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1 Sobre as “Paixões da Alma” Texto 4 (Sobre o amor e o ódio) Cosme Massi 2) Do amor e do ódio: “Art. 79. As definições do amor e do ódio. O amor é uma emoção da alma causada pelo movimento dos espíritos que a incita a unir-se voluntariamente aos objetos que lhe parecem convenientes. E o ódio é uma emoção causada pelos espíritos que incita a alma a querer estar separada dos objetos que se lhe apresentam como nocivos. Eu digo que tais emoções são causadas pelos espíritos a fim de distinguir o amor e o ódio, que são paixões e dependem do corpo, tanto dos juízos que levam também a alma a se unir voluntariamente às coisas que ela considera boas e a se separar daquelas que considera más como das emoções que só esses juízos excitam na alma” Sobre essa distinção feita por Descartes entre as paixões causadas pelo corpo e aquelas emoções análogas que são causadas pela alma, observa Lívio Teixeira:

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Sobre  as  “Paixões  da  Alma”  

Texto  4  (Sobre  o  amor  e  o  ódio)  

Cosme  Massi  

2)  Do  amor  e  do  ódio:  

“Art. 79. As definições do amor e do ódio. O amor é uma emoção da alma causada pelo movimento dos espíritos que a incita a

unir-se voluntariamente aos objetos que lhe parecem convenientes. E o ódio é uma emoção causada pelos espíritos que incita a alma a querer estar separada dos objetos que se lhe apresentam como nocivos. Eu digo que tais emoções são causadas pelos espíritos a fim de distinguir o amor e o ódio, que são paixões e dependem do corpo, tanto dos juízos que levam também a alma a se unir voluntariamente às coisas que ela considera boas e a se separar daquelas que considera más como das emoções que só esses juízos excitam na alma”

Sobre   essa   distinção   feita   por   Descartes   entre   as   paixões   causadas   pelo   corpo   e  

aquelas  emoções  análogas  que  são  causadas  pela  alma,  observa  Lívio  Teixeira:  

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O  que  significa  “unir-­‐se  voluntariamente”?,  diz  Descartes:    “Art. 80. O que significa unir-se ou separar-se voluntariamente.

De resto, pela palavra voluntariamente, não pretendo falar aqui do desejo80

, que é uma paixão à parte e se relaciona com o porvir; mas do consentimento pelo qual nos consideramos presentemente unidos com o que amamos, de sorte que imaginamos um todo do qual pensamos constituir apenas uma parte, e do qual a coisa amada é a outra. Como, ao contrário, no ódio nos consideramos como um todo só inteiramente separado da coisa pela qual se tem aversão.”     Sobre  esse  conceito  de  “unir-­‐se  voluntariamente”,  observa  Lívio  Teixeira:  

2.1  )  Dos  diversos  tipos  de  amor  

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“Art. 81. Da distinção que se costuma fazer entre o amor de concupiscência e o de benevolência.

Ora, distinguem-se comumente duas espécies de amor, uma das quais é chamada amor de benevolência, isto é, que incita a querer o bem para o que se ama; a outra é chamada amor de concupiscência, isto é, que leva a desejar a coisa que se ama. Mas me parece que essa distinção considera apenas os efeitos do amor, e não a sua essência; pois, tão logo nos unimos voluntariamente a algum objeto, de qualquer natureza que seja, temos por ele benevolência, isto é, unimos-lhe também voluntariamente as coisas que cremos lhe serem convenientes: o que é um dos principais efeitos do amor. E se julgarmos que é um bem possuí-lo ou lhe estar associado de outra forma que não a voluntária, desejamo-lo: o que é também um dos mais comuns efeitos do amor.”

“Art. 82. Como paixões muito diferentes combinam na medida em que participam do amor.

