Sobre o corpo e seu espaço: trânsito e interculturalidade em Amores Expressos

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Sobre o Corpo e Seu Espaço: Trânsito e Interculturalidade em Amores Expressos 1 Luana Mendonça Cabral 2 Universidade Federal do Esprito Santo !esumo O presente artigo tem como principal objetivo investigar a relação en Amores Expressos, dirigido pelo cineasta chinês Wong Kar Wai. Os corp de deslocar!se, por m desejo o ma necessidade de mobilidade, serão discssão acerca dos conceitos de intercltralidade e transitoriedad em #estão e #e contribem para ma certa reconfigração da relação cinema no contexto do cinema contempor$neo mndial. "alavras#c$ave %orpo. %inema contempor$neo. Wong Kar Wai. %inema chinês. &ntercltr Corpo do trabal$o Introduç%o Observa!se, na#ilo #e se entende por cinema contempor$neo, reali(adas desde meados dos anos )* at+ a atalidade, ma certa recon nos filmes. eali(adores atantes nesse per-odo, como sai /ing!0iang 4ennis, 5aomi Ka6ase, 7edro %osta e tantos otros são, em m srgimento de novas pol-ticas e po+ticas do corpo no cinema, #e reno representação, compreensão e afirmação dos corpos na tela. essaltemos, de antemão, #e essa otra abordagem do corpo se apresent obra de cada m dos cineastas citados, com a mesma plralidade de dis caracteri(a internamente o conjnto desses diversos cinemas. Ainda as ma reconfigração do corpo no cinema partindo de ma an"lise das sim gênese da abordagem desses cineastas8 não exatamente nos fins estil-s meios, relacionados 9 pr:pria trama o 9 constrção da mise!en!sc;ne. raro perpassa os meios e fins a#i citados = mais abrangente, relacio apreensão do corpo en#anto elemento de significação do filme espectador com o filme atrav+s das sperf-cies desses corpos, #e j" ser!personagem, constit-do primordialmente por sa alma, sa essênci sa totalidade a partir de sa presença no mndo, do cho#e e do cont @corpo sjeito do discrso BCEDE A, *F*, p. GH, vivo e atante. Assim, o espectador, em primeira inst$ncia, se envolve com o filme po essas sperf-cies e da apreensão de algo #e não di( respeito ao fio #e, de certa maneira, independe de ma lingagem, pendendo mais para cognitivo, como afirma IJlio Ce(erra em se ensaio @O corpo como cogito m cinema contempor$neo 9 l( de /erlea!7ontL B ***H. 5ele, o ator bsca rea entre a teoria do pensador francês e determinado filão do cinema con ambas as partes, ma afirmação do corpo como forma prim"ria de inscri F

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Resumo: O presente artigo tem como principal objetivo investigar a relação entre corpo e espaço no filme Amores Expressos, dirigido pelo cineasta chinês Wong Kar Wai. Os corpos, movidos pelo impulso de deslocar-se, por um desejo ou uma necessidade de mobilidade, serão o ponto de partida para uma discussão acerca dos conceitos de interculturalidade e transitoriedade, temáticas presentes no filme em questão e que contribuem para uma certa reconfiguração da relação entre corpo, espaço e cinema no contexto do cinema contemporâneo mundial.

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Sobre o Corpo e Seu Espao: Trnsito e Interculturalidade em Amores Expressos1Luana Mendona Cabral2Universidade Federal do Esprito Santo

Resumo

O presente artigo tem como principal objetivo investigar a relao entre corpo e espao no filme Amores Expressos, dirigido pelo cineasta chins Wong Kar Wai. Os corpos, movidos pelo impulso de deslocar-se, por um desejo ou uma necessidade de mobilidade, sero o ponto de partida para uma discusso acerca dos conceitos de interculturalidade e transitoriedade, temticas presentes no filme em questo e que contribuem para uma certa reconfigurao da relao entre corpo, espao e cinema no contexto do cinema contemporneo mundial.

