Socrates e a Educacao Para as Virtudes

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Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo Sócrates e a educação para as virtudes Julho de 2014 No presente ensaio, buscarei comentar um pouco sobre a visão de Sócrates na educação das virtudes para o povo grego, baseado em trabalhos como “a defesa de Sócrates” ou “Protágoras” de Platão. Antes de tudo, é importante elaborar minha visão sobre o conceito de virtude (areté), e como tal virtude era encarada pelo povo grego e por Sócrates. Para tal, é importante definir ainda outro conceito, o de “eudaimonia”. Eudaimonia é um termo de tradução difícil, sendo muitas vezes considerado como o sinônimo de “felicidade”. Contudo, uma tradução melhor seria “viver uma vida boa”. Verifica- se já nessa tradução uma contraposição interessante entre o conceito de “felicidade” que temos hoje, de um sentimento interior, algo psicológico, com o de “eudaimonia”, que envolve uma prática, atos e palavras. Assim, diferentemente de uma felicidade como algo privado e interior, os gregos valorizavam a boa vida como algo público, a ser visto e reconhecido pelos outros. Esse posicionamento é claro no próprio modo de vida ateniense. Os cidadãos davam grande valor aos momentos em que passavam nas praças públicas, interagindo com outras pessoas. Dentro de uma sociedade heroica como a grega, o indivíduo mais próximo da eudaimonia seria aquele dotado de qualidades guerreiras, que o favorecessem em combate. Assim, qualidades visíveis como a força e vigor físico, a coragem e a sagacidade eram o que distinguia um indivíduo dos demais. Dizia-se que esses indivíduos que possuíam distinção possuíam virtude, ou areté. Franklin Leopoldo e Silva em seu trabalho “Felicidade – dos filósofos pré-Socráticos aos contemporâneos” (2007) explora essa relação entre a eudaimonia e a ética do heroísmo, e um pouco da condição trágica do herói grego. Ele explica a vinculação entre a ética grega e uma vida que vale a pena ser vivida. Para os gregos, o areté era providência divina, os deuses davam essas qualidades para indivíduos que, então, se distinguiam dos mortais comuns, devendo esses escolhidos (os aristói) provarem seu valor constantemente para os deuses. E seria nessas ações que ele justificaria sua própria existência. A prática heroica seria da ordem da práxis (ação), não sendo instrumental nem medida pelos resultados. Estaria relacionada com a ética teleológica grega, na qual há um desprendimento, os gregos agiam eticamente pois esse era o seu dever, somente com a finalidade de viver uma boa vida. Estaria também relacionada com a coragem, um equilíbrio entre a covardia e a temeridade. Os gregos encaravam as virtudes como uma dádiva dos deuses para os aristói escolhidos, e acreditavam que tais virtudes dependiam do sangue. Assim, a detenção de virtudes seria encarada como um capricho divino, não sendo algo passível de ser ensinado.

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Ensaio sobre a visão de Sócrates no ensino das virtudes (constituição do areté do indivíduo) fundamentado em alguns trabalhos de Platão, particularmente Protágoras

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  • Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo

    Scrates e a educao para as virtudes

    Julho de 2014

    No presente ensaio, buscarei comentar um pouco sobre a viso de Scrates na

    educao das virtudes para o povo grego, baseado em trabalhos como a defesa de Scrates

    ou Protgoras de Plato.

    Antes de tudo, importante elaborar minha viso sobre o conceito de virtude (aret),

    e como tal virtude era encarada pelo povo grego e por Scrates. Para tal, importante definir

    ainda outro conceito, o de eudaimonia.

    Eudaimonia um termo de traduo difcil, sendo muitas vezes considerado como o

    sinnimo de felicidade. Contudo, uma traduo melhor seria viver uma vida boa. Verifica-

    se j nessa traduo uma contraposio interessante entre o conceito de felicidade que

    temos hoje, de um sentimento interior, algo psicolgico, com o de eudaimonia, que envolve

    uma prtica, atos e palavras.

    Assim, diferentemente de uma felicidade como algo privado e interior, os gregos

    valorizavam a boa vida como algo pblico, a ser visto e reconhecido pelos outros. Esse

    posicionamento claro no prprio modo de vida ateniense. Os cidados davam grande valor

    aos momentos em que passavam nas praas pblicas, interagindo com outras pessoas.

