sobre medo e superstição em Spinosa

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Universidade de São Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Sociais FLF0238 História da Filosofia Moderna I, Prof. Dr. Homero Santiago Eduardo Pereira Batista Sobre o medo e a superstição em Espinosa Comente a seguinte passagem à luz de Espinosa: “No idioma dos primórdios da filosofia européia, a comunicação do medo era chamada de superstição. E de fato a política do medo sempre foi espalhada por uma espécie de superstição.” Michael Hardt, Antonio Negri, Império, trad. bras. Berilo Vargas, Rio de Janeiro, Record, 2005, p. 344. 1. Émile Benveniste mostra, em O Vocabulário das Instituições Indo-Européias, como as noções de religião e superstição estavam intimamente relacionadas. O linguista francês, recusando a interpretação cristã do termo religio por re-ligare, afirma que, por razões semânticas e morfológicas, religio está associado a relegere, donde, por extensão de sentido, “religio ‘escrúpulo religioso‘ é portanto, em sua origem, uma disposição subjetiva, um movimento reflexivo relacionado a qualquer temor de caráter religioso”. Já o substantivo superstitio, entre o particípio superstes (sobrevivente, testemunha) e o adjetivo superstitiosus (que qualifica o adivinho), “é originalmente a faculdade de testemunhar, de imediato, o que foi abolido, revelando o invisível”. O desenvolvimento semântico de supertitio, segundo Benveniste, foi inaugurado pelos romanos, a quem devemos o sentido pejorativo do termo, como antítese de religio; para os romanos, “fiéis aos augúrios oficiais”, as práticas divinatórias que caracterizam a dupla visão eram consideradas pueris e desprezíveis. Assim, o homem religiosus se tornou a antítese do homem superstitiosus, isto é, aquele que crê ou que pratica uma falsa religião. Com o advento do cristianismo como religião oficial do Império Romano, em 380 d.C, com Teodósio I, a noção de superstição se expande para todas as crenças e práticas não cristãs. Agora, o homem religioso presta culto a um único Deus; sendo único, há tão somente uma única religião, de modo que o religioso é, por excelência, o católico apostólico romano; e assim as demais crenças e práticas - que não às vinculadas a essa matriz - dizem respeito ao supersticioso. Mas cristianismo se diz de muitos modos. Em Mito e Mitologia, Walter Burket nos mostra como o Cristianismo rompe com a tradição

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Trabalho final apresentado na disciplina do prof. Homero Santiago, em 2013, sobre os conceitos de medo e superstição em Espinosa. O artigo busca dialogar à luz de Espinosa com uma passagem de Império de Antonio Negri.

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Universidade de São Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Sociais FLF0238 História da Filosofia Moderna I, Prof. Dr. Homero Santiago Eduardo Pereira Batista

Sobre o medo e a superstição em Espinosa

Comente a seguinte passagem à luz de Espinosa:

“No idioma dos primórdios da filosofia européia, a comunicação do medo era chamada de

superstição. E de fato a política do medo sempre foi espalhada por uma espécie de superstição.”

Michael Hardt, Antonio Negri, Império, trad. bras. Berilo Vargas, Rio de Janeiro, Record, 2005, p. 344.

1.

Émile Benveniste mostra, em O Vocabulário das Instituições Indo-Européias,

como as noções de religião e superstição estavam intimamente relacionadas. O linguista

francês, recusando a interpretação cristã do termo religio por re-ligare, afirma que, por

razões semânticas e morfológicas, religio está associado a relegere, donde, por extensão

de sentido, “religio ‘escrúpulo religioso‘ é portanto, em sua origem, uma disposição

subjetiva, um movimento reflexivo relacionado a qualquer temor de caráter religioso”. Já o

substantivo superstitio, entre o particípio superstes (sobrevivente, testemunha) e o

adjetivo superstitiosus (que qualifica o adivinho), “é originalmente a faculdade de

testemunhar, de imediato, o que foi abolido, revelando o invisível”. O desenvolvimento

semântico de supertitio, segundo Benveniste, foi inaugurado pelos romanos, a quem

devemos o sentido pejorativo do termo, como antítese de religio; para os romanos, “fiéis

aos augúrios oficiais”, as práticas divinatórias que caracterizam a dupla visão eram

consideradas pueris e desprezíveis. Assim, o homem religiosus se tornou a antítese do

homem superstitiosus, isto é, aquele que crê ou que pratica uma falsa religião.