Não é necessário também distinguir tantas espécies de amor quantos os diversos objetos que se podem amar; pois, por exemplo, embora a paixão que um ambicioso nutre pela glória, um avarento pelo dinheiro, um bêbado pelo vinho, um bruto pela mulher que deseja violar, um homem de honra por seu amigo ou por sua amante e um bom pai por seus Filhos, sejam muito diferentes entre si, todavia, por participarem do amor, são semelhantes. Mas os quatro primeiros têm amor apenas pela posse dos objetos aos quais se refere sua paixão

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, e não o têm pelos objetos mesmos, pelos quais nutrem somente desejo misturado com outras paixões particulares, ao passo que o amor de um bom pai por seus filhos é tão puro que nada deseja deles e não quer possuí-los de outra maneira senão como o faz, nem estar unido a eles mais estreitamente do que já o está; mas, considerando-os como outros tantos ele próprio, procura o bem deles como o seu próprio, ou mesmo com mais cuidado, porque, representando não é a melhor parte, prefere muitas vezes os interesses deles aos próprios e não teme perder-se para salvá-los. A afeição que as pessoas de honra sentem por seus amigos é dessa natureza, embora raramente seja tão perfeita; e a que sentem pela amada participa muito dela, mas também participa um pouco da outra.”

“Art. 83. Da diferença entre a simples afeição, a amizade e a devoção*

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. Pode-se, parece-me, com melhor razão ainda distinguir o amor pela estima que se dedica ao que amamos em comparação com nós próprios; pois, quando estimamos o objeto de nosso amor menos que a nós mesmos, sentimos por ele simples afeição; quando o estimamos tal como a nós próprios, isso se chama amizade; e, quando o estimamos mais, a paixão que alimentamos pode ser chamada devoção. Assim, pode-se ter afeição por uma flor, por um pássaro, por um cavalo; porém, a não ser que se tenha o espírito muito desregrado, não se pode nutrir amizade senão pelos homens. E eles são de tal modo objeto dessa paixão, que não há homem tão imperfeito que não se lhe possa dedicar amizade muito perfeita, quando se pensa ser amado por ele e se tem a alma verdadeiramente nobre e generosa, conforme o que será explicado mais adiante nos artigos 154 e 156. No que concerne à devoção, seu principal objeto é, sem dúvida, a soberana Divindade, em relação à qual não podemos deixar de ser devotos quando a conhecemos como se deve; mas podemos também sentir devoção por nosso príncipe, pelo nosso país ou nossa cidade, e mesmo por um homem particular, quando o estimamos mais do que a nós próprios. Ora, a diferença que existe entre essas três espécies de amor aparece principalmente através de seus efeitos; pois, posto que em todas nos consideramos unidos e juntos à coisa amada, estamos sempre prontos a abandonar a parte menor do todo que se compõe com ela para conservar a outra; o que faz com que, na simples afeição, se prefira sempre a si próprio ao que se ama e que, ao contrário, na devoção se prefira de tal modo a coisa amada ao eu próprio que não se receia morrer para conservá-la. Viram-se muitas vezes

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exemplos disso nos que se expuseram à morte certa em defesa de seu príncipe ou de sua cidade, e até, algumas vezes, de pessoas particulares às quais se haviam devotado.” 2.2  )  Dos  diversos  tipos  de  ódio   “Art. 84. Que não há tantas espécies de ódio como de amor.

De resto, ainda que o ódio seja diretamente oposto ao amor, não se distinguem nele todavia tantas espécies, porque não se nota tanto à diferença que existe entre os males de que se está separado voluntariamente como a que existe entre os bens a que se está unido.” “Art. 85. Do agrado e do horror.

E não encontro senão uma única distinção considerável que seja análoga num e noutro. Consiste em que os objetos, tanto do amor como do ódio, podem ser representados à alma pelos sentidos exteriores, ou então pelos interiores e por sua própria razão; pois denominamos comumente bem ou mal aquilo que nossos sentidos interiores ou nossa razão nos levam a julgar conveniente ou contrário à nossa natureza; mas denominamos belo ou feio aquilo que nos é assim representado por nossos sentidos exteriores, principalmente pelo da visão, o qual por si só é mais considerado que todos os outros

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; daí nascem duas espécies de amor, a saber, o que se tem pelas coisas boas e o que se tem pelas belas, ao qual se pode dar o nome de agrado a fim de não o confundir com o outro, nem tampouco com o desejo, a que muitas vezes se atribui o nome de amor; e daí nascem, da mesma forma, duas espécies de ódio, uma das quais se relaciona com as coisas más e a outra com as feias; e esta última pode ser chamada horror ou aversão, para distingui-la da outra. Mas o que há nisto de mais notável é que essas paixões de agrado e horror costumam ser mais violentas que as outras espécies de amor ou de ódio, visto que o que chega à alma pelos sentidos toca mais fortemente do que aquilo que lhe é representado pela razão, e que, no entanto, elas contêm comumente' menos verdade; de sorte que, de todas as paixões, são as que mais enganam e das quais é preciso mais cuidadosamente se guardar.

