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DUNKER, C. I. L. - Discurso e Ideologia In: Re-Discutir Texto, Gênero e Discurso. São Paulo : Parábola, 2008, v.2, p. 185-214.
Discurso e Ideologia
Christian Ingo Lenz Dunker1
1. A Neutralização do Conceito de Ideologia
A noção de ideologia foi proposta por Destutt de Tracy, em 1796, no quadro do
ambicioso projeto de construir uma ciência geral das idéias. Essa curiosa mistura de moral
e psicologia, de filosofia e ciência, tinha uma função bastante específica: combater o terror
e servir para regular a sociedade resolvendo, por intermédio de uma teoria sobre a gênese
do saber no ser humano, os desvios da política e os excessos do poder. Excetuando-se o
matiz naturalista e a inspiração específica na racionalidade de tipo iluminista, o projeto não
é nada novo. Aliás, ele se destaca pela ingenuidade com que tenta resolver os impasses
seculares da filosofia política confiando para tal na neutralidade da ciência modernamente
concebida. A ideologia se define assim como o estudo da formação espontânea das idéias a
partir das diferentes faculdades mentais (vontade, juízo, pensamento, memória, etc) e, em
última instância, a partir do próprio cérebro (Cabanis). Uma descrição realista e materialista
deste processo, justamente por se colocar em relação de neutralidade e anterioridade frente
a metafísica, a moral e a política, poderia servir para orientar tais disciplinas. Esta posição
de exterioridade e autonomia da teorização científica sobre a realidade que esta procura
apreender, se encontrará na noção de ideologia presente em Comte e Durkheim.
Provavelmente o projeto seria esquecido ou alinhado aos exageros históricos da
ciência positiva, não fosse o uso político que lhe deu Napoleão. Premido pela oposição a
seu regime Napoleão elege como causa e origem de seus problemas justamente os
ideólogos. Estes que imersos em obscura metafísica esqueciam-se das “leis conhecidas do
coração humano e das lições da história”2. A crítica de Napoleão fazia assim dos ideólogos
uma metonímia da burocracia, dos opositores da transformação social e virtualmente
tornava visível uma instância discursiva que se propunha, explicitamente, como uma
tecnologia do poder. Napoleão interpreta o projeto de constituição da Ideologia,
1 Psicanalista, Doutor em Psicologia (USP), professor do Instituto de Psicologia da USP e do mestrado em Psicologia da Unimarco, autor de “Lacan e a Clínica da Interpretação” (Haker, 1996) e “O Cálculo Neurótico do Gozo” (Escuta, 2002). 2 Napoleão – Reponsè à Padresse du Conseuil d’Etat, apud Thompson, J.B. – Ideologia e Cultura Moderna, Vozes, Rio de Janeiro, 1990.
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DUNKER, C. I. L. - Discurso e Ideologia In: Re-Discutir Texto, Gênero e Discurso. São Paulo : Parábola, 2008, v.2, p. 185-214. astutamente, acusando-a de fazer aquilo que ele, Napoleão, ao seu próprio modo, pretendia.
Ao mesmo tempo ele critica os ideólogos por praticarem aquilo que criticam: metafísica. A
estratégia retórica de Napoleão nos introduz a dois aspectos da noção de ideologia:
a) ela é uma atividade representacional, interpretativa ou discursiva que apresenta-se como
isolada ou neutra em relação à realidade, quando na verdade é expressão de um
determinado interesse, ponto de vista ou orientação sobre esta mesma realidade.
b) ela parte de uma inversão na ordem de determinação entre o real e as idéias. Para a
ideologia são as idéias que determinam a realidade, não a realidade que determina as idéias.
Vemos assim que é possível distinguir dois tipos primários para o uso da noção de
ideologia, um uso epistêmico, relativo à fundamentação de uma maneira de conhecer, e um
uso político, relativo às formas de legitimar uma maneira de exercer o poder.
A crítica de Napoleão não se aplica, epistemologicamente, aos ideólogos franceses
mas é bastante pertinente se temos em mente os ideólogos alemães. Estamos nos referindo
aqui a um conjunto de pensadores que tem em comum a crítica da filosofia hegeliana. Cada
um destes autores procura deduzir um sistema alternativo ao de Hegel tomando como ponto
de partida idéias distintas, de conteúdo supostamente universal.
Se a tradição francesa enfatizou os aspectos epistêmicos e políticos da noção de
ideologia, o que vemos na tradição alemã é uma primazia da utilização da categoria de
ideologia em chave histórica e cultural. Se o real, posto em posição de objeto, para os
ideólogos franceses tem sua face primeira na natureza, para os alemães a figura central da
realidade é a cultura. Para Hegel o espírito é a cultura enquanto uma rede de relações de
trabalho, linguagem e desejo. Neste sentido o real não possui história mas é ele mesmo
história, sendo a cultura seu movimento de exteriorização e interiorização. Logo se
depreende que o real como história levanta perguntas. Qual história? História de quem ?
História para quem ? A resposta de Hegel é ambiciosa: trata-se de pensar todas as versões
possíveis da história, entendidas como movimento de contradição e reflexão do espírito,
bem como a totalidade das objetivações do espírito na cultura. É este o universal que
compõe a história como saber absoluto. Esta separação entre a interioridade da consciência
e a exterioridade dos produtos do trabalho, da linguagem e do desejo designa um fenômeno
estreitamente ligado à ideologia: a alienação (Entäusserung). É pela alienação, entendida
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como separação e desconhecimento, entre agente e processo, entre fins e meios, que o
espírito se encarna em um mundo que se torna estranho á si mesmo. Temos então esta
experiência da discordância entre as idéias e o real que fixa o destino de uma consciência
condenada a vier em um mundo e a pensar em outro3. Em outras palavras o que
encontramos sob a pena de Hegel, e particularmente na Fenomenologia do Espírito, é
também uma espécie de ciência da ideologia, entendida aqui como investigação sobre as
formas históricas de alienação do espírito e de separação da consciência, bem como uma
tentativa de reconciliar o modo como o real se dá a parecer (formação) e o modo como o
real se produz (constituição).
É a partir desta reversão do sentido de ideologia, de saber libertador, neutro e
científico em saber processual, contraditório e histórico que o tema da ideologia chega até
Marx. Seu principal argumento contra Hegel é que a alienação não é do espírito em suas
idéias, mas principalmente dos homens para com suas formas sociais reais em sua
materialidade histórica. Temos aqui um terceiro deslocamento da noção de ideologia, que
passa agora a se concentrar não em uma teoria da cultura e da alienação do espírito na arte,
na ciência ou na religião, mas em uma crítica da organização social e da alienação à forma
mercadoria, ao trabalho e a uma posição de classe deslocada. Com este giro Marx teria
invertido a concepção idealista de Hegel em um materialismo dialético, transformando a
alienação do espírito de causa em efeito e localizando a alienação em uma forma específica:
o fetichismo da mercadoria. Nesta forma de alienação verifica-se uma separação entre o
processo e o produto do trabalho, uma animação das coisas e uma coisificação das pessoas
(reificação). A ideologia passa a ser então o processo de ocultamento, reprodução e
sustentação desta separação em seus diferentes níveis: teoria e prática, fato e direito,
liberdade e dominação, essência e aparência. Muitos comentadores já apontaram como a
noção de ideologia é oscilante e heterogênea nos escritos do autor de A Ideologia Alemã.
Resumidamente podemos encontrar três concepções de ideologia em Marx4:
a) concepção epistêmica: neste caso ideologia refere-se a uma doutrina teórica, esquema
interpretativo ou forma de saber que se pode circunscrever e localizar historicamente e que
3 Hyppolite, J. – Gênse e Estrutura da Fenomenologia do Espírito de Hegel, Discurso, São Paulo, 1999. 4 Thompson, J.B. – Ideologia e Cultura Moderna, Vozes, Rio de Janeiro, 1990.