Com o advento do cristianismo como religião oficial do Império Romano, em 380

d.C, com Teodósio I, a noção de superstição se expande para todas as crenças e práticas

não cristãs. Agora, o homem religioso presta culto a um único Deus; sendo único, há tão

somente uma única religião, de modo que o religioso é, por excelência, o católico

apostólico romano; e assim as demais crenças e práticas - que não às vinculadas a essa

matriz - dizem respeito ao supersticioso. Mas cristianismo se diz de muitos modos. Em

Mito e Mitologia, Walter Burket nos mostra como o Cristianismo rompe com a tradição

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antiga dos mitos; por meio da Escritura, a doutrina cristã, afirma Burket, “exige antes de

tudo estar rigorosa e genericamente certa para os homens”1, ao contrário dos mitos,

segundo os quais têm em vista a explicação da realidade por meio de uma narrativa

aplicada; o mito explica a realidade contando histórias, a palavra do Senhor se aplica à

realidade por meio de uma instrução autoritária. O dogmatismo cristão não tem piedade

nem mesmo de seus seguidores que tentaram uma outra exegese, como a exemplo do

movimento gnóstico, citado por Burket, o qual [tal movimento] “juntamente com sua

literatura, foi acusado de heresia pela Igreja do Estado, aniquilado com todas as forças”2.

Com efeito, Antonio Gramsci nos indica, em Cadernos do Cárcere, como a

instituição da Igreja Católica pelo Estado romano agiu, desde sua instituição, separando

os intelectuais da maioria dos fiéis, os homens simples; ora pela destruição, sob a mira da

acusação de heresia (como vimos acima, com Burket), ora pela separação, “formando

novas ordens religiosas em torno de uma forte personalidade”3 - separação que foi

necessária aos interesses da Igreja. Segundo Gramsci, essa estratégia política da Igreja

teve seu último lance de dados com a instituição da Companhia de Jesus no período da

Contra Reforma - no qual vivia Baruch de Espinosa. Cito Gramsci: “a Companhia de

Jesus é a última grande ordem religiosa, de origem reacionária e autoritária, com carácter

repressivo e ‘diplomático’, que assinalou, com seu nascimento, o enrijecimento do

organismo católico”4. Essa grande ruptura separou de uma vez por todas o intelectual do

homem simples, ou seja, instituiu com isso um cristianismo ingênuo distinto de um

cristianismo jesuitizado, um verdadeiro partido avant la lettre. Ruptura que, como veremos

adiante, será antípoda à filosofia de Espinosa.

2.

“A fantasia tanto é mais robusta quanto é mais débil o raciocínio”5. Sob o signo da

fantasia, poderíamos assim ler o ato da criação, no Gênesis. Homem e mulher habitavam

o jardim do Éden; seres viventes, o primeiro havia sido forjado do barro e animado por um

sopro de vida que nas narinas o Senhor lhe insuflou e a segunda foi metamorfoseada da

costela do homem a quem Deus havia enviado um sono profundo. A vida próspera e feliz 1 Burket, W. Mito e Mitologia, ...p.77-78. 2 Idem, p.78. 3 Gramsci, A. Appunti per una introduzione e un avviamento allo studio della filosofia e della storia della cultura. in: Quaderni del Carcere. vol. 2. Quaderni 6. 4 Idem 5 Vico, G. La Scienza Nuova. Principio XXXVI, 2004, p.193.