Sobre  essas  noções  estéticas  de  belo  e  feio,  observa  Lívio  Teixeira  

 

 

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   2.3  )  Sobre  a  distinção  entre  amor  causado  pela  alma  e  amor  paixão   Um   uma   notável   carta   escrita   em   1º   de   fevereiro   de   1647,   dirigida   a   A   Chanut,   Descartes  reponde  às  seguintes  questões:    “1. O que é o amor. 2. Se só a luz natural nos ensina a amar a Deus. 3. Qual dos dois desregramentos e maus usos é pior, do amor ou do ódio?” “Para responder ao primeiro ponto, distingo entre o amor que é puramente intelectual ou racional e o que é uma paixão. O primeiro consiste, parece-me, apenas em que, quando nossa alma percebe algum bem, seja presente, seja ausente, que julga lhe ser conveniente, ela se lhe junta voluntariamente, isto é, considera-se a si própria, com este bem, qual um todo, de que ele é uma parte e ela a outra. Em seguimento do quê, se ele está presente, isto é, se ela o possui, ou é por ele possuída, ou enfim caso se lhe una não somente por sua vontade, mas também realmente e de fato, na maneira que lhe convém estar unida, o movimento de sua vontade, que acompanha o conhecimento que ela tem de ser-lhe um bem, é sua alegria; e se está ausente, o movimento de sua vontade que acompanha o conhecimento que ela tem de ser dele privado, é sua tristeza; mas aquele que acompanha o conhecimento que ela tem de que seria bom adquiri-lo é seu desejo. E todos estes movimentos da vontade nos quais consistem o amor, a alegria e a tristeza, e o desejo, na medida em que são pensamentos racionais, e não paixões, poder-se-iam achar em nossa alma, ainda que esta não tivesse corpo algum. Pois, por exemplo, se ela percebesse que há na natureza muitas coisas a conhecer, que são muito belas, sua vontade dirigir-se-ia infalivelmente a amar o conhecimento destas coisas, isto é, a considerá-lo como lhe pertencendo. E se notasse, ademais, possuir este conhecimento, isso dar-lhe-ia alegria; se considerasse que não o possuía, isso dar-lhe-ia tristeza; se pensasse que lhe seria bom adquiri-lo, isso dar-lhe-ia desejo. E nada haveria em todos esses movimentos de sua vontade que lhe fosse obscuro, nem do que ela não dispusesse de um mui perfeito conhecimento, desde que refletisse sobre os seus pensamentos.

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Mas, enquanto nossa alma está unida ao corpo, este amor racional é ordinariamente acompanhado do outro, que se pode chamar sensual ou sensitivo, e que, como disse sumariamente de todas as paixões, apetites e sentimentos, na página 461 de meus Principes em francês (artigos 189 e 190, da quarta parte), não é mais do que um pensamento confuso provocado na alma por algum movimento dos nervos, pensamento que a dispõe a este outro pensamento mais claro em que consiste o amor racional. Pois, como na sede, o sentimento que se tem da secura da garganta, é um pensamento confuso que dispõe ao desejo de beber, mas não é este desejo mesmo; assim, no amor sente-se não sei que calor em torno do coração, e uma grande abundância de sangue no pulmão, que nos faz abrir até os braços como para abraçar algo, e isto torna a alma inclinada a juntar a si voluntariamente o objeto que se apresenta. Mas o pensamento pelo qual a alma sente este calor é diferente daquele que a une ao referido objeto; e acontece mesmo às vezes que tal sentimento de amor se acha em nós, sem que nossa vontade se aplique a amar algo, porque não encontramos objeto que julguemos digno disso. Pode acontecer também, ao contrário, que conheçamos um bem que merece muito e que nos juntemos a ele voluntariamente, sem alimentar, por isso, qualquer paixão, porque o corpo não está a isso disposto.

