas palavras

Vou vestindo minhas culpas e pecados,

Colando os cacos da derradeira dor,

Retalhos de minha vida alinhavada

Retalhos de amor

Preciso de um poema pra me ensinar a amar

Como nos contos e nas lendas,

Satélite errante a gravitar,

Ver apenas tua mais bela face

Vou somando os dias e os anos,

Desconhecendo meu rosto no espelho,

Dividinho contigo o mesmo caminho

Poema de caminhar

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