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do Éden seguia seu curso até o momento em que a astuta serpente persuadiu a mulher

que temia comer do fruto proibido, o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. E

depois de ter comido, a mulher apresentou o fruto ao homem. Pobres criaturas, adeus

inocência! E quando ouviram os passos do Senhor, o casal que agora percebia sua

nudez, escondeu-se em meio aos arbustos. E deus perguntou ao homem onde estava e

ele respondeu: “ouvi o barulho de vossos passos no jardim; tive medo porque estou nu”6.

Na tradição judaico-cristã, desde a desobediência original, homem e mulher têm

medo de Deus. Têm medo dos castigos divinos, como pena dos pecados; têm medo das

provações do Senhor e das tentações do Diabo; têm medo do julgamento post mortem. O

medo é propriamente um princípio moral que deve orientar forçosamente o homem às

boas palavras e ações, boas segundo a palavra do Senhor - que fala não a todos os

homens, mas apenas a uma pequena porção de homens: os profetas. Dentre os servos

do Senhor, cuja função é comunicar o inaudível a maioria dos homens, está Jó. Esse,

voltado sempre a Deus7, resiliente a toda sorte de provações, continuou a proclamar a

origem da sabedoria e da inteligência, em presença de seus três amigos que por

misericórdia havia ido lhe visitar: “o temor do Senhor, eis a sabedoria; fugir do mal, eis a

inteligência”8. O profeta indica aos homens o caminho para o Bem, mostra - a exemplo de

sua vida desgraçada - o modo de bem agir, coagido pela sábia força divina. O medo, mais

precisamente, o temor a Deus deve guiar os passos dos homens na sua efêmera

passagem na terra; e coube aos homens - a pouquíssimos homens - o desígnio de

constituir uma ciência (ora teórica, ora prática9) a fim de conhecer os assuntos divinos e

as verdades sagradas.

3.

Sob o império da teologia, a moral cristã desvia os homens do mal, salvando suas

almas; o inferno ainda pode ser evitado, há contudo uma esperança; assim, tendo suas

6 Gênesis, 3:10. Grifo nosso. 7 Jó ou Job (em hebraico: ִאּיֹוב), cujo nome significa voltado sempre para Deus, é um personagem de um dos livros mais antigos da Bíblia, isto é, o Livro de Jó do Antigo Testamento. Ele foi um homem que viveu na terra de Uz, onde atualmente se encontra o Iraque. In: http://pt.wikipedia.org/wiki/Jó 8 Jó, 28:28. 9 De acordo com Abbagnano, pode-se distinguir a Teologia, na história da filosofia, entre 1) T. metafísica; 2) T. natural; 3) T. revelada; e 4) T. negativa. Interessa-nos aqui precisamente a noção de Teologia revelada ou sagrada que, na concepção tomista, a doutrina sagrada é uma ciência e visto que seus princípios são obtidos da revelação, a Teologia é uma ciência teorética; por outro lado, na concepção do franciscano Duns Scot, a Teologia é uma ciência puramente prática cujo fim consiste em persuadir o homem a agir com vistas a própria salvação. Ver Abbagnano, N. Diccionario de Filosfía, 1997.

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ações sempre vigiadas pelos olhos que tudo vêem, os homens devem agir de acordo com

a sagrada palavra. Caso contrário, em vida e pós morte, os homens sentiram no corpo e

na alma os castigos de Deus. Eis a inteligência e sabedoria! A soberania da filosofia

escolástica só irá ter fim com o pensamento moderno. Somente com René Descartes, em

O Discurso do Método, a filosofia se distingue de uma vez por todas da teologia, uma

vez que não se pode aplicar o espírito naquelas matérias que estão acima da inteligência

humana; as verdades reveladas são, para Descartes, matérias da teologia, cujo caminho

está aberto tanto ao ignorante quanto ao mais douto dos homens. É pois uma questão de

fé. Por outro lado, é necessário estabelecer um método à ciência e à filosofia - na medida

em que toda ciência tem seus princípios na filosofia. E, ao contrário da teologia, cujas

verdades são reveladas, o método cartesiano para bem assentar as verdades indubitáveis

resultantes da investigação científica deve primeiro estabelecer uma moral provisória, cuja

primeira máxima será justamente a de obedecer às leis e os costumes de seu pais,

“retendo”, afirma Descartes, ”constantemente a religião em que Deus me concedeu a

graça de ser instruído desde a infância”10.

