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Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD) 11(3):480-501, setembro-dezembro 2019 Unisinos - doi: 10.4013/rechtd.2019.113.12 Este é um artigo de acesso aberto, licenciado por Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional (CC BY 4.0), sendo permitidas reprodução, adaptação e distribuição desde que o autor e a fonte originais sejam creditados. Sobre A Teoria da Constituição como Teoria Crítica: Marcelo Cattoni, democracia sem espera e constitucionalismo por vir Constitutional Theory as Critical Theory: Marcelo Cattoni, democracy whitout delay and constitutionalism to come David Francisco Lopes Gomes 1 Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG/Brasil) [email protected] Resumo Este artigo aborda a obra teórica de Marcelo Cattoni, principalmente sua tese sobre uma teoria crítica da Constituição. Para tanto, em primeiro lugar, reconstrói-se a trajetória teórico-bibliográfica de Marcelo Cattoni antes de seu livro “Contribuições para uma Teoria Crítica da Constituição”. Em seguida, apresentam-se a estrutura e os principais argumentos desse livro. Finalmente, levantam-se algumas questões críticas que talvez possam contribuir para o relevante diálogo que Marcelo Cattoni vem propondo entre Teoria da Constituição e Teoria Crítica no Brasil. Palavras-chave: Teoria da Constituição, Teoria Crítica, Marcelo Cattoni. Abstract This paper approaches the theoretical work of Marcelo Cattoni, mainly his thesis about a critical theory of Constitution. To do so, first it reconstructs the Marcelo Cattoni’s theoretical-bibliographic trajectory before his book “Contributions to a Critical Theory of Constitution”. Next, it presents the structure and the main arguments of that book. Finally, it raises some critical issues that could maybe contribute to the relevant dialogues that Marcelo Cattoni has been proposing between Constitutional Theory and Critical Theory in Brazil. 1 Professor Adjunto da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Rua João Pinheiro, 100, Centro, CEP 30.180-100, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil.

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RevistadeEstudosConstitucionais,HermenêuticaeTeoriadoDireito(RECHTD)11(3):480-501,setembro-dezembro2019Unisinos-doi:10.4013/rechtd.2019.113.12

Esteéumartigodeacessoaberto,licenciadoporCreativeCommonsAtribuição4.0Internacional(CCBY4.0),sendopermitidasreprodução,adaptaçãoedistribuiçãodesdequeoautoreafonteoriginaissejamcreditados.

SobreATeoriadaConstituiçãocomoTeoriaCrítica:MarceloCattoni,democraciasemesperaeconstitucionalismoporvirConstitutionalTheoryasCriticalTheory:MarceloCattoni,democracywhitoutdelayandconstitutionalismtocome

DavidFranciscoLopesGomes1UniversidadeFederaldeMinasGerais(UFMG/Brasil)

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Resumo

EsteartigoabordaaobrateóricadeMarceloCattoni,principalmentesuatesesobre uma teoria crítica da Constituição. Para tanto, em primeiro lugar,reconstrói-se a trajetória teórico-bibliográfica deMarcelo Cattoni antes deseu livro “Contribuições para uma Teoria Crítica da Constituição”. Emseguida, apresentam-se a estrutura e osprincipais argumentosdesse livro.Finalmente, levantam-se algumas questões críticas que talvez possamcontribuirparaorelevantediálogoqueMarceloCattonivempropondoentreTeoriadaConstituiçãoeTeoriaCríticanoBrasil.

Palavras-chave:TeoriadaConstituição,TeoriaCrítica,MarceloCattoni.

Abstract

This paper approaches the theoreticalwork ofMarcelo Cattoni,mainly histhesis about a critical theoryof Constitution. Todo so, first it reconstructsthe Marcelo Cattoni’s theoretical-bibliographic trajectory before his book“Contributions to a Critical Theory of Constitution”. Next, it presents thestructureandthemainargumentsofthatbook.Finally,itraisessomecriticalissues that couldmaybe contribute to the relevant dialogues thatMarceloCattoni has been proposing between Constitutional Theory and CriticalTheoryinBrazil.

1 Professor Adjunto da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Rua João Pinheiro, 100, Centro, CEP30.180-100,BeloHorizonte,MinasGerais,Brasil.

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Keywords:ConstitutionalTheory,CriticalTheory,MarceloCattoni.

Introdução

No dia 24 demarço de 2017, a Sala da Congregação da Faculdade deDireito daUFMGrecebiaadefesadatesedetitularidadedoprofessorMarceloAndradeCattonideOliveiranaárea de direito constitucional, com banca composta pelos professores titulares GilbertoBercovici,LuísRobertoBarroso,MarceloNeveseMisabelDerzi.Ofato,porsisó,dadefesadatesejámereceriadestaque:desdeoiníciodadécadade1980,quandoJoséAlfredodeOliveiraBaracho tornou-se professor titular, aquela Faculdade de Direito, um dos polos do direitopúblicobrasileiroaolongodahistória,nãopresenciavaumeventoquepudesseconduzirumprofessor a uma posição semelhante. Em termos mais estritos, se se leva em conta que afiliação formal doprofessor JoséAlfredodeOliveiraBaracho eramais diretamente à teoriageral do Estado, desde a defesa da cátedra do professor Raul Machado Horta, em 1964, aFaculdadedeDireitodaUFMGnãotinhaumprofessoremumcargoequivalentenocampododireitoconstitucional.

Para além desse caráter histórico do evento, o conteúdo da tese que ali era defendidarevelava o resultado de toda uma trajetória dedicada às aproximações entre o direitoconstitucional,aTeoriadaConstituiçãoeaTeoriaSocial2,aproximaçõesqueculminavamemum textodenso,prenhede tensões, algumasvezesárduo, e,por causamesmode tudo isso,extremamentesingularemsuaqualidade.

Nopresenteartigo,gostariademedebruçarsobretaltexto.Antesdisso,porém,parece-me fundamental resgatar brevemente os principais momentos da trajetória intelectualpercorridapeloprofessorMarceloCattoniemdireçãoàssuas“ContribuiçõesparaumaTeoriaCríticadaConstituição”–títulodadoaotextodefendidonaqueledia24demarço.Aofinaldoartigo, por sua vez, apresento considerações que, espero, talvez possam contribuir para acontinuidadedodesenvolvimentodeumaabordagemdaTeoriadaConstituiçãocomoTeoriaCrítica.

Deumpontodevistametodológico,meucaminhoétraçadoreconstruindoosargumentosdeMarceloCattonipormeiodeumacríticaimanenteaseusprópriosescritos:essecontinuasendo um dos sentidos possíveis de “reconstrução” como método crítico na obra de J.Habermas(2016)3.

Passospreparatórios

É sempre arriscado projetar no passado a presença de um sentido que se expõeclaramenteapenasmaisà frentenotempo.Noquedizrespeitoaoprocessodeformaçãodeideias,entretanto,dificilmentenãoéesseocaso.Acondiçãohermenêuticadavidahumanaeoinarredável laçoqueuneumamesmapessoaemtornodeumaidentidadequeéasuatornaindisponíveis saltos que provoquem rupturas absolutamente drásticas entre momentosdiferentes da obra de um autor. Sem dúvida, correções, mudanças de perspectiva, de2Dadaa importânciadas categorias “TeoriadaConstituição”, “Teoria Social” e “TeoriaCrítica”parao alcancedas finalidadesdesteartigo,opteiporgrafá-las com iniciaismaiúsculas.Nãohá,noentanto,nenhumpressupostoontológicomais fortenessaopção.3Conferir,portodos,omodocomoJ.Habermas(2010,p.177-181)explicitaessemétodoedelesevaleemsua“TeoriadaAçãoComunicativa”(2010).Paraumdebatesobreastensõesemtornodessacategoriahabermasiana,cf.NOBRE;REPA,2012.

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diagnósticoedeprognóstico,acontecemcomelevadafrequência,maselas–inclusiveaquelasqueparecemmais radicais –podemsempre ser reconduzidasa algumarelação comaqueleconjuntodeideiasqueantecediaasnovasformulações:nolimite,éimpossívelquesaltemosdenósparadarmosinício,exnihilo,aumnovocomeçodenósmesmos.

Seassimoé,tantoaquiloqueveioaconsubstanciar-senateseintitulada“ContribuiçõesparaumaTeoriaCríticadaConstituição” iluminaos textos teóricosanterioresdeM.Cattoniquantoessestextosigualmentelançamluzessobreaquelatese.

O plexo desses textos teóricos anteriores pode ser dividido em três grandes blocos,caracterizáveis da seguinte maneira: um bloco mais voltado a problemas diretamentedogmáticos do direito constitucional; um bloco cuja preocupação precípua é menos com adogmática constitucional emais comquestões de ordem teórico-constitucional; e umblocoemqueoqueestáemjogoémenosaTeoriadaConstituiçãoemaisaTeoriaSocialtomadaemum sentido amplo, o que abrange áreas como a filosofia, a sociologia, a ciência política, aliteraturaeahistória.