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se apresenta no pressuposto, ás vezes encoberto por seus conceitos, de que suas idéias
possuem autonomia e eficácia na apreensão da realidade justamente por se colocarem em
um ponto de vista privilegiado para a apreensão desta realidade. A ideologia não pode
compreender, desta maneira o caráter histórico e as condições reais de sua própria produção
e determinação. Poderíamos chamar de ideologia, nesta acepção, desde teorias de aspiração
científica até certas formas de saber consolidadas pelo senso comum que se caracterizam
por uma naturalização da verdade. Tais teorias ou esquemas de pensamento são tipicamente
marcados pelo essencialismo, pela crença na dimensão ahistórica ou transcendental de seus
conceitos e pela elevação de um ponto de vista particular à condição de universalidade5. A
crítica, neste sentido dirige-se à explicitação da incompletude deste falso universal, que
funciona como uma espécie de sintoma, acusando um desejo específico e desfigurado em
sua apresentação inespecífica (universalizável) da teoria. Desta acepção nasce uma
oposição possível entre ideologia e ciência. A ideologia é o aspecto não científico que
parasita e se infiltra em uma dada teoria científica, uma determinada particularidade que
parasita a aspiração de universalidade. Como afirma Balibar: “a consciência ideológica é
primeiramente o sonho de uma universalidade impossível.”6
b) concepção sociológica: nesta acepção ideologia é entendida como uma espécie de
epifenômeno das relações de dominação, um saber que expressa as idéias de uma classe
escamoteando as verdadeiras relações que a constituem como tal. Encontramos aqui a
ideologia em sua expressão encarnada nas formas jurídicas, políticas, estéticas, pedagógicas
e religiosas que tendem a ocultar, domesticar ou deformar o conflito desviando a atenção
do real que as subjaz: a propriedade, a produção e o antagonismo social. Aqui a ideologia
pode ser descrita como o processo de produção de consciências submetidas ou alienadas de
si mesmas e como forma de ocultamento da exploração e da percepção dos próprios laços
sociais7. A ideologia expressa-se aqui em um conjunto de normas e formas de pensamento
que se tornam obrigatórios para uma dada comunidade, mas que sobretudo prescrevem a
continuidade de um modo de agir que mantenha a dominação e a divisão social. Aqui
ideologia opõe-se à crítica como atividade de reconhecimento do antagonismo, da luta entre
5 Marx, K. – A Ideologia Alemã (1845), in Marx Engels, Fernandes F. (org), Ática, São Paulo, 1989. 6 Balibar, E. – A Filosofia de Marx, Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1995. 7 Marx, K. – Crítica da Economia Política (1859), in Marx Engels, Fernandes F. (org), Ática, São Paulo, 1989.
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as formas de consciência em sua dimensão de instituição da autoridade e legitimidade do
poder.
c) concepção histórica: aqui a noção de ideologia aparece indexada em termos como
“ilusão”, “ideal” ou “fantasia”, referindo-se, no conjunto, a um sistema de representações
ou imagens que se orientam para o reordenamento do passado de tal forma que este
justifique o presente e tenda a se reproduzir no futuro. Trata-se da invenção de um passado
que assegura a continuidade e a conservação social. É uma concepção de ideologia menos
explícita que as anteriores e que se revela, por exemplo, na indagação que Marx levanta
sobre os acontecimentos de 1848, ou seja, por que uma vez atravessada a metafísica
ideológica e instalada uma consciência revolucionária, em vez da efetiva transformação, as
pessoas escolhem voltar-se para um impostor (Luis Bonaparte). Impostor que utilizando
mágica e persuasivamente as imagens e palavras do passado impõe-se como um novo
senhor? A expressão da ideologia não se faz aqui sob a figura de uma falsa ciência ou de
uma falsa consciência, mas de uma falsa realidade. Realidade histórica produzida por
abstração, inversão e redução do passado e futuro às exigências do presente. Aqui a
ideologia responde por uma espécie de enlace entre o imaginário e o real que tende a
produzir uma determinada significação lida como repetição histórica8. Vale aqui a máxima
de que a história acontece primeiro como tragédia e depois repete-se como farsa 9.
Esta pequena retomada da noção de ideologia nos serve para enfatizar certas
condições que podemos exigir para seu emprego específico, ou seja, uma teoria da
universalidade como sintoma (concepção epistêmica), uma teoria da dominação (concepção
sociológica) e uma teoria da significação (concepção histórica). Estes três aspectos,
constitutivos da noção de ideologia, aparecem, por exemplo, na teses de Althusser10, ou
seja, (1) a ideologia é uma representação da relação imaginária dos indivíduos com suas
condições reais de existência (2) a ideologia interpela os indivíduos como sujeitos e (3) a
ideologia não tem história. Em outras palavras, a ideologia equivale a uma espécie de
8 Badiou, A. – O (re) começo do materialismo dialético, in Materialismo Histórico e materialismo Dialético, Global, São Paulo, 1986. 9 Marx, K. – O 18 Brumário de Luis Bonaparte (1852), Marx Engels, Fernandes F. (org), Ática, São Paulo, 1989. 10 Althusser, L. – Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado, in Sobre a Reprodução, Vozes, Petrópolis, 1999: 275-283.
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sua relatividade.
condição de possibilidade para a interpretação do mundo ou do Outro ao mesmo tempo em
que “produz” as formas subjetivas ou os pontos de vista para tais interpretações,
terminando por “esconder”, deformar ou torcer o processo e as estratégias pelas quais isso é
realizado. Por estas propriedades a ideologia mantém, portanto, grande aproximação com o
próprio funcionamento de um discurso por um lado e com o inconsciente, no sentido
psicanalítico, por outro. Constituição de sujeitos, construção de práticas de significação e
formação de estratégias de ocultamento são, portanto, traços definitórios da noção da
ideologia.
Saliento que se renunciamos a um elemento sequer desta tripla condicionalidade
encontramos o que Thompson11 chamou de neutralização do conceito de ideologia, ou
seja, concepções que tendem a estabelecer a prevalência de uma ideologia sobre outra,
como se houvessem ideologias mais próximas da verdade ou uma hierarquia entre elas.
Uma segunda maneira de neutralizar a noção de ideologia é tornar toda expressão
organizada do pensamento como uma ideologia e em seguida afirmar que estas se
equivalem em
Um exemplo da primeira estratégia de neutralização do conceito se verificou entre
pensadores interessados em confrontar a ideologia baseada no capital com uma outra forma
de ideologia, a ideologia socialista (Lênin12). Disso decorreu um acréscimo moral da noção
de ideologia, ausente em Marx. É por este acréscimo que surgirá a noção de “má
consciência” e inversamente concepções que tendem a sobreestimar a possibilidade de
acesso da consciência sobre o real (Lukáks13). No marxismo mais clássico, como observou
Mézaros14, logo se observará a fragilidade da idéia de que a ideologia é apenas um
epifenômeno superestrutural, cuja fonte e origem são sempre as relações econômicas de
produção e que como tal importa pouco no processo de transformação social.
Um exemplo da segunda estratégia de neutralização do conceito de ideologia pode
se verificar entre os autores que diluem a ideologia na noção mais geral de um sistema de
11 Thompson, J.B. – Ideologia e Cultura Moderna, Vozes, Rio de Janeiro, 1990. 12 Lenin, V.I. – Colected Works, Londres, 1960. 13 Lukáks, G. – História e Consciência de Classe, Rio de Janeiro, Elfos, s/d. 14 Mézaros, I. – O Poder da Ideologia, Boitempo, São Paulo, 2004.
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crenças ou uma visão de mundo (Mannheim15). Mais recentemente a noção de paradigma,
desenvolvida por Kuhn16, no contexto da sociologia das ciências, tem sido usada
extensivamente na direção desta diluição. Um bom exemplo da neutralização e
assoreamento da noção de ideologia se vê, por exemplo, nesta definição proposta por Eco:
“Entendemos por ideologia o universo do saber do destinatário e do grupo a que
pertence, os seus sistemas de expectativas psicológicas, suas atitudes mentais, a
experiência por ele adquirida, os seus princípios morais, diríamos a sua cultura, no
sentido antropológico do termo.”17
Tanto a hierarquização das ideologias quanto sua dispersão em formas
incomensuráveis de crenças confundem o sistema simbólico, no qual se baseia a noção de
dominação, o sistema imaginário, no qual se baseia a noção de consciência alienada e a
intersecção simbólico-imaginária, na qual se baseia a produção histórica da significação.