Na esteira do racionalismo cartesiano, Espinosa segue com sua filosofia à parte da

teologia. Contudo, estar distante da teologia e de suas questões disputadas não é o

mesmo que afastar-se de Deus ou, mais precisamente, da ideia do Ser absolutamente

perfeito. Tal como Descartes, Espinosa não assume uma posição contrária a palavra da

Sagrada Escritura - embora tenha sido excomungado e acusado de heresia. E graças a

luz natural concedida ao homem, é possível entender como os profetas comunicaram aos

seus semelhantes as verdades reveladas. Nessa perspectiva é que Espinosa empreende

sua interpretação da Bíblia: “recusando-me a afirmar ou a admitir como sua doutrina tudo

o que dela não ressalte com toda clareza”11. Por isso, Espinosa afirma, primeiro, em

Pensamentos Metafísicos, que “as Escrituras nada ensinam que contrarie a Luz Natural”

e, depois, no Prefácio ao Tratado Teológico Político, que “não há naquilo que a

Escritura expressamente ensina, nada que não estivesse de acordo com o entendimento

ou lhe repugnasse”. Portanto, diante disso, não podemos concordar com a posição de Leo

Strauss, em Jerusalém e Atenas, segundo a qual Espinosa parece ter lançado mão de

uma trapaça conceitual, uma vez que a sua crítica da Bíblia “pressupõe a impossibilidade

10 Descartes, R. Discurso do Método. Terceira Parte. 11 Espinosa, Prefácio ao Tratado Teológico Político.

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de milagres”12. Espinosa não pressupõe tal impossibilidade, ele a demonstra; pois não há

nada que exista na natureza se não pela essência de Deus. E a condição de possibilidade

do miraculum é justamente a existência de um mundo extra natural - o que, para

Espinosa, é impossível. A narrativa bíblica, diz Espinosa, “deixa a razão em absoluta

liberdade” a fim de que o entendimento apreenda de modo claro e distinto aquelas coisas

“simples e acessíveis” que, tomados pela palavra do Senhor, os profetas comunicaram de

maneira a “incitar o ânimo da multidão à devoção para com Deus”.

4.

Tendo uma vez considerado que os homens interpretam os fenômenos naturais à

luz de seus preconceitos (praejudicia) e que sem saber a causa de tais fenômenos, no

prefácio ao Tratado Teológico Político, Espinosa conclui que: “Tantum timor homines

insanire facit. Causa itaque, a qua superstitio oritur, conservatur, et fovetur, metus est”13.

(Tamanho temor faz ensandecer os homens. E o medo é também a causa pela qual

nasce, conserva-se e se alimenta a superstição). Nesse sentido, a exegese espinosana

tem com objetivo apontar para os preconceitos incrustados na mente do vulgo, o qual por

ignorar as causas dos fenômenos naturais atribui tudo à vontade de Deus. Fato que para

Espinosa é impossível, pois somos incapazes de saber como a essência, o intelecto e a

vontade de Deus não se distinguem14; pois, vontade e potência divinas se exprimem da

própria essência de Deus, ou seja, que da substância absolutamente infinita deve se

seguir necessariamente infinitas coisas, de infinitos modos15. Terremotos, pestes -

diríamos hoje enchentes, tsunamis, furacões etc. - quer queiramos ou não seguem-se

necessariamente da essência de Deus e pela nossa faculdade da razão, pelo

entendimento humano, podemos conhecer suas causas. Ademais, na Ética (pela def. VII,

