Sob o Sol Da Andaluzia

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    SOB O SOLDAANDALUZIA

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    (Pelo EspritoRAFAEL)Ktia Ferraz

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    INTRODUO

    H alguns anos atrs, quando iniciava os trabalhos espirituais, numa deminhas viagens a lugares interessantes quando em sono fsico, conheci ahistria de um jovem, cuja nica coisa da qual me recordei ao despertar foi deuma melanclica e envolvente melodia, cantada num idioma por mimdesconhecido. Nosso pequeno grupo sempre foi muito envolvido pela msicae algumas prolas nos tm sido concedidas por estes amigos da espiritualidadeatravs da mediunidade abenoada de uma companheira de romagem.

    Um dia, aproximou-se de mim um esprito muito simptico e agradvele nos fez lembrar os detalhes que envolviam a trama escondida por detrs dabela melodia. Dizia-se chamar Rafael e logo nos inspirou a escrever oepisdio que marcara uma de suas existncias e que fora a causa de tantos

    dissabores para ele.Rafael no um Esprito Superior, somente um irmo que tentaavanar sem errar, como todos ns. Sua histria comovente demonstraclaramente o quanto j se deixou levar pela vaidade e pelo orgulho. Contudo,esfora-se, reconhecendo suas dificuldades e limitaes, trabalhando em proldo prximo na espiritualidade e aguardando o momento do retorno carne,esperando angariar crditos suficientes para continuar merecendo o amparo eestmulo desses amigos espirituais com os quais hoje labuta. Sem desejar nadamais a no ser contribuir de alguma forma na divulgao doutrinria, utiliza-sedo pseudnimo procurando manter sua verdadeira identidade em segredo e ados demais protagonistas preservando-os e a ele mesmo de quaisquereventuais problemas que o reconhecimento poderia causar.

    Com um carinho muito grande, confidenciou-nos seus sofrimentos esuas alegrias e pede-nos vibraes amigas para o seu futuro retorno. Tentandoser o mais fiel possvel ao que me foi inspirado, passo a vocs, dez anos aps arecepo da melodia, a histria fascinante desses personagens para que todospossam saber o que se passa quando ouvimos sua msica cigana, muitoembora nossas limitaes medinicas nos impeam de explorar toda aintensidade dos acontecimentos que pudemos vislumbrar. No esforo conjunto

    para acertar, enviamos o nosso pequeno trabalho esperando que todos tirem omelhor proveito das lies que esse jovem valoroso aprendeu com muitosofrimento.

    Como no posso passar ao leitor a melodia que ouvi, recomendo ouvir oConcerto de Aranjuez, com John Williams ao violo. As nuances destamelodia nos permitem sentir todos os momentos cruciais, a beleza e osofrimento de um amor proibido.

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    CAPTULO I

    ...ao pertencer ao Esprito a escolhade provas que deva passar, seguir-

    se- que todas as tribulaes queexperimentamos ns as previmos?

    _todas, no. As particularidadescorrem por conta da posio em quevos achais; so, muitas vezes,conseqncias das vossas aes...(Livro dos Espritos- Cap. VI)

    Andaluzia, sc. XIX

    Soraya desceu da carroa enfeitada com fitas vermelhas e verdes eesgueirou-se pelos cantos at atingir a parede da taberna. Estavam todosdormindo quela hora da madrugada. Ningum a veria quando colocasse obeb, que dormitava num cesto em seus braos, junto porta da dona databerna. Parou na pequena escada de madeira carcomida e olhou novamenteem volta para assegurar-se de que ningum a observava. Depois, olhou para orostinho rechonchudo da criana, sentindo um aperto no corao. Beijou-omais uma vez e assegurou-se de que a medalhinha que colocara em seupescoo ainda estava no mesmo lugar.

    Com lgrimas nos olhos, depositou o cesto prximo porta e afastou-serpida.

    Seu corao sangrava enquanto subia na bolia da carroa. O homemforte que segurava as rdeas observou seu rosto decomposto pelo sofrimento

    com infinito pesar. A um sinal seu, ele ps os animais em movimento,afastando-se o mais rpido que podia. No caminho entre as matas, Sorayatentava segurar os soluos, porm seu fiel Miguel no se deixava enganar poraquela frieza.

    _ Tem certeza de que isso mesmo que quer, Soraya? perguntou,duvidoso.

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    _ Sim, tenho _ respondeu a cigana, decidida. Ento deu vazo aossoluos que lhe sacudiram o corpo magro e gil.

    _ No era melhor deix-lo com o pai? _arriscou-se o amigo._ No! Nunca! Jamais saber que tive um filho dele! _ respondeu a

    mulher, rspida. _ E eu o probo, Miguel, de contar que sou a me do pequeno!Prometa-me, prometa-me que no falar a ningum, jamais!

    Miguel assentiu com a cabea. O que no fazia por sua Soraya? Semprea amara, daria a vida por ela! Infelizmente, o destino resolveu que ela jamaisseria sua! Mas ainda assim, ser-lhe-ia fiel at a morte.

    _Ningum saber, nem ele! tornou ela, enxugando os olhos._Mas...e seu marido? O que vai dizer-lhe quando no aparecer com o

    beb? Afinal, ele acredita que seu filho!_ Janus achar que o perdi, que meu beb est morto. isso que vou

    dizer-lhe, Miguel. Que o beb no sobreviveu doena misteriosa. E voc ir

    confirmar o que digo!_Sim, Soraya. o que direi tambmconcordou ele, desanimado.

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    CAPTULO II

    Ah, a Andaluzia!Terra quente cujo povo alegre danava ao som dos violinos ciganos!

    Eles aportavam cidade todo vero, trazendo danarinas maravilhosas, comsuas vestes coloridas e seus pandeirinhos barulhentos! Os soldados ficavamcados por elas! Quem no ficaria?

    Rafael no era diferente dos soldados. Tambm amava as ciganas! Nofosse sua me ser to clara e ele acharia que tambm havia sangue cigano emsuas veias. Os cabelos pretos e encaracolados, a pele morena e os traos,rudes, porm harmnicos, no o diferenciavam muito daquela raa de ciganosespanhis que costumava acampar nos arredores da vila. No fossem os

    mesmos olhos azuis de seu pai, nada impediria de ser confundido com umdeles.Ah, os ciganos! Tambm a guitarra em suas mos adquiria vida prpria

    e sua voz de bartono encantava as moas casadoiras. Seu corpo flexveldobrava-se voluntarioso e seus passos flutuavam quando danava! No raro,enlouquecidas de paixo, as guapas juravam-lhe amor eterno!

    Mas Rafael era somente o filho do taberneiro e no tinha um tosto,nem mesmo para dar sua namorada um boto de rosa! No alto de seus vinteanos, era a alegria das noites quentes de vero ou o calor das invernais! Suavoz envolvia a todos numa atmosfera de magia e encantamento e era a atraoprincipal da taberna da cidade. Despojado e talentoso, tinha muitos amigos esempre que se apresentava, todos aplaudiam seus passos de perfeito bailarino.

    Naquele momento em que um grupo de ciganos passeava pela praatocando seus instrumentos e fazendo malabarismos, divertia-se eleimensamente misturando-se turba alegre ora segurando uma danarina, orafazendo piruetas com os jovens artistas mambembes.

    Essa era a vida que queria! Sair por a, despreocupado, comendoquando tivesse algo para comer ou tomando banho no rio quando desejasse eno quando sua me lhe puxasse as orelhas! Era um ultraje com aquela idade

    ainda ter uma me que lhe dava belisces! Gostaria de ser livre como umpssaro!E assim pensava o nosso jovem rapaz, acreditando que a vida dos

    ciganos era fcil! No imaginava sequer as privaes do inverno, quando nohavia comida e nem festas para ganharem dinheiro! No imaginava que todosprecisavam de um ofcio, qualquer que fosse, para contribuir e conquistar odireito de viver na tribo. Sim, pois quem no produzia, no poderia fazer parte

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    do bando cigano. No importava ao rapaz sonhador perceber as dificuldades,pois na sua vida pobre, por incrvel que parecesse, tudo era alegria ebrincadeiras! Mas os dias passariam cleres na sua curta existncia e a dor,que a todos chega, tambm lhe faria uma visita. No agora, no naquelesinstantes de euforia carnavalesca!

    Era dia de festa na taverna e naquela noite haveria uma apresentaoespecial da famosa danarina cigana que todos cobiavam e amavam. Era anoite de Soraya!

    Rafael correu para a casa de sua me nos fundos da taberna, a fim decomunicar aos pais o evento especial. Entrou esbaforido por uma porta velha eesbarrou numa senhora imensa que cozinhava alguma coisa no fogo a lenha.

    _ Menino! Veja o que fez!ralhou a matrona, mostrando o avental todosujo de molho vermelho.

    Rafael deu-lhe um sorriso e a abraou por trs, apertando suas

    carnes...ou gorduras!_ Ora, Maria! No v que estou apressado? Depois eu ajudo voc avender essa coisa. Agora, onde est minha me? Preciso muito falar com ela, urgente!retorquiu, estalando um beijo nas bochechas rosadas da ajudante.

    Ela fingiu que estava aborrecida e tornou a ralhar com ele. Mas depois,respondeu:

    _Sua me est no balco da taberna. Seu pai no se sentia muito bem eela foi substitui-lo. Por isso estou sozinha aqui e voc ainda vem me atrapalharcom as suas peraltices!

    _ No seja rabugenta, Maria! Vou ver minha me e depois vou ver meupai!

    Antes de sair, ele tentou pegar um pedao do frango que assava sobre abrasa. Maria deu-lhe uma colherada na mo boba e ele saiu correndo, rindo desua fria.

    No balco, a me atendia a alguns homens que pediam bebidas aindamuito cedo. Tinha gente que no se emendava mesmo, pensava ele, indignado.Aproximou-se e inclinou-se sobre o balco.

    _Me! Que faz aqui sozinha? _ perguntou, como se no soubesse.Consuela olhou de cara amarrada para o filho, segurando uma caneca de

    cerveja preta._ Ora, tenho um filho ingrato que s quer saber de danar e agarrarmoas bonitas! _ respondeu, fingindo uma raiva que estava longe de sentir.Ver o rosto amado de seu menino a enchia de orgulho. Como era belo o seurapaz! O seu sorriso produzia um efeito devastador nas mocinhas da vila e noraro, ela mesma tinha que descartar algumas companhias inconvenientes paraele.

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    _ Madrecita, o que isso! No sabe que eu tenho que ensaiarconstantemente? Como poderei ser o artista famoso que desejo se no medeixar exercitar?

    _ Exercitar? Gostaria de saber o que exercita constantemente! Tenhoa impresso de que a voz s serve para enfeitiar as moas e no para cantarna taberna! Rosalita esteve atrs de voc agorinha mesmo.

    _ E o que disse a ela? _ ele perguntou, ansioso. Rosalita era suanamorada e ficou preocupado.

    _ A verdade. _ Consuela entregou a caneca para o homem impaciente. _Que voc estava na vila, andando atrs de alguma cigana bonita!

    Rafael saltou o balco e abraou a me, meio desesperado._ Madre, diga que est brincando comigo! No disse isso, no ?_ Disse sim! Est na hora de no ficar mais enganando essa menina! Ela

    est caidinha por voc e, s vezes, tenho vergonha de ser sua me, seu

    ...enganador de mulheres!_ Oh!..._ ele gemeu, como se sentisse alguma dor. _ E agora, como vouconsertar as coisas? Oh, me! Como pode conspirar contra seu filho?

    Consuela observou a cena e avaliou se deveria dizer que mentira. Bem,era melhor no. Seu filho precisava de uma lio. Deixaria que ele sofresseum pouco. S um pouquinho!

    Mas Rafael recuperou-se com a mesma volubilidade de sempre. Semdar mais importncia ao assunto, pegou as canecas das mos da me e foiservir as mesas. Depois comentou, como quem no quer nada.

