Sobre Dante e a Filosfia de Gilson
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Transcript of Sobre Dante e a Filosfia de Gilson
A Divina Comédia de Dante Alighieri é o maior e mais belo poema já escrito, e, desde que
o li há muitos anos, considero-o meu livro favorito. Quem o lê sabe que é um livro muito
complexo e cheio de referências à filosofia e à teologia. Várias passagens até são
explicadas nas versões da Comédia que lemos, mas a maior parte das sutilezas e
polêmicas de Dante é ignorada. O livroDante e a Filosofia de Étienne Gilson vai muito
além de explicações sobre a Divina Comédia especificamente, mas faz um estudo amplo
sobre as ideias políticas e filosóficas do poeta florentino. O livro de Gilson é antigo, mas
não está datado e continua a ser uma referência para o estudo de Dante.
Gilson pretende que seu livro seja em grande parte uma refutação da obra de Mandonnet
“Dante Le Théologien”. Pierre Mandonnet foi um filósofo tomista belga que escreveu uma
obra sobre Siger de Brabant que é um clássico sobre esse filósofo averroísta. Mandonnet
produziu um livro sobre Dante já citado em que ele pretende estabelecer a ortodoxia de
Dante como um Tomista fiel à doutrina de São Tomás. Essa defesa do tomismo de Dante
tem uma razão de ser que ficará mais clara adiante quando Mandonnet fará uma
explicação do porquê Dante ter colocado Siger de Brabant no Paraíso, inclusive com um
elogio da própria boca de São Tomás.
No conteúdo do livro existem capítulos dedicados à Vita Nuova, à Divina Comédia, ao
Banquete e à Monarquia. No geral Gilson evita a aceitação fácil de supostos símbolos que
teriam sido usados por Dante em suas obras da mesma forma que Mandonnet os aceita.
Gilson faz o papel de cético e duvida desde cedo da ortodoxia de Dante.
Todos sabemos que Dante amou desde cedo uma mulher chamada Beatriz. Gilson até
admite que ela possa realmente ter existido. Foi a grande paixão da juventude de Dante e
o marcou por toda a vida. Beatriz teria morrido em 1290, quando Dante tinha 25 anos.
Gilson estudou o período de dez anos entre 1290 e 1300 para nos fornecer um dado que
permite compreender sua futura Divina Comédia. Entre a morte de Beatriz e a sua imersão
na selva oscura, Dante substituiu o amor por Beatriz por uma misteriosa donna gentile.
Essa donna gentile, explica Gilson, nada mais é do que a Filosofia, a qual vai substituir a
paixão por Beatriz na alma do poeta durante esse período. Essa paixão arrebatadora da
filosofia na mente de Dante vai levar o poeta a glorificar essa ciência de maneira
exagerada. Como diz Gilson, Dante tenderá a colocar a filosofia, especialmente a moral,
antes da Teologia e da Metafísica, justamente o que o pensamento medieval e de São
Tomás mais condenavam. Fica claro que Dante rejeitava qualquer papel de subordinação
da filosofia à teologia. Para ele a filosofia por si só já auxilia a fé.
Dante idolatrava a Ética a Nicômaco de Aristóteles como o livro filosófico supremo. Muito
estranhamente para sua época, a Metafísica vinha depois do estudo da moral. Dante,
muito antes de Ockham e Kant, já tendia a fazer uma separação entre as verdades da
filosofia e da Teologia. Provavelmente com resquícios de Averróis, o pensamento de
Dante afirmava que as verdades da fé eram inacessíveis à razão. Se para São Tomás a
inteligência humana pode ter ainda em vida uma contemplação que a leva a uma beatitude
imperfeita, que é superior a uma vida simplesmente moral, para Dante a mente humana só
possui um conhecimento bastante débil do inteligível por causa da sua dependência de
dados sensíveis, conforme diz Gilson. Dante rejeita a supremacia da contemplação que
havia sido estabelecida pelo próprio Jesus Cristo na passagem de Marta e Maria no
Evangelho, para fundar uma dupla beatitude: a da ação e a da contemplação. Essa ação
para Dante foi e é a da política e a moral.