    Dentro de uma sociedade heroica como a grega, o indivduo mais prximo da

    eudaimonia seria aquele dotado de qualidades guerreiras, que o favorecessem em combate.

    Assim, qualidades visveis como a fora e vigor fsico, a coragem e a sagacidade eram o que

    distinguia um indivduo dos demais. Dizia-se que esses indivduos que possuam distino

    possuam virtude, ou aret.

    Franklin Leopoldo e Silva em seu trabalho Felicidade dos filsofos pr-Socrticos aos

    contemporneos (2007) explora essa relao entre a eudaimonia e a tica do herosmo, e um

    pouco da condio trgica do heri grego. Ele explica a vinculao entre a tica grega e uma

    vida que vale a pena ser vivida. Para os gregos, o aret era providncia divina, os deuses

    davam essas qualidades para indivduos que, ento, se distinguiam dos mortais comuns,

    devendo esses escolhidos (os aristi) provarem seu valor constantemente para os deuses. E

    seria nessas aes que ele justificaria sua prpria existncia.

    A prtica heroica seria da ordem da prxis (ao), no sendo instrumental nem medida

    pelos resultados. Estaria relacionada com a tica teleolgica grega, na qual h um

    desprendimento, os gregos agiam eticamente pois esse era o seu dever, somente com a

    finalidade de viver uma boa vida. Estaria tambm relacionada com a coragem, um equilbrio

    entre a covardia e a temeridade.

    Os gregos encaravam as virtudes como uma ddiva dos deuses para os aristi

    escolhidos, e acreditavam que tais virtudes dependiam do sangue. Assim, a deteno de

    virtudes seria encarada como um capricho divino, no sendo algo passvel de ser ensinado.

  • Scrates, um dos maiores filsofos gregos, viveu em um perodo no qual a sociedade

    grega passava por uma crise em seus valores. Crise, na definio da filsofa Hannah Arendt,

    o momento em que perdemos nossas respostas originais sem perceber que elas originalmente

    constituam respostas. o momento em que precisamos parar, separar as coisas, tomar um

    novo rumo definido em novos critrios e escolhas. Scrates viveu entre o perodo de transio

    do auge da hegemonia ateniense e o seu declnio aps a derrota para Esparta na guerra do

    Peloponeso.

    O perodo da hegemonia ateniense foi caracterizado pelo surgimento e proeminncia

    da poltica numa forma mais semelhante com a que conhecemos hoje, caracterizada pela

    isonomia e isegoria. O advento da forma de vida nas plis teve como caractersticas a

    transferncia do poder exclusivo aos aristi para todos os cidados. A partir dessa evoluo

    complexa e sofisticada, que alguns gostam de chamar de nascimento da democracia, o dilogo

    passa a assumir um papel extremamente importante, como ferramenta de poder poltico.

    nesse contexto que se d o dilogo Protgoras de Plato, que narra o encontro

    entre Scrates e Protgoras, este um sofista e considerado um dos homens mais sbios de sua

    poca. O encontro entre os dois sbios, filsofo e sofista, representa um grande antagonismo

    entre duas possveis formas de usar a palavra da o uso do termo pharmakon para

    representar as palavras (pharmakon pode ser um remdio ou um veneno, filsofos usam as

    palavras de forma parcimoniosa como um remdio para a alma, enquanto os sofistas seriam

    acusados de usar as palavras e sua retrica como um veneno, como instrumentos para vencer

    argumentos e suceder na poltica).

    Werner Jaeger em seu livro Paidia A Formao do Homem Grego (1995, p. 620

    647) faz uma leitura sobre o dilogo. Em Protgoras, Scrates compara a sabedoria como o

    alimento para a alma e como o caminho para a eudaimonia. Essa postura pode ser vista

    tambm em A Defesa de Scrates de Plato, quando justifica o fato de estar estudando,

    mesmo condenado a morte (ora, mas estamos todos condenados a morte). O filsofo defende

    ainda que o conhecimento deve servir para formar cidados pblicos. J Protgoras (que

    representa a classe dos sofistas em geral) defende a importncia do conhecimento em si, que

    a alma pode ser formada e que o conhecimento um instrumento que pode ser utilizado em

    benefcio da vida privada de seu detentor, algo muito semelhante ao pensamento que temos

    hoje na formao acadmica.