    _ Me, sabe que os ciganos esto na cidade, no ?_ Pois ento no sei?_ Sim, verdade. Bem, a senhora tambm sabe que a cigana Soraya ir

    danar aqui esta noite, no?_ Soraya? Aqui? _ Consuela agitou-se. _ Quem lhe disse tal asneira?

    claro que no!Rafael sorriu um sorriso matreiro e a me desesperou-se._ No!_Sim... _ respondia ele, feliz._Oh, madre de Dos! Mas como pode ser? Quem providenciou isso?

    Olhe o meu estado! O que vou fazer? A taberna vai entupir de gente! Vir acidade inteira e eu estou s!Sua me estava to agitada que Rafael sentiu pena. Pegou-lhe uma das

    mos e tentou acalm-la._ Eu ficarei aqui com voc, me. E papai tambm, com certeza. No se

    preocupe, vai dar tudo certo, vai ver! S teremos que preparar algumascoisas...

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    _ Algumas coisas? Muitas coisas! Vamos trocar as toalhas das mesas etirar mais canecas do depsito! Temos bastante vinho? E cerveja?

    A tudo Rafael respondia que sim e ajudou sua me at no agentarmais o cansao. Estava quase arrependido de ter pedido ao seu amigo, o sr.Ortega, que arranjasse tudo. Ele mesmo no jamais vira a cigana, porm suafama era grande e a beleza excedia ao talento, diziam. Seu sangue quente jfervia por antecipao, louco de vontade de v-la.

    _Madrecita...ser que posso tomar um banho, agora? _ implorou ele,olhando com desgosto a roupa toda suja de bebida e gordura. Nunca trabalharatanto! Devia estar lastimvel! Ningum poderia v-lo assim!

    Consuela parou e olhou para o filho desgostoso. Sentiu vontade deespica-lo, mas logo viu que no deveria. Rafael era um bom filho, apesar detudo. E sonhava em ser um artista famoso. Sua aparncia era essencial para acarreira, dizia ele.

    _ V. Mas volte logo! Vou precisar de voc aqui esta noite._ Nada vai me afastar daqui, minha me! Nem um dilvio! _ Ele falou,pulando o balco e correndo para o fundo do bar.

    Rafael pegou um balde de gua fria e foi para os fundos do quintal ondecostumava tomar banho. Tirou as roupas rapidamente e entrou na tina. A guaestava gelada, mas o sangue estava to quente que no se importou de esfri-loum pouco.

    A tina de madeira era alta e cobria-lhe quase todo o corpo. Fizera umageringona prendendo o balde no alto, deixando um cordo pendurado paraquando precisasse enxaguar-se. Era s puxar e o balde virava. Um arranjointeressante, pois economizava gua. Sua me ralhava, dizendo que economiaseria tomar banho no rio, mas seu pai aprovara o invento.

    Ensaboava-se e cantarolava uma de suas canes prediletas quandoouviu um risinho abafado. Estava escuro e quase no podia ver nada. Forouos olhos para as moitas e rvores logo adiante e esperou. Como no ouviumais som algum deu de ombros e ps-se a assobiar. Parou novamente quandotornou a ouvir os risinhos.

    _Quem est a? perguntou. _ Se no disser quem vou sair daqui e iratrs. Olhe que posso ..._ ele comeou a sair da tina mas logo parou e afundou

    o corpo na gua, corando de vergonha._Rosalita! Mas...o que faz a escondida?Rosalita saiu da moita junto com mais duas amigas e aproximaram-se._ Pare! _ ordenou ele, desejando sumir. _ Fique onde esto! O que

    pensam que esto fazendo? Ser que um homem no pode banhar-sesossegado?

    Elas riram.

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    _ No queramos aborrecer voc falou uma delas. _ S fizemosuma...aposta.

    _ Aposta? Que aposta?_ Quem teria coragem de v-lo tomar banho!falou a outra._ Mas...isso um absurdo! _ ele estava engasgado de indignao. _

    Rosalita, francamente! Como pode fazer isso com o seu namorado?_ Eu no..._ No foi culpa dela! _ interromperam as outras meninas. _ Fomos ns

    que a obrigamos. Agora vamos embora e voc pode tomar seu banhosossegado.

    _ Ah, sim? Pois vocs no queriam ver um homem tomar banho? Entoagora vo ver como um homem nu!

    E dizendo isso, ele comeou a sair da tina. Como previra, as meninasderam um grito assustado e saram correndo. Ele estava pasmo!

    _Aposta, ora essa! resmungava, enquanto voltava a entrar na gua.Ficou horrorizado quando ouviu novamente um risinho e depois os passosdelas correndo.

    _Quem disse que as mulheres so inocentes? tornou a resmungar edepois riu. Era inacreditvel! Pegou o cordo e puxou, deixando a gua cairsobre sua cabea.

    * * *

    A casa fervilhava e Consuela no estava dando conta do recado. Ospedidos acumulavam-se e Rafael estava ficando desesperado. Por sorte, seupai se recuperara da enxaqueca e estava no bar, enchendo os copos.

    Alguns ciganos misturavam-se turba e o barulho dos risos e vozes eraensurdecedor. Pediram que Rafael tocasse alguma coisa para eles e o rapazhesitou alguns segundos. Como os pedidos fossem insistentes, ele olhou para a

    me, esperando sua autorizao.Ao sinal da me, Rafael pegou o violo e sentou-se numa das mesas.Imediatamente todos fizeram silncio para ouvi-lo. Soraya era conhecida, masaquele rapaz tambm tinha talento.

    Aos primeiros acordes de uma melodia conhecida, ele comeou acantar, envolvendo a todos com sua voz belssima. O timbre quente atiava o

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    corao dos ouvintes. Rafael cantava com paixo, um sentimento intenso queestava dentro de seu peito.

    Estavam ainda envolvidos nas vibraes dos ltimos acordes quando osom de vrios violes invadiram a taberna e todos se voltaram para a porta.

    Em expectativa, os coraes aos saltos, eles ansiavam pela entrada deSoraya, pois j sabiam que esta era sua apresentao. Os violonistas entraramcom suas blusas bufantes, lenos coloridos na cabea e brincos em uma dasorelhas. O centro do salo foi sendo esvaziado para que a cigana entrasse. Eum murmrio elevou-se no ar quando a Bela, como era chamada, apareceu.

    A roupa vermelha, os brincos e colares dourados, o guiso nostornozelos, os cabelos negros e brilhantes e os lbios rubros de sangue, tudo,tudo encantava e envolvia a multido. Uma multido que nem mesmorespirava, para no atrapalhar a evoluo do espetculo.

    E Soraya danou! Toda a sua alma extravasava paixo. Seus

    movimentos, ora frenticos e agressivos, ora suaves e lnguidos pareciamtornar especial cada homem no salo.As mulheres no gostavam de Soraya, porm, no conseguiam impedir

    a admirao por sua dana. E para Rafael, no havia ser mais extico na faceda terra! Seu corao saltava como louco no peito e seus ps mal conseguiamficar parados, querendo segui-la. Aos ltimos acordes, a cigana aproximou-seo suficiente dele para v-lo e observar sua admirao. Seus olhos seencontraram, porm ela logo os desviou e, num final emocionante, deixou-seescorregar para o cho, prximo a seus ps.

    A ovao geral era estonteante! Emocionado, Rafael aproveitou aoportunidade e estendeu-lhe. Ela a aceitou e agradeceu, levantando-se.

    A mo do jovem suava e tremia levemente. Soltando-se, a Bela lanou-lhe um olhar carinhoso e partiu de repente. Rafael tentou segui-la, mas aspessoas abarrotavam a sada com o mesmo intento. Quando conseguiu abrircaminho, decepcionou-se.

    Ela no estava mais l. Fora-se como viera, como uma rajada de ventoou um furaco. E ele sentiu um vazio estranho em seu corao, como se umaparte dele tivesse sido arrancada e levada com ela. Estava apaixonado?Talvez no, mas como saber? O que sentia era um misto de tristeza e euforia!

    Voltou para a taberna e continuou a ajudar sua me.

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    CAPTULOIII

    Alm da simpatia geral, oriundada semelhana que entre elesexista, votam-se os Espritosrecprocas e particularesafeies?_Do mesmo modo que os homens,sendo porm mais forte os laosque os ligam uns aos outros

    O dia estava muito quente. As oliveiras ofereciam sombra agradvel,onde escondiam-se alguns pequenos animais.Rafael passava com seu cavalo por dentro da propriedade, a fim de

    cortar caminho. Sara quela manh na esperana de encontrar a carroa dacigana Soraya, pois acreditava que estivesse com os outros, nos arredores dacidade. Mas enganara-se. Onde ser que se escondera aquela mulher? Queriav-la a ss, conversar um pouco e quem sabe...

    Mas a cigana fugira dele, fugira de todos. Estava desanimado, acaloradoe com sede, por isso no hesitou em invadir a plantao do Visconde Albertode Monteblanco. Sabia que no poderia ir por ali, pois a violncia de seuscapatazes era conhecida. Mas resolveu arriscar. Estava cansado e queria pararum pouco no riacho que cortava aquelas terras. Ningum se importaria sebebesse um pouco de gua, afinal.

    Descendo do cavalo, caminhou para perto do rio e sentou-se sombrade uma rvore. Molhou o rosto e enxugou-o com o leno que sempre levavaao pescoo. Remexeu na argola que pendia de uma das orelhas, ajustando-a.Era interessante como se parecia com um cigano! At o brinco usava! Forasua opo e o colocara ainda jovenzinho.

    A brisa fresca trouxe-lhe algum alvio. Deitou-se sobre a relva e fechou

    os olhos. Nem percebeu que adormecera, s quando alguma coisa o assustou.Sentou-se rapidamente tirando o chapu do rosto. Percebeu ento obarulho de vozes femininas no outro lado do riacho. Esgueirou-se pelas moitasat v-las e sorriu, surpreso.

    Eram duas senhoritas e elas molhavam as pernas na gua fresca. Umadelas falou alguma coisa engraada e a outra riu, levantando mais um pouco assaias, deixando a mostra as pernas claras e bem torneadas.

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    _Hum, bonitinhas! murmurou ele, aproveitando-se da invisibilidade.A outra falou alguma coisa e comeou a sair do riacho, porm a menina maisnova, com as saias nos joelhos, no queria ir embora. Acabou dispensando aoutra com um aceno e continuou a andar pela lagoa.

    Ela vestia-se de rosa e branco e parecia to fresca quanto um boto dabela flor. Rafael continuou a observar at que a viu aproximar-se cada vezmais de seu esconderijo. Foi quando o chapu que ela usava voou e veio cairna gua sua frente.

    E agora, que fazer? Deveria pegar o chapu e devolver-lhe, como fariaum cavalheiro? Ou ficar ali at ser surpreendido pela moa?

    De qualquer maneira, no houve tempo para decidir, ela veio correndoatrs do chapu e deu de cara com ele. A princpio, pensou que fosse gritar,mas ela ficou calada, olhando-o surpresa.

    Parecia que no conseguia deixar de fit-lo. Rafael levantou-se,

    atarantado. Nunca vira rosto mais belo e angelical! Seus olhos claros como ocu, de um azul lmpido e transparente, a face rosada com uma pele depssego e os lbios vermelhos e suaves eram emoldurados por cabeloscastanho-claros, quase louros, penteados em cachos brilhantes. Tinha um rostode corao.

    Ela o fitava com a boca levemente aberta de espanto e os olhos estavampareciam assustados. Porm, logo se tornaram curiosos, examinando-o dacabea aos ps. Ele sentiu-se constrangido e pensou na sua aparnciaempoeirada.

    De repente, ela sorriu. E seu sorriso aqueceu o corao de Rafael. Eletambm sorriu com todo o seu charme e o efeito foi devastador!