Essa divisão precisa ser apresentada com a ressalva de não estar referida a blocosestanqueseincomunicáveisentresi,masadimensõesdistintasque,emboapartedasvezes,sobremaneira nos textos mais recentes, superpõem-se em um mesmo trabalho. Por outrolado,emboratambémnãoserefiraaumasequênciacronológicaentreosblocosouentreostextosqueoscompõem,elapossuiumvalorheurísticoe,porisso,umarelevânciadidática.

No que tange aos textos devotadosmais imediatamente à dogmática constitucional, osprimeiros que precisam ser citados são a dissertação demestrado e a tese de doutorado4.Naquela,oqueestáemjogoéumainterpretaçãodomandadodeinjunçãoadequadaaoEstadoDemocráticodeDireito,interpretaçãoquenãoabrissemãodaprestaçãojurisdicionaldevidano caso concreto,mas tambémnão desfigurasse a separação de poderes e os requisitos delegitimidadeque ela traz consigo aopretender transformar essa prestação jurisdicional emalgocomoumanormacomcaracterísticasdegeneralidadeeabstraçãoquesomentedopoderlegislativopoderiamemanar(Cattoni,1998).

Porseuturno,atesededoutoradopermanecepreocupadacomaprestaçãojurisdicional,principalmentenoâmbitodoSupremoTribunalFederal,masdeslocaoescopodaanálise:oobjetopassaaserocontroledeconstitucionalidade,oprocessoconstitucionalnobojodoqualse trata não tanto de “justificar a validade das normas jurídicas legislativas, mas sim deaveriguar a constitucionalidade e a regularidade do processo legislativo, aplicando aConstituição” (Cattoni, 2000, p. 122).Novamente, o problema é o de como estabelecer umainterpretação desse processo constitucional que seja adequada ao Estado Democrático deDireito.

A dedicação de M. Cattoni a temas imediatamente dogmáticos continuará ao longo dotempo, sendo que, nos últimos anos, seus escritos com esse teor em geral apareceminicialmente em portais e sítios eletrônicos sob a forma de intervenções cientificamentequalificadasnodebatepúblico5.Noentanto,paraoqueaqui interessa, omais importanteéperceberque,jáalinaelaboraçãodadissertaçãodemestradoedatesededoutoramento,asreflexões dogmáticas não emergem descoladas de preocupações relativas à Teoria daConstituição. Afinal, namedida emque se tratava de discutir tanto omandado de injunção

4 Ambas publicadas posteriormente como livro: a dissertação de mestrado sob o título de “Tutela jurisdicional e EstadoDemocráticodeDireito:porumacompreensãoconstitucionalmenteadequadadoMandadodeInjunção”(CATTONI,1998);atesede doutorado sob o título de “Devido processo legislativo: uma justificação democrática do controle jurisdicional deconstitucionalidadedasleisedoprocessolegislativo”(CATTONI,2000).5 Conferir, por exemplo, as compilações de textos presentes nestes dois livros: CATTONI; BAHIA; BACHA E SILVA, 2016;CATTONI;BAHIA;NUNES;BACHAESILVA,2018.

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quantoocontroledeconstitucionalidadeàluzdoEstadoDemocráticodeDireito,colocava-secomo algo impostergável a própria pergunta pelo Estado Democrático de Direito, suasorigens,suahistóriaeseusfundamentosdelegitimidade–enasrespostasaessasperguntasjáseanunciavaaaproximaçãocomaTeoriaCríticapormeiodaobradeJürgenHabermas.

É, pois, de dentro de problemas dogmáticos que estavam no cerne do debateconstitucionalbrasileirodaépoca-ainterpretaçãoeaefetivaçãodogmáticadomandadodeinjunçãoedocontroledeconstitucionalidadenohorizontedaConstituiçãode1988-queseimpõe, como que por uma exigência imanente, a mudança de nível de reflexão eargumentação: de um nível primariamente concreto – em que se trata de definir aspectoscomonaturezajurídica,efeitosdeprovimento,competência,procedimento,limites–paraumnívelprimariamenteabstrato.

Essapassagematextoscujaprimaziapertenceaelementosteórico-constitucionaispodeser constatada em livros como “Direito Constitucional” (Cattoni, 2002) e “Jurisdição ehermenêutica constitucional no Estado Democrático de Direito” (Cattoni, 2004a), mas seexplicitamelhor com o lançamento de “Teoria da Constituição” (Cattoni, 2012) – obra queretomaeatualizacapítulospublicadosanteriormentenaquelesoutrosdoislivros,bemcomoacrescenta a eles os novos resultadosdepesquisas quehaviam sido realizadas ao longodasegundametadedos anos2000.Ali, coloca-sedesdeo início o objetivodedesdobraroqueseriaumaTeoriadaConstituiçãofundadanumateoriadiscursivadodireitoedademocraciade inspiração habermasiana. Nesse sentido, “o papel da Filosofia do Direito” consistiria“fundamentalmente (...) na reconstrução da autocompreensão normativa do EstadoDemocráticodeDireito”(Cattoni,2012,p.25),demodoqueafilosofiadodireitopudesseserredefinida como filosofia do direito constitucional (Cattoni, 2012, p. 25-27) e a teoria dodireito devesse “ser compreendida fundamentalmente comoTeoria daConstituição” (Cattoni,2012,p.27).

Retornareiaessepontomaisàfrente,nomomentodereconstruiraargumentaçãocentraldatesedetitularidadedeM.Cattoni.Porora,orelevanteéchamaratençãoparaofatodeque,nessemomentodesuaobra,doisdospilaresaxiaisdesuas“ContribuiçõesparaumaTeoriaCrítica da Constituição” já estão erigidos: a habilidade de lidar com problemas dogmáticoscomplexos e a compreensão dos fundamentos e da arquitetônica geral da Teoria Socialhabermasianaedopapelneladesempenhadopelodireito.

Masfaltavamaindadoisoutrospilares,queirãosendoconstruídosentreofinaldadécadade2000eo iníciodadécadade20106,correspondendoàqueleterceiroblocodetextos,nosquaisaTeoriaSocialemsentidoamplovemparaoprimeiroplanodasanálises.Três textossintetizamtaispilares.

Oprimeirodelesé“PensandoHabermasparaalémdeHabermas:arelaçãointernaentreEstadodeDireitoedemocracianaobrarecentedeHabermas–umarevisão?”(Cattoni,2009,destaquesdooriginal).Nesseartigo, a críticaprincipalmenteaosdesenvolvimentosdaobrahabermasiana que giram em torno da tese da sociedade pós-secular (Habermas, 2008)catalisatantooiníciodeumafastamentoemrelaçãoàobradeJürgenHabermas–àqualM.Cattoni havia permanecido estritamente filiado até então – quanto o início da aproximaçãomaisintensaemrelaçãoaoutrasreferênciasteóricas.

Esse processo de alteração dos referenciais teóricos determinantes de seu pensamentocontinuará presente e se agudizará nos outros dois textos que sintetizam sua produção

6 Mais especificamente, trata-se do período que se estende da elaboração de seu projeto de pós-doutorado, realizado naUniversitàdeglistudidiRomaIIIsobasupervisãodeGiacomoMarramao,atéaelaboraçãodoprojetodepesquisacomoqualM.Cattoniviriaatornar-sebolsistadeprodutividadedoCNPq.

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acadêmicanoperíodoemquestão, edeve ser lido, comoseveráadiante,menos comoumaguinadaquesignificasseoabandonodabasehabermasianaemaiscomoumacomplexificaçãoque tensionaaobrade JürgenHabermascolocando-aemdiálogocomooutrasreferênciasetradiçõesconceituais.

Dessasoutrasreferênciasetradições,caberiadestacarquatro–nemtodasjátematizadasnesseprimeirotextoaquemeestoureferindo:WalterBenjamin(2005;2007)esuapropostadeumahistóriaescovadaa contrapelo;GiacomoMarramao(2018)e suas reflexõessobreoproblemadosdireitoshumanosnocontextoglobal–atesedouniversalismodadiferençaeasteses a ela correlatas; Axel Honneth (2003; 2007; 2015) e suas reflexões sobrereconhecimento e sobre a reconstrução normativa como método crítico; Jacques Derrida(1994;2003;2008),adesconstruçãoeadifférance.7

O segundo texto contém duas das formulações mais importantes de M. Cattoni: ademocracia sem espera – diretamente inspirada no conceito de “messianismo sem espera”com o qual G. Marramao (2009) lê W. Benjamin – e o constitucionalismo por vir8 –diretamenteinspiradonadistinçãoderridianaentrefuturo(futur)eporvir(avenir).