Palavras-chaveCorpo. Cinema contemporneo. Wong Kar Wai. Cinema chins. Interculturalidade

Corpo do trabalho

IntroduoObserva-se, naquilo que se entende por cinema contemporneo, especialmente nas produes realizadas desde meados dos anos 90 at a atualidade, uma certa reconfigurao do papel do corpo nos filmes. Realizadores atuantes nesse perodo, como Tsai Ming-Liang, Gus Van Sant, Claire Dennis, Naomi Kawase, Pedro Costa e tantos outros so, em muito, os responsveis pelo surgimento de novas polticas e poticas do corpo no cinema, que renovam as estruturas de representao, compreenso e afirmao dos corpos na tela.

Ressaltemos, de antemo, que essa outra abordagem do corpo se apresenta de diferentes formas na obra de cada um dos cineastas citados, com a mesma pluralidade de discursos e estticas que caracteriza internamente o conjunto desses diversos cinemas. Ainda assim, possvel se falar de uma reconfigurao do corpo no cinema partindo de uma anlise das similaridades situadas na gnese da abordagem desses cineastas; no exatamente nos fins estilsticos ou discursivos, nem nos meios, relacionados prpria trama ou construo da mise-en-scne. H um sentido que no raro perpassa os meios e fins aqui citados mais abrangente, relacionado compreenso, apreenso do corpo enquanto elemento de significao do filme. priorizado o contato do espectador com o filme atravs das superfcies desses corpos, que j no mais so uma armadura do ser-personagem, constitudo primordialmente por sua alma, sua essncia, mas constituem o ser em sua totalidade a partir de sua presena no mundo, do choque e do contato com os outros corpos. Um corpo sujeito do discurso (BEZERRA, 2010, p. 3), vivo e atuante.

Assim, o espectador, em primeira instncia, se envolve com o filme por meio do contato com essas superfcies e da apreenso de algo que no diz respeito ao fio narrativo, trama em si; algo que, de certa maneira, independe de uma linguagem, pendendo mais para o sensorial do que para o cognitivo, como afirma Jlio Bezerra em seu ensaio O corpo como cogito: um cinema contemporneo luz de Merleau-Ponty (2000). Nele, o autor busca realizar uma aproximao

entre a teoria do pensador francs e determinado filo do cinema contemporneo, identificando, em ambas as partes, uma afirmao do corpo como forma primria de inscrio e compreenso do mundo, que no superior linguagem mas possui seus prprios mecanismos e desdobramentos e , inclusive, anterior experincia, por assim dizer, intelectual.

As produes cinematogrficas mais recentes se inserem, portanto, num contexto que torna necessrio o exerccio de um olhar mais cuidadoso em relao articulao da corporeidade e da representao do corpo, humano ou no, na tela. Alm dos j citados Hou Hsiao Hsien, Claire Dennis e Naomi Kawase, outros nomes surgem como importantes expoentes dessa ressignificao do corpo no cinema, como, por exemplo, o do brasileiro Karin Ainouz, do tailands Apichatpong Weerasethakul e o do chins Wong Kar-Wai. Sobre este ltimo, interessante notar como a inscrio dos corpos em seus filmes se d de maneira distinta dos demais citados, distanciando-se, por exemplo, da tatilidade das imagens afetivas de Kawase, ou do cinema de fluxo de Hou. H, contudo, uma fisicalidade emergente em seu cinema, inscrita nos corpos dos personagens e dos objetos, que tambm traz em si algo de afetivo e de pr-cognitivo.

Priorizando a experincia quase sempre dependente de uma memria pr existente no espectador- mas no se desviando de uma construo minuciosa e, com efeito, autntica do melodrama. Assim Wong Kar Wai realiza filmes que envolvem o espectador, primeiramente, pelas presenas corporais e seus movimentos na tela, para s depois inseri-lo na trama vivida pelos personagens. A narrativa, ainda que construda a partir de fragmentos, est presente e tem crucial importncia na compreenso do filme, mas so essas superfcies deslizantes, que se tocam e se chocam, as responsveis por mediar a relao espectador-filme. Nesse sentido, Amores Expressos (1994), terceiro longa-metragem do cineasta -precedido por As Tears Go Bye (1988) e Dias Selvagens (1990) um interessante exemplo da atuao desses corpos em cena, sobretudo por exteriorizar ou tornar fsico, atravs desses corpos, algo que permeia o filme tambm em sua esfera discursiva: a temtica dos deslocamentos, da transitoriedade.