    _Ol! _ saudou ele, segurando o leno vermelho._ Ol! _ respondeu ela, ainda com o vestido acima dos joelhos.Muito bonitos, por sinal, pensou ele.A moa corou e pareceu ler seu pensamento, pois largou as saias

    imediatamente. Sua faces tingidas de rosa a tornavam mais encantadora aosolhos do jovem deslumbrado.

    _ Quem voc? o novo empregado de meu pai?_ ela perguntou,franzindo o cenho.

    _Seu pai? Oh, no! No sou. Estou s de passagem. Moro na cidade respondeu, embaraado._Oh...e como se chama?_Meu nome Rafael, a seu dispor fez uma reverncia desajeitada e

    ela riu. Que lindo era o som de seu riso, pensou ele admirado, era como otilintar de vrios cristais!

    _ O meu Jenima, sr. Rafael.

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    Ela tambm inclinou-se e ele achou que estava zombando dele._Ora... Jenima . Que nome estranho esse! Jenimaele saboreava o som

    de seu nome. _, combina com voc. muito bonito._ Obrigada. Pode ajudar-me, por favor?ela pediu, estendendo a mo

    para sair do riacho. Rafael ajudou-a, chegando muito prximo. Ambos ficaramparados, olhando-se como se estivessem ss no mundo. De repente, elaafastou-se, constrangida.

    _Disse que estava de passagem. Por que est em minhas terras?_Sua terras?_Sim. Quero dizer, de meu pai._ filha do Visconde?_Sim. J no o disse?ela respondeu com suavidade e voltou-se para

    ele. _ No sabe que ele no gosta que entrem em nossa propriedade? Podialevar um tiro...

    _ E isso...a preocuparia? _ ele aproximou-se mais e observou suaexpresso._ Sim...quero dizer, no! Como no me preocupar se algum pode

    morrer?_Sei... Olhe, senhoria Jenima, eu vou embora, se quiser. Mas no tenho

    medo de seu pai.Ela franziu novamente o cenho. Como era jovem, quase uma menina

    ainda!_ Pois deveria ter. Mas no importa isso agora. Voc sempre vem aqui?_Sim, algumas vezes quando preciso me refrescar. Gosto do riacho e

    dessas sombras generosas. E a senhorita? Eu nunca a vi na cidade._Eu no costumo sair da propriedade, meu pai no deixa. Depois, tudo o

    que preciso est aqui mesmo. Nasceu aqui, sr. Rafael?_ Sim. Mas tenho esperanas de um dia ir para Madri. meu sonho! _

    Rafael falava com um sorriso encantador. Pareciam amigos de tempos! Sentiaque a conhecia de algum lugar, mas no precisava de onde. Ela era to linda!

    Observou-a andar graciosamente com o chapu rosa nas mos e o oscabelos ao vento. Seus cachos dourados voavam ao redor do pequeno rosto,como os cachos de um anjo.

    Estava embevecido, apaixonado! Amor primeira vista, constatou. Abela Jenima o conquistara ao primeiro olhar. Seu corao batia loucamente nopeito.

    _ to bela! _ murmurou, sem querer._O que disse?_Oh, nada! Eu no disse nada.

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    Ficaram calados alguns minutos, olhando-se, examinando-se,apreciando-se.

    De repente, ouviram o som de cavalos se aproximando. Jenimaassustou-se, pois sabia que era Raul, o brao direito de seu pai. Ela fora muitolonge dessa vez, e no voltara como deveria.

    _Por favor, fique aqui e no saia! _ pediu ela, afastando-se. _ Eu vou aoencontro de Raul e voc s sai quando estivermos bem longe, est bem?

    Rafael no teve tempo de dizer nada. Observou-a ir ao encontro doshomens com as pontas dos ps, pois esquecera as botinhas na beira do riacho.Um deles a segurou pelo brao e puxou-a sem muita delicadeza, colocando-aatrs dele, na garupa do cavalo. Depois, partiram.

    Quando no os via mais, Rafael pegou as botinhas, montou em seucavalo e partiu tambm. Jamais esqueceria o rosto de Jenima. Era seu anjosecreto e sentia que seu corao fora fisgado por aqueles olhos azuis.

    Depois, tinha seus sapatos! Sorriu. Seria uma boa desculpa para voltara v-la.Havia senhoritas com as quais no se deveria mexer e essa era uma

    delas.Mas ele no se importava. Para Rafael, no havia limites para o amor!

    * * *

    _ Voc no se importa mais comigo! _ choramingou Rosalita.Rafael deu um suspiro exasperado._ claro que me importo com voc, sua tonta! No v que estou

    trabalhando? No tenho tido muito tempo, ultimamente. Meu pai est doente eeu preciso ajudar minha me, no entende?

    Rosalita o observou limpar uma das mesas. A taberna estava sendo

    preparada para a noite. Estava preocupada, notara nele uma mudana radical._Voc sabe do que eu estou reclamando! Nunca mais me procurou! Foipor causa daquela aposta que fizemos?

    _Afinal, que diabos apostaram vocs? _ ele perguntou, parando deesfregar e olhando para ela, exasperado. Rosalita o estava deixando louco!

    _ Ora, nada! Quer dizer...Eu queria provar que...que ns...ns...

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    _Rosalita, voc no contou a elas sobre aquela noite, no ? Ficoumaluca?E agora, o que vo dizer por a? _ Ele estava furioso! A tonta contaras amigas que tiveram alguns momentos muito ntimos e agora estavampensando que ele...que ele fora alm do que deveria!

    _Agora sim que vamos ter problemas! No quero ver voc enquantono resolver esta situao, Rosalita. Vai contar a elas a verdade! Depois, vocs me viu sem camisas, no foi mais do que isso! Vai ter que esclarecer ascoisas!

    _ Mas eu no posso! Elas no vo acreditar! E depois, como vamos noscasar mesmo...

    _Casar?! Est maluca? Eu no vou me casar com ningum! Muitomenos com uma desmiolada como voc! Agora, por favor, deixe-metrabalhar! _ Ele esbravejou e entrou na cozinha.

    Rosalita ficou esttica, sem poder acreditar! E agora, o que seria de sua

    vida? Como encarar seus pais, a vila inteira? No iriam se casar? O que seriadela? Jogara tudo o que tinha para o alto apostando naquela cartada e agora....Sentindo o corao despedaado, correu porta afora, soluando. Como

    viver sem Rafael, o amor de sua infncia? Seria o seu fim! Ele no queria secasar com ela e no sabia o que fazer para remediar a situao que criara. Paraas amigas, o seu casamento j fora consumado, o que era mentira. Mascomo fazer as coisas darem certo ? O desespero da possibilidade de no casar-se com o amor de sua vida a enlouqueceu de dor.

    Rosalita tambm era muito jovem e de sentimentos intensos, como eraprprio da idade e do sangue andaluz. Todo acontecimento tinha proporesmaiores do que realmente se podia imaginar.

    Rafael no compreendeu a extenso do amor que ela nutria por ele e seudesprezo equivalia a uma sentena de morte. Para Rosalita, ele era umaobsesso que cultivava desde pequenina.

    Na cozinha, Consuela observou o filho carrancudo. Fazia alguns diasque ela estranhava seu comportamento. O rapaz alegre e distrado no seassemelhava em nada a este, to mal humorado. Ela desconfiava que haviaalguma mulher por trs disso.

    _Meu filho, que gritaria foi essa, no salo?

    _Aquela tonta da Rosalita! _ Ele se sentou numa cadeira e colocou acabea entre as mos._ Acredita que ela espalhou para as amigas que eu...ns...

    _ Vamos, filho! Desembuche! _ Consuela soltou o pano que enxugavaas mos e fitou-o muito sria._ O que foi que fez?

    _ Eu no fiz nada, me! Ela inventou isso tudo para que noscasssemos!

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    _Valha-me, nossa senhora! Tem certeza, filho? Posso mesmo confiarem voc?

    _ E quem mais vai acreditar em mim, seno a senhora, me? _ Ele deuum riso sem alegria. _ Sei que tenho levado uma vida umtanto...inconseqente, mas sou jovem e quero ser artista e andar pelo mundo,pelos palcos dos teatros famosos! No poria em risco todo o meu sonho poruma noite com Rosalita! Eu no a desrespeitei , se isso que quer ouvir.

    _Eu acredito em voc, filho. Mas quem mais vai acreditar, como vocmesmo disse? Os pais da moa exigiro reparao e eu no sei como evitar!

    _ Me, existe um meio de provar que sou inocente ou no existe?_Sim, existe. Isto ... se no houver...se Rosalita for uma menina direita,

    o que acredito piamente o seja! Mas...ser que vo permitir, filho?_Eu no vou me casar com Rosalita! Ela mentiu! Eu fujo, se for

    preciso!

    Rafael saiu da cozinha, raivoso. Tirou o avental e saiu para a rua. Seuviolo estava preso cela de seu cavalo. O animal o aguardava pacientementepreso a uma haste de madeira. Montou nele e partiu a galope.

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    CAPTULO IV

    De duas espcies so asvicissitudes da vida...Umatem sua causa na vida

    presente; outras, foradesta.(Evangelho seg. Esp.)

    Estava cansado de mulheres loucas para arrast-lo ao matrimnio! Nemmesmo tinha uma casa para oferecer e ainda assim elas no o deixavam empaz! Nenhuma delas o interessara a ponto de abdicar de seu sonho de artista.

    As botinhas ainda estavam amarradas sua cela, lembrando-o de quetalvez houvesse uma, sim. Uma bela mulher esperando que a encontrassenovamente. Voltara vrias vezes fazenda, na esperana de rever aquele rostoque no lhe saa do pensamento, mas no obtivera xito.

    Invadir as terras de don Alberto estava se tornando um hbito muitoperigoso. Todas as tarde, ia t o riacho e l esperava at escurecer, quandoento voltava, sentindo-se desanimado.

    Quando chegava em casa, pegava o violo e cantava uma msica tristeonde pensava na menina de olhos doces, o seu anjo louro. Depois, sentava-senuma mesa de jogo e ali permanecia a noite toda. Nessas jogatinas contraraenorme dvida que no conseguia saldar.

    A ansiedade provocada pela obsesso em rever a moa do rio, mais acobrana constante da dvida de jogo explicavam sua irritabilidade. O homemo ameaava constantemente e ele no via uma sada.

    Agora, ainda aparecia a antiga namorada a perturb-lo com aquelahistria maluca! A inveno de Rosalita traria problemas srios, como se jno bastassem tantos outros!

    Mas sentar-se beira do riacho e tocar sua melodia favorita acalmava-oum pouco, fazendo-o esquecer-se de tudo que o aborrecia. Deleitava-se

    pensando no rosto de anjo daquela que seria sua futura conquista e perdia-seem seus olhos azuis.Por isso arriscava-se tanto invadindo as terras do baro, valia a pena

    estar ali mais uma vez. Apeando do cavalo, pegou a viola e sentou-se sob afrondosa rvore que sempre o acolhia. Recostado no grosso tronco, dedilhoualguma coisa e murmurou uma cano cigana, mergulhando em seusdevaneios. De repente, parou com o corao saltando no peito.

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    Era ela! Finalmente, l estava o objeto de seus anseios materializado sua frente.

    _Jenima! murmurou, a voz rouca mal querendo sair da garganta.Levantou-se vagarosamente, tentando no parecer um tolo. Ela lhe sorriu,aquele sorriso belo e doce!

    Ser que era possvel apaixonar-se em to pouco tempo e por algumque s vira uma vez ? Perguntava-se, surpreso com a reao de seu coraoante da viso encantadora de Jenima.

    _Rafael murmurou, estendendo-lhe as mos. Ele as pegou e notouque estavam trmulas como as suas.

    _Eu estive aqui algumas vezes, mas voc no apareceu..._ ele gaguejou.Era estranho sentir-se to frgil, ele que sempre dominara a situao, via-setremendo como um adolescente.