Tal sobreposição é um exemplo cabal de uma das principais dificuldades em definir o
conceito de ideologia, ou seja, toda definição de ideologia parece tornar-se equiparável,
formalmente, à própria ideologia. Uma noção de ideologia que a identifique
extensivamente ao conjunto de crenças e práticas de uma cultura, ou intensivamente às
ilusões da consciência sobre a realidade da dominação, nos termos do realismo marxista
tradicional, nos parece uma franca inutilização do conceito e uma vasta desorientação para
o trabalho do crítico.
No âmbito mais interno ao próprio marxismo estas posições encontraram críticas
importantes. Gramsci e Agnes Heller mostraram, a partir de estratégias teóricas distintas,
que a ideologia funciona menos ao modo de um sistema abstrato de crenças e valores e
mais ao modo de uma prática cotidiana, uma atividade que se multiplica silenciosamente e
no interior da qual se gesta uma luta pela hegemonia de certas formas de vida ou “estruturas
de sentimentos”. Para Williams18, que estudou historicamente a absorção ideológica da
forma literária conhecida como tragédia, a estrutura de sentimento corresponde ao trabalho
ideológico de tornar consoante e congruente os aspectos sempre antagônicos entre
15 Mannheim, K. – Ideologia e Utopia, Rio de Janeiro, Zahar, 1968. 16 Kuhn, T.S. – A Estrutura das Revoluções Científicas, Perspectiva, São Paulo, 1988. 17 Eco, U. – A Estrutura Ausente, Perspectiva, São Paulo, 1971:84. 18 Williams, R. – Tragédia Moderna, Cosac & Naify, São Paulo, 2002.
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convicção e experiência. A ideologia operaria integrando o sofrimento real a uma
organização de crença e experiência que é falsamente unitária. Uma vez que a perfeita
junção entre crença e experiência comporta, por estrutura, uma dissonância ou um ponto de
exceção, podemos dizer que toda ideologia se condensa nos elementos que representam
esta abertura ou instabilidade de uma “estrutura de sentimento”. Isso está bastante próximo
do que Zizek chama de sintoma social, ou seja, o elemento que, em uma ideologia está
construído para indicar a sua não universalidade. Reencontramos aqui este traço da
ideologia que é o de se apresentar como falso universal.
“(...) crença na possibilidade de uma universalidade sem seu sintoma, sem o ponto
de exceção que funciona como sua negação interna.”19
Uma posição alternativa, contrária à neutralização do conceito de ideologia, pode
ser localizada em duas correntes de pensamento particularmente importantes no pós-guerra:
a teoria crítica, originada na Escola de Frankfurt, e o estruturalismo metodológico,
originado nos estudos de Lévy-Strauss. Em ambas as correntes destaca-se uma referência
importante à psicanálise. Isso ocorre pois a eficácia da ideologia parece residir em seu
modo de funcionamento inconsciente, não apenas no sentido em que crenças e opiniões
ideológicas se transmitem e reproduzem sem que se tome consciência, mas principalmente
porque a forma de produção do desejo inconsciente parece exposta ao mesmo processo de
deformação que a forma típica da alienação ideológica. Ideologia e inconsciente articulam-
se ao modo de uma linguagem, pensada como sistema simbólico. Possuem ainda uma
segunda articulação em termos do imaginário. Como assinalou Eagleton, tanto a psicanálise
quanto a crítica da ideologia concentram seus pontos de intersecção entre o sentido e a
força, a “verdade” da ideologia e a “realidade” que ela produz. Tal como o sintoma
neurótico, a ideologia não reside no conteúdo oculto ou revelado, mas tão somente na
unidade contraditória, ao modo de um compromisso, que ela compõe20.
Um outro motivo importante para esta confluência dupla para com a psicanálise
decorre da ausência, na tradição marxista, de uma teoria do sujeito.
19 Zizek, S. – Como Marx inventou o sintoma, in Um Mapa da Ideologia, Contraponto, Rio de Janeiro 1994:397. 20 Eagleton, T. – A ideologia e suas vicissitudes no marxismo ocidental, in Zizek, S. - Um Mapa da Ideologia, Contraponto, Rio de Janeiro 1994.
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“O único ´sujeito´ de que fala Marx é um sujeito prático, múltiplo, anônimo, e por
definição, não consciente de si mesmo. Na verdade um não-sujeito (...)”21
Tanto a Escola de Frankfurt (Marcuse, Adorno, Horkheimer), em sua referência à
Freud, quanto o estruturalismo marxista (Castoriadis, Althusser, Rancière), em sua
referência à Lacan, parecem defender uma espécie de primazia realista do objeto sem
descartar o papel crucial das condições de produção ou formação do sujeito (Bildung). É a
razão, em seu exercício crítico radical e a linguagem, como condição de possibilidade da
ideologia, que se tornarão o mote para uma estratégia de abordagem da ideologia
preocupada com sua autocrítica interna. Ou seja, trata-se de incluir a posição mesma do
crítico no espaço ideológico que este pretende investigar. Para ambas as escolas de
pensamento uma teoria crítica e radical da ideologia não pode ignorar as noções de real, de
verdade e de universalidade. Um universal que não seja sucedâneo do universalismo social
democrata ou totalitário22, um real que não seja simulacro da natureza ou da realidade pré-
discursiva23. Além disso, uma noção de verdade que não se pretenda como narrativa
verdadeira ou como forçamento de uma nomeação do real24. Com isso se argumenta,
indiretamente, que ideologia é um conceito sumamente metodológico e que deve ser
pensado no quadro do trabalho específico e indissociável da crítica.
Para entender o declínio da noção de ideologia entre os pensadores chamados pós-
estruturalistas (Foucault, Lyotard) e os chamados pensadores da diferença (Derrida,
Deleuze) deve-se reunir a crítica contumaz, mais ainda indecidida, da noção de
universalidade (estrutura) com a tentativa de pensar uma noção de sujeito que não se apóie
na identidade, mas na diferença. Para estes pensadores é a sombra do real que parece
reaparecer aqui e ali como obstáculo à diluição ideológica. Como se vê no recurso reiterado
em Foucault à espontaneidade pré-discursiva, impossível de capturar, ou nas noções de
fluxo e intensidade em Deleuze, ou ainda no texto “ultra-transcendental” em Derrida 25. É
no quadro da virada pós-estruturalista que encontramos uma absorção genérica da noção de
21 Balibar, E. – A Filosofia de Marx, Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1995:83. 22 Zizek, S. – O espectro da ideologia, in Um Mapa da Ideologia, Contraponto, Rio de Janeiro 1994. 23 Leite, N. – Psicanálise e Análise de Discurso, Campo Matêmico, Campinas, 1994. 24 Badiou, A. – Para uma Nova Teoria do Sujeito, relume Dumará, Rio de Janeiro, 1996. 25 Dews, P. – Adorno, pós-estruturalismo e a crítica da identidade, in Zizek, S. – Um Mapa da Ideologia, Contraponto, Rio de Janeiro, 1999.
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ideologia à noção de discurso. Neste sentido tanto a desconstrução, quanto o método
arqueológico ou a análise das narrativas e os aportes pós-modernos, derivados destes, são
simultaneamente formas de análise da ideologia e formas de análise de discurso. Entendida
como metafísica do centro (falocentrismo, logocentrismo, etnocentrismo), ou criticando a
primazia da identidade (teorias de gênero, teorias pós-coloniais) ou ainda como objeção à
subjetividade autoconstituída as concepções pós-estruturalistas são herdeiras da tradição
crítica. No entanto caracterizam-se por um deslocamento do paradigma da produção ao
paradigma da linguagem combinada ao desejo.
2. A Ideologia como Discurso e o Discurso como Ideologia
Como aproximação preliminar quero apresentar a idéia genérica de que a noção de
discurso se afiniza substancialmente com a de espaço e que esta categoria tornou-se uma
referência crucial para pensar a ideologia. O espaço, assim como o tempo, segundo Kant, é
uma condição de possibilidade da representação. Um espaço de discurso é o que torna
possível um conjunto de enunciados e delimita um campo de possibilidades ao qual o
sujeito está submetido. Lembremos que a referência ao espaço tem marcado os estudos
sobre a linguagem desde seu início na antiga tradição retórica grega. A distinção de
Aristóteles entre lugares comuns, baseados na universalidade, e lugares específicos,
baseados na particularidade, aponta para uma metáfora dominante na história da análise do
discurso.