Mas, de ordinário, esses dois amores acham-se juntos: pois há tal ligação entre um e outro que, quando a alma julga que um objeto é digno dela, isto dispõe incontinenti o coração aos movimentos que excitam a paixão de amor e, quando o coração se acha assim disposto por outras causas, isto leva a alma a imaginar qualidades amáveis em objetos, em que ela veria só defeitos em outros tempos. E não é maravilha que certos movimentos do coração estejam assim naturalmente unidos a certos pensamentos, com os quais não têm qualquer semelhança; pois, pelo fato de nossa alma ser de tal natureza que pôde estar unida a um corpo, possui também a propriedade de que cada um de seus pensamentos pode associar-se de tal modo a alguns movimentos ou outras disposições deste corpo, que, quando as mesmas disposições nele se encontram outra vez, induzem a alma ao mesmo pensamento; e, reciprocamente, quando o mesmo pensamento retorna, a alma prepara o corpo para receber a mesma disposição. Assim, ao aprendermos uma língua, juntamos as letras ou a pronúncia de certas palavras, que são coisas materiais, às suas significações, que são pensamentos; de sorte que, ao ouvirmos novamente as mesmas palavras, concebemos as mesmas coisas; e, ao concebermos as mesmas coisas, recordamo-nos das mesmas palavras. Mas as primeiras disposições do corpo que acompanharam assim os nossos pensamentos, ao ingressarmos no mundo, juntaram-se sem dúvida mais estreitamente com eles, do que os que os acompanham mais tarde. E para examinar a origem do calor que se sente em torno do coração, e a das outras disposições do corpo que acompanham o amor, considero que, desde o primeiro momento em que nossa alma se uniu ao corpo, é verossímil que tenha sentido alegria e logo depois amor, seguido talvez do ódio e da tristeza; e que as mesmas disposições do corpo, que então causaram nela estas paixões, tenham acompanhado depois naturalmente seus pensamentos. Julgo que sua primeira paixão foi a alegria, porque não é crível que a alma fosse posta no corpo, a não ser quando ele estivesse bem disposto, e quando está assim bem disposto, isto nos dá naturalmente alegria. Digo também que o amor veio após, porque, escoando-se incessantemente a matéria de nosso corpo, como a água de um rio, e sendo necessário que venha outra em seu lugar, é pouco verossímil que o corpo estivesse assim bem disposto, se não houvesse também perto dele alguma matéria muito própria a servir-lhe de alimento, e que a alma, unindo-se voluntariamente a esta nova matéria, tivesse amor por ela; assim como, mais tarde, se aconteceu faltar este alimento, a alma teve daí a tristeza. E se veio outro em seu lugar, que não fosse próprio para nutrir o corpo, teve ódio por ele. Eis as quatro paixões que creio haverem estado em nós como primeiras, e as únicas que possuímos antes de nosso nascimento; e creio também que eram então apenas sentimentos ou pensamentos muito confusos; porque a alma se achava de tal forma presa à matéria, que não podia ainda aplicar-se a outra coisa salvo a receber dela as diversas impressões; e embora, alguns anos depois, começasse a obter outras alegrias e outros amores, além dos que dependem apenas da boa constituição e conveniente nutrição do corpo, todavia, o que houve de intelectual em suas alegrias ou amores, veio sempre acompanhado dos primeiros sentimentos que teve deles, e mesmo também dos movimentos ou funções naturais que estavam então no corpo; de

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modo que, na medida em que o amor era causado, antes do nascimento, somente por um alimento conveniente que, entrando abundantemente no fígado, no coração e no pulmão, excitava o mais calor que de costume, resulta daí que agora este calor acompanha sempre o amor, embora provenha de outras causas muito diferentes. E se eu não temesse estender-me demasiado, poderia mostrar, por miúdo, que todas as outras disposições do corpo, que se encontraram no começo de nossa vida com estas quatro paixões, ainda as acompanham. Mas direi apenas que se trata de sentimentos confusos de nossa infância, que, permanecendo unidos aos pensamentos racionais pelos quais amamos aquilo que julgamos digno, são causa de que a natureza do amor nos seja difícil de conhecer. Acrescento a isso que muitas outras paixões, como a alegria, a tristeza, o desejo, o temor, a esperança etc., se mesclam diversamente ao amor, impedindo que se reconheça no que ele consiste propriamente. O que é principalmente notável no tocante ao desejo; pois é tomado tão comumente pelo amor, que isso leva a distinguir duas espécies de amores: uma que se chama amor de benevolência, no qual este desejo não aparece tanto, e a outra que se chama amor de concupiscência, o qual não é senão um desejo muito violento, baseado num amor amiúde fraco.