    _Eu sinto tanto! No pude sair. Meu pai no me deixou passear por

    causa daquele dia._ No importa mais. Voc est aqui agora. Venha, sente-se comigo _Ele a levou at o seu lugar favorito e antes que ela se sentasse, estendeu sobrea relva o seu casaco. Jenima agradeceu a gentileza e acomodou-se ao seu lado.Ela sorriu e apontou para o violo.

    _Voc sabe tocar! Eu ouvi a msica, mas no sabia que era voc!_Oh,...arranho alguma coisaele gaguejou, encabulado._Ento, por favor, toque para mim!_Claro! _ Rafael pegou o violo e tocou uma cano romntica. Depois,

    comeou a cantar uma balada e Jenima sentiu-se enfeitiar por aquelemisterioso rapaz. Enlevada, ouvia-lhe a voz melodiosa, fascinando-se comseu charme sedutor. Ela fora presa, como todas as outras, pelo encanto deRafael.

    _Voc tem uma bela voz! Continue, por favor!Rafael viu-se irremediavelmente preso pelo olhar de sua amiga e

    Jenima, pela paixo de seu jovem cantor.O destino pregava-lhes uma pea.Jenima no o temia, era inocente, no conhecia a malcia. Apreciava a

    companhia do amigo que se instalava em seu corao como o primeiro amor!

    Encontrar Rafael todos os dias tornou-se uma necessidade para ela.O sabor do primeiro amor deliciava e entontecia o jovem rapaz. Noconseguia pensar em ficar um s dia sem ver o anjo de olhos azuis. Toda apoesia que sua alma de artista possua, extravasava em baladas romnticas.

    Ele cantava para ela os versos que compunha e ela lia-lhe sonetos deamor. Dir-se-ia que um encantamento os prendera definitivamente um aooutro.

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    Em poucos dias, Jenima sentia que o amava mais que a tudo no mundoe desafiava constantemente os homens de seu pai, esgueirando-se pelosarbustos somente para v-lo. Ningum mais sabia do seu segredo de amor,exceto uma pessoa: sua ama, D. Maria da Luz.

    A velha senhora a ouvia constantemente falar desse jovem artista e nogostava nenhum pouco. Em silncio, esperava oportunidade para contar a donAlberto o que acontecia. Jenima estava comprometida com o primo, donCarlos Manuel, e D. Maria da Luz no via com bons olhos aqueleenvolvimento. Afinal, aquele jovem era pobre e morava na vila, no serviapara sua querida menina. Jenima, contudo, no fazia idia dos sentimentos desua ama e continuava a contar-lhe seus segredos.

    Desde que a me de Jenima morrera, da Luz era sua ama e confidente ea mulher amava a menina com devoo. No poderia permitir que acontecessealguma tragdia como a que entrevia se a deixasse prosseguir com aqueles

    arroubos apaixonados. No raro, acompanhava-a at o rio e ficava a algumadistncia, esperando-a. Jenima era muito inocente para perceber o que sepassava entre um homem e uma mulher apaixonados e sem viglncia.Principalmente com um mancebo encantador que desejava somente seduzir eaproveitar-se de sua ingenuidade.

    Da Luz h muito tinha o corao ressequido e no acreditava noverdadeiro amor que unia aquelas duas almas.

    Numa tarde especialmente agradvel e fresca, sob as rvores cujasfolhas entoavam sua prpria melodia, Rafael deu o primeiro beijo em Jenima.

    Foi um momento mgico e inesquecvel. Ao tocar aqueles lbiosmacios e trmulos, seu corao quase parou. Nunca havia beijado algum queamasse de verdade e a experincia foi uma surpresa. O sentimento de devooque inundou sua alma o deixou atnito. No havia lugar para outra coisa emseu corao que no fosse a religiosidade daquele amor!

    Rafael era um homem de sangue quente, jamais escondera de mulheralguma sua paixo. Manifest-la era coisa muito natural para ele, por issosentia-se to confuso! Sabia que com Jenima era diferente. Ela no era igual asoutras e isso o tornava inseguro.

    Controlar seus instintos no era tarefa fcil, mas de alguma forma no

    lhe parecia correto agir de outra maneira. Era como se ela fosse um cone a seradorado e jamais conspurcado pelo desejo impuro.Contudo, no se podia negar a natureza apaixonada de Rafael. Era

    homem acostumado a ter suas vontades satisfeitas pelas damas e por quantotempo aquele sentimento religioso bloquearia a impacincia natural dajuventude no se podia prever.

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    E era isso que da Luz temia. Conhecia a alma humana, maisespecificamente a de jovens como ele, e sabia que mais cedo ou mais tarde,Rafael cobraria um tributo sua devoo e amor. Porm, estava determinada aimpedir que algo assim viesse a acontecer. Ele no tinha chances, no possuafortuna, no poderia competir com don Carlos, portanto, jamais se casariamcomo sonhava Jenima. Era preciso cuidado, muito cuidado. Nisso tudo da Luzrefletia...e Rafael tambm.

    A perspectiva de ficar sem o amor de Jenima o enlouquecia, deixando-o ainda mais inquieto. Aquele jovem despreocupado dera lugar a um homemnervoso e inconformado com sua situao. Suas baladas eram agressivas oumelanclicas. O sofrimento de seu esprito atormentado pela impossibilidadede casar-se com a amada fazia-o compor canes romnticas, belas e sofridas.Eram quentes e vibrantes, envolventes, fascinantes, mas tambm tristes,demonstrando toda a agonia de uma alma inquieta e frustrada. Quem o ouvia,

    emocionava-se com sua interpretao. Quem o via danar com Rosita, suaparceira, fascinava-se com a evoluo de seus passos.Jenima fizera bem sua arte, pois jamais estivera to eloqente. Mas

    no fizera bem ao seu esprito, cada vez mais agitado e inconformado.Pensava em fugir com ela para Madri ou talvez Barcelona, bem distante, e lconseguir algum trabalho para sustentar a ambos. Mas eram sonhosimpossveis. Como poderia tir-la do conforto e da riqueza para jog-la numapocilga qualquer? Ela era como uma rosa, se no tivesse cuidados adequados,murcharia e morreria. No tinha coragem de propor-lhe semelhante sacrifcio.

    E ele estava determinado a conseguir dinheiro. Faria qualquer coisapara ter dinheiro suficiente a fim de casar-se com Jenima e dar-lhe tudo o queela quisesse!

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    CAPTULO V

    A lembrana dos atosmaus que dois homens

    praticaram um contra ooutro constitui obstculo aque entre eles reine

    simpatia?

    O crepsculo manchava o cu de vermelho. A noite prometia serquente e perfumada pelas damas da noite que invadiam os ares daquela regio.

    Rafael foi ao riacho, mas no encontrou Jenima, o que lhe causou

    estranheza. Logo um cavaleiro aproximou-se como se estivesse sua espera jh algum tempo, montado em seu cavalo negro de pelo tratado e lustroso.No pode deixar de admirar a beleza do animal.O homem era jovem e distinto, pouco mais velho que ele, e vestia-se

    com esmero, os cabelos negros e bem cortados escondidos pelo chapu fino.Evidentemente era um homem rico e bem apanhado, o que deixou

    Rafael tenso, imaginando quem poderia ser aquele guapo.Cavalo e cavaleiro pararam junto a ele e falou-lhe com rispidez._Que faz aqui, rapaz? No sabe que estas terras so de don Alberto, o

    Visconde de Monteblanco?Rafael no gostou de seu tom, evidentemente hostil. Quem seria ele?

    No se lembrava de haver Jenima mencionado um irmo._Sim, eu sei _ respondeu, no mesmo tom insolente._Ento tambm sabe de deve montar em seu pangar e sumir daqui, no

    sabe? O visconde no gosta de intrusos!_ No sou um intruso..._ interrompeu-se, lembrando-se que no podia

    comprometer Jenima. _ Eu s parei aqui para dar um pouco de gua ao meucavalo.

    _ Pois eu acho que seu cavalo j matou a sede. Por favor, retire-se

    dessas terras e no volte. Se retornar, poderei no ser to...amistoso.Sem mais delongas, o garboso cavaleiro tocou o flanco do animal comas esporas de prata e deu-lhe as costas, insultando-o.

    Havia uma ameaa nas palavras do rapaz.. A inquietao tomou contade seu corao ao pensar que Jenima pudesse conviver com tal homem. Sabiaque no poderia competir com o jovem rico se porventura fosse seu rival. Umcime louco envenenou-lhe corao .

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    A incerteza com relao aos sentimentos da amada o atormentou aindamais. Onde estaria ela? Por que no fora ao seu encontro?

    Sem mais o que fazer, Rafael montou em seu pangar, como o

    atrevido chamara seu cavalo, e partiu num galope desenfreado, soltando asrdeas do animal para que corresse o mais que pudesse.

    Os pensamentos voavam loucos como o vento que lhe tocava oscabelos. Precisava conseguir dinheiro para levar Jenima embora de uma vezpor todas! Se aquele homem fosse mesmo um rival, haveria o perigo real deperder sua amada e sem ela, o que faria da vida?

    Com a mente em torvelinho, entrou noite a dentro sem encontrarsoluo para seu problema.

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    CAPTULO VI

    Dois Espritos simpticos socomplemento um do outro ou a

    simpatia que os une resultadode identidade perfeita?

    _A simpatia que atrai um Espritoao outro resulta da perfeitaconcordncia de seus pendores einstintos.

    (Livro dos Espritos

    Cap. VI)

    A taberna estava cheia, como si acontecer nas noites de sexta-feira.Rafael ajudava a me, a contragosto. Seu pai no melhorava, ao contrrio,definhava a olhos visto. Ningum sabia o que havia com ele. Consuela jfizera milhares de promessas Virgem e nada resolvia seu estado crtico. Adoena de seu pai era mais uma das preocupaes de sua existncia. Pareciaque a vida resolvera dar-lhe uma lio, pensava.

    Rosalita no o deixava em paz.Todos os dias o procurava, chorosa, pedindo que a perdoasse. Numa

    dessas ocasies, resolveu dar-lhe mais uma oportunidade e ficou com elaalguns dias, mas a sua paixo por Jenima o atormentava e no conseguiapensar em mulher alguma que no fosse ela. Despachou Rosalitadefinitivamente e esta disse que iria morrer de amor.

    Ele no lhe deu ouvidos. Que ela morresse de amor, ele tambm nomorria cada dia que ficava sem ver sua amada?

    Desde o dia em que encontrara aquele homem misterioso, no a viramais. Em vo tentava encontr-la, mas ela no ia aos encontros. Depois, olugar preferido de ambos estava sempre cheio de homens, capangas de donAlberto, como se de repente tivesse seu refgio sido descoberto pelos outroscomo o lugar mais agradvel da Estncia.

    Irritado e melanclico, ele esfregava as mesas e servia as canecas decerveja sem muita pacincia.

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    Estavam todos entretidos quando a porta se abriu e uma figuraconhecida entrou.

    Era Soraya, a cigana. Todos ficaram calados, espantados com suapresena. Ela seguiu para o balco sem se importar com o estardalhao quesua presena causava. Parou em frente a um Rafael embasbacado e sorriu.

    _No quer me dar uma cerveja, meu jovem? _ falou ela, com um brilhonos olhos.

    Rafael ficou um momento sem ao e depois lhe serviu uma caneca._D outra aqui para o meu amigo grandalho tornou ela, apontando

    para o cigano enorme que a seguia, devotado.Rafael tornou a encher outra caneca e deu-a ao cigano._Est surpreso em me ver? _ perguntou ela com ar de troa. _O gato

    comeu sua lngua?_Oh, ...no, claro que no! que...no esperava v-la novamente por

    essas bandas, senhoragaguejou ele.Soraya tinha o olhar intenso, perturbador. Agora que a fitava de perto,notava algumas linhas finas em torno de seus olhos. Ela no era to jovemquanto aparentava. Devia ter uns...quarenta anos, talvez. Porm, era maisbonita do que se lembrava.

