Sobre a Criação de Monstros

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Sobre a criação de monstros As pessoas não se tornam monstros de repente, não. Esses monstros que rasgam o verbo, jogam as máscaras fora e se revelam com palavras de ódio, palavras de ordem, de separação, “estupra, prende, mata, esfola, põe no pau de arara, arrebenta, tortura, esgana”, ou com os sentimentos a elas relacionados, que são o ódio, a repulsa, o asco, a egolatria, a eugenia, o sentir-se superior, sentir-se “branco”, sentir-se “homem ou macho”, ou mesmo pensar-se o fim da linha na evolução da raça humana. Nada disso é repentino, nada disso é um só. Tudo é uma soma, uma adição que se faz aos mínimos, grão a grão, uma palavra aqui, um odiozinho ali, um nojo ignóbil e imerecido acolá, e essa atitude de repulsão e distância em relação a tudo o que os nega vai se cimentando, acumulada, tijolo a tijolo, nas almas que se vão endurecendo, se murando, se separando das demais, até que apenas eles sobram, sobranceiros em suas certezas máximas de que só seus iguais os satisfazem, que só o que reafirma seus lugares-comuns, suas frases feitas e imperativas comporta. Pessoas como Bolsonaro, que falam de estupro como coisa normal, natural, ensejada pela vítima ou até desejada por algumas delas (supõem nelas os desvios sexuais limítrofes que estão em suas almas), convites ao crime, incitações a linchamentos, eles não surgem de um dia para outro, como excrescências de uma sociedade doente, como

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Sobre a criao de monstros As pessoas no se tornam monstros de repente, no. Esses monstros que rasgam o verbo, jogam as mscaras fora e se revelam com palavras de dio, palavras de ordem, de separao, estupra, prende, mata, esfola, pe no pau de arara, arrebenta, tortura, esgana, ou com os sentimentos a elas relacionados, que so o dio, a repulsa, o asco, a egolatria, a eugenia, o sentir-se superior, sentir-se branco, sentir-se homem ou macho, ou mesmo pensar-se o fim da linha na evoluo da raa humana. Nada disso repentino, nada disso um s. Tudo uma soma, uma adio que se faz aos mnimos, gro a gro, uma palavra aqui, um odiozinho ali, um nojo ignbil e imerecido acol, e essa atitude de repulso e distncia em relao a tudo o que os nega vai se cimentando, acumulada, tijolo a tijolo, nas almas que se vo endurecendo, se murando, se separando das demais, at que apenas eles sobram, sobranceiros em suas certezas mximas de que s seus iguais os satisfazem, que s o que reafirma seus lugares-comuns, suas frases feitas e imperativas comporta.Pessoas como Bolsonaro, que falam de estupro como coisa normal, natural, ensejada pela vtima ou at desejada por algumas delas (supem nelas os desvios sexuais limtrofes que esto em suas almas), convites ao crime, incitaes a linchamentos, eles no surgem de um dia para outro, como excrescncias de uma sociedade doente, como verrugas crescendo em um membro no to saudvel de uma comunidade podre.Eles so fruto de uma certa, se que se pode cham-la assim, evoluo lenta, gradual e dirigida em direo ao que nos choca, essa nossa sensao de estupefao ou horror com que encaramos declaraes abominveis, eivadas de preconceitos e desrespeito ao simples humano que est sendo humilhado. Tampouco essa criao lenta reativa, como supem alguns, tentando novamente jogar sobre os outros as culpas por seus atos de dio e rancor. Pessoas no cultivam dios para reagir a agresses ou atos supostos dos outros, essa doena antecede o ato provocador; elas tm o dio j cultivado bem dentro, semente brotada e forte, com razes profundas sufocadoras de algum carinho e amor que porventura tenha sobrado naquela alma. No possvel logicamente creditar um ataque gratuito e direto a uma situao genrica anterior a ela. Como poderamos supor possvel, com um mnimo de lgica, a um monstro que creditasse um assassinato impalpvel corrupo, um estupro a uma genrica situao social de roubo generalizado? No, se nosso crebro pensa ao menos um pouco e esse pensamento humano desde sua gnese, no podemos debitar sequer a um abuso na infncia o comportamento de um escroque na maturidade. Pois justamente esse o mnimo tico que devemos cobrar dele, a maturidade contraposta ao comportamento de criana birrenta que si demonstrar quando confrontado, ao humano adulto que recorremos para inculp-lo ou cham-lo responsabilidade que demonstra no ter! No jogando nos outros seu remorso ou raiva pelo fato anterior que se alcana super-lo, no atacando ao prximo que se ultrapassam as agresses sofridas, no com birra que se ganha amor. Os monstros no nasceram ontem, no so fruto sequer dos milhares votos que receberam em outubro, eles so cozidos em fogo baixo, fervura lenta, uma desistncia prolongada (por demais, acho eu) dos mnimos ticos, um a um, num caminho bem gasto e pavimentado por coisas simples como um riso sarcstico, uma piada infame, uma notcia fantasiosa, um discurso tendencioso. Esses pedaos de realidade se juntam em mentes por vezes tornadas to incapazes de concatenar fatos, que acabam aceitando fragmentos; to inaptas para tomar decises, que acabam obedecendo; to pressionadas a seguir a manada, que acabam mugindo com ela. Tocamos na origem do dio, porm de passagem. Dissemos que ela se demonstra em piadas, em notcias, em discursos. disso, dessa frma que se constri um dio vigoroso, explosivo e sem direo, porque atinge a quem estiver perto, como o que assistimos com pesar esses dias atrs. Penso nas piadas s vezes como pequenas