Comotítulo“Democraciasemesperaeprocessodeconstitucionalização:umacríticaaosdiscursosoficiais sobre a chamada ‘transiçãopolíticabrasileira’” (Cattoni, 2011c, destaquesdo original), seu propósito, como o título anuncia, é criticar as leituras hegemônicas,carregadasdecertotomoficial,sobreatransiçãovivenciadapeloBrasildaditadurade1964paraademocracia.Resgatandoaamplaparticipaçãopopularnesseprocesso,as idealidadesimanentesaessaparticipaçãoeomodocomoaConstituiçãode1988searticula comessasidealidades–podendoserlida,emboamedida,comoumatraduçãojurídico-normativadelas–,M.Cattoniopõe-seà teseda incapacidadedasociedadebrasileiraparaademocracia, tesecujaconsequênciaéacondenaçãodessasociedadeaviver,nomáximo,emumademocracialimitada,quedificilmentepodeserdiferenciadadeumregimeautoritário.

Emborasejaessaumavelhatese,disponívelcomversõesvariadasemdistintosautores,naobradeManoelGonçalvesFerreiraFilhoelaganhaumaclarezapoucasvezesvista:dadaalimitaçãodeseupovo,ademocraciapossívelparaoBrasilseriaoregimeinstauradoem1964.Écontraessaconcepçãodeuma“democraciapossível”(FerreiraFilho,1979)queM.Cattonicunha o conceito de uma democracia sem espera, sustentando que a transição para ademocraciapoderiasercompreendidacomo“umprocessoconstituintedemocráticode longoprazo” (Cattoni, 2011c, p. 228) apartir doqual sedesenhaumaConstituição “comoprojetoaberto e permanente de construção de uma sociedade de cidadãos solidários, livres e iguais”(Cattoni, 2011c, p. 229). Do conceito depreende-se que seria insustentável continuarafirmando, emuma abordagem reificada e reificante, amenoridade da sociedade brasileiraperante os desafios representados pela vida democrática moderna, sendo necessárioreconhecer, no transcurso da história dessa sociedade, o processo de aprendizagemdemocráticajávivenciado,aindaquedemaneirafragmentária.

Emoutraspalavras,nãosepodeinsistiremprojetarumademocraciafuturafrenteaumpovo ainda incapaz para ela; deve tratar-se, ao contrário, de afirmar a vivência dessademocraciajáemcursoaquieagora,eque,porissomesmo,nãopodeesperarmaisparaserinstitucionalizada,comtodasassuaspretensõesinternas,emtodasasesferasdavidasocial.

7Outrasduasreferênciasimportantesnesseperíodosãoasreflexões,naquadradeumareflexãofilosóficasobreahistória,deR.Koselleck(2006)edeP.Ricoeur(2007).Todavia,ovalorposicionaldelasparaaobradeM.Cattoniparece-mesecundárioemfacedoarcabouçoteóricodeW.Benjamin,G.Marramao,A.HonnetheJ.Derrida.8 Tanto a expressão “sem espera” do conceito de democracia sem espera quanto a expressão “por vir” do conceito deconstitucionalismoporvirsãoemgeralgrafadasporM.Cattonicomodestaqueemitálico,razãopelaqualfoimantidaessagrafiaaqui.

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Poroutrolado,quaseàmaneiradeumparadoxo,essademocraciasemesperaentrelaça-secomumconstitucionalismoporvir.Aexperiência,jáemcurso,aquieagora,dademocraciaprecisaserafirmada,oquesignificaqueademocracianãopodeseradiadaparaofuturo;mas,neste aqui e agora, a democracia e o constitucionalismo a ela internamente conectadopermanecemsempreabertosaumfuturoelemesmosempreemaberto:

E issoporqueaconstitucionalizaçãoéaexpressãode“umafundaçãocomopromessa”e,portanto,estásemprepor-vir,porserprocessonãolineareporvezes descontínuo de aprendizagem social, de abertura a um futuro-em-aberto, a um porvir (...). Este por-vir – esta abertura, por assim dizer, – écobrado ao presente por seu passado, na própria dinâmica interna deconstitucionalização.(Cattoni,2011c)

Constitucionalismo, democracia e temporalidade enredam-se numa tessitura complexa.

Nãoépossíveladiarademocraciaeoconstitucionalismoparaumfuturoquenuncachega,enãoépossível tantoporqueademocracia jáchegou–aindaquesejanos fragmentosdesuadifícil história entre nós – quanto porque ela, ao chegar, ao ter chegado, sempre vemtranspassadaporumaaberturaradicalaoqueaindapodevir,istoé,umaaberturanãoaumfuturocomafacepré-determinada– futuroque, justamenteportera facepré-determinada,podereiteradamenteseradiado–,masaalgooutroqueéexatamenteoporvir, “um futuro-em-aberto”.

Essadiscussãodoprocessodetransiçãoditadura-democracianoBrasilconduzM.Cattoniaumcaminhodeestreitamentodosvínculosdesuareflexãoteóricacomocampodahistória.Não por acaso, esse segundo texto a que ora me refiro viria a integrar uma coletâneaintitulada “Constitucionalismo eHistória doDireito” (Cattoni, 2011a). No primeiro capítulodesse livro, nomeado “Notas programáticas para uma nova história do processo deconstitucionalização brasileiro” (Cattoni, 2011b), aquela hipótese de compreensão datransiçãoditadura-democraciaéampliadaparaahistóriaconstitucionalbrasileiracomoumtodo:

o processo de constitucionalização brasileiro articula memória e projeto,experiênciaeexpectativa–e, assim,deixaentreveras suas relaçõescomotempo histórico. (...) as relações que a constitucionalização brasileiradesenvolvecomotempohistóricopodemsercompreendidascomoprocessonão linear e descontínuo, reconstruído como processo de lutas porreconhecimento e de aprendizagem social comoDireito, que se realiza aolongo da história, todavia sujeito a interrupções e a tropeços, mas quetambémécapazdeseautocorrigir.(Cattoni,2011b,p.19-20)

Tal inquietaçãohistórica,contudo,nãoseresumiaaumainquietaçãohistoriográfica.Ao

contrário, ela se traduziaemuma inquietaçãorelativaaomodocomoahistóriadoBrasil, eparticularmente a história do constitucionalismo brasileiro, tinha sido e vinha sendointerpretadaporum rol de autores consagrados, que juntos formariama chamada tradiçãodos“retratosdoBrasil”oudos“intérpretesdoBrasil”.Ouseja, tratava-seprimariamentedeuma inquietação relativa à Teoria Social brasileira, às interpretações clássicas de autorescomo Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro e Gilberto Freyre, ou de autorescontemporâneoscomoJesséSouzaeBernardoSorj.

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Desdobramentoserevisõessucessivasdessecapítuloinicialdolivro“ConstitucionalismoeHistóriadoDireito” resultariamnoprojetodepesquisa comoqualM.Cattoni se tornariapesquisadorbolsistadeprodutividadedoCNPq,sendoesseprojetooterceirodostrêstextosaqueacimaaludi.Naversãoconsolidadadessetexto,quecorrespondeàversãoelaboradaem2015, lê-se expressamente que a investigação devotada a “uma nova história e teoria doprocessodeconstitucionalizaçãobrasileiro”serárealizada“nomarcodeumaTeoriaCríticadaConstituição”, assumindo “a herança e os desafios atuais da tradição da Teoria Crítica daSociedade”(Cattoni,2015).

Expostos brevemente os elementos centrais desses três textos, quais seriam, então, osdoispilares restantesdas “ContribuiçõesparaumaTeoriaCríticadaConstituição”passíveisde serem neles mapeados? Um deles seria a abertura da concepção de Teoria Social, e deTeoria Crítica, para além domodelo teórico de JürgenHabermas; o outro, o diálogo com atradiçãodosintérpretesdoBrasil.Paralelamente,comosepercebenoprojetodepesquisadoCNPq, vai ficando mais nítida para M. Cattoni sua própria filiação à Teoria Crítica dasociedade.O texto da tese: a Teoria Crítica da Constituição e a superação dodualismonotratodarelaçãoentrefatosenormas

Quatro seriam, portanto, os pilares de sustentação da proposta de uma Teoria daConstituiçãocomoTeoriaCrítica,oumelhor,ospilaresdesustentaçãodeumaTeoriaCríticadaConstituição:omanuseiodeferramentasdogmáticas;aarquiteturageraldaTeoriaSocialhabermasiana e do papel nela desempenhado pelo direito; o tensionamento dessa TeoriaSocialhabermasianaapartirdodiálogocomoutrasreferênciasteóricastambémdedicadasapensarasociedademodernacomoumtodo9;oquestionamentodatradiçãodos“intérpretesdoBrasil”. Dispersos por textos que podem ser divididos em três blocos de predominânciarelativadetemaseníveisdereflexãoeargumentação,essespilaresvãosendoconstruídosaolongodecercadeduasdécadas,aofinaldasquaissobreeleserige-seatesedetitularidadedeM.Cattoni.