Seja o policial 233, que sente a necessidade de correr para se livrar da gua do corpo e, consequentemente, no mais ter condies fsicas de chorar, ou seja a traficante de herona que passa o dia dando voltas pela cidade at ficar com os ps calejados. Seja a aeromoa namorada do policial 633, que ganha a vida viajando pelo mundo, ou a atendente de lanchonete fast-food que planeja suas viagens e sonha com elas, estando sempre com o pensamento em um outro lugar que no aquele em que ela se encontra fisicamente. Em Amores Expressos, todos os personagens querem ou precisam se mover. E esse desejo o consideremos como interior, uma vez que se localiza no campo das vontades ligadas s ideias, no pele, ao desejo fsico - exteriorizado justamente por meio dos corpos dos atores, verdadeiros veculos agenciadores responsveis por promover os incessantes deslocamentos dos personagens na projeo. E, assim como o trnsito fisicamente representado, o encontro tambm o , posto que os primeiros contatos feitos entre os personagens do filme so verdadeiras colises, choques dos corpos em constante deslocamento na tela que s cessam seus movimentos para, casualmente, se encontrarem. Neste artigo, buscarei identificar tais marcas de inscrio do corpo presentes em Amores Expressos e investigar uma certa fisicalidade caracterstica de seu cinema que, no filme em questo, se volta no apenas para a materialidade e a superficialidade dos corpos, mas tambm para suas possibilidades cinticas, articuladas, sobretudo, por vontades interiores dos personagens. Essa fisicalidade importante, especialmente, por trazer em si uma representao plstica daquilo que o filme traz em seu mago, sua essncia; ou, simplesmente, do conjunto de temas que o motiva. Promovendo a criao de imagens simblicas, verdadeiras metforas visuais para itens discursivos nem sempre claros, por vezes at mesmo hermticos, Wong Kar-Wai presenteia o espectador com uma projeo constituda por vrias camadas de significao. Nesse contexto, a relao entre corpo e espao o espao da tela e tambm o espao da cidade, diegtico fundamental para a discusso aqui proposta; , na verdade, seu elemento mais importante.1 Corpo e Espao

1.1 A mise-en-scne em questo

Uma mulher de cabelos loiros, sobretudo e culos escuros caminha por entre os corredores lotados de pessoas de uma espcie de edifcio, um complexo de residncias e de lojas situado em Hong Kong, conhecido como Chun King Mansions. Chung King Express. Vemos, no cu, o movimento das nuvens. Surge, primeiro em voice over e depois em presena na imagem, a figura do Policial 233. Ele corre por Chung King Mansions perseguindo algum, possivelmente um criminoso. As imagens so fluidas e se misturam umas s outras; por vezes, fundem-se em borres de cor e luz que pintam a tela. Temos a impresso de no conseguir captar todos os movimentos filmados, dada a velocidade com que eles se do o congelamento das imagens contribui para isso. como se o movimento, de to gil, fosse inapreensvel. O policial e a mulher misteriosa, num choque estritamente corporal, se encontram.

Amores Expressos (Chung King San Lan, China, 1994) comea com um embrio da histria que se desenvolver e se espelhar mais adiante. Dividido em duas partes, que possuem um elo de ligao calcado nas relaes entre os personagens, o filme nos apresenta a histria de dois policiais que atendem por seus nmeros de identificao - 233 e 663 (protagonistas da primeira e da segunda parte, respectivamente) - e seus encontros e desencontros amorosos, marcados por abandonos, dramas e uma certa nostalgia. atravs deles que conhecemos os outros personagens da trama, fundamentais para o encadeamento de todas essas relaes afetivas que do motivao ao filme. Amores Expressos se baseia numa estrutura de repetio, principalmente no que diz respeito trama, mas que se aplica tambm s questes formais. Como afirma Juliana Fausto em seu ensaio No Clima para Wong Kar-Wai, publicado pela revista Contracampo, a duplicidade no filme quase total. Afirma, ainda:

L, h duas moas chamadas May, duas mulheres em perucas louras, duas aeromoas, dois policiais abandonados por suas namoradas. O que sobra ento, o que no repetio, so os detalhes. So eles que conferem singularidade a cada situao, tornando-as verdadeiramente humanas (FAUSTO, [200-]).