p.I) Deus é livre, isto é, “existe exclusivamente pela necessidade de sua natureza e que 12 Cito integralmente a passagem: “A critica a Bíblia alcançou seu primeiro clímax no Tratado Teológico-Político de Espinosa, que é abertamente anti-teológico; Espinosa leu a Bíblia assim com leu o Talmud e o Corão. O resultado desta critica pode ser resumido assim: a Bíblia consiste em grande parte de afirmações auto-contraditórias, de remanescentes de antigos preconceitos ou superstições e de uma enxurrada de imaginação sem controle; alem do mais, é pobremente compilada e pobremente preservada. Ele chegou a esta conclusão pressupondo a impossibilidade de milagres”. � (destaque nosso) 13 Cito o texto da edição Carl Gebhardt, com a tradução caseira que, ao contrário da tradução portuguesa, distingue os termos timor e metus. A tradução de Diogo Pires Aurélio deixa também escapar o termo affectus por paixão. Sabemos o que, desde o estoicismo, a tradição filosófica entende por paixão (que verte o termo grego pathos e o latino passio), como aquilo que estorva a razão e que o sábio deve se livrar em nome da constância de sua alma. 14 Espinosa. Pensamentos Metafísicos, cap. VIII. 15 Espinosa. Ética, I, prop. 16.

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por si só é determinada a agir”. Nada pode coagir a substância; e (pela def. I, p.I) sendo

causa de si, “sua essência envolve a existência”. Deus é livre e causa de si e, por isso,

não pode ser forçado a agir por qualquer que seja a causa.

Interpretam os fenômenos naturais à luz de seus preconceitos. Praejudicia são pré

juízos, são anteriores à razão; e depois de formados, os preconceitos se instalam na

mente. Mas um em especial é causa de muitos outros e a este preconceito Espinosa se

volta no Apêndice da Parte I da Ética: o modo de pensar e agir pela causa final. O

finalismo reduz a potência de pensar e agir; é uma espécie de fingimento humano, pois

julgamos conhecer algo deduzindo a série causal que a engendrou até a última causa, ou

seja, pelo encadeamento de causas e efeitos, o intelecto busca pela causa próxima

conhecer a essência das coisas. Mediante este preconceito, a mente é incapaz de

raciocinar na devida ordem, e concebe tudo com vistas a um certo fim, invertendo a

ordem das razões; toma a causa pelo efeito e o efeito pela causa. Um verdadeiro quid pro

quo. Dessa maneira, a mente estabelece uma série causal de modo inadequada, pois

uma vez que ela raciocina a partir de uma ideia falsa, ou seja, tomando como causa

primeira uma ideia inadequada da essência formal do Ser absolutamente perfeito, segue-

se que todas as demais ideias - essências objetivas - são necessariamente falsas.

Decorre, então, que a mente imagina que Deus cria algo com tais e tais propósitos; e que

algo existe em função de tais e tais fins. Ademais, nada garante que o encadeamento

dessa série causal, a conjunção de um evento a outro, seja necessário, pois a norma da

verdade não foi devidamente estabelecida. Deus, nesse sentido, é definido por negação:

Deus age não porque é livre e causa de si, mas age por causa de algo, em função de um

fim. O que resulta ser falso, pois, sendo a existência de Deus uma verdade eterna cuja

definição deve ser expressa pela sua positividade, Deus não pode ser concebido agindo

por causa de outra coisa.

O finalismo, dessa maneira, consiste em conceber Deus agindo em função de um

fim, de modo que tudo o que existe é em função de um fim. Mas como afinal nasce esse

preconceito na mente dos homens? Sigamos os argumentos do Apêndice: (i) que todos

os homens nascem ignorantes das causas das coisas e (ii) que que todos tendem buscar

o que lhes é útil, estando conscientes disso. E desprovido da ideia adequada do Ser

perfeitíssimo, os homens cometem o erro de, ao tomarem consciência de seus apetites e

volições, acreditar na liberdade de suas ações, como se elas não fossem determinadas

por outra coisa senão pela sua própria vontade, sempre com vistas àquelas coisas que

lhes são úteis. Para o finalista, Deus é causa final, ao contrário dos corolários da prop. 16,