Sua estrutura é a seguinte: além da introdução e das considerações finais, que apenassintetizamoqueforaexpostoatéali,sãocincocapítulosaotodo.Noprimeiro,éapresentadoodebatenoqualemergeaTeoriadaConstituiçãocomocampodisciplinarautônomo,ganhandodestaque o contraponto dos autores de Weimar em relação ao dualismo metodológico deGeorg Jellineck. O segundo capítulo é dedicado a mostrar como o dualismo metodológicopermaneceativonareflexãoteórico-constitucionaldopós-SegundaGuerra,agoranaobradeKarlLoewenstein.Ocapítuloterceiroéumaespéciedepontodeinflexãodaobra:pormeiodacrítica aos pressupostos da classificação ontológica de K. Loewenstein, M. Cattoni abre ocaminhopara,nocapítuloquarto,tratardesuacompreensãodaTeoriadaConstituiçãocomochave interpretativa do direito constitucional. Por fim, no quinto capítulo, a partir de umdiálogo com FriedrichMüller, é discutido como opera essa chave hermenêutica quando setratadodireitoconstitucionalsendointerpretadoporumaTeoriaCríticadaConstituição.

Para a compreensão dessa tese, um primeiro passo é saber a que se refere MarceloCattoniaoproporuma“TeoriaCríticadaConstituição”.NamedidaemqueexisteumamplodebatesobreossentidospossíveisdeumaTeoriaCrítica10,sobretudoquandoelaéestendidapara além do restrito círculo de Frankfurt, qual seria o elemento crítico da Teoria da9Comoditoacima,principalmente,W.Benjamin,G.Marramao,A.HonnetheJ.Derrida.10ConferirFLECK,2017;NOBRE,2008.

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Constituição lida comoTeoria Crítica? Esse elemento crítico decisivo, que certamente exigeumaexplicaçãodetalhadaàqualsededicamosparágrafosabaixo,dizrespeitoaotratamentoda relação entre realidade e idealidade – entre facticidade e validade, entre efetividade elegitimidade,entrefatosenormas,enfim–nãoaosmoldesdeumhiatooudeumametafísicadualista,mascomotensão.

Paratornarmaisclarocomoaabordagemdessarelaçãoapartirdacategoriada“tensão”trariaumcontributoinovadorparaaTeoriadaConstituição,umpassoindispensávelparaM.Cattoni é, no espírito deMaxHorkheimer, designar o que seria uma “TeoriaTradicional daConstituição”,àqualaTeoriaCríticadaConstituiçãoviriaopor-se.Logonaaberturadatese,operfildessa“TeoriaTradicional”éassimdesenhado:

umateoriatradicionaldaconstituição,queaindaseperdenoimpasseentreonormativismouniversalistatípicodeumateoriageraldodireitopúblicoeo realismo particularista das chamadas teorias das instituições políticas.Teoriatradicionaldaconstituiçãoasersuperadaqueaindamantém,deumaformaoudeoutra,aherançajellinekianadeumametodologiadualista,entreum enfoque jurídico-normativo (dever-ser) e/ou um enfoque sociopolítico(ser), deabordagemdodireitoedoEstado.TeoriasdoDireitoedoEstadocujosdilemasperpassamtodaadisputa,desdefinsdoséculoXIX,sobreseusobjetivosemétodosmarcando,assim,asteoriasconstitucionaisclássicas,deKelsenedeSchmitt,deSmendedeHeller,aLoewenstein;eapós.(CATTONI,2017,p.1,destaquesdooriginal).

Aalusãoúltima,portanto,seriaàs“indagaçõesmetodológicas”(Cattoni,2017,p.11)deG.

Jellinek (2000) em seu clássico “Teoria Geral do Estado”. Ali, a disputa, típica do final doséculo XIX na Alemanha, entre legalistas e organicistas no âmbito de “uma já envelhecidaTeoria doEstado” (Cattoni, 2017, p. 11) teria levadoG. Jellinek a uma tentativa de superaressaquerelapormeiodeumdualismometodológico:

Os tipossegundoosquaisháde investigaradoutrinadoEstadocoincidemcom as duas posições científicas a partir das quais se pode considerar oEstado:ohistórico-socialeo jurídico.ParaainvestigaçãodeumedeoutroaspectodavidadoEstadosãonecessáriosmétodosdiferentes.Seconheceanatureza social do Estado mediante métodos que são usados nas ciênciashistóricasesociais;anaturezajurídica,pelométodojurídico.(Jellinek,2000,p.84)

Não obstante o mérito de procurar observar o Estado para além de uma perspectivaunilateral,segundoM.Cattoni(2017,p.15,destaquesdooriginal)“nodualismometodológicojellinekiano,aanálisehistórico-socialpermaneceexternaàanálisejurídica”,demodoquesejapossível conceber “uma constituição material para além ou mesmo contra a constituiçãoformal”. Essa seria a “herança jellinekiana”, que teria atravessado gerações e, ainda hoje,marcariaaquiloquesepoderiachamardeumaTeoriaTradicionaldaConstituição.

Entretanto, no momento mesmo de surgimento de uma Teoria da Constituição comodisciplinaautônomaemfacedavelhaTeoriadoEstado–assimcomoemfacedaTeoriadas

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InstituiçõesPolíticasedaTeoriaGeraldoDireitoPúblico–esseproblemametodológiconãoteriasidosimplesmenterecepcionado.OdebatedaRepúblicadeWeimarentreautorescomoCarlSchmitt,RudolfSmend,HansKelseneHermannHellercolocaria,desdeoinício,nocentrodesuasatençõesoproblematantodadefiniçãodeseuobjeto–oqueéumaConstituição?–quantodadefinição subsequentedométodopara estudá-lo. Énesse sentidoqueM.Cattoni(2017, p. 16, destaques do original) destacará aquilo que seria “o enfoqueproblematizante,típico,daTeoriadaConstituição”, istoé,umenfoquequefariadaTeoriadaConstituiçãoumcampoqueproblematiza,otempotodo,asimesmo,colocandoconstantementeemxequesuasprópriasbasesepistemológicasemetodológicas.

Em que pese a relevância do debate de Weimar, porém, ele não conseguiria rompersuficientemente com o dualismo metodológico jellinekiano. Mas, se o enfoqueproblematizanteviriamarcaraTeoriadaConstituiçãocomocampodisciplinarautônomo,asgerações seguintes continuariam a perguntar-se pelo objeto desse campo e pelos métodosadequados para estudá-lo. Nesse horizonte, K. Loewenstein mereceria destaque, a um sótempo pela grandeza de sua empreitada teórica e pela intensidade com que agravaria aherançadualistaqueM.CattonifazremontaraG.Jellinek.

AfamosaclassificaçãoontológicadasConstituiçõesdeK.Loewenstein(1952;1976)vale-sedoscritériosdelegitimidadeeefetividadeparadefinirtrêstiposbásicosdeConstituição:asnormativas – legítimas e eficazes –, as nominais – legítimas, mas não eficazes –, e assemânticas–eficazes,masnãolegítimas.Comisso,K.Loewensteininsistirianapossibilidadedeobservarseparadamentearealidadepolíticaesocial–osfatos–eaidealidade–asnormas–, para apenas em seguida perguntar-se pela correspondência ou não entre essas duasdimensões assumidas, de partida e numa perspectiva ontológica, como pertencentes auniversosdistintos(Cattoni,2017,p.51-77).

Sendo esse o perfil daquilo que M. Cattoni entende por “Teoria Tradicional daConstituição”,comosuapropostadeuma“TeoriaCríticadaConstituição”sediferenciaria?AcríticadirigidaaopróprioK.Loewensteinabreocaminhoderesposta:

não podemos tratar a questão da legitimidade e da efetividadeconstitucionaisemtermosquaseplatônicos.Issoquerdizer:quehaveriaumdireitoacimadasociedadeequeaorganizaçãodessasociedaderefletiria,emmaioroumenorgrau,essedireitosuperior;ou,então,queessasociedadeseaproximaria, em maior ou emmenor medida, desse direito supostamentesuperior.(Cattoni,2017,p.55,destaquesdooriginal)

Emaisàfrente:

O problema, aqui, é, justamente, a própria ideia de correspondência ouconcordância,queimplicaumaperspectivasociologicamenteanacrônica,porpartedeLoewenstein,acorreroriscodenãoconsiderardemodoadequadoo próprio fato de que a constituição não estáacima ou fora da sociedade;

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mas, sim, desde sempre, a constituição está inserida nela, sociedade, aindaque de forma tensional. Afinal, correspondência pressupõe distinção,encobreumahierarquia,elamesma,nãoproblematizada.(Cattoni,2017,p.68,destaquesdooriginal).