    No dilogo, h um debate interessante sobre a possibilidade ou no de se ensinar a

    virtude poltica. Scrates defende o ponto de vista da maioria ateniense, que a aret

    dependeria do indivduo e de caprichos divinos, no podendo ser ensinada. Utiliza para

    defender sua posio dois argumentos: que todos so iguais perante a poltica, de modo que

    no faria sentido ensin-la; e que grandes polticos no tentavam passar suas virtudes polticas

    para seus filhos, deixando que estes pastassem livremente e desenvolvessem suas

    habilidades.

    J Protgoras da opinio contrria, que a virtude pode ser ensinada, e utiliza

    argumentos fortssimos para defender sua opinio. Seu principal argumento o de que h a

    censura moral de opinies polticas, ora, se virtude poltica algo com o qual se nasce e

    inerente ao indivduo, no se poderia fazer nenhum tipo de censura ou mrito, pois s se pode

    avaliar moralmente aquilo que do controle do homem.

  • No dilogo Protgoras, como se pode ver, j se aponta um dos posicionamentos de

    Scrates no ensino das virtudes. O filsofo defendia que a virtude no era algo que podia ser

    ensinado. Contudo, para Scrates o desenvolvimento da virtude no indivduo no tem a ver

    com passar informaes, mas com o domnio, o agir com a certeza de que o que se faz

    correto. Nesse aspecto, um professor pode despertar tais valores em seus discpulos atravs

    de reflexes e aes, ainda que seja impossvel passar os valores para ele. Scrates ainda

    defende o ensino de virtudes como um bem pblico, para a melhoria e prosperidade da

    cidade.

    Enquanto Protgoras defende o aprendizado de virtudes como algo de fora para

    dentro, ou seja, de um sofista para o seu discpulo, Scrates defende que o desenvolvimento

    de virtudes algo de dentro para fora, com o discpulo no centro do desenvolvimento de tal

    concepo.

    Assim, Scrates defende que para desenvolver suas virtudes, um indivduo deve ser

    capaz de questionar e interpretar o mundo no qual est inserido. Defende ainda que as

    vontades da plis no se dissociam da vontade do indivduo, seu desenvolvimento de valores

    representa o desenvolvimento de sua cidade. Scrates enxerga a o desenvolvimento das

    virtudes da populao ateniense como seu dever moral.

    nesse contexto que se d o julgamento do filsofo em A Defesa de Scrates.

    Scrates julgado e condenado por corromper a moral da juventude, pois levantava

    questionamentos sobre a moral da poca e criticava diversas noes coletivas comuns do

    perodo. Acredita-se que por essas tentativas de melhorar o senso de justia dos atenienses,

    no se mantendo passivo frente ao que acredita ser o desenvolvimento da imoralidade na

    cidade, que Scrates condenado.

    Define-se assim o posicionamento do filsofo frente ao ensino de virtudes. Ainda que

    Scrates no acreditasse na virtude como algo que pudesse ser passado de um indivduo para

    o outro, ele acreditava que um professor teria as condies de ajudar seu aluno a desenvolver

    a virtude em seu interior, atravs do questionamento de suas aes e palavras. Scrates ainda

    julgava que tinha o dever moral, como cidado ateniense que busca o desenvolvimento de sua

    cidade, de auxiliar os jovens a se tornarem pessoas crticas e questionadoras.

  • Referncias bibliogrficas e leituras adicionais

    Carvalho, Jos Srgio. Notas de aula da disciplina EDF0115 - Filosofia da Educao I.

    2014.

    Jaeger, Werner. Paidia A Formao do Homem Grego. So Paulo, Martins Fontes,

    1995.

    Plato. A defesa de Scrates. So Paulo, Abril Cultural, 1978.

    Plato. Protgoras. Belm, EUFPA, 2002.

    Silva, Franklin. Felicidade dos filsofos pr-socrticos aos contemporneos. So

    Paulo, Claridade, 2007.