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p.1 da Ética, a saber, que Deus é causa eficiente de todas as coisas; que é causa de si; e

que é causa primeira. E sendo causa final, o vulgo julga conhecer Deus pela causa

próxima. Eis a providência divina! Tudo foi criado por Deus em função de um fim e na

medida em que algo foi criado para tais e tais fins e ao homens cabem servir à Deus,

temendo que ele aja contrariamente aos seus desejos. Daí nasce a necessidade de

prestar culto a esse Deus. Assim, o vulgo julga ser capaz de adular Deus a fim de orientar

as ações divinas em função de sua própria utilidade. “Esse preconceito transformou-se,

assim, em superstição”, afirma Espinosa, “e criou profundas raízes em suas mentes,

fazendo com que cada um dedicasse o máximo de esforço para compreender e explicar

as causas finais de todas as coisas”16.

5.

A multidão, o vulgo e o leitor filósofo: a todos existe o risco da superstição. Nem os

homens ilustres estão livres dos preconceitos que ofuscam a luz natural. Nem mesmo

Alexandre, o Grande dela escapou, diante a derrota iminente; e a afastou tão logo lhe veio

a vitória gloriosa. A exemplo de homens ilustres, Espinosa nos mostra que não só o vulgo

está sujeito à superstição, mas que “os homens só se deixam dominar pela superstição

enquanto têm medo”17.

O que é, pois, o medo? Pela definição dos afetos, no final da Parte III, na Ética,

temos que o medo é um affectus inconstans, mais precisamente “o medo é uma tristeza

inconstante, surgida da ideia de uma coisa futura ou passada, de cuja realização temos

alguma dúvida”; seu contrário, “a esperança é uma alegria inconstante, surgida da ideia

de uma coisa futura ou passada, de cuja realização temos alguma dúvida”. E de tais

definições, explica Espinosa, segue-se que “não há medo sem esperança, nem

esperança sem medo”, de maneira que é impossível conceber um sem o outro. O par

medo e esperança é indissociável e, por isso, poderíamos dizer que os homens só se

deixam dominar pela superstição enquanto são afetados mais fortemente por uma tristeza

inconstante. Sendo um afeto, isto é, tanto as afecções do corpo, quanto as ideias dessas

afecções (pela def. 3, da p. 2) essa tristeza pode ser anulado por seu contrário mais forte,

um afeto alegre mais forte. Desse modo, a mente pode, pela inconstância desse par de

afetos, sofrer uma flutuação de ânimo, cujo estado torna o ser mais suscetível à 16 Ética, p.1, Apêndice. 17 TTP, Prefácio.

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superstição, isto é, tal estado envolve a possibilidade de se deixar dominar pela

superstição. Assim, a mente se encontra à deriva e, sendo bombardeada por ideias

confusas , ela se agarra a essas ideias como bóias salva vidas a fim de evitar seu

naufrágio.

6. Por fim, voltemos ao que havíamos deixado em suspenso: que a filosofia de

Espinosa é antípoda à doutrina cristã que graças a separação entre “o intelectual” e “os

homens comuns”, nas palavras de Gramsci, o “organismo católico” (pela prop. 6, p.3 da

Ética) esforça-se, tanto quanto está em si, por perseverar em seu ser. Eis o conatus do

organismo católico! Foi preciso à Igreja do Estado uma verdadeira política do medo, a

qual foi espalhada por uma espécie de superstição; não toda, mas em especial aquela

que pelo medo é capaz de controlar o modo de agir e pensar dos homens. E aquilo que a

massa de fiéis julga ser a liberdade - crendo ser livres ao agirem segundo o livre arbítrio -