Ouseja,oelementocríticodaTeoriaCríticadaConstituiçãodeMarceloCattoniconsistiriaem compreender que não há uma espécie de diferença ontológica entre realidade fática eidealidade normativa. Toda realidade da vida coletiva humana é, como realidade,internamente permeada por expectativas normativas, por idealidades que orientam, desdedentro, o agir em sociedade. Em outras palavras, a suposta brutalidade dos fatos nunca éformadasóporalgocomo“fatosbrutos”.Seaquiloaquesecostumareferircomo“realidadesocial” ou “realidade política e social” não pode ser outra coisa senão a totalidade dasinterações humanas, a totalidade das ações humanas em um dado espaço e em um dadotempo, é preciso entenderque toda açãohumana em sociedade, todaação social, é semprecondicionada, aomenos em parte, pelas expectativas que os seres humanos que interagemcarregam consigo, pelosmedos e esperanças que possuem, pelos valores e objetivos pelosquais se guiam. Logo, a própria suposta brutalidade dos fatos, a “realidade social” ou“realidade política e social” elamesma, não se dá a conhecer sem que se tome nota desseconjuntodeexpectativas,medoseesperanças,valores,objetivos–enfim,semesseconjuntode idealidades que conformam, de dentro, os supostos fatos brutos. Namedida em que asnormas jurídicas são parte – uma parte das mais importantes na Modernidade – desseconjuntodeidealidades,nãosepodepretenderprimeirodescreverosfatosdeumasociedade,em seguida descrever as normas dessa sociedade, e, somente após esses dois passosconduzidos separadamente, perguntar pela correspondência entre uns e outras: o critérionormativopara julgar os fatos é imanente a eles. Pois asnormas jurídicasdessa sociedade,comointegrantesdoconjuntodeidealidadesqueapermeiam,conformaminternamenteoqueseriamseussupostos“fatosbrutos”.ParaumaTeoriadaConstituiçãoquebuscacompreender“a normatividade constitucional como parte de seu próprio contexto político-social” (Cattoni,2017,p.78),Seredever-sercoexistememtensão,nãoseparadosporumhiatoouumabismoontológico. E é esta tensão que configura qualquer sociedade moderna: uma tensão entrerealidadeeidealidade,entrefacticidadeevalidade,entrelegitimidadeeefetividade.

Por conseguinte, quando uma Constituição exsurge como Constituição, não emerge donada,masexpressaexpectativaspresentesnasociedadenaqualemergequantoasimesma,quanto àquilo que ela – a sociedade – deveria vir a ser como sociedade, expectativasrelevantes a ponto de serem postas expressamente na principal estrutura da política e dodireitomodernos.Assim,essasidealidadesqueserãotraduzidascomonormasconstitucionaisjá imanentemente conformam, exatamente por serem idealidades, a “realidade política esocial” dessa sociedade, e, uma vez tornadas normas constitucionais, continuarão a fazê-lo.Por issomesmo,umaConstituiçãoconstitui, reúneemtornodesiedásentidodeunidadeaum corpo coletivo que se compreende como uma única sociedade e que tem atestada ereafirmadapara si essa compreensãopormeio precisamente de umaConstituição (Cattoni,2006;2017).

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Contrariamente à tese predominante na Teoria Social brasileira e na Teoria daConstituiçãobrasileira11 - segundoaqualnoBrasilasConstituiçõesnãoconstituem,as"leisnãopegam",easociedadebrasileiranempropriamentemodernaseria-M.CattoniinsisteemquetambémaquiarelaçãoentreConstituiçãoesociedadenãoéoutrasenãoesta:comoemqualquer sociedade moderna, as Constituições constituem, com as inevitáveis tensões queacompanham esse processo igualmente, ainda que em graus distintos, seja na Europa, nosEstadosUnidosounaAméricaLatina.

Aomesclaremsi,demaneira tensa,oqueessa sociedadeéeoqueelapretende ser, osentidodeunidadequeaConstituiçãolheasseguranãoésóodeumaunidadenoespaço,mastambémodeumaunidadenotempo:umaConstituiçãomodernaéomarcoinauguraldeumprojetoconstituinte (Cattoni,2017,p.111;2006),deumaprojeçãoquea sociedadeporelaconstituída temparasinodevirdahistória.Dessemodo,é inelutávelque todaConstituiçãomoderna nasça com alguma dose de inefetividade, com a qual apenas numa dimensãotemporal dilatada se pode lidar: do contrário, não teria sido necessária justamente umaConstituição.A ilusãodeConstituiçõesdesde sempreplenamente legítimas e efetivasnão émais do que o reafirmar da ocultação de um amplo conjunto de vozes historicamentesufocadasinternamenteàquelespaíses–ospaísesnoNorteglobal,hojediríamos–nosquaisK.Loewensteinacreditaencontrarem-seConstituiçõesnormativas.

NãoédifícillernasentrelinhasdessacompreensãoteóricaaforçadainfluênciadeJürgenHabermas, sobretudo de suas contribuições para uma teoria discursiva do direito e dademocracia, reunidas principalmente no livro “Facticidade e Validade” (Habermas, 2005).EssaforçaficaaindamaisnítidanosmomentosemqueM.CattoniassumeexplicitamentequesuaTeoriaCríticadaConstituiçãoéconstruída“apartirdeumateoriadasociedadeemtermosdeteoriadacomunicação”(Cattoni,2017,p.9;109).

Tal influência corrobora a afirmação de que um dos pilares que sustentam as“Contribuições para uma Teoria Crítica da Constituição” continua sendo a Teoria Socialhabermasiana. No entanto, como também afirmado, essa Teoria Social aparece tensionadapelaaproximaçãocomoutrasreferênciasteóricas.Arazãoparaissoéaseguinte:seéverdadequeocritérionormativodejulgamentodosfatoséimanenteaeles–istoé,queaidealidadedas normas não repousa em um mundo-além, mas já vige no aqui e no agora de umasociedadeposta–,éprecisoatentar-separaosriscosdequeessa idealidadehistoricamentesituada,essatranscendênciaimanente,carregueconsigopadrõesopressivosqueemergirameaindanãosedesmantelaramnahistória.Nessesentido,umahistórialidadaperspectivadasderrotadas e dos derrotados, uma história que anseia por ser “escovada a contrapelo”(Benjamin,teseVII,2005,p.70)emessianicamenteredimida(Marramao,2009),recomendacertasressalvasaumateoria:

11NaTeoriaSocialbrasileira,essatesepodeserrastreadapelomenosdeSérgioBuarquedeHolanda(1995)aRaymundoFaoro(2004),passandopornomestãodiferentesquantoCaioPradoJúnior(1987),OliveiraViana(1927)eRobertoDaMatta(1986).NaTeoriadaConstituiçãobrasileira,sãoexemplaresos trabalhosdeMarceloNeves(2016) ,FábioKonderComparato(2007),PauloBonavidesePaesdeAndrade(2008),LuísRobertoBarrosoeAnaPauladeBarcellos(2003)eLenioLuizStreck(2014).

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que, sabendo-se situada num contexto histórico-social e estandoassumidamentecientedassuasimplicaçõesético-políticas,visareconstruiranormatividade, como um critério ou padrão de crítica social, todavia,imanenteàrealidadesocial;emboraosentidodessanormatividade,porumlado,nãopossaserreduzidoaomeroexistente,ouseja,aohorizontedadodeumatradiçãosupostamenteherdada,daí seucaráterprincipiológico;e,poroutro,nãopossasermeramentepressuposto,elemesmo,comoumdado,emfacedosriscos,semprepresentes,deinérciaouderetrocessosnosprocessosdeaprendizadohistóricoedeintegraçãosocial,daíasnecessáriasressalvasgenealógicas(...)oudesconstrutivas(...).(Cattoni,2017,p.103,destaquesdooriginal).

W. Benjamin, G. Marramao, A. Honneth e J. Derrida congregam-se numa constelaçãocomplexaparaforçaroslimitesdeJ.Habermas,aindaquesemodeslocardeseulugaraxial,ecomissoconfirmamqueotensionamentodaTeoriaSocialhabermasianapormeiododiálogocom outras concepções teórico-sociais é igualmente um pilar determinante para a TeoriaCríticadaConstituiçãodeM.Cattoni.

Mas quais seriam os desdobramentos dogmáticos de uma teoria assim elaborada?Colocandoaquestãoemoutrostermos,oqueessaTeoriaCríticadaConstituiçãoteriaadizerquandooqueestáemjogoé,diretaeprimariamente,ainterpretaçãoeaaplicaçãodasnormasde uma determinada Constituição – por exemplo, as normas da Constituição brasileira de1988?Esteésempreumpontoextremamentedelicado,sejanodireitoounasdemaisciênciashumanase sociais: alcançarumnívelde abstração conceitual adequadoa compreender seuobjeto – no caso, o direito, e mais especificamente o direito constitucional – como umacategoriasocial,massedeslocar,demaneiracoerente,dessenívelconceitual-abstratoatéasimplicações concretas que daí decorrem, sem se perder, contudo, na empiria cega dessaconcretude.