Mas seria preciso escrever um alentado volume para tratar de todas as coisas que pertencem a esta paixão; e, embora sua índole seja a de fazer com que nos comuniquemos o mais possível, de modo que me incita a tentar aqui dizer-vos mais coisas do que sei, quero no entanto conter-me, no temor de que a longura desta carta vos enfade. Assim, passo à vossa segunda questão, a saber: se só a luz natural nos ensina a amar a Deus, e se se pode amá-Lo pela força desta luz. Vejo que há duas fortes razões para duvidar disso; a primeira é que os atributos de Deus que consideramos mais comumente acham-se elevados tão acima de nós, que não concebemos de maneira alguma que nos possam ser convenientes, o que é causa de não nos unirmos a eles voluntariamente; a segunda é que em Deus nada há que seja imaginável, o que faz com que, mesmo se tivéssemos por ele algum amor intelectual, não pareça possível dedicar-lhe qualquer amor sensitivo, porque deveria passar pela imaginação para vir do entendimento ao sentido. Eis por que não me espanto se alguns filósofos se persuadem de que só há a religião cristã que, ensinando-nos o mistério da Encarnação, pelo qual Deus se abaixou até tornar-se semelhante a nós, nos torna capazes de amá-lo; e que aqueles que, sem o conhecimento deste mistério, parecem nutrir paixão por alguma divindade, não a nutrem, por isso, pelo verdadeiro Deus, mas somente por alguns ídolos que chamam com seu nome; do mesmo modo que Ixíon, no dizer dos poetas, abraçava uma nuvem em vez da Rainha dos Deuses. Todavia, não alimento a menor dúvida de que possamos amar verdadeiramente Deus pela exclusiva força de nossa natureza. Não asseguro de forma alguma que tal amor seja meritório sem a graça e deixo o desenredar disso aos teólogos; mas ouso dizer que, com respeito a esta vida, é a mais arrebatadora e a mais útil paixão que possamos ter; e, mesmo, que ela pode ser a mais forte, embora haja necessidade, para tanto, de meditação mui atenta, porque somos continuamente distraídos pela presença de outros objetos. Ora, o caminho que julgo devermos seguir, para chegar ao amor a Deus, é o de considerá-Lo um espírito, ou uma coisa pensante, donde, como a natureza de nossa alma possui alguma semelhança com a sua, acabamos persuadindo-nos de que é uma emanação de sua soberana inteligência et divinae quasi partícula aurae ( Horácio, Sátiras, 11, 2, v. 79, "quase uma parcela do sopro divino"). Do mesmo modo, como nosso conhecimento parece poder aumentar gradativamente até o infinito, e como, sendo o de Deus infinito, está ele no alvo a que visa o nosso, se não considerarmos nada mais, podemos chegar à extravagância de desejarmos ser deuses e assim, por um erro mui grande, amar somente a divindade em vez de amar a Deus. Mas se, além disso, advertirmos a infinidade de seu poder, pela qual ele criou tantas coisas, de que somos apenas a menor parte; a extensão de sua providência, que o faz ver com um só pensamento tudo o que foi, é, será e poderia ser; a infalibilidade de seus decretos, que, embora não perturbem nosso livre arbítrio, não podem de forma alguma ser mudados; e enfim, de um lado, a nossa pequeneza e, de outro, a grandeza de todas as coisas criadas, reparando de que modo elas dependem de Deus e considerando-as de maneira que tenham relação com sua onipotência, sem encerrá-Las numa esfera, como procedem os que pretendem que o mundo seja finito: a meditação de todas essas coisas enche um homem que as entende bem de uma alegria tão extrema, que, longe de ser injurioso e ingrato com Deus a ponto de desejar ocupar-lhe o