    _ Meu bom rapaz... a gente tem que parar um pouco, s vezes. Pretendoficar alguns dias por essas terras e depois vou para Madri. Tenho umcompromisso em casa de um amigo muito importante. Vou danar em seucasamento!

    _Madri? Tenho o desejo de conhecer a cidade, algum dia comentouRafael, sonhador. _ Gostaria de cantar e danar nos teatros mais famosos daEspanha!

    _ Ora! E por que no? O que lhe impede de concretizar seus sonhos?_ Talvez no tenha talento suficiente, senhora! E depois, no posso

    deixar minha me sozinhatornou ele, pesaroso.A cigana o fitou longamente e depois sorriu._Ento cante para mim e dance comigo s uma vez. Assim poderei

    avaliar se tem talento ou no para enfrentar Madri _ disse, pousando a canecasobre o balco.

    _Eu? Quer que dance com a senhora?_Sim! Ou no pode atender a um pedido meu?Rafael tirou o avental e pulou o balco. De repente, esqueceu-se de

    todos os seus problemas e um sopro de vivacidade encheu-lhe os pulmes.Bateu exigiu silncio de todos e pediu que o amigo da cigana tocasse

    alguma coisa.

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    No meio do pequeno salo, tomou posio de cavalheiro e a ciganapostou-se s suas costas, segurando as saias. Quando o cigano comeou atocar, eles puseram-se a danar.

    E no havia par mais belo em toda a Espanha! No palco, Rafael era oartista, no se intimidava. Pegava a cigana e girava-a, evoluam fluidos, commovimentos vigorosos, mas extremamente harmnicos.

    Dizia-se que nascera para isso, para danar. Seus ps batiam no tabladoe suas palmas levavam todos loucura. Ele e Soraya pareciam envolvidosnum mundo particular de arte e paixo, enlevando os espectadores com umaexecuo to fascinante.

    Ao final, o pblico aplaudiu de p. Os gritos e assobios eramensurdecedores.

    Rafael mal podia acreditar no que acontecera. Ele danara com Soraya!Seu peito enchia-se de orgulho. Ajudou-a a levantar-se e levou-a ao balco

    para tomar mais uma cerveja por conta da casa.A cigana tentava esconder a emoo. Olhou para o rapaz com orgulho.No podia evitar, era seu filho! E os olhos eram os de seu pai. Lembrou-se davez que danara assim, com outro homem. O homem que ainda amava comtoda a sua alma. O mesmo porte, o mesmo olhar... Seu filho tinha o encanto dopai, seno mais. A emoo foi to grande que lgrimas de saudade vieram-lheaos olhos.

    _Voc foi magnfico, meu jovem falou, com a voz embargada. _Faao que tem vontade, siga os seus sonhos! Voc tem muito talento e no quepuder ajudar, eu o farei. Agora, deixe-me ir.

    Antes que ela sasse, porm, Rafael segurou-lhe o pulso._ Por que est chorando? Fiz alguma coisa errada? Eu a machuquei?_ No, no! ela sorriu e enxugou o rosto. _ que voc me lembrou

    uma pessoa...muito querida. Ele j morreu. Agora deixe-me ir, por favor. Masvenha visitar-me. Gostaria muito que viesse ver-me. Adeus! dizendo isso,Soraya quase correu porta afora. O grandalho a seguiu, rpido.

    Rafael ficou intrigado. O que fizera de errado para deixar a danarinato perturbada?

    Engraado! Sentia-se bem, muito bem com Soraya. Formavam um

    excelente par. Por aquela noite, seu corao voltou a ser o que era: alegre edespreocupado. No pensava em mais nada a no ser em sua dana, em suaarte. Cantou algumas baladas ainda e ajudou a me a fechar o estabelecimento,feliz pela primeira vez em dias.

    Ao retirar-se para dormir, sonhou com o palco e com os aplausos de Madri!

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    CAPTULO VII

    em Bem aventurados osaflitos, Jesus aponta acompensao que ho deter os que sofrem e aresignao que leva o

    padecente a bendizer dosofrimento, como preldioda cura.

    Um grito angustiado acordou Rafael de seu sonoEra sua me! O que havia acontecido? Pulou da cama, colocou as calas

    e saiu tropeando de seu quarto. Correu para o quarto contguo e deparou-secom a me debruada sobre o corpo inerte de seu pai.Na hora, Rafael compreendeu. Seu corao confrangeu-se de dor e

    agonia. O genitor havia falecido durante a noite.Lgrimas escorreram-lhe dos olhos. Aproximou-se da me, abraou-a e

    ficaram algum tempo assim, chorando juntos a morte do ente querido.Mais tarde, a taberna fechada anunciava o luto com uma fita negra presa

    porta. Os vizinhos vieram prestar as ltimas homenagens ao estalajadeiromuito bem quisto na vila. Era um homem solidrio e muito calmo, o sr.Esteban . No havia quem no gostasse dele.

    No sepultamento, muitas pessoas acompanharam o cortejo dehomenagens e jogaram flores em seu tmulo. Rafael apoiava a me sofrida edepois que todos se foram, ele ainda permaneceu um pouco mais diante dosepulcro, agradecendo ao velho pai o amparo. Era agora o chefe da famlia esua juventude despreocupada se fora para sempre.

    Soraya observava escondida. Viu Rafael afastar-se e montar o cavaloque trouxera. Depois que desapareceu no horizonte, ela aproximou-se da cova,fez uma prece de agradecimento quele homem que amou o filho como sefosse do prprio sangue e colocou uma flor solitria.

    Pensou que, quando morresse, no haveria ningum para chor-la,exceto seu fiel amigo Miguel, que jamais a abandonava. Nem mesmo seu filhochoraria por ela.

    Afastou-se, deprimida. Toda a sua vida havia sido de sofrimento. Porque, Deus? Todos os que amava se foram, partiram e deixaram-na s, excetosua me, a quem no via desde que seu marido morrera. Chegava a pensar se

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    no fora a maldio que jogaram sobre ela, ao descobrirem o seuenvolvimento com o pai de Rafael.

    De qualquer maneira, queria ficar um pouco mais perto de seu filho.Agora que o marido no mais existia e dava graas aos cus por isso, queDeus a perdoasse!, poderia aproximar-se de seu menino, finalmente.

    A questo era: ele a aceitaria como sua verdadeira me? Na dvida,seria melhor no contar nada ainda. Decidida, Soraya comeou a andar devolta ao acampamento.

    * * *

    Rafael galopava em direo plantao de don Alberto. Entardecia etinha esperanas de rever Jenima. Precisava tanto dela! J fazia alguns diasque no conseguia v-la, desde que aquele sujeito o expulsara da fazenda.

    Dessa vez, entraria mais cautelosamente e observaria se no havianingum por perto. No que tivesse medo; o destemor era prprio de seutemperamento, mas desejava preservar Jenima. Sabia que o pai dela noaprovaria o seu namoro com um Joo ningum como ele.

    Ao aproximar-se do riacho, desceu do cavalo e prosseguiu a p. Seucorao disparou quando viu a figurinha de branco parada sob a rvore.

    Era o anjo que ocupava todos os seus pensamentos e mal podiaacreditar que fosse verdade. Andou mais rpido e aproximou-se, tomando-anos braos e beijando-a com sofreguido.

    A urgncia era ditada pela dor quase insuportvel daqueles dias sem v-la e pela morte do pai. Suas lgrimas salgavam-lhe os beijos desesperados. Eela o correspondia, como se a distncia que os separara tivesse lhe quebradotodas as barreiras.

    Quando estavam cansados de tanta emoo, sentaram-se na relva e elecolocou a cabea sobre seu colo. Ela sorria e brincava com um pedao demato, fazendo-lhe cosquinhas.

    _ O que h com voc, meu amor? _ perguntou ela _ Vejo tanta tristezaem seus olhos!Ele passou a mo spera no rosto delicado, admirando seus traos._ Pensei que nunca mais a veria novamentefalou._ Eu tambm. Tentei vir outras vezes, mas no consegui despistar os

    empregados de meu pai. No sei o que deu nele! Nunca mencionei o seu nomee ningum sabe de voc, por que est to desconfiado?

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    _ Tem certeza de que nunca mencionou nada a meu respeito?_Tenho! _ No pensou em sua ama, pois confiava nela._Outro dia, um dos homens de seu pai veio at mim falou,

    levantando-se e sentando-se com os braos apoiados nos joelhos. _Pediu queeu me retirasse da propriedade. No sei, mas parecia que me ameaava comalgo mais. Era como se soubesse de alguma coisa.

    _Um homem? _ Jenima preocupou-se._ Como era esse homem? Talvezeu possa identific-lo.

    _ Era jovem, cabelos e olhos escuros e muito refinado. Vestia-se denegro, botas de cano longo e brilhante. Seu cavalo era um puro sangue e osarreios, de prata. Voc o conhece, Jenima? _ ele perguntou, observando apalidez de sua face. Alguma coisa dizia que no iria gostar da resposta.

    _... meu primo, don Carlos respondeu, constrangida. Baixou osolhos, para fugir dos seus.

    Rafael franziu o cenho. Jenima escondia alguma coisa importante._ O que isso significa?perguntou, perscrutador._Nada...quer dizer, muito._Decida-se, Jenima! Est me escondendo alguma coisa? Se est,

    melhor dizer logo! _ ele a segurou de repente, e ela assustou-se com seu tombrusco.

    _ No estou escondendo nada falou, num fio de voz. Porm, seusolhos fugiam dos dele.

    _No brinque comigo, Jenima! No sabe do que sou capaz ameaouele, ciumento. _ Esse homem significa algum perigo para ns?

    _Sim... Ele ... meu noivo!desabafou de vez.Rafael soltou-lhe as mos como se pegassem fogo. A intensidade da dor

    que sentiu assemelhava-se a um punhal em seu corao._Noivo? Voc est noiva?Ela no respondeu, apenas tornou a baixar a cabea, mordendo o lbio.Rafael levantou-se, desnorteado. Passou a mo nos cabelos sem saber o

    que fazer._H quanto tempo est noiva?_Desde ...sempre.

    _ O que quer dizercom desde sempre? ele espantava-se cada vezmais.Jenima levantou-se e tocou-o no brao._Por favor, Rafael! Eu sempre fui noiva dele, quer dizer, minha famlia

    prometeu-me em casamento ao meu primo desde que nasci! No tenho culpadesse compromisso. contra a minha vontade, nada posso fazer!

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    Ele a fitou e percebeu que falava a verdade. Num gesto brusco, abraou-a, desesperado.

    _Ningum vai tirar voc de mim, Jenima! E se esse primo ...ou noivo,tocar num fio de seus cabelos eu...eu sou capaz de mat-lo!

    Jenima assustou-se. Gostava de don Carlos, apesar de tudo. Era seuprimo e sempre soube que se casariam at que Rafael aparecesse. Nodesejava v-lo morto!

    _ No diga isso, Rafael! Voc me assusta!_Desculpe-me, estou atordoado com tanta coisa! pediu, suspirando

    para acalmar-se. Afastou-a dele e observou o seu rosto. _ Voc jura pelaVirgem que no sente nada por esse... noivo?

    _ Eu juro! Eu s gosto dele porque meu primo, somente. Eu amo voc,Rafael! Juro pelo que h de mais sagrado!

    Rafael abraou-a novamente.

    _Vamos fugir!falou ele, de repente._Fugir? Mas...eu no posso! Como faramos isso?Jenima estava mesmo assustada. Fugir? Para onde? Deixar o pai, a

    fazenda, tudo? Ser que amava Rafael a esse ponto?Ela o fitou e percebeu o desespero em seu rosto. Sim, ela o amava! E

    fugiria com ele para onde fosse!Mas Rafael no podia! Ele sabia que no poderia deixar a me sozinha

    agora. Havia acabado de sepultar seu pai e tornara-se com isso chefe dafamlia. Estava angustiado com tanta presso!