Como sugeriu Perelman26, a teoria aristotélica dos lugares variáveis prende-se a
modos distintos de apreensão do real. O real, cuja referência é o território, se tenciona com
o real cuja referência é a morada. O espaço permanece, todavia, como uma categoria que
inclui as duas formas anteriores em continuidade. A partir disso, há uma tendência a
considerar que o lugar comum inclui e contém o lugar específico, assim como o gênero
contém a espécie. Através de uma gramática de inclusão e exclusão, a estrutura da
ideologia nos leva a supor que toda posição inclui-se em um lugar e todos os lugares se
referem ao mesmo universal representado pelo espaço. Utilizarei, portanto,
26 Perelman, C. e Olbrechts-Tyteca, L. – Tratado da Argumentação – a nova retórica, Martins Fontes, São Paulo, 1996:111.
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operatoriamente, as noções de espaço, lugar e posição para tentar organizar algumas
concepções e problemas em torno da relação entre ideologia e discurso.
Falamos, portanto da ideologia como processo onde “a” linguagem, como universal
homogêneo e pura abstração, “encaixa-se” perfeitamente com a língua, que seria seu
particular correspondente em termos de lugar. Mais ainda, dentro da língua como lugar, ou
rede de lugares, se poderia deduzir, sem contradição, as posições, as diferentes narrativas,
os estilos e as enunciações singulares. Desta forma o discurso como ideologia pode ser
traduzido, alternativamente, em termos de espaço, como condição de possibilidade
universal e transcendental da significação (dimensão epistêmica da ideologia), mas
também em termos de lugar, como forma particular e sistêmica da enunciação de ditos
(dimensão sociológica da ideologia) e finalmente em termos de posição, como forma
singular e concreta da enunciação de um dizer (dimensão histórica da ideologia).
3. Espaço
Assim como o discurso o espaço se define por suas regras de formação e pelas
dimensões inferidas a partir de seus objetos. São os deslocamentos que tornam, por assim
dizer “visíveis” um objeto em um determinado espaço, mas não em outro. Por exemplo, as
análises de Foucault sobre a história da loucura, o nascimento da clínica médica, a
formação dos regimes disciplinares ou eróticos equivalem à delimitação de certos espaços
compostos por formações discursivas e formações não discursivas (práticas e dispositivos),
que em um determinado momento tornaram visíveis determinados objetos como a loucura,
a doença, o homem, etc.. É por isso que as noções de superfície, descontinuidade e corte
são tão importantes para este autor.
Um discurso, segundo Foucault, pode se compreendido a partir de um domínio
extenso definido pelo conjunto de enunciados efetivos, falados ou escritos na sua dispersão
de acontecimentos e na instância própria de cada um 27. Ou seja, o discurso não está
concernido apenas aos lugares que supostamente o representam, mas distribuído em um
espaço heterogêneo que compreende diferentes níveis de organização do saber
(positividade, epistemologização, cientificidade, formalização). Trata-se, na arqueologia
27 Foucault, M. – Arqueologia do Saber, Forense, Rio de Janeiro, 1988:30.
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foucaultiana, da localização do enunciado em sua dispersão, mesmo que ultrapasse o
domínio inicial ou vizinho, mesmo que não possua o mesmo nível formal. Abandona-se
assim o fechamento usual trazido por categorias como: obra, autor, domínio
epistemológico, gênero ou mentalidade.
“Chamaremos de discurso um conjunto de enunciados, na medida em que se apóiem
na mesma formação discursiva; ele não forma uma unidade retórica ou formal,
indefinidamente repetível e cujo aparecimento ou utilização poderíamos assinalar (e
explicar se for o caso) na história; é constituído por um número limitado de
enunciados para os quais podemos definir um conjunto de condições de existência” 28.
Um discurso se compõe de enunciados, mas ele se define diferencialmente de outro,
por um objeto. Um objeto, que por sua vez, pode ser apreendido pelas superfícies (os
planos em que o discurso se desenvolve); pelas instâncias de delimitação (espaço criado
pela interveniência de outros discursos, os interdiscursos) e pelas grades de especificação
(suas oposições internas). Tudo se passa como se Foucault procedesse ao modo geométrico
tentando definir um espaço pelos objetos que este comporta, tal como Euclides em seus
Elementos ou Espinosa em sua Ética.
O que podemos chamar de espaço ideológico é a suposição necessária da infinitude
dos discursos, ou seja, de que “tudo pode ser dito” porque o espaço onde se vive, fala e
trabalha é afinal único, homogêneo e transparente. Intuitivamente acessível, tal como a
categoria de espaço nos induz a pensar. Todas as formas de ideologia convergem, portanto,
nesta fantasia ideológica mais geral de que a própria linguagem é um meio neutro, vazio e
indiferente. Espaço no qual os objetos vão sendo “depositados”.
Observe-se que tal qual a relação entre o espaço e os objetos que nele tomam corpo
a ideologia nos induz a uma falsa relação entre realidade e saber. É o que Zizek chamou de
fantasia ideológica.
28 Foucault, M. – Arqueologia do Saber, Forense, Rio de Janeiro, 1988:135.
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DUNKER, C. I. L. - Discurso e Ideologia In: Re-Discutir Texto, Gênero e Discurso. São Paulo : Parábola, 2008, v.2, p. 185-214.
“(...) a ilusão não está do lado do saber, mas já está do lado da própria realidade,
daquilo que as pessoas fazem. O que elas não sabem é que sua própria realidade, sua
atividade social, é guiada por uma ilusão, por uma inversão fetichista.29”
Os sujeitos podem não acreditar. As práticas e os objetos acreditam por eles. É,
portanto, ao modo da análise de uma crença fundamental que Zizek entenderá a fantasia
ideológica que regula a realidade social. Por exemplo, todos sabemos que a burocracia não
é perfeita, nem possui todos os poderes que a ela atribuímos, mas mesmo assim nossa
conduta efetiva diante da máquina burocrática é regulada pela crença em sua infalibilidade.
Este “como se” é o que precisa ser explicado pela análise discursiva da ideologia.
A noção foucaultiana de dispersão e seu corolário em termos de heterogeneidade
discursiva abriram caminho para a renovação pós-estruturalista que redundou
principalmente no abandono da categoria de universalidade e na concepção de discurso
como um espaço aberto, marcado pela deriva de sua diferenciação (diffèrance), como
sugere Derrida. É neste momento que os universais dos quais se poderia deduzir, por
contraste, a noção de ideologia; universais como a linguagem, o inconsciente, a lógica-
formal e é claro, a razão; tornam-se sobrepostos à própria noção de ideologia, fazendo-a tão
vasta quanto inespecífica. Começa a faltar espaço para pensar afinal o que não é ideologia.
Como observou Zizek30 este gesto, entre outros efeitos, acabou por inverter o tema do
sujeito da produção no topos da produção do sujeito. Gradualmente isso trouxe também o
esquecimento da noção de classe, substituída por outras categorias, mais “identitárias”,
como gênero, etnia, etariedade, ou então por dimensões mais diretamente ligadas à noção
de consumo aplicada ao âmbito da cultura. Esta implosão da noção de estrutura baseou-se
no reconhecimento de que como totalidade sistêmica ela restringia deveras a análise do
discurso, submetendo-a a noção de signo ou de forma. Em suma, neutralizando em um
universal de linguagem as infiltrações ideológicas do discurso.
Mas a objeção pós-estruturalista acabou por descaracterizar a própria noção de
ideologia (e correlativamente a de utopia) ao abandonar o paradigma da produção em prol
do paradigma lingüístico. Esse movimento se apóia genericamente em um relativismo
29 Zizek, S. – Como Marx inventou o sintoma, in Um Mapa da Ideologia, Contraponto, Rio de Janeiro 1994:397. 30 Zizek, S. – O Mais Sublime dos histéricos – Hegel com Lacan, Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1988:207.