Retornemos sequncia que inicia o filme, anteriormente descrita. Nela, esto presentes elementos que permearo toda a narrativa, sejam eles de natureza retrica ou formal. A narrao em voice over que aparece em diversos momentos, costurando a narrativa; o congelamento das imagens em movimento, numa tentativa quase metafrica de lutar contra a efemeridade do presente e a velocidade com que ele se d; as formas, cores e luzes da paisagem de uma Hong Kong contempornea e multicultural. Os encontros acidentais e corporais, como o ocorrido entre o Policial 233 e a mulher misteriosa, se repetiro entre o Policial 233 e May, a jovem atendente de uma lanchonete fast food, e tambm entre o Policial 663 e essa mesma May, sempre casuais e inesperados, sempre fsicos antes de sentimentais.

Uma vez que so o passo inicial para o estabelecimento de conexes entre os personagens, esses encontros tem importncia crucial na trama. possvel, portanto, falar de uma relao direta entre a fisicalidade, a atuao dos corpos e das superfcies na tela, e o enredo do filme. As formas e superfcies, bem como sua atuao cintica, sua potncia e seu movimento, so to importantes quanto sua trama. So, na verdade, apreendidos pelo espectador anteriormente a ela. Em primeira instncia, vemos superfcies, seus movimentos, colises e reaes. Depois, adentramos os personagens e suas histrias.

Existe, nos personagens de Amores Expressos, um desejo (ou uma necessidade) em comum de deslocamento, de mobilidade. Nenhum deles parece estar satisfeito em permanecer em apenas um lugar, ou pelo menos no aonde esto. Partir parece ser a nica sada, a nica opo. O que vemos na tela , no mnimo, a representao visual disso. Os corpos dos personagens esto em constante movimento, indo de um lugar para o outro. Eles transitam pelo espao da mise-en-scene e, como se coreografados, se chocam em meio a esse movimento frentico, constante. O desejo interior , dessa forma, exteriorizado, como se no houvesse nenhuma barreira, nenhum obstculo entre o que se quer e o que o corpo capaz de agenciar. Em seu livro Movimento Total, ao falar sobre o corpo do bailarino, Jos Gil defende a existncia de movimentos de transio, associados ao prprio sentido, que contm em si sua significao completa (GIL, 2001, p. 105). Ele explica:

So movimentos que mostram as maneiras de agir, as modalidades da ao quando so efectuadas por corpos. Para apanhar um objeto, temos de nos inclinar, quer dizer dobrar o corpo deixando-o cair ou forando-o para baixo; para nos afastarmos, temos de deslocar a cabea enquanto olhamos para o projctil, etc. Todos estes movimentos que nada significam de preciso a no ser quando se integram em sequncias significativas, finalizadas, tm contudo um sentido imediatamente apreensvel: dobrar o corpo para diante, abandonar a cabea fora da gravidade extraem o seu sentido do facto de pertencerem a uma espcie de linguagem do sentido, porque so movimentos do prprio sentido. Abandonar-se ao peso implica uma certa inflexo, um certo deslizar do corpo que faz sentido em mltiplas esferas de movimento: no pensamento (abandono-me aos meus pensamentos pesados), na emoo (cedo tristeza), na existncia (entrego-me ao meu destino), etc. (GIL, 2001, p. 111)De certa maneira, tais movimentos so como reflexos. Impensados, quase mecnicos, so um meio de se chegar a algo, uma transio entre o estado em que se est e o estado em que se quer estar. So gestos de sentido imediato, que no se ligam a uma linguagem do corpo; so, pois, compostos dos mesmos movimentos abstratos que compem a emoo (GIL, 2001, p.111). Transitam entre o corpo e o pensamento, de um sentido para o outro. No filme, o transitar, enquanto gesto, uma tentativa talvez inconsciente, talvez no de mudar de lugar, de se deslocar. sabido que o simples ato de movimentar-se, de andar pelas ruas da cidade, no surtir o efeito que realmente se deseja (no caso, o de partir). Contudo, a exteriorizao desse desejo parece ser quase natural. Ela se deixa transparecer atravs do gesto mais puro, mais direto, quase metafrico; se tenho a vontade de me deslocar, por mais abstrato que seja esse deslocamento, a forma mais honesta com que meu corpo pode expressar esse desejo concretizando, ainda que a pequenos passos, a aspirao da alma, do ser em profundidade, quase que literalmente.1.2 Trnsitos interculturais: dilogos entre o local e o global