espoletas e pavios que incendeiam e explodem em dio-mor. Um amigo me disse, certa vez, citando um humorista famoso, que no possvel fazer humor sem preconceito. Tive uma dessas estupefaes que j citei. Humor bom, no pode ser fruto dos preconceitos (porque seria um humor contra algum, nunca junto com algum), e humor realmente bom aquele que tenho, incrivelmente, ao acordar (acreditem, eu acordo de bom humor mesmo...); pois esse humor no pode incluir preconceito, sempre vem do bem-estar, do sentir-se vivo, do querer prosseguir na vida e de bem com tudo, principalmente com os outros por quem vale viver. O riso, sim, riso algo que se pode tirar de preconceitos. Uma risada, eventualmente uma gargalhada. Que mal h nelas? Adianto: essas, vindas do preconceito, no mais me vm nem viro, desde que eu notei que so foras de separao, no de juno, so obstculos que se colocam entre mim e qualquer prximo. No engraado eu rir do outro porque ele fala banhar e eu tomar banho, porque a pele dele no foi colorida pelo sol da mesma maneira que a minha, porque o r que ele pronuncia no de minha regio; no tenho como rir do que me separa do outro ser humano a minha frente, eu tenho a lamentar! Entretanto, eu refao a pergunta, que mal no h nelas? Se tudo o que geram so separaes, distanciamentos, raivas, invejas, dios, nunca uma compreenso, um incentivo, uma pequena solidariedade? No, meus caros, nada do que brota do erro pode se acertar no caminho, nada que cresce como uma fenda pode tornar-se mais que um buraco! Por isso, vejo que esse humor no mais humor, apenas um grito de um inconsequente e inseguro ser tentando encontrar algum valor, em si, que ele j perdeu h tempos. Um estertor de um cadver de sentimento. Mas ento no h o riso bom, o bem dado, claro, aquele que desanuvia a alma, eleva o esprito? Claro que h, eu sempre rio da inocncia de crianas, rio de descobertas simples, do inesperado que me surpreende, de um tombo, de um susto, de uma nuvem e sua forma, de pessoas sorrindo. A sim, podemos encontrar algum humor, um humor fundante, que nos rene num s gargalhar. E da que eu decidi que vir todo o meu humor, o qual, confesso, est muito melhor. Sim, ingnuo, e dou graas por ele ser assim, pessoas que desistiram da ingenuidade se tornam monstros com muita facilidade, no quero me parear a eles. Esse para mim o mnimo tico do riso.Entretanto, eu tambm disse l atrs que notcias podem estar na origem do dio, e elas esto. Houve um aprendizado desviante na publicao de notcias de alguns anos pra c, e infelizmente foi esse desvio que se tornou norma, foi o erro que virou paradigma e nem sombra daquilo que chamamos de mnimo tico sobrou. O que seria ento a volta s origens, o back to the basics da publicao de notcias atualmente (no posso chamar de jornalismo, pois na maior parte das vezes exercido por no jornalistas e com objetivos no jornalsticos...)? Desaprenderam nossos profissionais a checar fontes, no fazer fico ou no publicar apenas um lado das vises sobre os fatos? Sim, esse descompromisso com o bsico os torna umas vezes ficcionistas, contadores de histrias baratas e fracas, porque incriadas, inverossmeis, porm feitas para valorizar ou escrachar a outrem. Estes se tornam locutores de vozes diludas na sociedade, vingativas, propugnando impropriedades, descrdito nas leis e nos homens, dio refletido pelo espelho da tev.Por outras, a quebra do compromisso os torna avinagrados portadores de atitudes generalizadas contra tudo e todos ou contra uns mais que outros, o que os transforma apenas em portadores de recados, nunca observadores privilegiados da realidade a relatar. Estes so os piores, porque incapazes sequer de contar histrias, mesmo que ficcionais, sobre uma realidade que lhes contraria, no inventam, apenas destilam cidos imprprios contra inimigos predefinidos. Pelejam contra aqueles que seus patres ordenam, ces fiis ao ordenado, sabujos de sentenas de dio, como no vou morrer sem que A seja eleito ou nunca vou te deixar governar, ou ainda vou te destruir porque sou o quarto poder. A esses, o que podia ser tico reverteu, como rio que volta quilmetros atrs pela mar violenta que o subjuga em pororoca. E essa a histria da quebra do mnimo tico na notcia.Tambm o discurso pode ser o terceiro p em que se equilibra o construto imenso de dio sob o qual nos vergamos. Tomo discurso como visto pela anlise do discurso, uma posio, atitude daquele que fala em relao quele com quem fala e quilo que fala. O discurso que nos torna homens nicos perante o interlocutor nico que conosco conversa uma conversa nica, mesmo que repita outra palavra por palavra. Nisso somos bons: assumir posturas contra quem nos interlocutor, e essa postura, de escolher o contra em vez do com, fruto daquela viso psico-filosfica l do incio do texto: somos inseguros ao ponto de criar personagens para ns mesmos, personagens fortes como queramos ser, imbatveis como os heris que imaginamos possveis, corretos como o deus a quem suplicamos. Mas ns nunca chegamos a cumprir nenhuma dessas premissas, elas permanecem em sonho, imaginadas e inalcanveis, porm realizveis pelo interlocutor e exigveis apenas dele. assim que cobramos do outro o que nossa dvida para conosco. de novo o que nos torna frgeis, birrentos, odiosos... Nesse percurso, gro a gro, tirei um pouquinho das areias que montaram esse castelo, assombroso e sombrio, em cujo labirinto esto nos forando... Espero que nos tenha sobrado ao menos a praia e a areia espalhada, sob a luz do sol que brilha.Emilson Werner