OdebatecomojuristaF.Müller(1999)écrucialaqui,sobremaneiracomosconceitosde“legalidade”,“legitimidade”,e“constitucionalidade”.Enquanto“legalidade”estariareferidaàsexíguas, conquanto indispensáveis, exigências de um Estado de Direito, a “legitimidade”somaria a essas exigências aquelas relativas às “condições formais e materiais dofuncionamento democrático das próprias instituições” (Cattoni, 2017, p. 7). Por sua vez,“constitucionalidade” não seria uma categoria que se pudesse contentar com a meraconformidade à Constituição, mas requisitaria que a sociedade ela mesma possuísse umcaráter“democraticamenteconstituído”.Comosepercebesemmaioresdificuldades,otrípliceconjunto de exigências distintas ligadas a esses três conceitos seria cumulativo: “legalidadepressupõe constitucionalidade, legitimidade pressupõe tanto constitucionalidade quantolegalidade. Por conseguinte, um Estado Democrático de Direito, que possa ser chamadolegítimo,sópodecoexistircomumpensamentoconstitucionalnormativo(...).”(Müller,2002,p.181).

Emrazãodisso,alegitimidadepodeserdefinidaporF.Müllercomo“conflitoconcretododireito positivo” (Müller, 2002): o requisito de legitimidade não pode dar-se por cumpridosenão diante da concretude do operar diuturno do direito, vindo a revestir esse operar

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diuturno somente se, para além do respeito à legalidade estrita, faz-se presente também orespeitoàConstituição–comtudoaquilodedemandasformaisemateriaisqueelacarrega–ea abertura das decisões assim tomadas a uma discussão continuada sobre, justamente, sualegitimidade(CarvalhoNetto,2002).

AapropriaçãoqueM.CattonifazdapropostadeF.Müllerpassapelaênfasenadistinçãoentre“legitimidade”e“legitimação”,postoqueaquelanãopodesertomadacomoalgodadoeestaressaltaprecisamenteocaráterdinâmicoenão-decididoaprioridosproblemasemtornodoqueéounãoélegítimo:

Nesse sentido, o problema da legitimidade (...) exige que ele mesmo sejatratado de um modo muito mais complexo do que simplesmente tentarcompreenderessadinâmicaapartirdeumdireitoquerepresentaumidealequeseefetivanamedidaemqueasociedadeseaproxima,progressivamente,desse ideal;ou,poroutro lado,queessedireitose torneefetivonamedidaem que se aproxime da sociedade, como se esse direito não tivesse sidoconstruído no interior da própria sociedade, como que ele tivesse,literalmente,caídodocéu,quando,naverdade,essedireitoéumaconstruçãosocial.Esse direito, portanto, é legítimo ou legitimado em razão de quaismecanismosdemediaçãoinstitucionaisforamconstruídosedamobilizaçãosocial epolíticageradaem tornoepormeioessas instituições socialmenteconstruídas. O direito não é direito natural, é positivo, é histórico, éconstruídohistoricamente.(...)Há,assim,umatensãopermanenteentrelegitimidadeelegitimação,nocasododireito.(Cattoni,2017,p.75)

A legitimidade não se refere primariamente, pois, ao conteúdo dado nas normas, à

substância normativa do direito,mas reside fundamentalmente na abertura desse direito àconstrução continuada de si por meio de mecanismos institucionais de mediação queasseguram a participação ampla da sociedade civil nessa construção: se o direito, e maisespecificamente a Constituição, não expressa mais do que a tradução de idealidadesimanentes à sociedade, nada mais coerente do que requerer que o desdobramento dessedireitoemsuasreiteradasinterpretaçõeseaplicaçõesestejapermanentementeabertoaessasociedade.

Essecaminhodetratamentodosproblemasqueenvolvemaperguntapeloqueéounãolegítimo oferece, ao mesmo tempo, a passagem para uma abordagem mais adequada dosproblemas em torno da pergunta pela efetividade. Na medida em que o direito, e maisespecificamenteaConstituição,éatraduçãodeumatranscendênciasocialmenteimanente;namedidaemque,porisso,umaConstituiçãomodernaéaexpressãodeumprojetoconstituintequearticulapassado,presentee futuro;namedidaemqueesseprojetoéoprojetodeumasociedade que espelha de si mesma e para si mesma aquilo que pretende vir a ser notranscursodo tempohistórico;namedida, finalmente, emquea legitimidadediz respeito à

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abertura do direito, e da Constituição, em seus processos de interpretação e aplicação àparticipação ampla da sociedade civil, então um direito e uma Constituição que consigamassegurar legitimidade conseguem, em alguma medida elevada, assegurar tambémefetividade.

Porum lado,ninguémmais senãoessa sociedade trazidaparadentrodosprocessosdetomadadedecisãoquesereferemaodireitoeàConstituiçãopodejulgardefinitivamenteasiquanto à efetivação ounãodaquele projeto que elamesma insculpiu. Por outro lado, e portudo dito até aqui, num cenário de constitucionalismo democrático a própria continuadaparticipação da sociedade no desdobrar-se desse projeto por ela insculpido já representasempre,inelutavelmente,algosignificativodesuaefetivação.

Muito longe de serem conceitos estanques, cujos referenciais objetivos situam-se emuniversosdiferentes, legitimidade e efetividadepermanecem,umanaoutra, emummesmoplano,numatensãoreciprocamenteconstitutivaeirredutível(Cattoni,2017,p.108).

OfechamentodessacadeiaderaciocíniovemcomumaalteraçãodadefiniçãodeF.Müllersobrealegitimidadecomoconflitoconcreto:paraM.Cattoni,nãosetratasódeumconflitododireitopositivo;trata-setambémdeumconflitonodireitopositivo:

a legitimidade deve ser considerada não apenas como conflito do direitopositivo,comoMüllerpropõe,masnodireitopositivo,ouseja,como“tensãoconstitutiva” ao direito positivo, que considera o caráter conflitivo daconstitucionalidade no sentido de uma disputa ou controvérsiainterpretativacomsentidonormativo(...).Uma normatividade constitucional cuja concretização é atravessadainternamente por uma disputa interpretativa e, portanto, política, sobre aautocompreensãodasociedade(...).(Cattoni,2017,p.7)

Emcadaumadessasinfinitasdisputasinterpretativas,oquesecolocaemjogoé,sempre

novamente, o sentido de e da Constituição – e essas disputas ocorrem ininterruptamentetambémquandooque se temcomoobjetomais imediatonãoéodireito constitucional emsentidoestrito,masqualqueroutrodosramosdodireito,umavezque,naModernidade,nãoháquese falardedireitoalgum internamenteàordem jurídicaquenãoseja constitucional,que não seja direito constitucionalizado, isto é, lido em conformidade com a Constituição.DisputaspelosentidodaConstituiçãoporque,emtodasdelas,oquesepõecomoindagaçãoéoquenossaConstituição–nocasobrasileiro,aConstituiçãode1988–afirma,permite,obriga.Disputas pelo sentido de Constituição porque, nessas indagações, encontra-seinarredavelmente o eco de indagações mais profundas, referentes ao constitucionalismomoderno como um todo: nunca é apenas uma questão sobre o que diz nossa Constituição,sempreétambémumaquestãosobreoquedizumaConstituiçãoqualquercomoConstituição,umaConstituiçãomoderna,oconstitucionalismomoderno,enfim.

As consequências desse conjunto de formulações – que, não obstante diretamentevoltadas à dogmática jurídica, permanecem acentuadamente teóricas – podem seresclarecidas pelos estudos de M. Cattoni sobre casos concretos do direito constitucionalbrasileiro.Suaposiçãoacercadocontroledeconstitucionalidade–quelheé,comoditoacima,

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umtemacaropelomenosdesdeatesededoutorado–éumbomexemplo.M.Cattonisemprese manifestou contrariamente à progressiva ênfase no controle concentrado deconstitucionalidadenoBrasil(Cattoni,2004a;2004b;2004c;2018).Pois,seosproblemasdelegitimidade ede efetividadedaConstituiçãonãopodemser enfrentados semque se tenhauma ampla abertura dos processos decisórios à participação da sociedade, uma restriçãodesses processos ao Supremo Tribunal Federal parece demasiado equivocada.Mecanismosparticipativos como o amicus curiae atenuam o peso do equívoco, mas não o desfazem: ésomente nos conflitos concretos típicos do controle difuso de constitucionalidade que seriapossíveldesenvolver-setodoopotencialsocialmenteconstitutivodacontinuadadisputapelosentidodaedeConstituição.