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lugar, pensa já ter vivido o bastante por haver Deus lhe feito a graça de levá-Lo a tais conhecimentos; e unindo-se- Lhe total e voluntariamente ama-o tão perfeitamente que nada mais deseja no mundo, exceto que seja feita a vontade de Deus. E isso é causa para ele não mais temer a morte, nem as dores, nem as desgraças porquanto sabe que nada pode acontecer-lhe, salvo o que Deus houver decretado; e ele ama de tal forma este divino decreto, estima-o tão justo e tão necessário, sabe que deve depender tão inteiramente dele, que, mesmo na expectativa da morte ou de algum outro mal, se pudesse, por impossível que seja, mudá-lo, não teria vontade de fazê-lo. Mas, se não recusa os males ou as aflições, porque lhe vêm da providência divina, recusa ainda menos todos os bens ou prazeres lícitos de que pode gozar nesta vida, porque também vêm dele; e, recebendo-os com júbilo, sem ter qualquer receio pelos males, seu amor o torna perfeitamente feliz. É certo ser necessário que a alma se aparte muito do comércio dos sentidos, para se representar as verdades que nela provocam este amor; daí resulta que não parece que ela possa comunicá-lo à faculdade imaginativa para torná-lo uma paixão. Mas, apesar disso, não duvido de que ela lha comunique. Pois, embora nada possamos imaginar do que existe em Deus, o qual é o objeto de nosso amor, podemos imaginar o nosso amor mesmo; que consiste em querermos unir-nos a algum objeto, isto é, à vista de Deus, considerar-nos pequeníssima parte de toda a imensidade das coisas que ele criou; porque, conforme sejam objetos diversos, podemos unir-nos a eles, ou juntá-los a nós de diversas maneiras; e a simples idéia desta união basta para excitar o calor em torno do coração e causar violentíssima paixão. É verdade também que o uso de nossa língua e a civilidade dos cumprimentos não permite que digamos, aos que pertencem a uma condição muito acima da nossa, que os amamos, mas somente que os respeitamos, honramos, estimamos, e que empregamos zêlo e devoção no serviço deles; e a razão disso parece-me ser que a amizade de homem para homem torna de certa maneira iguais aqueles em quem ela é recíproca; e, assim, que, enquanto nos esforçamos por nos fazer amar por algum grande, se lhe disséssemos que o amamos, poderia pensar que o tratamos de igual, e que lhe fazemos mal. Mas, como os filósofos não costumam dar diversos nomes às coisas convenientes a uma mesma definição, e como não sei de outra definição de amor, exceto que é uma paixão que nos leva a juntar-nos voluntariamente a algum objeto, sem distinguir se este objeto é igual a nós, ou maior, ou menor do que nós, parece-me que, para falar a linguagem deles, devo dizer que se pode amar a Deus. E se eu vos perguntasse, em sã consciência, se não amais de modo algum a esta grande Rainha, junto à qual estais presentemente, em vão poderíeis afirmar que lhe devotais respeito, veneração e admiração, e eu não deixaria de julgar que lhe dedicais também mui ardente afeição. Pois o vosso estilo corre tão bem, quando falais dela, que, embora eu creia em tudo o que dizeis a respeito, porque sei que sois muito sincero e o ouvi também dizer de outros, não acredito entretanto que pudésseis descrevê-la como o fazeis, se não tivésseis muito zelo, nem que pudésseis estar junto de tão grande luz sem dela receber calor. E muito menos é verdade que o nosso amor pelos objetos que se acham acima de nós seja menor do que o que temos pelos outros; creio que, por sua natureza, é mais perfeito, e que leva a abraçar com mais ardor os interesses daquilo que se ama. Pois pertence à natureza do amor fazer com que nos consideremos com o objeto amado como um todo de que somos apenas uma parte, e que transfiramos de tal modo os cuidados que habitualmente temos por nós mesmos à conservação deste todo, que dele não retemos para nós em particular senão uma parte tão grande ou tão pequena quanto cremos ser uma parte grande ou pequena do todo ao qual demos o afeto: de sorte que, se nos unimos voluntariamente a um objeto que estimamos menor do que nós, por exemplo, se amamos uma flor, um pássaro, um edifício, ou coisa semelhante, a mais alta perfeição a que possa atingir este amor, segundo seu verdadeiro uso, não pode levar-nos a pôr nossa vida em qualquer risco para a conservação destas coisas, porque elas não são partes mais nobres do todo que compõem conosco, assim como nossas unhas e nossos cabelos quanto ao nosso corpo; e seria uma extravagância pôr o corpo todo em risco para a conservação dos cabelos. Mas quando dois homens amam-se mutuamente, a caridade quer que cada um deles estime seu amigo mais do que a si próprio; eis por que sua amizade não será de modo algum perfeita, se não estiverem prontos a dizer, um em favor do outro: Me me adsum qui feci, in me convertite ferrum etc.( Virgílio, Eneida, IX, 427. "Fui eu quem o fez; voltai o ferro contra