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historicista, baseado em uma certa apropriação de Nietszche, renunciando assim ao
problema da verdade.
A noção de espaço discursivo foi desenvolvida, em outra direção, particularmente
pela análise de discurso anglo-saxônica, inspirada em Foucault e Marx, mas também em
Lacan. Neste caso prevalece a noção de estrutura, mas como um universal descompleto. A
estrutura se organiza em torno da falta e da diferença. Autores como Laclau e Mouffe31, por
exemplo, concebem a noção de hegemonia como movimento de expansão universalizante
do espaço de um discurso. O ponto nevrálgico das análises destes autores é a manutenção
(ética) e a explicitação (metodológica) da diferença entre o universal como um significante
vazio, que significa a ausência de uma completa congruência discursiva dentro de uma
comunidade, e a forma particular de preenchimento deste espaço vazio do universal
(ideologia). Em chave lacaniana a mesma tese corresponde a uma atitude crítica baseada
na não totalização da noção de Outro, entendido como espaço da linguagem. Segundo
Stavrakakis:
“Para manter uma relação não-totalizável com o Outro nós precisamos nos
identificar com a falta no Outro e não com o Outro per si.”32
Esta falta no Outro decorre de uma heterogeneidade da noção de simbólico utilizada
para defini-lo. O Outro como espaço da linguagem é simultaneamente (1) simbólico como
sistema, um conjunto de regras, normas, prescrições e leis que impõe uma heteronomia ao
sujeito, ou seja, um dispositivo discursivo para redução e controle da contingência (2)
simbólico como ordem, lugar de realização da dialética entre saber e verdade, campo de
realização de reconciliação do sujeito, ao modo de um mediador universal e (3) simbólico
como “eficácia”, lugar de conflito, de antagonismo, da hegemonia e da contradição. Este
ponto vem se mostrando uma cunha para a teoria pós-lacaniana33, um ponto de divergência
entre Zizek, que deposita sua esperança crítica na noção de ato (real) capaz de subverter as
coordenadas simbólico-imaginárias do espaço da ideologia; Ernesto Laclau, que afirma a
possibilidade contra-ideológica a partir da plasticidade simbólica do lugar e Judith Butler,
que denuncia na fixidez do simbólico como posição, o substrato da ideologia, recorrendo
31 Torfing, J. – NewTheories of Discourse – Laclau, Mouffe and Zizek,Blackwell, Oxford, 1999:288. 32 Stavrakakis, Y. – Lacan & the Political, Routledge, London, 1999:139. 33 Butler, J.; Laclau, E. e Zizek, A. – Contingency, Hegemony, Universality, Verso, London, 2000:326.
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para tal à noção de performatividade como categoria crítica. O seja, um debate que se
desenvolve em torno da composição do falso-universal representado pelo espaço
discursivo.
4. Lugar
No espaço do discurso podemos isolar os lugares onde os sujeitos e as enunciações
concretas se efetivam. Podemos dizer então que o discurso ideológico é composto por
lugares e pelas relações que definem estes lugares. Encontramos um precedente para o
estudo dos lugares discursivos também em Foucault, mais precisamente em sua noção de
modalidade enunciativa.
“ a descrição do nível enunciativo não pode ser feita nem por uma análise formal,
nem por uma investigação semântica, nem por uma verificação, mas pela análise
das relações entre o enunciado e os espaços de diferenciação, em que ele mesmo faz
aparecer diferenças.” 34
Aqui coloca-se a dimensão da enunciação e do sujeito produzido por um discurso.
Ou seja, a pergunta do crítico deve ser similar a pergunta do psicanalista diante de seu
analisante: qual o lugar do sujeito, neste discurso? quem fala (e é falado) neste discurso ?
Em termos foucaultianos: qual é o status dos indivíduos que tem o direito, regulamentar ou
tradicional, juridicamente definido ou espontaneamente aceito de proferir semelhante
discurso ?35. Definir a competência e o saber, as instituições ou normas que definem a
posição do sujeito para sua inscrição no discurso e a individualização dos personagens que
o representam é função da análise das modalidades enunciativas. Observe-se que para
Foucault o sujeito deve ser tomado como um lugar vazio, individualizado e prescrito pelo
discurso.
“(...) o sujeito do enunciado é uma função determinada, mas não forçosamente a
mesma de um enunciado para outro; na medida em que é uma função vazia,
podendo ser exercida por indivíduos, até certo ponto, indiferentes. (...) o mesmo
34 Foucault, M. – Arqueologia do Saber, Forense, Rio de Janeiro, 1988:155. 35 Foucault, M. – Arqueologia do Saber, Forense, Rio de Janeiro, 1988:57.
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indivíduo pode ocupar alternadamente, em uma série de enunciados, diferentes
posições e assumir o papel de diferentes sujeitos” 36
Noções como cena enunciativa, isotopia e paratopia em Maingueneau37, de percurso
gerativo e de actante em Greimas38 e de aparelho ideológico em Althusser39, são exemplos
de lugares a partir dos quais pode-se inferir aspectos semânticos, pragmáticos ou sintáticos
que definem as propriedades de um discurso e a produção do sujeito. Os trabalhos de
Certeau sobre o cotidiano nos dão outro exemplo vivo e concreto da importância da noção
de lugar para a análise discursiva da ideologia.
“A diferença que define todo lugar não é da ordem de uma justaposição, mas tem a
forma de estratos imbricados. (...) Este lugar, na superfície parece uma colagem,
mas de fato é uma ubiqüidade na espessura. Um empilhamento de camadas
heterogêneas.”40
Nestes estudos pode-se indagar, criticamente, qual seria o lugar reservado para a
noção de lugar. O autor que parece mais sensível à conotação lingüístico-ideológica da
noção de lugar é Rancière, que parece ter percebido sua afinidade intuitiva com a noção de
classe e daí derivando conseqüências importantes para a análise de textos. Veja-se para isso
sua interessante crítica da convergência entre noção de lugar e a de território em sua
abordagem crítica da noção da representação da democracia na América 41. Sua expressão
ideológica redunda, justamente, da convergência encobridora entre o social (como
universal) e a comunidade (como singular). Mais recentemente reencontramos a força
crítica desta mesma noção em sua análise do potencial crítico das favelas:
“Nomes e lugares políticos nunca se tornam simplesmente vazios. O vazio é
preenchido por alguém ou outra coisa. Se os que sofrem repressão inumana não
conseguem implementar os direitos humanos que constituem seu último recurso,
então outros precisam herdar seus direitos, para que os implementem em seu lugar.
36 Foucault, M. – Arqueologia do Saber, Forense, Rio de Janeiro, 1988:107. 37 Maingueneau, D. – Novas Tendências em Análise do Discurso, Pontes, Campinas, 1997. 38 Greimas, A.J. e Landowski, E. – Análise do Discurso em Ciências Socias, Global, São Paulo, 1987. 39 Althusser, L. – Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado, in Sobre a Reprodução, Vozes, Petrópolis, 1999. 40 Certeau, M. – A Invenção do Cotidiano – artes de fazer, Vozes, Petrópolis, 1996. 41 Racière, . – O Continente Democrático, in Políticas da Escrita, Editora 34, Rio de Janeiro, 1995.
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(...) O "direito à intervenção humanitária" pode ser descrito como uma espécie de
‘devolução ao remetente’: o direito em desuso que tinha sido enviado aos
destituídos de direitos é devolvido a seus remetentes"42
Ou seja, Rancière parece disposto a extrair do uso crítico da noção de lugar uma
das faces do real, o real como contradição, como lugar impossível do sujeito ideológico.
Poder-se-ia argumentar que o real assume a forma da contradição que engendra modos
específicos do sujeito. Tais contradições podem ser descritas em termos formais ou
conceituais de tal modo que a apropriação ideológica da linguagem revelaria seu modo de
funcionamento tendo por referência a lógica de sua produção. Entre o sujeito da linguagem,
(universal) e o sujeito da ideologia (particular), nesta disjunção entre o sentido e o não-
sentido, na hiância entre o efeito ideológico elementar de transparência da linguagem e sua
opacidade, está colocado todo o problema dos lugares do discurso43. Isso implica
aproximar tais autores de uma vertente crítica similar a que se pode encontrar, por exemplo,
na Escola de Frankfurt. Autores que mesmo deslocando o papel da cultura de um mero
efeito superestrutural para um elemento chave para a compreensão da dominação não
renunciaram a pensar o real como contradição e o sujeito como espaço de liberdade
(mesmo que impossível nas condições dadas). Ou seja, o real deve ser pensado como uma
categoria intervalar entre o lingüístico e a realidade, mas também como uma categoria
tensa, heterogênea tanto à linguagem quanto à realidade.