    _ No, voc est certa! No podemos agoratornou ele, alisando-lhe orosto. _ Mas no posso suportar a idia de v-la junto quele...efeminado!

    _Rafael, francamente! Carlos no efeminado!_ ela protestou e riu._Antes fosse! Assim no quereria casar-se com voc! Afinal, no h

    previso para o matrimnio, no ?_No. Acho que meu pai quer que eu atinja a maioridade, primeiro._E quando ser isso?_Ora, eu tenho s dezessete anos!_As moas da vila costumam se casar aos quinze anos!_Oh, Deus! Ser que papai vai querer que me case antes dos dezoito?

    No creio, ou ele me teria dito alguma coisa _ ela pensava em voz alta,preocupada. Contudo, seu pai no costumava consult-la sobre suas decises.Poderia muito bem s comunic-la na hora do casamento!

    _ No se preocupe falou Rafael, tentando acalmar-se. _ Vamosresolver isso o mais rpido possvel. Falarei com minha me. Penso em vendera taberna e irmos para Madri, o que acha?

    _ Eu adoraria ir para Madri! Vou com voc a qualquer lugar do mundo!

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    Rafael a adorava! Beijou-a mais uma vez e despediram-se, pois jestava ficando tarde. Precisava ir ter com sua me.

    No caminho de volta, ficou pensando na possibilidade de fazerexatamente aquilo: vender a taberna e irem embora para Madri ou mesmoSevilha! Assim, poderia tentar sua vida nos palcos e ser famoso. Casaria comJenima e tudo se resolveria. Estava mais tranqilo agora. As coisas pareciamencaixar-se novamente.

    Porm, nada era to simples. Ao chegar, sua me estava reunida comalguns homens, dentre eles aquele para quem devia uma considervel quantianas cartas. Preocupado, fitou o rosto abatido da me.

    _ O que est acontecendo aqui? Me?_Estes homens, filho...So credores de seu pai. Eles vieram cobrar uma

    dvida que meu Esteban deixou.

    _Mas isso um disparate! Meu pai nem esfriou o corpo na sepultura ej esto aqui, atrs de dinheiro? No respeitam a nossa dor? falou ele,revoltado.

    _Filho, por favor! Acalme-se e sente-se. Temos muito que conversarpediu sua me e ele estranhou-lhe o comportamento. Queria dizer que a coisaera mesmo sria.

    Olhou desconfiado para o homem a quem devia dinheiro e depoissentou-se numa cadeira.

    _Digam o que queremordenou, abrupto.E disseram. Seu pai hipotecara a taberna para pagar o tratamento e

    comprar remdios para o mal que o assolava h dois anos. Ningum sabia,nem sua me. E como os negcios no andavam bem, ultimamente, nopagara uma prestao sequer da hipoteca. Resultado: o montante da dvidaeqivalia ao seu patrimnio mais a casa da me.

    _Eu no acredito nisso! _ Esbravejou ele.E como j previam essa reao, mostraram-lhe documentos onde a

    assinatura de seu pai estava em algumas promissrias.Rafael estava arrasado! O que fariam agora? Onde morariam, como

    sobreviveriam? E seus planos de casamento? Olhou para a me que chorava

    silenciosamente.Pobre mame! pensou, ao v-la abatida. Na sua velhice, no teria nemmesmo um teto para cobrir-lhe a cabea.

    _ E o que o senhor prope, sr. Ortega?perguntou ele, finalmente, aobanqueiro e agiota.

    _Bem, eu vou ficar com a taberna em pagamento da dvida. Agora, oresto da dvida, e o senhor deve lembrar-se que deixou algumas promissrias

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    assinadas em seu nome com o meu amigo aqui _ apontou para o jogador. _ Eleconcorda que paguem em servios prestados.

    _ Mas isso um absurdo! revoltou-se o rapaz. _ Teremos quetrabalhar a vida toda como escravos para pagarmos esta dvida irreal! Euestava bbado naquela noite, no justo que ainda acrescente juros minhadvida de jogo!

    _Deve considerar que assinou as promissria, meu jovem. E dvida dejogo como outra qualquer _ falou o banqueiro que julgara amigo.

    Rafael no podia fazer nada. A frustrao em seu corao era to grandeque tinha vontade de matar todos eles! Tudo pelo que sonhara estava sendodestrudo ali, por aqueles abutres impiedosos! Que sina estranha a sua!

    Consuela levantou-se e falou, com resignao e o mnimo de dignidadeque ainda lhe restava.

    _Ns trabalharemos para o senhor, sr.Ortega. Mas quero ficar com a

    minha casa. Bem sabe que no temos para onde ir e se no for assim,deixaremos tudo de lado e partiremos com os ciganos._No h nenhum inconveniente, senhora. No desejamos que deixe

    nossa cidade. Pode ficar morando na casa, mas sabe que no pode desfazer-sedela, pois estar morando de favor.

    _Sr. Ortega, diga-me uma coisa tornou Rafael, estranhando aqueleprocedimento implacvel. _ Por que est sendo to impiedoso? Acreditava queera nosso amigo...

    _E sou, meu jovem. Mas represento os interesses de meus scios, de umem especial. E ele pediu-me que cobrasse at o ltimo nquel. O que possofazer, no ?

    Rafael estava enojado com tamanha falsidade._ E posso saber quem o meu cobrador?_ Ora, o senhor o conhece. don Manuel Garcia, o pai de sua

    namorada, Rosalita.O homem falava como se fosse a coisa mais bvia do mundo. Era assim

    ento que Rosalita se vingava de seu desprezo. Jamais a julgara capaz detamanho dio! Rafael sentiu-se humilhado.

    _Pois diga a ele que sua filha no vale um nquel sequer e que eu vou

    pagar at a ltima moeda o que devo. E quando isso se der, veremos o queacontecer, sr. Ortega._Filho, no diga essas coisas! _ implorou a me, desesperada.Rafael levantou-se e retirou-se dali. No suportava mais ficar na mesma

    sala que aqueles malditos.

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    CAPTULO VIII

    No h homenscondenados a mendigar por

    sua culpa mesma?_Sem dvida; mas se umaboa educao moral lheshouvera ensinado a praticara lei de Deus, no teriamcado nos excessos...

    Uma semana se passara. Rafael trabalhava como um condenado sob asexigncias descabidas de seu opressor, o banqueiro Ortega. Seu coraodestilava fel e a humilhao que via a me submeter-se todos os dias oatormentava. Nem mesmo os momentos que passava com Jenima eramcapazes de faz-lo esquecer.

    Um dia, ele limpava o balco de madeira, quando Rosalita entrou nataberna. O dio que sentiu daquela que um dia fora sua namorada o sufocou.

    _O que quer aqui? _ perguntou, grosseiro.Rosalita o fitou um instante e depois sorriu, maliciosa._Vim ver como esto lidando com a nossa mais nova aquisio. Olhe

    passou o dedo sobre o balco. _ Limpe direito, est cheio de gordura. Achoque terei que dizer a papai que seus empregados no so to competentes.

    Rafael sentiu o sangue ferver. Seus olhos soltaram chispas e ele agarrouo pescoo da jovem e apertou-o. Aproximou o rosto do dela e falou,entredentes.

    _Cuidado, senhorita sabe tudo! No me conhece, no imagina do quesou capaz! Cuidado ou aquilo que sempre desejou que eu fizesse, poderacontecer numa esquina qualquer dessa maldita vila! largou-a e ela lutavapara respirar. _Agora me deixe trabalhar em paz. J no suficiente o que me

    fez? Rafael deu-lhe as costas e no viu as lgrimas de despeito nos olhos damoa.

    _Voc me paga a insolncia, Rafael!gritou, antes de sair.Na hora da raiva, ele no raciocinara. Era bem possvel que a vil

    criatura fizesse alguma coisa que prejudicasse sua me. Se ela tentasse magoara me mais do que j fizera, daria cabo daquela vbora!

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    Sempre saa tardinha, no nico horrio em que o servio lhe permitiauma folga, para ir ao encontro de Jenima. E foi numa dessas ocasies que doishomens o abordaram e o arrancaram do cavalo. Depois, sem que pudesseimpedir, levaram-no para um canto escuro e o socaram at perder aconscincia. Rafael voltou para casa horas mais tarde, sentindo o corpo modopela violncia dos porretes que utilizaram para atac-lo.

    Ele sabia bem quem eram os homens. Havia reconhecido um deles. Eraempregado do pai de Rosalita. Eles o ameaaram e o deixaram. A revoltacrescia em seu corao antes to alegre e despreocupado. Como desejava terpoder para acabar com toda aquela gente!

    Sua me no o vira, entrara no quarto escondido e cuidara de seusferimentos. s vezes, tinha uma enorme vontade de deixar tudo de lado e irembora para Madri com a cigana Soraya. Fazia tempo que no a via e ela ochamara para ir visit-la. Amanh iria fazer isso. Iria ter com Soraya.

    Deitou-se na cama e tentou dormir. A me teria que trabalhar sozinhaaquela noite. No havia muita gente.Uma lgrima escorreu de seus olhos enquanto fixava um ponto no teto.

    As costelas doam, ser que os desgraados quebraram alguma?Oh, Deus! Por que seus dias estavam sendo to terrveis? No vero

    danara com os ciganos, despreocupado e agora tudo parecia ruir sobre suacabea!

    Fechou os olhos com firmeza. Era melhor descansar ou no poderialevantar na manh seguinte.

    * * *

    Rafael aproximou-se da carroa. Desceu do cavalo e rodeou o veculo,vendo se enxergava algum.

    _Ol! chamou e esperou. Uma cabea de mulher coberta com umleno vermelho apareceu por entre o cortinado. Era Soraya e pareciasonolenta.

    _Quem se atreve a acordar Soraya?perguntou ela, aborrecida._ Sou eu, Rafael! Lembra-se de mim? _ ele respondeu, inseguro.

    Equilibrava-se com alguma dificuldade sobre o cavalo. Sara muito cedo, paraque a me no o visse.

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    _Oh, claro! Vamos, entre! _Ela pareceu genuinamente feliz com suavisita.

    Rafael entrou na carroa e ficou olhando os apetrechos, curioso._Como consegue espao para dormir aqui dentro? perguntou,

    impressionado com a quantidade de coisas que havia.Soraya sorriu e tirou algumas peas de roupas que estavam espalhadas

    sobre a cama._ A gente se acomoda em qualquer lugar. Afinal, no sou to grande!

    Sente-se a, meu jovem.Ele sentou-se e ficou observando-a por alguns segundos. Ela estava

    diferente sem maquiagem. Parecia mais abatida._Est impressionado com minha aparncia, suponho ela comentou,

    sorrindo. _ No justo! Voc me pegou desprevenida e nenhum homem deveolhar para a mulher quando ela acorda! Ainda mais depois de uma noite em

    claro! Ele riu. Gostava de Soraya. Era espirituosa e mordaz._ No se preocupe. Voc bela, no h como negar isso ele a elogiou

    e ela ficou feliz._ E voc est com um olho roxo e um corte na boca. Quem fez isso?

    Algum noivo enciumado?Soraya tentou esconder a preocupao sob a aparncia de descaso. Sem

    esperar resposta, procurou um ungento que usava para atenuar manchas depancadas e hematomas.

    _ No...antes fosse, eu saberia lidar com a situao! Ai!- ele gemeuquando ela passou um pouco de pomada em seu olho.

    _Ento foi briga de rua. Pronto, agora vai ficar melhor._No foi, no. Obrigado._Por nada. No vai me contar?Rafael olhou para ela e pesou suas palavras._Talvez sim._Deixe-me adivinhar: foi uma donzela a causadora de seu infortnio.Ele ficou srio e ela percebeu que no era hora de brincadeiras. Guardou

    o pote de pomada e esperou. Solidariamente, tocou em sua mo.