A partir dessas informações entramos na ideia mais polêmica de Dante, que está refletida
em suaMonarquia. Nesse livro, Dante afirma que o papa não tem a autoridade sobre os
reis, mas sim que o Imperador deve ter a autoridade suprema, inclusive sobre a igreja.
Dante era um amante de autoridades: em filosofia, Aristóteles não podia ser contestado;
na política todos deveríamos nos submeter ao Imperador. Apesar de que Gilson não vai
endossar totalmente a crença de que Dante foi contaminado por Averróis, é impossível
não ver a influência do filósofo árabe sobre Dante em termos filosóficos e políticos.
Voegelin sustentou, assim como alguns pensadores do tempo de Dante já haviam
percebido, que a ideia de uma monarquia universal era defendida por Dante por sua
crença na unidade do intelecto possível para todos os homens, ideia que vinha de
Averróis. Gilson tenta salvar Dante alegando que o intelecto possível de Averróis
transforma a humanidade em um único ser, enquanto que a concepção de Dante o
transforma em uma sociedade. O resultado só aparentemente é diferente, por isso a
defesa de Gilson não convence.
Quando Gilson finalmente nos oferece uma análise da Divina Comédia, muitas das
dificuldades que temos de compreender certas simbologias ficam mais claras. Então
temos Dante aos 35 anos em 1300, que em um determinado dia encontra-se perdido em
meio à selva oscura. Seja por causa de falhas morais ou por amor excessivo à donna
gentile (a filosofia), Dante vai encontrar sua salvação através de sua amada Beatriz. Ele
diz claramente que Beatriz é “obra de fé”, e que ela dirá a Virgílio: “ Eu sou Beatriz que te
faz andar.” Depois de Virgílio o conduzir pelo Inferno e o Purgatório, a missão de levar
Dante até o Paraíso será confiada a Beatriz, pois Virgílio, sendo pagão, não pode entrar no
céu. A explicação de Gilson é magnífica: “Beatriz substituiu Virgílio no momento em que a
razão natural não poderia mais avançar; nesse momento entra Beatriz, que possui a fé.
Mas mesmo que ela possua a fé, no momento mais alto ela deve abrir espaço para o
Amor, pois só com sua posse o fim supremo do homem pode ser alcançado, que é a
contemplação de Deus. Esse papel vai ser representado por São Bernardo.”
Nesse momento o livro de Gilson entra no tema espinhoso de saber por que Dante
colocou nos lábios de São Tomás um elogio a seu rival mortal Siger de Brabant. Sabemos
que Siger foi o grande representante do averroísmo latino, que sustentava a existência de
uma dupla verdade: a da filosofia e a da teologia. Suas teses foram condenadas em 1277,
e Siger nesse momento desapareceu da história para morrer algum tempo depois
misteriosamente. Mas qual foi a razão de Dante tê-lo colocado no Paraíso? Gilson não
concorda com a tese de que Siger abjurou de suas ideias e se converteu ao tomismo.
Também rejeita a solução de Mandonnet que achava que no fundo Dante não conhecia
muito bem o pensamento de Siger. A razão é que Siger representava para Dante o limite
de onde a filosofia poderia ir. Siger de Brabant era um filósofo puro que não misturava
filosofia com a teologia, e por isso era admirado por Dante. Com esse método puramente
silogístico, Siger pronunciou verdades que incomodaram aos seus contemporâneos,
conforme Dante mesmo coloca em versos no Paraíso. Como nós lemos acima, Dante
colocou a filosofia no mesmo nível da Teologia, e quando chegamos ao Paraíso, é natural
que ele coloque no mesmo plano de São Tomás, o próprio Siger de Brabant, que foi para
Dante o símbolo máximo da independência filosófica de seu tempo.