Os corpos em trnsito so representados por uma maneira de filmar que prioriza a fluidez dos planos, a relao do tempo com as imagens, em detrimento de uma durao das mesmas. So Figuras em fluxo, rarefeitas, manchas na tela, corpos que se desmaterializam. Nem alegorias nem smbolos, s experincias que em breve no sero. Fugazes. (LOPES, 2012, p. 219 ). O congelamento das imagens e os enquadramentos insustentveis, cuja falta de harmonia entre os pesos torna o equilbrio impossvel, tornando o espao to insustentvel quanto o tempo, que se constitui por sua efemeridade (VENTURA, 2009, p. 3.425), imperam nos sequncias do filme, sobretudo nas exteriores, nas quais a cidade de Hong Kong uma espcie de palco-personagem, pois no est ali apenas como local onde se desenvolve a trama mas tambm como uma essncia e, acima de tudo, uma presena fsica relevante para as questes de mise-en-scne. Seu estado de cidade contempornea e multicultural ali bem representado por meio de grandes aglomeraes urbanas, que participam da coreografia dos corpos na mise-en-scne, e pela construo de uma paisagem que possui interferncias da cultura global, ultrapassando as fronteiras entre oriente e ocidente. Uma certa noo de interculturalidade, de relao mtua entre o local e o global.

A trilha sonora de Amores Expressos, constituda, principalmente, por msicas pop de sucesso internacional, de bandas como Cocteau Twins e The Cranberries, algumas cantadas em chins, tambm se liga a uma concepo de interculturalidade, que se opem a qualquer discurso essencialista de identidade, autenticidade e pureza culturais (CANCLINI apud LOPES, 2012, p. 35). Como o pesquisador Denilson Lopes afirma em seu artigo Paisagens Transculturais, na transitividade da msica entre culturas que encontramos uma das paisagens mais ricas para pensar o pertencimento de forma ps-identitria e translocal (2010, p. 105). H uma constante troca cultural entre diferentes noes de nacionalidade e de lugar, aglomeradas num mesmo espao. Assim, as questes de globalizao, ligadas ao mercado, passam a interferir tambm na nossa experincia de vida cotidiana, inclusive esttica, e nos nossos afetos e memrias. (LOPES, 2012, p. 35).

A personagem May, interpretada pela atriz e cantora que d voz s verses em chins das msicas pop presentes na trilha sonora do filme - Faye Wong, dialoga com o conceito de interculturalidade a todo momento. Funcionria de um fast food, elemento representativo do capitalismo global, exportado dos Estados Unidos para todo o mundo, a jovem trabalha para acumular dinheiro e viajar (novamente, o desejo de partir motivao das aes dos personagens). Ela possui interesse especial em conhecer o Estado da Califrnia, nos EUA. No por acaso, a msica que toca incessantemente em seu cd player California Dreaming, da banda novaiorquina The Mamas and The Papas. Fay consegue realizar seu desejo quando passa a trabalhar como aeromoa. Ela deixa para trs a lanchonete na qual trabalhava e sua relao conturbada (e quase unilateral) com o Policial 633 e vai conhecer o mundo, incluindo a Califrnia. Contudo, ao chegar no destino to aguardado, se decepciona. O lugar no correspondia s expectativas por ela criadas ao ouvir a msica.

Seguindo uma j mencionada estrutura de repetio, o filme apresenta o ofcio de comissria de bordo relacionado-o a duas personagens. Anteriormente a May, conhecemos a ex-namorada do Policial 633 atravs das lembranas deste. Ela ganha a vida como aeromoa, viajando pelo mundo. Um dia, ela parte definitivamente e abandona seu companheiro, sob a justificativa de querer experimentar algo novo. A profisso parece ser uma chave interessante para se adentrar a questo da transitoriedade e tambm da interculturalidade. Alm de permitir o deslocamento por entre os espaos, agenciando partidas e chegadas, ela torna mais possvel e simples o trnsito entre diferentes culturas, se as considerarmos dentro dos limites das fronteiras geogrficas. As viagens das comissrias de bordo, portanto, estabelecem uma relao quase metafrica com a temtica dos deslocamentos. Afinal de contas, qual o sentido mais direto de se conceber uma trajetria constante, motivada pelo desejo de mudar de lugar, de partir, que no estar em um avio que perpassa vrios espaos, numa velocidade conferida apenas a ele mesmo?