    _Diga para Soraya o que o atormenta, meu jovem intimorato. Podeconfiar em mim!_Foi por causa de uma jovem, sim. Mas no pelo que pensa. Eu a

    rejeitei e veja o que me aconteceu. Como pode uma mulher que pensvamosnos amar ser capaz de tal agressividade? No entendo as mulheres!

    Soraya sorriu, compreensiva.

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    _Meu jovem amigo, os homens no so diferentes! Quando sorejeitados so capazes de nos matar! Olhe, o que est acontecendo que essamoa est com o amor adoecido! O amor e o dio andam muito prximos,embora sejam opostos. Se o ser amado nos fere, podemos ficar com o amordoente e expressar isso atravs da raiva, mas no fundo continuamos amando apessoa.

    _No compreendo esse amor! No sou assim! Se amo, amo. Se odeio,odeio!

    _Para os jovens tudo simples. Ou preto ou branco. Mas o mundotem muitas cores, Rafael. Nem sempre o que parece certo realmente o quedeve ser.

    _Eu no compreendo esse seu raciocnio. Tenho sofrido bastante,Soraya! Nem cantar mais eu canto!

    A desolao em sua expresso era comovente! Soraya sentiu o corao

    confranger-se. Levantou-se e abraou-o, beijando-lhe os cabelosencaracolados e macios. Depois, deitou-lhe a cabea no colo e alisou-lhe oscachos.

    H quanto tempo Soraya no sonhava em poder ficar assim, a acarinharo filho querido?

    Rafael deixou-se levar por aquela ternura. Precisava de algum paradesabafar e aquela mulher poderia ser sua confidente.

    _Meu pai morreu, Soraya! _ queixou-se ele, como um menino. _ Edesde esse dia, minha vida virou um inferno!

    _ No se preocupe, meu bem. As coisas vo se acertar!ela falava, masalguma coisa dizia em seu peito que no seria assim. Deus pe, mas o homemdispe. As escolhas dos homens, movidos pela paixo, costumam mudar odestino das criaturas.

    _Eu gostaria de ir embora para Madri com voc! Gostaria de realizarmeus sonhos, mas me parece to impossvel, agora! Preciso pensar em minhame, em Jenima...Tenho que pensar em tanta coisa!

    _Quem Jenima? ela continuava a alisar-lhe os anis negros esedosos.

    _Oh...bem... uma moa muito bonita a quem amo de todo o corao!

    _Ama? amor de verdade?_Sim, ! Por ela eu sacrifico os meus anseios, sacrificaria minha vida sepreciso!

    Soraya preocupou-se. Seu filho falava com uma paixo intensa! Elasempre tivera medo desse sentimento. Fora um parecido que destrura suafelicidade. Mas tambm fora por ele que concebera seu maior teseouro. Edisso no se arrependia!

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    _ E ela o corresponde?Rafael levantou o torso e fitou-a, sorrindo._Sim! Ela sente o mesmo por mim!_ E ento, porque no se casam?A expresso de Rafael mudou. Uma tristeza imensa toldou-lhe face._ No podemos! Seu pai rico, no permitiria o nosso casamento.

    Depois, como vou sustentar uma famlia? Ainda mais uma moa delicadacomo ela?

    Deus! Parecia at sua histria se repetia! pensava ela, assustada._ Meu querido, se quiser realmente e ela o amar de verdade, ela o

    aceitar como !_No to fcil!E ele contou-lhe o que acontecia em sua vida desde a morte de seu

    querido pai. Soraya emocionou-se com o destino de seu filho! O que poderia

    fazer para ajud-lo? No tinha bens ou mesmo dinheiro suficiente nem paraela! O que fazer?_Rafael! Venha para Madri comigo! Juntos poderemos cantar e danar e

    acumular algum dinheiro! Conheo gente importante que nos ajudaria aganhar alguns trocados e ento poderemos saldar suas dvidas! Voc temtalento e conseguir, tenho certeza!

    _Mas...e minha me? O que vou fazer? No temos dinheiro nem mesmopara a passagem!

    _Traga sua me tambm! Poderemos morar juntas! Conseguiremos umacarroa para voc e ento seremos uma famlia!

    Soraya estava adorando a idia! Ficaria com seu filho, poderiam juntosfazer sucesso e ao mesmo tempo o ajudaria.

    _Voc est disposta mesmo a me ajudar, a dividir sua carroa comigo eminha me?

    _Sim, eu estou. Acredito em voc, meu jovem amigo! No h segundasintenes, no quero nada de voc. Estou muito s, Rafael e sinto que noviverei muito tempo ainda...

    _No diga isso! a mulher mais bela que conheo e sua sade deferro!

    _No, no _ Ela sorriu, amarga. _ Tenho uma doena que corriminhas entranhas e pretende me levar com ela em pouco tempo, sei disso. Osmdicos j me avisaram que no me resta muitos anos...

    Rafael estava chocado! Como Deus poderia levar um serto...maravilhoso? A Andaluzia no seria a mesma sem Soraya para alegr-la!

    _ por isso, filho, que gostaria de compartilhar o resto de vida que mesobra com uma famlia. E eu poderei ajud-lo! No h outra sada, meu amigo.

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    Pense bem. Partirei daqui a trs dias. D-me a resposta o mais breve possvelpara podermos arranjar outra carroa.

    _Mas...e Jenima? O que farei sem ela?_Ora, esqueceu-se de que no poder t-la se no for algum na vida?

    Jamais a ter se ficar aqui nesse vilarejo, querido!Era verdade. Precisava pensar. Tinha que ir para casa e falar com sua

    me. Seria uma guinada em suas vidas, mas teria a oportunidade de realizarseus sonhos, finalmente! Depois, no tinha nada a perder. Jenima, se oamasse, iria esperar por ele o tempo que fosse necessrio! Decidiu despedir-seda cigana, prometendo-lhe uma resposta o mais rpido possvel.

    * * *

    _Mas, me! No compreende que a nossa chance? No podemosdesperdi-la! _Rafael tentava convencer a me de todas as formas.

    _Meu querido, estou velha para sair por a de carroa pelo meio domundo!

    _No est no! Depois, o que nos resta, me? Nada a no ser trabalharde graa para um homem sovina e impiedoso!

    _Mas...e minha casa? Minhas coisas!_Me, a senhora no tem mais nada! No percebe que ele nos tomou

    tudo? At a dignidade? Eu irei, me! minha oportunidade de ser algum navida! Pense um pouco, me. Se a senhora quiser o meu bem, no recusar essaoferta. No posso partir e deix-la merc desse desalmado e, ento, ser ofim para mim. Rafael saiu da cozinha e deixou sua me angustiada,pensativa.

    Agora, s faltava Jenima.Seguiu para o riacho onde costumavam se encontrar e esperou que ela

    aparecesse. Mas em vez dela, quem chegou foi a velha ama da moa e ela veio

    ao seu encontro. Rafael desceu do cavalo e esperou._Eu sou Maria da Luz, senhor _falou ela, ofegante com a corrida. _Vima mando da menina Jenima.

    _Sim, eu sei quem a senhora . Onde est ela? Aconteceu alguma coisa?Rafael perguntou, preocupado.

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    CAPITULO IX

    A irreflexo responsvelpor muitos males queafligem o ser humano, que

    passa a sofrer danos queno se encontram

    programados na sua fichacrmica(Trilhas da Libertao)

    A noite caiu, estendendo seu manto sobre a terra quente.Milhares de vaga-lumes piscavam na escurido, fazendo-se visveis. ERafael abenoou a lua nova, que no deixaria ningum v-lo, enquantoesgueirava-se pelo jardim da Casa Grande.

    Conseguiu despistar alguns cachorros com pedaos de carne seca eprocurou a janela de sua amada. No foi difcil, pois ela aparecia na sacada,vez por outra. Devia pressentir que estava ali.

    Procurou alguma coisa que pudesse facilitar-lhe a subida e encontrou ocaramancho cheio de rosas que ia at o telhado. Subir com todos aquelesespinhos arranhando-lhe as mos no seria agradvel. Mas valeria o sacrifcio,se conseguisse entrar no quarto de Jenima.

    Ao terminar a escalada, pulou na sacada e esperou. Olhou pela cortinacertificando-se de que no havia mais algum com ela e entrou no quarto.Antes que ela gritasse com o susto, tapou-lhe a boca.

    _Psiu... sou eu, Rafael!sussurrou em seu ouvido. Ela abriu os olhosde espanto. Depois que ele a soltou, ela o abraou, feliz.

    _Oh, h quanto tempo no o vejo!murmurou, apertando-o.Ele a beijou sofregamente. Jenima estava de camisa de dormir e os

    cabelos soltos e macios chegavam cintura. Estava to cheirosa! Enterrou o

    rosto na massa de cabelos e aspirou fundo o seu perfume._Jenima, minha querida! murmurava, ansioso. _Diga que no verdade! Diga que no vai se casar j!

    _ No, eu no vou me casar j! Quem lhe disse tamanha tolice? estranhou ela, observando-lhe o rosto transtornado.

    _Sua ama foi encontrar-me e disse-me que se casaria em poucos mesese que no a procurasse mais! No verdade?

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    _No, no verdade! Ou ser que ela sabe algo que no sei? _ Jenimaficou preocupada. _Meu pai no costuma comunicar-me suas decises. Serque verdade?

    _No foi voc que a mandou procurar-me?Rafael estava desconfiadode que cara no conto da carochinha.

    _No, no mandei... _Jenima estava comeando a desconfiar dalealdade de sua ama.

    _Ento, era mentira!_ Rafael, sempre confiei em minha ama..._Ento, ela pode ter alertado seu pai sobre minha presena. bem

    possvel que ele apresse o casamento por minha causa!_Mas, o que vamos fazer?_Voc no dir mais nada. Alis, dir que no me ver mais, que tudo

    acabou entre ns dois. Far o que digo?

    _Sim, farei. Mas no quero que pare de ver-me. Como faremos para nosencontrarmos?Era a hora da verdade. Era o momento que ele esperava. Levando-a para

    a cama, sentaram-se e ele comeou._Querida, voc sabe que no possuo nada para oferecer-lhe, no ? Que

    tudo o que tinha me foi covardemente arrancado e que no tenho um tostosequer para sustent-la. Pois bem. Surgiu uma oportunidade de ser algum, deconseguir ter o suficiente para ns dois vivermos com tranqilidade. Mas euterei que partir para Madri, depois de amanh.

    _Oh, no! No faa isso! No me deixe, Rafael!Jenima no podia sequer considerar a possibilidade de ficar sem ele._Escute, no vou abandon-la! S quero alguns meses para poder juntar

    algum dinheiro e ento virei busc-la._No, voc no vai voltar! Tenho certeza que vai me abandonar! Por

    favor, no v!Jenima tinha o rosto molhado de lgrimas. Rafael no sabia o que fazer

    para que compreendesse o que acontecia. Ela no entendia que se ele nofosse no haveria futuro para os dois? Agora percebera que da Luz mentira,no haveria porque submet-la s agruras da vida dura em Madri.

    _Entenda, Jenima! Eu no conseguirei nunca uma situao que nospermita casar! Eu preciso ir! S tenho que ter certeza de uma coisa: que meesperar. Prometa-me que vai me esperar!

    Jenima agora chorava como a criana que era._Voc vai mesmo, no ? Vai me deixar?_No faa assim, eu lhe imploro! No a deixarei nunca, Jenima. No

    entende que se no for assim, no poderemos nos casar jamais? Eu vou voltar!

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    _Olhe ele levantou-lhe o rosto _ Vou dar-lhe uma coisa que tenhodesde pequenino.

    Rafael tirou um cordo de ouro do pescoo e pendurado nele umapequena medalha com um braso desenhado. Colocou-a em seu pescoo efalou-lhe:

    _ Essa uma das poucas coisas de valor que possuo. Sempre estive comele ele sorriu. _ Quero que fique com isso e quando eu voltar, voc medevolve, est bem? Pode ter certeza que venho busc-lo!