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mim."). Da mesma maneira, quando um particular se une voluntariamente a seu príncipe, ou a seu país, se o seu amor é perfeito, ele deve estimar-se apenas como parte muito pequena do todo que compõe com eles, e assim não temer ir de encontro a uma morte certa a seu serviço, mais do que se teme tirar um pouco de sangue do braço para fazer que o resto do corpo se porte melhor. E vemos todos os dias exemplos deste amor, mesmo em pessoas de baixa condição, que dão as vidas de bom grado para o bem do seu país, ou para a defesa de um grande pelo qual se afeiçoam. Em consequência disso é evidente que nosso amor para com Deus deve ser incomparavelmente o maior e o mais perfeito de todos. Não receio que esses pensamentos metafísicos deem demasiado labor a vosso espírito; pois sei que ele é muito capaz em tudo; mas confesso que cansam o meu, e que a presença dos objetos sensíveis não permite que eu me detenha aí por muito tempo. Eis por que passo à terceira questão, a saber: qual dos dois desregramentos é pior, o do amor, ou o do ódio? Mas acho-me mais impedido a respondê-la do que as duas outras, porque haveis explicado muito menos a vossa intenção, e porque esta dificuldade pode entender-se em diversos sentidos, que me parecem dever ser examinados separadamente. Pode.se dizer que uma paixão é pior do que outra, porque ela nos torna menos virtuosos; ou porque ela repugna mais ao nosso contentamento; ou enfim porque nos arrasta a excessos maiores e nos dispõe a infligir maior mal aos outros homens. Quanto ao primeiro ponto, acho-o duvidoso. Pois, considerando as definições dessas duas paixões, julgo que o amor que temos por um objeto que não o merece nos pode tornar piores do que o ódio que temos por outro que deveríamos amar; porque há mais perigo em estar unido a uma coisa que é má, e de ser como que transformado nela, do que em estar separado voluntariamente de uma coisa que é boa. Mas, quando tomo em conta as inclinações ou hábitos que nascem dessas paixões, mudo de parecer: pois, vendo que o amor, por mais desregrado que seja, tem sempre o bem por objeto, não me parece que possa corromper tanto nossos costumes, como o ódio que se propõe apenas o mal. E vemos, por experiência, que a gente de mais bem torna-se pouco a pouco maliciosa, quando se vê obrigada a odiar alguém; pois, ainda que seu ódio seja justo, representam-se tão amiudadamente os males que recebem de seus inimigos, e também os que desejam a eles, que isto os acostuma pouco a pouco à malícia. Ao contrário, os que se entregam a amar, mesmo que seu amor seja desregrado e frívolo, não deixam de se tornar amiudadamente gente mais honesta e mais virtuosa, do que se ocupassem o espírito com outros pensamentos. Quanto ao segundo ponto, não encontro nele qualquer dificuldade: pois o ódio é sempre acompanhado de tristeza e pesar; e qualquer que seja o prazer que algumas pessoas sintam em fazer mal aos outros, creio que a voluptuosidade delas é semelhante à dos demônios, que, segundo a nossa religião, não deixam de estar danados, embora imaginem continuamente vingar-se de Deus, atormentando os homens nos infernos. Ao contrário, o amor, por mais desregrado que seja, proporciona prazer e, embora os poetas dele se queixem muitas vezes em seus versos, creio não obstante que os homens se absteriam naturalmente de amar, se não encontrassem nele mais doçura do que amargura; e que todas as aflições, cuja causa se atribui ao amor, provêm apenas das outras paixões que o acompanham, a saber, desejos temerários e esperanças mal fundadas. Mas se se pergunta qual dessas duas paixões nos arrasta a maiores excessos, e nos torna capazes de infligir maior mal ao resto dos homens, parece-me que devo dizer que é o amor; posto que possui naturalmente mais força e mais vigor do que o ódio; e que amiúde a afeição que se tem por um objeto de pouca importância, causa incomparavelmente maiores males, do que poderia fazê-lo o ódio a outro de mais valor. Provo que o ódio tem menos vigor do que o amor, pela origem de um e de outro. Pois, se é verdade que os nossos primeiros sentimentos de amor vieram do fato de nosso coração receber abundância da nutrição que lhe era conveniente, e ao contrário, que nossos primeiros sentimentos de ódio foram causados por um alimento nocivo que vinha ao coração, e que agora os mesmos movimentos acompanham ainda as mesmas paixões, assim como foi há pouco dito, é evidente que, quando amamos, o mais puro sangue de nossas veias corre abundantemente para o coração, o que envia uma porção de espíritos animais ao cérebro, e assim nos dá mais força, mais vigor e mais coragem; ao passo que, se alimentamos ódio, a amargura do fel e a agrura do baço, misturando-se com o nosso sangue, é causa de que