Por outro lado, se a oposição aos excessos do controle concentrado deconstitucionalidade pode ser lida como uma oposição ao excesso de atuação do SupremoTribunalFederal,norecentementecasodoimpeachmentdeDilmaRoussefaoposiçãoseráaoexcessode inérciadesse tribunal.Pois eledevenãoapenasnãopretender resumiremsuasmãosaguardadaConstituiçãoeadefiniçãodeseusentido,devendotambém,aumsótempo,asseguraralisuradosprocessospolíticosnointeriordosquais,maisumavez,asociedadequeseconstituiemtornodaConstituiçãode1988desdobraautonomamenteosentidodoprojetoconstituinteque ela ergueupara si. Logo, se essesprocessos sãodesfiguradospormaioriasparlamentares e se, diante disso, o SupremoTribunal Federal deixa de exercer sua clássicafunção – que, por suposto, não é a única – contramajoritária,M. Cattoni não temdúvida: éinconstitucional,égolpe12.

Comocompatibilizarposiçõesqueorademandammenos,orademandammaisatuaçãodoSupremoTribunalFederal?O fioqueuneessasposiçõeséumacertabuscapelo justo-meio,justo-meioque,nãodedutívelapriori,éargumentativamenteconstruídodiantedecadanovocasoconcretosobaorientaçãodeumacompreensãodeConstituiçãocomoaquefoiexpostanosparágrafosacima.

Com a concatenação entre “constitucionalidade”, “legalidade”, “legitimidade” e“efetividade”, acrescida da leitura sobre conflitos concretos do e no direito positivoentendidos como disputas pelo sentido da e de Constituição, M. Cattoni pode encerrar suatese.Emseusúltimosdoisparágrafos,lê-secomoconclusão:

Estando a legalidade, a legitimidade e a efetividade implicadas no próprioconceito de constitucionalidade, defendemos, a partir de uma teoria dasociedade em termos de teoria da comunicação, que uma constituição élegítimaeefetivaenquantooprópriosentidodeedaconstituiçãoforobjetode disputa política na esfera pública, e não em função de uma supostacorrespondência, em maior ou menor medida, entre um dado conteúdoconstitucionalearealidadedosprocessospolítico-sociais.

12ÉesteotítulodadisciplinaofertadaporM.CattoninoProgramadePós-GraduaçãoemDireitodaUFMGduranteosegundosemestrede2018:“OImpeachmentdaPresidentaDilmaRousseffou‘Porquedizemos:Éinconstitucional!,Égolpe!’–Legalidade,LegitimidadeeaConstitucionalidadecomotensãoconstitutiva,‘conflitoconcreto’,noDireitopositivo”.Informaçõesdisponíveisnestelink:<https://pos.direito.ufmg.br/wp-content/uploads/planosensino/2018-2/DIR873A.pdf>.

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O direito é, assim, reconstruído como uma prática social, interpretativa,argumentativa,comcaráternormativoeinstitucional,sobreopanodefundodevisõesparadigmáticasquecompetementresiparaasuacompreensão;eo Direito Constitucional como a expressão contrafática de compromissosentre as forças políticas e sociais, num determinadomomento da história,cujo sentido normativo se abre aoporvirdas lutas por reconhecimento nointeriordaesferapúblico-política.(Cattoni,2017,p.118).

Porém,antesdeencerrarelesintetizaquaisseriamastarefasquesecolocamemfacede

sua Teoria Crítica da Constituição. Essas tarefas consistiriam em assumirem-seconcomitantementeasseguintesperspectivas:umamaisvoltadaà legalidadeconstitucional,incumbida dos conceitos e institutos constitucionais, seus usos e sua história; uma maisvoltada à legitimidade constitucional, nos termosdeuma justificaçãodo constitucionalismodemocrático;umadevotadaàefetividadeconstitucional,aptaaapreenderadequadamenteastensões entre os princípios normativos desse constitucionalismo e os processos político-sociais;e, finalmente,umaperspectivapolítico-constitucional,emqueessaTeoriaCríticadaConstituição deve colocar-se na esfera pública e participar ativamente do debate públicocomocontributoparaoaperfeiçoamentodasinstituiçõesdemocráticas(Cattoni,2017,p.107-109).

De posse dessas perspectivas, a Teoria Crítica da Constituição pode, então, oferecer-secomo “chave interpretativa, compreensiva e crítico-reconstrutiva, do Direito Constitucional”(Cattoni,2017,p.118).Mas,seodireitoé“práticasocial, interpretativa,argumentativa,comcaráter normativo e institucional”, se o direito constitucional é “a expressão contrafática decompromissos entre as forças políticas e sociais, numdeterminadomomento da história, cujosentidonormativoseabreaoporvirdaslutasporreconhecimentonointeriordaesferapúblico-política” (Cattoni, 2017, p. 118), oferecer-se como chave interpretativa do direitoconstitucionalé,portanto,oferecer-secomochaveinterpretativadasociedade:nolimite,fielaFrankfurt, uma Teoria Crítica da Constituição não é outra coisa que uma Teoria Crítica dasociedade.Indubitavelmente,éesseoseusentidomaisprofundo.

Consideraçõesfinais:algumasquestõesporvir

Ao expor os passos preparatórios em direção a uma “Teoria Crítica da Constituição”,

apresentei uma leitura segundo a qual quatro seriam os pilares erigidos ao longo de duasdécadas e sobre os quais essa teoria estaria sustentada. Ao, na seção seguinte, procurarresgataroselementoscentraisdeumatalteoria,foipossívelidentificarapresençanítidadetrêsdessespilares:aTeoriaSocialhabermasiana;seutensionamentopelaaproximaçãocomreferenciais teóricos outros; uma dogmática sempre internamente permeada de reflexõesteóricas.Masnão foi possível apontar comamesma clarezaos rastosdaquelequartopilar,isto é, o diálogo crítico com a Teoria Social brasileira, mais diretamente com a chamadatradição dos “retratos do Brasil” ou dos “intérpretes do Brasil”. A presença rarefeita dessequarto pilar no texto propriamente dito da tese de titularidade deM. Cattoni é a primeiraconsideraçãocríticaqueeugostariadeapresentarperanteela.

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Esse pilar vai ganhando uma força imensa nos anos que antecedem a elaboração e adefesadas“ContribuiçõesparaumaTeoriaCríticadaConstituição”,sendomaisdiretamenteemtornodelequesecunhamconceitoscomo“democraciasemespera”e“constitucionalismopor vir”. Tais conceitosnão estão, por certo, de todo ausentesda tesede titularidadedeM.Cattoni,mas seupeso émenordoquepoderia ter sido seminha leituraquanto aospassospreparatóriosparaessateseeaospilaresqueasustentamestivercorreta.

AcríticaaessaausênciarelativaétantomaisrelevantequantosuapresençafortaleceriaaindamaisolugardeumaTeoriaCríticadaConstituiçãonodebateconstitucionalbrasileiro.Pois permitiria a elamais claramente opor-se à leitura amplamente hegemônica acerca denossahistória constitucional: uma leitura quenão vênessahistóriamais doque fracasso emotivosderemorso,sejanostermosdeumapré-históriaconstitucionalantesde1988,comoem L. R. Barroso e A. P. de Barcellos (2003), seja nos termos de uma oscilação entreConstituiçõesinstrumentalistaseconstitucionalizaçãosimbólica,emM.Neves(2016)–sendoessas somente duas dentre muitas outras versões de uma mesma leitura de fundocompartilhada.Umreferencialteóricoqueconsigarevelarnessahistóriaconstitucionalmaisdo que um fracasso que retorna sempre a si mesmo, que consiga revelar a tensão entrehistória constitucional e aprendizagem social resgatando fragmentos de racionalidade(Habermas, 2008, p. 363) dispersos na história da sociedade brasileira é um contributo devalorinestimávelparaaTeoriadaConstituiçãoe,maisimportante,paraademocracianopaís.

De um ponto de vista intelectual, esse contributo pode ser visto nos desdobramentosdogmáticosdeumaTeoriaCríticadaConstituição,tratadosacimapormeiodosexemplosdocontrole de constitucionalidade e do impeachment. Nestemomento da história brasileira, éimprescindíveleurgenteumaatuaçãodopoderjudiciário–esobretudodoSupremoTribunalFederal–que,porumlado,consigaafastar-sedepretensõesexageradasdeprotagonismo,nãosefazendosubstituiràprópriacidadaniaativaemumpapelquesópodecaberaela:essetipodeprotagonismoexacerbado, assumido tantas vezesnosúltimos anos, é umdos fatoresdomomentodefragilidadedemocráticaqueestamosatravessando.Poroutrolado,éigualmenteimprescindívelqueopoderjudiciário–e,novamente,sobretudooSTF–nãoseacovardeemseu dever constitucional de assegurar a proteção efetiva dos direitos e garantiasfundamentais.