Outra maneira de entender o lugar, como contradição entre linguagem, trabalho e
vida pode ser encontrada em Maingueneau:
“Toda dificuldade consiste, como vimos, em admitir que o sentido e a linguagem
não se superpõem às relações econômicas e sociais, mas consistem em uma
dimensão constitutiva dessas relações.”44
Para Maingueneau o hiato assim criado entre o social-econômico e o lingüístico-
discursivo é ocupado pela noção de corpo, ou de ethos discursivo, que funciona como o
lugar real da contradição gerativa do texto. A extraterritorialidade entre o social e o
42 Apud Zizek, S. - Folha de S.Paulo - + autores: O novo eixo da luta de classes - 05/09/2004 43 Henry, P. – Os Fundamentos teóricos da “análise do discurso” de Michel Pecheux (1969) in Gadet, F e Hak, T. Por uma Análise Automática do Discurso, Unicamp, 1997. 44 Maingueneau, D. – Novas Tendências em Análise do Discurso, Pontes, Campinas, 1997:188.
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lingüistico aparece ainda em Greimas, por exemplo, quando este associa diretamente a
ideologia ao campo de produção do valor. Note-se como há novamente um lugar intervalar
entre o valor na acepção ético-sociológica e o valor em sua acepção lingüítico-discursiva
(lembremos para isso da noção de valor em Saussure). Como um nível de significação,
entre outros, a ideologia, impregna qualquer tipo de mensagem, podendo se manifestar em
qualquer matéria significante, sem qualquer participação subjetiva senão à da pura
determinação. A análise da cultura poderia se realizar, desta forma, independentemente da
análise da ideologia, ou seja, independentemente do valor que os homens acrescentam ao
simbólico, que é ao final apreensível como um puro sistema lógico45. Ou seja, a noção de
valor, de extração originariamente lingüística é empregada aqui sem deslocamento para a
teoria do valor, nos termos dos meios de produção (mais valia, em Marx) ou ainda, nos
termos do valor de gozo, que a aderência ideológica impinge ao sujeito (mais de gozar, em
Lacan).
Um autor que percebeu a importância estratégica da diferença entre espaço e lugar,
na análise do discurso da ideologia, foi Pêcheux:
“Os Aparelhos Ideológicos de Estado não são a expressão da dominação da
ideologia dominante, isto é, a ideologia da classe dominante, (...) mas o local, e o
meio de realização desta dominação. (...) A forma da contradição inerente à luta
ideológica de classes, entre as duas classes antagônicas, não é simétrica, no sentido
de que cada classe tenta obter em seu próprio benefício a mesma coisa que a outra
(...) [muitas concepções de ideologia] tomam por fato evidente, antes da luta, que a
“sociedade” existe (com o Estado acima dela) como um espaço, como o terreno
dessa luta.”46
Ou seja, pode-se dizer que Pechêux está chamando a atenção para o falso universal
que se infiltra em teorias sobre o discurso ideológico quando estas trabalham apenas no
registro dos lugares discursivos supondo sua unificação em um espaço comum anterior.
Além disso, sua distinção em termos da não simetria dos lugares ideológicos do discurso,
que de desdobra na separação entre os tipos de ideologia (técnica e política), permite
45 Rector, M. – Para Ler Greimas, Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1978. 46 Pêcheux, M. – O mecanismo do (des) conhecimento ideológico, in Zizek, S. (org.) Um Mapa da Ideologia, Contraponto, Rio de Janeiro, 1994.
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reservar um lugar para o antagonismo que não pode ser resolvido em uma
comensurabilidade dos universos de discursos.
Outra estratégia para retomar o potencial crítico da noção de lugar pode ser
encontrada na hermenêutica crítica47 (Gadamer, Ricoeur, Habermas48). Para esta
perspectiva o funcionamento ideológico decorre de uma mistura de lugares: do mundo da
vida (Lebenswelt), como o mundo administrado, do sentido (Sinn) com a significação
(Bedeutung), da comunidade de sentido com a comunidade de interesses. Ricoeur49 isolou
bem a problemática da ideologia na hermenêutica crítica ao opor a ideologia do conflito a
qualquer preço com a ideologia da conciliação a qualquer preço. Estas duas categorias, que
são formas gerais de ideologia, transpõe para o universo da linguagem, o problema da
comensurabilidade entre diferentes sistemas simbólicos (intra e interculturais) e a
possibilidade de sua diluição ou pareamento com uma, e somente uma ordem simbólica.
Fica então em pendência a possibilidade de uma hermenêutica geral, baseada em uma
ontologia, como em Heidegger, ou se devemos nos contentar apenas com hermenêuticas
regionais (exegese bíblica, crítica literária, psicanálise) que se veriam limitadas por um
contexto de aplicação, ou seja, um lugar.
As estratégias ocidentais da ambiguação e a da desambiguação do discurso, as
políticas conflitantes do texto jurídico, moral ou religioso na modernidade, foram
brilhantemente examinada por Haroche50, em um trabalho de perspectiva histórico crítica.
Por este trabalho vemos que se as posições de interpretação podem ser isoladas em certos
lugares de discurso (instituições, gêneros, cânones ou tradições). A questão para a
hermenêutica crítica, com ou sem aporte pragmático, é sempre a da impossibilidade de um
lugar privilegiado para inferir o sentido (problema do círculo hermenêutico) e a da
impossibilidade de reduzir completamente uma posição interpretativa ao lugar de onde esta
procede (problema do horizonte de sentido). O risco ideológico da hermenêutica é sua
dificuldade em delimitar o que seria a linguagem em seu estado de autenticidade, em
oposição ao seu estado de inautenticidade – conforme o programa colocado por
47 Bleicher, J. – Hermenêutica Contemporânea, Edições 70, Rio de Janeiro, 1980. 48 Habermas, J. – Pensamento Pós Metafísico, Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1988. 49 Ricoeur, P. – Interpretação e Ideologias, Francisco Alves, São Paulo, 1983. 50 Haroche, C. – Fazer Dizer Querer Dizer, Hucitec, São Paulo, 1992.
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Heidegger51 -, ou ainda, o discurso sério do teatral - conforme a polêmica entre Derrida e
Searle52- e, finalmente, o jargão do discurso criador, conforme na chave crítica de Adorno
contra Heidegger:
“A mitologia lingüística e a reificação se mesclam com aquilo que faz a linguagem
atimitológica e racional. O jargão resulta praticável em toda escala, desde o sermão
até o anúncio publicitário. O medium do conceito se assemelha surpreendentemente
a seus costumes.”53
5. Posição
Nossa discussão acerca da tensão entre espaço e lugar na definição ideólógica de
discurso nos levou a introduzir a noção de posição como condicionada pela de lugar.