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ele não aflua tanto, nem tais espíritos venham ao cérebro, e assim que se permaneça mais fraco, mais frio e mais tímido. E a experiência confirma meu dizer; pois os Hércules, os Rolandos e, em geral, os que apresentam mais coragem amam mais ardentemente do que os outros; e, ao contrário, os que são fracos e covardes são mais inclinados ao ódio. A cólera pode na realidade tornar os homens ousados, mas ela toma seu vigor do amor que se tem por si próprio, o qual lhe serve sempre de fundamento, e não do ódio que se limita apenas a acompanhá-lo. O desespero também leva a efetuar grandes esforços de coragem e o medo leva a exercer grandes crueldades; mas há diferença entre essas paixões e o ódio. Resta-me ainda provar que o amor que se tem por um objeto de pouca importância pode causar maior mal, sendo desregrado, do que o ódio a outro de maior valor. E a razão que dou para isso é que o mal que vem do ódio se estende somente ao objeto odiado, ao passo que o amor desregrado nada poupa, salvo o seu objeto, o qual tem, de ordinário, tão-somente pouca extensão, em comparação com todas as outras coisas cuja perda e ruína está pronto a provocar, a fim de que isso sirva de ceva à extravagância de seu furor. Dir-se-á talvez que o ódio é a causa mais próxima dos males que se atribuem ao amor, porque, se amamos alguma coisa, odiamos, pelo mesmo meio, tudo o que lhe é contrário. Mas o amor é sempre mais culpado do que o ódio dos males que se produzem dessa maneira, tanto mais que é a primeira causa deles, e que o amor a um só objeto pode assim engendrar o ódio a muitos outros. Depois, além disso, os maiores males do amor não são os que ele comete dessa maneira por intermédio do ódio; os principais e os mais perigosos são os que ele produz, ou deixa produzir, para o exclusivo prazer do objeto amado, ou para o seu próprio. Lembro-me de uma tirada de Théophile, que pode ser aqui apresentada como exemplo; ele faz com que uma pessoa perdida de amor diga: Dieux, Ators que te beau Pâris eut une belle proie! Qu.e cet amant fit bien, qu'if aliuma 'embrasement de Troie, Pour amortir le sien! ("Deuses, que bela prêsa fêz o belo Páris! Como êsse amante procedeu bem, quando ateou o incêndio de Tróia, para amortecer o seu!") O que demonstra que mesmo os maiores e mais funestos desastres podem constituir às vezes a ceva a um amor mal regrado, e servir a torná-lo mais agradável, quanto mais aumentam-lhe o preço. Não sei se meus pensamentos concordam nisso com os vossos; mas asseguro-vos realmente que concordam em que, como me prometestes muita benevolência, assim sou com forte paixão etc.”