Aexigênciadessedifíciljusto-meio,quesomentediantedecasosconcretospoderevelarotipo de atuação judicial que exige, é o diferencial mais relevante que a Teoria Crítica daConstituiçãodeM.Cattonipossuiemfacedeprojetosteórico-constitucionaisdiferentes,comenvergadurasemelhante:M.Nevespossuiumaobradensa,devalorsemdúvidainestimável,mas, apesar de seus textos mais recentes , continua a ser lembrado pelo peso da críticasociológica presente na tese sobre a “constitucionalização simbólica” (Neves, 2016); aomesmo tempo, autores como L. L. Streck e L. R. Barroso, tão diferentes entre si mas quecomungamacapacidadedetrazerparasuaobraummaioracentodogmático,acabammuitasvezes pesando a balança em favor do protagonismo judicial – afinal, para ambos opressupostoéavelhatesedofracassoconstitucionalentrenós,dafraquezahistóricadopovo

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brasileiroparalutarpelademocracia,aindaqueissoestejaarticuladocommaiorsofisticaçãoemL.L.StreckdoqueemL.R.Barroso13.

Deumpontodevistaprático,porseuturno,ocontributoespecíficodaTeoriaCríticadaConstituiçãodeM. Cattoni revela-se, nesta alturadenossahistória política e social, em suacapacidadedeconvidaraalgomaisdoqueasemânticaàsvezesanestésicadaresistência:comdificuldades as mais diversas, frente aos atropelos mais truculentos, vimos conseguindorealizar ao longo de quase dois séculos de constitucionalismo nacional fragmentos de umprojetodesociedademenosdesigualemenosopressora.As fagulhasdeesperançaqueessahistória nos mostra fazem com que possamos legitimamente seguir acreditando que esseprojetoaindapodeserrealizadoentrenós,pormaissombriosquesejamosdiaspresentes.Emoutraspalavras,aresistênciapodecatalisar-seprecisamentecomoprojeto,comoprojeçãodosonhodeumasociedadefuturaemancipada.Nessegestoidílico,nadahádeumautopiaemsentido negativo, de um sonho ingênuo sem lastro real possível: é de dentro das lutas econquistas, fragmentárias que sejam, de nossa própria história constitucional que podemosreunirasforçasparaseguiremfrente–sevencemosalgumasvezes,podemosvencerdenovo,e,aoseguirmosemfrente,tambémaquelaseaquelesqueforamderrotadasederrotadosemtantasoutraslutasporumasociedademelhorpoderãofinalmenteencontrarsuaredenção.

Portanto, tanto de uma perspectiva intelectual quanto de uma perspectiva prática, aausênciadeumadiscussãomaisdetidasobreaTeoriaSocialbrasileiraesobresuasafinidadeseletivas,suasrelaçõessubterrâneas,comaTeoriadaConstituiçãobrasileiraéumaausênciadignadenotaedecrítica.

Umasegundaconsideraçãocríticaqueeugostariadecolocarfrenteàtesedetitularidadede M. Cattoni diz respeito à influência forte que nela possuem elaborações teóricas de J.DerridaedeA.Honneth.Emquepeseapluralidadedeinterpretaçõesquantoaoqueelaseria(Fleck, 2017; Nobre, 2008) – seu escopo, seu objeto, seus métodos –, parece-me possívelafirmarque aTeoriaCrítica comoum todoprocura afastar-sededuasposturas igualmenteequivocadas:aapologiadoexistenteeaimpotênciadodever-ser.Tenhosériasdúvidassobreaté que ponto, em seus dois últimos livros de maior relevo, A. Honneth não cometeexatamente esses dois equívocos: a apologia do existente em “O direito da liberdade”(Honneth,2015);aimpotênciadodever-serem“Aideiadesocialismo”(Honneth,2017).Paraalémdisso,aconsideraçãodadimensãosistêmicadassociedadesmodernasnuncaocupouumlugardestacadoemsuaobra:pelaprimeiraveznahistóriadosgrandesnomesdaEscoladeFrankfurt,acríticadaeconomiapolítica,acríticaprofundaaomododeproduçãocapitalista,não é uma preocupação central. Apesar das diferenças radicais entre a reconstruçãonormativahonnethianaeadesconstruçãoderridiana,estanãomepareceestaremcondiçõesmelhoresdesuplementarumprojetocrítico14.Nãohádúvidasdequehajanaobradeambos

13 No caso de L. R. Barroso, sua conhecida concepção do STF como “vanguarda iluminista” e sua prática como magistradoescancaram o que em seus textos teóricos aparece mitigado (BARROSO, 2018). No caso de L. L. Streck, penso que essacompreensãodefundodahistóriaconstitucionalbrasileirasejaoquesubjazàmaneiracomoeleseposicionacomsuaTeoriadaConstituição Dirigente Adequada a Países de Modernidade Tardia (TCDAPMT) em face da versão revista da Teoria daConstituiçãoDirigentedeJ.J.GomesCanotilho(STRECK,2014,p.141-149).14Um livro exemplar para o quemeparecem ser limites a uma apropriação crítica da abordagemderridiana é “Spectres deMarx”(Derrida,1993).

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osautores“achadoscríticos”importantes,“momentosdeverdade”paraalémdafalsidadedaimagemqueomundodádesimesmo.Masnãoseiseessesachadosemomentos–ameuver,minoritários em suas obras – não poderiam ser supridos pela própria Teoria Socialhabermasiana.

Issomeleva,aliás,àterceiraeúltimadasminhasconsideraçõescríticasàs“ContribuiçõesparaumaTeoriaCríticadaConstituição”.Nelaresideminhaprincipaldivergênciaemrelaçãoa essa tese, pois M. Cattoni (2017, p. 9; 109) situa expressamente seu projeto teórico nomarcodeuma“teoriadasociedadeemtermosdeteoriadacomunicação.”Todavia,J.Habermassempre insistiu que uma sociedade moderna precisa ser abordada levando-se emconsideraçãotambémsuadimensãosistêmica:

Todateoriadasociedadequesereduzaateoriadacomunicaçãoestásujeitaa limitaçõesqueénecessário terbempresentes.Aconcepçãodasociedadecomomundo da vida, que é a que resultamais óbvia desde a perspectivaconceitualdaaçãoorientadaaoentendimento, só temumalcance limitadopara a teoria da sociedade. Por isso, vou propor que entendamos associedades simultaneamente como sistema e como mundo da vida.(Habermas,2010,p.595,destaquesdooriginal,traduçãolivre).

O ponto de vista do participante é extremamente importante, mas ele precisa ser

complementadopelopontodevistadoobservador.Apesardeabandonardesdemuitocedoateoria objetiva do valor-trabalho15, J. Habermas nunca abandonou a crítica ao modo deproduçãocapitalista16.Acríticaaessadimensãosistêmicadaeconomiadetrocacapitalista–no caso de J. Habermas, dimensão que abrange também a burocracia estatal – nãodesempenhaumpapelvisívelnaTeoriaCríticadaConstituiçãodeM.Cattoni.E,sesetratadepermanecer fiel a M. Horkheimer (1983), a crítica ao capitalismo não pode não ser umelementocentral.

Como dito na introdução do presente texto, essas considerações críticas não esperamsenãopodercontribuirparaacontinuidadedodesenvolvimentodeumaabordagemdaTeoriadaConstituiçãocomoTeoriaCrítica:deresto,aspáginasanterioresdeixamsuficientementeclarosaforçaeovalorqueessaTeoriaCríticadaConstituiçãojápossuinoestágioemqueseencontra17.ReferênciasBibliográficasBARROSO,L.R.2018.Onovodireitoconstitucionalbrasileiro:contribuiçõesparaaconstruçãoteóricaepráticadajurisdiçãoconstitucionalnoBrasil.4a.reimp.BeloHorizonte,Fórum.15Conferir,portodos,Habermas,2013.16 “Jamais deixei de criticar o capitalismo, nem tampoucode ter consciência de quenãobastamdiagnósticos vagos.Não soudessesintelectuaisqueatiramaesmo.”(Habermas,2018).17Pelosatuaisprojetosdepesquisaaqueestávinculadoepelasdisciplinasquevêmsendoporeleofertadasmaisrecentemente– sobretudo no nível da pós-graduação – é possívelmapear indícios de uma aproximação entreM. Cattoni e, por um lado, oconjunto de estudos que compõem a perspectiva decolonial, bem como, por outro lado, as teorias da performatividade e asdiscussões sobre interseccionalidade. Em suas próprias palavras, sua proposta de umaTeoria Crítica da Constituição passa aestar “atenta, inclusive, aos desafios dos chamados ‘estudos descoloniais’, do ‘novo-constitucionalismo latino-americano’ e daFilosofiadaLibertação;assimcomodofeminismodematrizinterseccionaledateoriaperformativaequeerdapolítica”(Cattoni,2019). Essas informações podem ser consultadas na página eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFMG(<https://pos.direito.ufmg.br/wp-content/uploads/Matr%C3%ADcula/2019/OfertaDisciplinas20191-MatriculasRegulares.pdf>)enaPlataformaLattes(<http://lattes.cnpq.br/4442732824534071>).

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Submetido:07/02/2019

Aceito:28/02/2020