é com efeito servidão. Mas a filosofia de Espinosa luta e se esforça em livrar o vulgo de

sua falsa consciência. Em um mundo onde todas as coisas são determinadas e a razão é

capaz de conhecer essas determinações, é impossível que Deus para Espinosa seja a

causa próxima de todas as coisas, como o imaginam aqueles que afirmam que Deus criou

todas as coisas em função de um fim. Não se trata de um problema meramente

linguístico, com cuja correção se desfaz o erro do vulgo. Pois, nem mesmo este é capaz

de conceber um triângulo quadrado, ut per se notum, uma vez que a definição de triângulo

contradiz a definição de quadrado; logo, quando tais nomes se agrupam para definir uma

coisa singular fica patente a impossibilidade de sua existência, ainda que seja possível,

no plano lingüístico, afirmar a existência de uma quimera. A positividade do conceito

espinosano de Deus deve ser expressa por uma afirmação intelectual, como afirma o

filósofo, no final do Tratado da Reforma do Intelecto, e não por uma simples

continguência nominal, tal qual parece crer Schopenhauer:

“Espinosa sobrecarregou-se de uma dificuldade de tipo especial, ao ter nomeado ‘Deus’ sua substância única, uma vez que essa palavra já era usada para designar um conceito completamente diferente. Ele teve de lutar continuamente contra o mal-entendido que surgiu do fato de que o leitor, ao invés do conceito que a palavra ‘Deus’ deve indicar, de acordo com as primeiras definições de Espinosa, ainda associa a ela o que antes costumava indicar. Se ele não tivesse se utilizado dessa palavra, então teria evitado

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longas e penosas discussões no primeiro livro. Mas fez isso para que sua doutrina encontrasse menos obstáculo – objetivo, no entanto que não foi atingido”18.

A filosofia de Espinosa, ao contrário, não tenta evitar obstáculos ao designar por

Deus (sive Natura) a ideia de Ser absolutamente perfeito. O suposto mal-entendido é,

com efeito, uma necessidade intrínseca de sua filosofia, pois uma vez que o filósofo por

seus instrumentos inatos conhece a essência íntima das coisas (intima essencia rerum),

ele, o filósofo, se esforça por comunicar e partilhar com o maior número possível de

homens, de modo que o filósofo tanto é mais feliz quanto mais ele for capaz de comunicar

aos outros homens o caminho de sua felicidade, atingido então a sua beatitude. Ao invés

de separar os homens e, pela doutrina, instaurar uma poderosa servidão, a filosofia

congrega os homens e, pela razão, aumenta sua potência de agir e pensar. “Assim”,

encerramos com Espinosa, “quanto mais nos esforçamos por viver sob a condução da

razão, tanto mais nos esforçamos por depender menos da esperança e por nos livrar do

medo”19.

Bibliografia BENVENISTE, E. Vocabulário das Instituições Indo-Européias. V.1. Trad. Denise B BURKET, W. Mito e Mitologia. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Edições 70,

s/d. GRAMSCI, A. Appunti per una introduzione e un avviamento allo studio della

filosofia e della storia della cultura. in: Quaderni del Carcere. vol. 2. Quaderni 6. A cura di Valentino Gerratana. Torino: Einaudi, 1977.

SCHOPENHAUER, A. Fragmentos para a historia da filosofia. Trad. Maria Lúcia Cacciola. São Paulo: Iluminuras, 2003.

SPINOSA, B. Ética. Trad. Tomaz Tadeu. Ed. bilingue. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. ___________.Tractatus Theologico-Politicus. In: Opera. v.3. Edição de Carl Gebhardt.

Heidelbergue: Carl Winters Universitaetbuchhandlung, 1973. ___________. Tratado Teológico-Político. Trad. Diogo Pires Aurélio. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1988. ___________. Pensamentos Metafísicos. In: Coleção Os Pensadores, vários tradutores. ___________. Tratado da Reforma do Intelecto. STRAUSS, L. Jerusalém e Atenas: algumas reflexões preliminares. Trad. Teresinha Costa e Marília Mazzucchelli.

18 Schopenhauer. Fragmentos para a história da filosofia. 19 Ética, p. 4, prop. 47.