Posição nos remete à forma como, em um dado lugar encontramos uma enunciação
particular e não outra. É o tema dos personagens, dos atores sociais e dos movimentos de
grupo, na crítica literária. Na lingüística é a definição de discurso em Benveniste: “a língua
assumida pelo homem que fala”54. Na tradição crítica são as condições dialogais e de
enraizamento da linguagem na experiência que compõe, propriamente, uma narrativa,
segundo Benjamin55. Na filosofia da linguagem são as razões que conferem a força e
felicidade a um ato de fala, segundo a teoria dos atos de fala de Searle56. Como nos
mostraram Barthes57 e Todorov58 a partir de análises centradas na noção posicional de
significante, pode-se descrever sistemas os mais diversos como a moda, as práticas de
adivinhação além das formas da literatura ou do cinema, tendo em vista a estrutura do signo
51 “Não podemos mais considerar a linguagem segundo as representações tradicionais de energia, atividade, trabalho, força do espírito, visão de mundo, expressão, pelos quais assumimos a linguagem como um caso particular de algo universal. Ao invés de esclarecer a linguagem como isso ou aquilo e assim fugirmos da linguagem, o caminho para a linguagem deve permitir a experiência da linguagem como linguagem.” In Heidegger, M. – A Caminho da Linguagem, Vozes, Petrópolis, 2003:199. 52 Derrida, J. – Ltd. Inc, Papirus, Campinas, 1995. 53 Adorno, T.W. – La Ideologia como Lenguaje – la jerga de la autenticidad, Taurus, Madrid, 1982. 54 Benveniste, E. – Observações sobre a função da linguagem na descoberta freudiana, in Problemas de Lingüística Geral I, Pontes, Campinas, 1995:81. 55 Benjamin, W. – O Narrador, considerações sobre a obra de V. Leskov, in Walter Benjamin Obras Escolhidas, Brasiliense, São Paulo, 1982. 56 Searle, J. – Expressão e Significado, Martins Fontes, São Paulo, 1995. 57 Barthes, R. – Introdução à análise estrutural da narrativa, in Análise Estrutural da Narrativa, Vozes, Petrópolis, 1971. 58 Todorov, T. – Os Gêneros do Discurso, Martins Fontes, São Paulo, 1980.
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DUNKER, C. I. L. - Discurso e Ideologia In: Re-Discutir Texto, Gênero e Discurso. São Paulo : Parábola, 2008, v.2, p. 185-214.
e o jogo diferencial entre seus elementos. Ou seja, quando estamos no nível da posição a
articulação crítica da ideologia nos faz perguntar: Quem pode falar o que para quem ?
Gramsci introduziu a noção de posição ao distinguir a guerra de posições da guerra
de movimentos, enfatizando que no primeiro caso trata-se de decifrar a organização do
consentimento59, a forma pela qual o poder estabelece seu funcionamento nos “corações e
mentes” e não apenas na obediência contingencial. Ou seja, a regra geral do funcionamento
ideológico é de que as posições, sejam elas quais forem, tendem a se organizar de modo
tendente à hegemonia. Neste movimento uma posição pode absorver, ideologicamente, uma
posição aparentemente contrária ou ainda, pré-estabelecer o lugar e a forma de contra-
poder, de resistência ou contradiscurso para manter a hegemonia. Em Hegemonia e
Estratégia Socialista60, Laclau e Mouffe insistem sobre a condição negativa das posições
que sustentam a hegemonia ideológica, ou seja, ela se enuncia de um lugar como “a”
sociedade ou de um espaço como “a” política, cuja unidade e positividade é mantida
apenas pelo movimento do discurso. Uma conseqüência da hipertrofia da noção de posição
no contexto do pós-marxismo é seu gradual descolamento da noção de classe, de onde
procede originariamente. Ou seja, a posição de classe, e sua ideologia específica, seria uma
entre outras posições que se articulam em torno da hegemonia. Tão importante como ela, e
irredutível a ela, são as posições de gênero e de identidade. Virtualmente qualquer
significante, desde que tomado em uma certa posição específica pode ocupar o lugar de
representante geral da hegemonia. Chegamos assim à noção de basteamento ideológico,
proposta por Zizek. Este furo constitutivo do espaço discursivo da ideologia é remediado
pelo basteamento ideológico. O basteamento é uma operação elementar de produção da
significação á partir do qual um significante, colocado em posição de mestria, retroage
sobre a cadeia conferindo-lhe significação e fazendo consistir um saber. O ponto de basta
inverte a falta representada pela exceção sintomática em uma confirmação de sua
“supremacia” sobre a realidade. É que vimos na reversão interpretativa que Napoleão faz
do projeto dos Ideólogos do século XVIII. O sintoma social, ao qual aludimos
59 Barret, M. – Ideologia, Política e Hegemonia: de Gramsci a Laclau e Mouffe, in Um Mapa da Ideologia, Zizek, S. (org.), Contracapa, Rio de Janeiro, 1994. 60 Laclau, E. e Mouffe, C. – Hegemony and Socialist Strategy, London, verso, 1985.
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DUNKER, C. I. L. - Discurso e Ideologia In: Re-Discutir Texto, Gênero e Discurso. São Paulo : Parábola, 2008, v.2, p. 185-214.
anteriormente, pode ser compreendido assim como uma resposta ao basteamento
ideológico. Uma resposta que porta a verdade de sua incompletude.
“Eis aí, portanto, o paradoxo fundamental do “ponto de basta”: o elemento da cadeia
que totaliza e estabiliza sua significação, que detém seu deslizamento metonímico,
não é o ponto de “plenitude” da significação, (...) Ele é “diferença pura”: o elemento
cujo papel é puramente estrutural, cuja natureza é puramente “performativa”, isto é,
cuja significação coincide com seu próprio ato de enunciação – o “significante sem
significado.”61
A ideologia discursiva opera, portanto, não apenas construindo falsos universais,
mas também produzindo falsos particulares. Em direção semelhante um autor como
Eagleton62 tem mostrado como a reflexão sobre a ideologia tem migrado e se absorvido
dramaticamente ao terreno da estética. Lembremos que é no terreno da estética que a
categoria de particular tem especial predominância. Segundo este autor, a articulação
ideológica tem se apropriado progressivamente de posições estéticas e a estetização da
política, da cultura e das relações intersubjetivas seria apenas a contraface ideológica de
uma nova forma de disseminação assumida pelo capital em tempos de pós-modernidade. O
recolhimento da discussão ideológica para o plano do particular, tem contribuído para o
entendimento da ideologia em termos dos jogos de linguagem notadamente presentes em
demandas ligadas a movimentos sociais e minorias. A superação desta “hiper-
segmentação” ideológica parece ser o problema central em correntes como os estudos de
gênero (Gender Theory), a teoria feminista e os chamados estudos pós-coloniais.
Prosseguindo nesta direção encontraremos autores que apontam uma espécie de
descortinamento do funcionamento ideológico que pode apresentar explicitamente a forma
como produz a ilusão ideológica e manter-se eficaz apesar disso. Neste caso encontraremos
a ideologia se convertendo explicitamente em biopoder (Agamben63), no discurso cínico
(Zizek64), ou ainda, para citar um estudo brasileiro, na fetichização da marca (Fontenelle65).
61 Zizek, S. – O Mais Sublime dos Histéricos, Jorge Zahar, 1991: 199. 62 Eagleton, T. – A ideologia da estética, Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1993. 63 Aganben, G. – Homo Sacer – o poder soberano e a vida nua, UFMG, Belo Horizonte, 2002. 64 Zizek, S. – For They know not what they do, Verso, London, 2002. 65 Fontenelle, I.A. – O Nome da Marca – McDonald´s, fetichismo e cultura descartável, Boitempo, São Paulo, 2002.
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Aqui encontramos, no quadro do método arqueológico de Foucault, o eixo dos
conceitos e das estratégias. É o plano do domínio de validade e de normatividade de um
discurso considerado em sua eficácia para fazer dizer, obrigar a dizer ou silenciar. No
âmbito da análise de posições deve-se considerar o discurso em seus pontos de remanência,
de retorno ou reinício, suas recorrências retóricas bem como sob o ângulo da seleção do que
deve ser lembrado e do que cabe ser esquecido. Foucault também se refere, neste plano, aos
procedimentos de intervenção realizados por um discurso, as técnicas de reescrita
(paráfrase), de transcrição (polisemia), transferência (iteração) ou citação (parasitagem). No
plano da formação discursiva a análise da posição ideológica vem se apoiando fortemente
nas noções de heterogeneidade constitutiva e heterogeneidade mostrada66
No caso específico da estratégia geral do discurso ideológico Thompson67 mostrou
como este recorre sistematicamente a certas estratégias típicas de legitimação
(racionalização, universalização narrativização), dissimulação (deslocamento, eufemismo),
unificação (estandardização), fragmentação (diferenciação, exclusão da alteridade) e
reificação (naturalização, eternalização, nominalização). Ocorre que uma descrição das
principais estratégias retóricas, argumentativas ou formais do discurso ideológico é
insuficiente para abordar criticamente o plano da dominação e o nível da historicidade. Isso
ocorre por que, como apontou Ducrot68, não se pode traçar uma separação estrita entre o
nível descritivo e o nível argumentativo da linguagem. Também Laclau69 mostrou que a
ideologia funciona capturando “significantes flutuantes” cujo sentido é fixado por sua
articulação hegemônica. Portanto o nível da análise posicional pode subverter a
configuração de lugares ao qual, teoricamente, estaria constrangido.