    _Buscar a mim ou a medalha? gracejou ela, admirando a pea._Engraado, nunca procurou saber o que significa esse escudo?

    _No, no deve ter significado especfico. Mas uma pea muito bonitae de ouro legtimo! muito importante para mim, pois faz parte da minhavida desde que me reconheo por gente.

    _Eu vou cuidar dela para voc _ murmurou ela. Jenima levantou os

    olhos para Rafael e ele no resistiu. Beijou-a como se fosse a ltima vez.O som de passos no corredor o despertou para o perigo da situao.Beijando-a mais uma vez, correu para a sacada e antes de sair, fitou-aentristecido. Desceu rpido pelo caramancho. O momento no era propcio esua resistncia tinha limites.

    Rafael no pde ver Jenima na noite seguinte. A taberna estava cheia eno poderia sair. Trabalhou muito, at a exausto.

    No outro dia, procurou sua me para saber a resposta. Quando aencontrou, ela trazia uma trouxa nas mos e disse que ali estavam todos osseus pertences. Partiria com ele para Madri.

    Rafael abraou-a e foi correndo comunicar cigana que iriam com eles.Soraya recebeu a notcia exultante. J havia perdido as esperanas de

    ver seu filho novamente. Rafael disse-lhe que precisaria despedir-se deJenima, mas a cigana comunicou-lhe que eles partiriam naquela tarde e nohavia mais tempo a perder. Com o corao aos saltos, ele juntou tambm seuspertences e dirigiu-se carroa que Soraya lhe comprara. Sua me reservaraalgumas moedas para as despesas e fechara a taberna. Partiram para as novasaventuras como ele sempre quis: como o verdadeiro cigano que era!

    Naquela noite, a vila no viu a taberna abrir. A voz do jovem cantor no

    se fizera ouvir e to pouco os seus bailados. Reinava na vila o silncio.

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    CAPTULO X

    Entrai pela portaestreita porque largo o caminho da

    perdio

    Madri era esfuziante! Muita gente cruzava a praa e faziam muitobarulho tambm.

    Teatros e touradas movimentavam a capital. Rafael estava fascinado!Era aqui que sempre quisera estar, pensou. Era como se j a conhecesse! Opovo alegre, o movimento, as lojas, tudo enfim o agradava.

    _Ento, Rafael? O que acha? _ perguntou Soraya, sorrindo de suaalegria. Seu rosto voltara a brilhar, perdendo aquela tristeza mrbida que oafligia.

    _Era assim que imaginei que fosse! Maravilhosa!respondeu, feliz._Ns faremos uma pequena parada na cidade e depois vamos mais para

    o campo. Os padres no gostam de ciganos e nos expulsam sem conta. Vamosficar mais um pouco porque venho praticamente sozinha, no fao tantoestardalhao. Quero apresent-lo a uma pessoa que sei que vai ajud-lo.

    Rafael conheceu um homem do teatro de Madri. Soraya era muitoquerida por esse amigo em particular e ao apresentar Rafael, ele permitiu

    que fosse includo num trecho do espetculo que faria naquela semana.Rafael conheceu o teatro monumental e maravilhou-se com tudo, sentia-

    se em casa. A sensao de j ter estado naquela cidade e pisado queles palcosera muito forte!

    Don Melquior, como era chamado o amigo de Soraya, levou-o parafazer um teste. Chamou uma de suas danarinas e mandou que danasse.

    O homem notou que ele realmente tinha um talento natural. Talvezfosse um pouco rude, mas era um achado. E quando Rafael soltou sua voz, viuali um tesouro, um diamante que s precisaria de algum polimento para

    brilhar. Tomou a si o encargo de ajudar o rapaz a se comportar de um jeitoconveniente, conseguindo um certo refinamento.No seria fcil. O rapaz tinha a alma livre e muito indisciplinado, mas

    a voz era fabulosa! No o deixaria escapar!E Rafael no queria fugir. O teatro era sua alma.Em pouco tempo alcanou o sucesso que almejava. Sua figura agressiva

    e mscula envolvia a platia e o corao das mulheres. No faltavam donzelas

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    belssimas para suas noites. Porm, no recolhimento de seu quarto, noesquecia Jenima. Sonhava com ela, revivia a noite que a tivera toda para si. Eaguardava o momento de voltar para busc-la.

    Mas ainda no era famoso o suficiente. No possua quase dinheiropara fazer frente ao primo don Carlos. Queria dar a Jenima tudo do bom e domelhor que Madri poderia oferecer.

    Seu empresrio quase no lhe dava o suficiente. O homem ficava comtodo o lucro dos espetculos. E esta situao o estava angustiando! J sepassara um ano e ainda no estava em condies de buscar sua amada.

    Ganhava algum dinheiro quando era convidado a fazer parceria comSoraya nos jantares e nas festas onde se apresentavam como atrao especial.Eram somente algumas moedas de ouro.

    Sua me estava bem instalada, numa casa muito confortvel. No eragrande, mas muito pitoresca e com muitos vizinhos. Era disso que ela sentia

    falta: dos amigos para aplacar sua solido. Ao menos a casa era sua deverdade! E isso o orgulhava. Conseguira para sua me, com seu talento, umabela casa e uma bela vida! Mas para si, o sucesso no bastava.

    Queria a mulher que amava ao seu lado. Apesar de todas as senhoritasque o assediavam e que passavam as noites com ele, era por Jenima quesuspirava!

    Tinha que v-la! Saber como estava e afirmar-lhe que no a esquecera,que iria busc-la, um dia! Mas o que fazer?

    Os meses passavam-se e Rafael comeou a irritar-se com as exignciasde seu trabalho. Estava quase preso ao teatro e aos ensaios. S podia fazer oque don Melquior desejava e ele continuava roubando-lhe o dinheiro.

    Num dia especial, Rafael conheceu uma danarina exemplar. Quase toboa quanto Soraya. S que mais nova.

    Por aquela morena seu corao balanou e esqueceu por algum tempo asua loura Jenima. Ia com ela a todos os lugares onde deveriam fazer presena.Eram convidados especiais de jantares deslumbrantes.

    Numa dessas ocasies conheceu um outro homem que viria a ser seunovo empresrio: Charles Bordelot. Dizia-se aristocrata, mas Rafael tinha adesconfiana de que era mesmo americano, desses novos ricos que gostavam

    de patrocinar os artistas famosos.Com esta amizade, ambos tiveram muitos lucros. Rafael viajou paramuitas cidades, apresentando-se com seu jeito especial, encantando etornando-se cada vez mais conhecido. Cantava belas reas da pera clssica,ficando conhecido como um grande bartono, porm, era com suasapresentaes especiais de dana e msica ciganas que derretia os coraesdas beldades da Europa.

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    Nesse perodo, de viagem em viagens, quatro longos anos se passaram.Estava na Amrica quando recebeu a mensagem de sua me, dizendo-lhe queSoraya queria v-lo, pois estava morrendo. Rafael voltou imediatamente,interrompendo sua turn.

    Quando chegou em casa, a cigana estava nas ltimas. Entrou no quartoe ajoelhou-se junto cama, segurando suas mos. Ela mal abria os olhos, dir-se-ia que apenas o esperava para partir.

    _Meu menino murmurou ela, sorrindo com dificuldade. Como estbonito...

    _Minha cigana! Continua sendo a mulher mais bela de toda a Espanha!galanteou ele, com lgrimas nos olhos.

    _ Sempre sedutor! Rafael...tenho algo muito importante...para contar-lhe e...

    Ela tossiu dolorosamente e ele viu o sangue que sujou o leno de linho

    branco._Soraya..._No...estou bem. Ajude-me a levantar um pouco...por favor...Ele a ajudou, sentando-a e escorando-a nos travesseiro. Ela suava muito

    e respirava com extrema dificuldade._Assim est...melhor...sua voz falhava, pois necessitava sorver o ar. _

    Tenha um pouco de pacincia...filho._Eu terei, minha querida. Eu terei.- respondeu ele, com um bolo na

    garganta. O amor e gratido que sentia por aquela mulher eram impagveis.Ela o havia iniciado em sua carreira e hoje tinha fama e sucesso por causadela. Lamentava ter ficado tanto tempo fora, abandonando sua me e suaamiga.

    _Eu...sinto que no passarei...de hoje...filho. Por isso...preciso lhefalar... e espero que...que me perdoe...

    _Soraya, por favor! Voc no precisa se esforar para me contar nada!Eu a perdoou por qualquer coisa, mas no fique assim!

    Ela lutava para respirar e parecia que sua aflio piorava as coisas._No...deixe-me falar...por favor! H alguns anos...conheci um...homem

    por quem me apaixonei. E...por causa...dessa paixo...dei luz... um menino!

    amos nos casar...mas sua famlia era contra o nos...nosso casamento _ Umnovo acesso de tosse a impediu de continuar. Depois que se acalmou,continuou._ Ele era de fam...famlia distinta...e no podamos...nos unir.Combinamos de...fugirmos....mas algo aconteceu que ele no...no apareceu!Minha tribo ia expulsar-me, mas...um dos homens...o mais rude entre todos,me tomou para...esposa. Eu no podia ter...meu filho junto quele...animal!

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    Ento...eu...eu deixei o meu ...menino para que outra cuidasse dele...com omesmo...amor...

    _Porque est me contando tudo isso, cigana?Rafael no compreendia.O esforo de Soraya era imenso e achou mesmo que ela no agentaria at ofim.

    A cigana o fitou com os olhos baos. Tinha que continuar! Tinha quelhe contar quem era seu pai! Ser que Deus no permitiria?

    _Oh, Deus!...- murmurou ela, sentindo o mundo escurecer. O rosto deseu filho saia de foco e ela no conseguia mais respirar. _Rafael...onde est?

    _Estou aqui, Soraya! _Ele segurou-lhe a mo, mas percebia que no ovia mais. As lgrimas desciam de seus olhos e ele beijava-lhe as mos,emocionado.

    _Eu deixei...o pequenino...na porta...da ta...taberna! ... vo...voc,Rafael! Voc ... meu...menino! Perdoe-me...perdoe a sua...desventurada

    ...me... _E expirou. Soraya estava morta! O esforo fora demasiado para ela.Rafael estava estupefato!_Soraya! _ sacudiu-a, tentando acord-la. _ Soraya, volte! No me deixe

    assim, sem entender! Por favor..._ ele pedia, mais ela j no o ouvia, no comos ouvidos carnais.

    Rafael ficou ali um tempo que no soube precisar, sentindo a dor daperda da sua mentora. E s depois analisou suas palavras finais.

    _Filho? Eu sou seu filho, Soraya?- perguntou, falando consigo mesmo.Saiu do quarto e Miguel, o grande amigo, entrou para chorar sua amada.

    Ele enxugou as lgrimas e vestiu a capa negra. Pegou suas luvas decetim branco e a bengala. A cartola estava sobre o aparador. Suas roupas eramde viagem e foram comparadas na Inglaterra. No tinham muito a ver com ele,mas tudo a ver com sua nova imagem...

    Sorriu amargo. Sempre quisera ser um cigano e agora parecia que seusonho se tornara realidade. Tinha que falar com sua me. Precisava saber averdade.

    Saiu para a rua e caminhou at a casa daquela que, at aquele dia,acreditara ser sua genitora. O vento estava frio, pois era inverno. Bateu naporta e uma senhora veio atend-lo.

    _Ol, - cumprimentou-a e tirou a cartola. Entrou no hall e sua figuraencheu o ambiente pequeno._Gostaria de ver Consuela._Madame est na sala de ch, senhor..._Rafael. Sou o filho de madame Consuela.A velha mulher corou e correu a avisar a patroa.

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    Ele no esperou. Entrou na casa e foi ao encontro da me. Ela estavasentada numa cadeira, com um cobertor nas per