Acima de tudo, o intercultural em Amores Expressos representado por elementos globais que se misturam cultural local, no caso, de Hong Kong. E no apenas a msica, antes discutida, agente dessa interculturalidade. Os sintomas de uma globalizao presente esto nas ruas e nas casas dos personagens; no que comem, no que vestem. Desde as latas industrialziadas de abacaxi consumidas com afinco pelo Policial 233 at a logomarca da Coca-Cola, presente em tantos e diversos momentos do filme, percebemos ma interferncia de elementos que nada tem a ver com uma cultura nacional nas relaes cotidianas dos personagens. notvel, portanto, a existncia de uma paisagem transcultural ligada, sobretudo, aos fluxos miditicos, que ultrapassam as fronteiras nacionais e se misturam experincia cultural cotidiana local.2. Consideraes finais

A relao entre o corpo cinematogrfico e seu espao perpassa o filme Amores Expressos de maneira retrica e formal. Temos, no desenvolvimento de sua trama, uma discusso sobre a temtica dos deslocamentos trazida, principalmente, pela atuao dos personagens (enquanto construes psicolgicas complexas, alm das superfcies), que esto constantemente em busca de fugir, de partir, com se ir embora fosse a nica soluo. Contudo, antes mesmo que isso seja desenvolvido discursivamente, vemos, na tela, corpos que transitam incessantemente, correndo de um lugar para o outro; instveis, assim como os enquadramentos e a mise-en-scne do filme, que se expressam mais dentro do fluxo imagtico no qual se constitui o filme do que em si mesmos.

Assim, elementos considerados estritamente visuais no dizem respeito, de fato, apenas plasticidade do filme. So elos de ligao entre o que vemos e o que compreendemos a partir do desenrolar da trama e dos personagens. Uma relao de troca, completamente mtua, entre a forma e o discurso do filme. Muito por isso, o cinema de Wong Kai-Wai to marcado de caractersticas estilsticas bem definidas e que esto sempre presentes, em maior ou menor intensidade, em seus filmes. A necessidade de filmar adequando os aspectos formais temtica dos filmes parece ser um tipo de modus operandis do cineasta chins. Amores Expressos o filme exemplar disso, devido a sua impressionante sintonia formal e discursiva.

Wong Kar-Wai aposta numa certa fisicalidade do cinema, que valoriza a atuao das superfcies, dos corpos e da matria, estabelecendo uma relao direta com o espectador e suas experincias atravs de smbolos visuais, que antecedem a construo dramtica. Em Amores Expressos, somos levados a nos identificarmos com os personagens, primeiramente, pelo que vemos e apreendemos das imagens, do fluxo espao-temporal do qual se constitui o filme. Nesse sentido, a estrutura de repetio presente no apenas no filme aqui estudado, mas em toda a obra wongiana parece ser um lembrete, uma recado para o espectador; o que importa, nesse cinema, no to somente o arco narrativo que se desenvolve, mas toda uma experincia esttica capaz de despertar sensaes e afetos. Um cinema para ser apreendido muito antes de ser compreendido.

Referncias Bibliogrficas

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VENTURA, Fran. Wong Kar-Wai, el Hombre contra el instant. Esttica de una filosofia. 2009. 6 Congresso SOPCOM. Disponvel em: http://conferencias.ulusofona.pt/index.php/sopcom_iberico/sopcom_iberico09/paper/viewFile/334/318. Acesso em: 06 de Dez. De 2014.

1Trabalho realizado para a disciplina de Teorias da Comunicao Perspectivas Contemporneas, ministrada pela professora Gabriela Alves na Universidade Federal do Esprito Santo. Concludo e apresentado em dezembro de 2014.

2Estudante de graduao do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Esprito Santo.

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