O trabalho de Jameson70 sobre o tema da interpretação é muito útil para mostrar
como o nível das posições discursivas não está necessariamente contido e submetido aos
lugares discursivos que geram sua produção. O argumento de Jameson é particularmente
convincente no terreno da constituição da história ao mostrar que a análise da narrativa
66 Maingueneau, D. – Novas Tendências em Análise do Discurso, Pontes, Unicamp, Campinas, 1997 67 Thompson, J.B. – Ideologia e Cultura Moderna, Vozes, Rio de Janeiro, 1990:81. 68 Ducrot, O. – O Dizer e o Dito, POntes, Campinas, 1987. 69 op. cit. 70 Jameson, F. – A interpretação: a literatura como ato socialmente simbólico, in O Inconsciente Político, Ática, São Paulo, 1992:75.
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DUNKER, C. I. L. - Discurso e Ideologia In: Re-Discutir Texto, Gênero e Discurso. São Paulo : Parábola, 2008, v.2, p. 185-214.
deve enfatizar o ato social simbólico que ela produz e evitar o risco de submeter o texto a
uma narrativa mestre teoricamente mais verdadeira. Ou seja, não é o contexto que gera a
narrativa, mas o ato que cria seu próprio contexto. Em certa medida a crença na
consistência da noção de contexto é, em si mesma um traço ideológico. Há, portanto, certos
movimentos posicionais do discurso que subvertem o lugar que os tornou possível.
“Essa História – a causa ausente” de Althusser e o “Real” de Lacan – não é um
texto, pois é fundamentalmente não-narrativa e não-representacional; contudo,
pode-se acrescentar a isso a condição de que a História, a não ser sob a forma
textual, nos é inacessível, ou seja, só pode ser abordada por meio de uma
(re)textualização anterior.”71
Ou seja, o nível tático ou posicional da análise ideológica do discurso não pode ser
compreendido nem como a mera descrição formal de um funcionamento de linguagem,
nem pela hermenêutica do englobamento de um discurso em outro, mas deve oferecer
espaço teórico para a contingência de um novo ato. Este ato real pressupõe e reorganiza a
estrutura de ficção simbólica que o torna possível e corresponde a um momento temporal
da verdade. Encontramos aqui a tese de Lacan de que a verdade possui estrutura de ficção.
É pelo jogo de posições que a ficção torna possível que se pode depreender o instante de
verdade, sem que este se prolongue ou se absorva integralmente na própria continuidade da
narrativa. Badiou72 vem desenvolvendo esta idéia, no plano da análise da estética e da
política, recorrendo às categorias de evento (real) e de filiação (simbólica) de modo a
reintroduzir a noção de verdade no quadro da análise discursiva da ideologia.
Podemos voltar agora à noção de ideologia de modo a perceber como esta pressupõe
continuidade e homogeneidade entre o universal do espaço da linguagem, o real dos lugares
sociais e a verdade das posições subjetivas. Esta coincidência vertical, entre os níveis
discursivos, acrescida da neutralização horizontal, entre os elementos de um mesmo estrato
de linguagem, traduz e condensa uma série de propriedades apontadas pelos teóricos da
ideologia, por exemplo:
71 Jameson, F. – A interpretação: a literatura como ato socialmente simbólico, in O Inconsciente Político, Ática, São Paulo, 1992:75. 72 Badiou, A. – O Ser e o Evento, Jorge Zahar-UFRJ, Rio de Janeiro, 1996.
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DUNKER, C. I. L. - Discurso e Ideologia In: Re-Discutir Texto, Gênero e Discurso. São Paulo : Parábola, 2008, v.2, p. 185-214.
“(...) o discurso ideológico é aquele que pretende coincidir com as coisas, anular a
diferença entre o pensar o dizer e o ser e, destarte, engendrar uma lógica da
identificação que unifique pensamento, linguagem e realidade para, através desta
lógica, obter a identificação de todos os sujeitos sociais com uma imagem particular
universalizada, isto é, a imagem da classe dominante.”73
Torna-se, portanto, tarefa da análise crítica da ideologia mostrar como o espaço
projetado pelo discurso, particularmente o discurso hegemônico, é apenas uma
possibilidade, politicamente determinada. A universalidade que este engendra é apenas uma
forma de elidir uma impossibilidade real. Em segundo movimento trata-se de mostrar que
os lugares que o discurso prescreve, por exemplo, na constituição de sujeitos e nas formas
de interpelação, são formas de elidir a contradição e o antagonismo social. Finalmente uma
análise radical da ideologia deve mostrar como, no quadro de narrativas específicas, ou de
jogos de linguagem concretos, uma determinada posição subjetiva se sustenta e se reproduz
a partir de uma ilusão estruturante ou fantasia fundamental, que permite estabilizar a
historicidade do discurso. Concluímos que o caráter ideológico do discurso não pode ser
apreendido pela análise isolada ou interna de uma de suas incidências. O que torna
ideológico o discurso é sua articulação, ou seja, sua transversalidade não contraditória entre
espaço, lugar e posição.
6. Conclusão
Espero ter mostrado, neste breve e assistemático percurso acerca das relações entre
discurso e ideologia, que a força metodológica e crítica da noção de ideologia reside na sua
relativa limitação e especificidade. Não há muitos ganhos em diluir a noção de ideologia de
tal forma que esta se confunda com a totalidade do universo discursivo ou com a
particularidade de um gênero expressivo. Além disso, a noção de ideologia surge em um
contexto simultaneamente epistemológico (a ciência das idéias), político (a reversão
napoleônica) e histórico (o materialismo histórico). Procurei mostrar como a separação
destas três “vocações” tem sido problemática para a crítica da ideologia.
73 Chauí, M. – O discurso competente, in Chauí, M. Cultura e Democracia, Cortez, São Paulo, 1990.
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A destinação marxista do conceito só fez acentuar a tensão entre estas três
dimensões, recolocando, portanto, uma exigência de renovação epistemológica, política e
histórica a cada nova redescrição. O trabalho crítico, no qual a utilização desta noção
propriamente se inscreve, depende da manutenção desta tensão. Tensão que desaparece,
neutralizando o conceito, quando se passa diretamente do espaço ao lugar e do lugar à
posição na análise da ideologia. Não há homogeneidade nem passagem dedutiva de uma
categoria para outra. Quando se revela confiança demasiada na extraterritorialidade entre
política, epistemologia e história, discurso e ideologia tendem a se autonomizar enquanto
categorias independentes, a se sobrepor em categorias indiscerníveis ou ainda a se
subordinar em projetos de neutralização parcial.
A heterogeneidade das relações entre discurso e ideologia pode ser abordada
preservando-se os diferentes aspectos do problema, que aqui delimitamos pelas noções de
espaço, lugar e posição. Cada uma destas noções, como vimos, pode servir como um
mediador para a análise das relações entre discurso e ideologia. São compatíveis tanto com
o universo topográfico da conceitografia da análise de discurso e das ciências da linguagem
em geral, como com as acepções políticas e éticas envolvidas no conceito de ideologia. Está
ainda por se realizar um debate que possa fazer confluir, neste cenário, as tradições
formalistas de descrição do funcionamento discursivo com as tradições crítica, sociológica
e psicanalítica. Tal debate deverá enfrentar, em bases menos exclusivistas e derrogatórias o
problema da universalidade, da verdade e do real. A maré pós-estruturalista,
desconstrutivista e pós-moderna parece ter assoreado estas noções. Deve-se salientar, não
sem o expressivo apoio da filosofia analítica e da pragmática. No entanto, ainda é possível
refazer alguns aspectos do destino histórico da idéia de ideologia valorizando seu
enraizamento tenso e heterogêneo de suas categorias .