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1 “SOLDADOS DA PRODUÇÃO” EM BUSCA DE SEUS DIREITOS: A MOBILIZAÇÃO DE GUERRA E OS CONFLITOS TRABALHISTAS NAS CIDADES DE PELOTAS, PORTO ALEGRE E SANTA MARIA (1939-1945). SOARES, Tamires Xavier Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria E-mail: [email protected] Resumo A Segunda Guerra Mundial foi deflagrada em 1939 e se estendeu até 1945, porém desde seu início os trabalhadores brasileiros começaram a sentir seus impactos, seja no aumento da carestia de vida, ou nos decretos-lei criados pelo governo brasileiros, que acabavam retirando ou flexibilizando direitos trabalhistas conquistados pela classe trabalhadora. É certo que tais impactos foram sentidos com mais intensidade após o Brasil declarar guerra ao Eixo, porém as fontes nos apontam que mesmo antes de 1942 já haviam indícios de uma campanha que transformaria as fábricas em “campos de batalha” e os operários em “soldados da produção”. Deste modo, este artigo pretende analisar os impactos da guerra no âmbito das relações trabalhistas e de que formar a Justiça do Trabalho e os trabalhadores estavam lidando com os decretos-lei criados em nome do estuado de guerra. Palavras-chave: Segunda Guerra Mundial, Decretos-lei, Trabalhadores. A questão trabalhista tem ganho espaço nos Programas de Pós-Graduação brasileiros, porém os períodos mais pesquisados compreendem principalmente os anos anteriores a 1937, ou então posteriores a 1945. O Estado Novo, foi por muito tempo visto como um limbo na questão das lutas de classe. No entanto, esta perspectiva tem sido modificada, trabalhos como de Gláucia Konrad (2006), Alexandre Fortes (2004), Clarice Speranza (2012), Maria Célia Paoli (1987), Fernando Teixeira da Silva (1992),

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“SOLDADOS DA PRODUÇÃO” EM BUSCA DE SEUS DIREITOS:

A MOBILIZAÇÃO DE GUERRA E OS CONFLITOS

TRABALHISTAS NAS CIDADES DE PELOTAS, PORTO ALEGRE

E SANTA MARIA (1939-1945).

SOARES, Tamires Xavier

Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade

Federal de Santa Maria

E-mail: [email protected]

Resumo

A Segunda Guerra Mundial foi deflagrada em 1939 e se estendeu até 1945, porém

desde seu início os trabalhadores brasileiros começaram a sentir seus impactos, seja no

aumento da carestia de vida, ou nos decretos-lei criados pelo governo brasileiros, que

acabavam retirando ou flexibilizando direitos trabalhistas conquistados pela classe

trabalhadora. É certo que tais impactos foram sentidos com mais intensidade após o

Brasil declarar guerra ao Eixo, porém as fontes nos apontam que mesmo antes de 1942

já haviam indícios de uma campanha que transformaria as fábricas em “campos de

batalha” e os operários em “soldados da produção”. Deste modo, este artigo pretende

analisar os impactos da guerra no âmbito das relações trabalhistas e de que formar a

Justiça do Trabalho e os trabalhadores estavam lidando com os decretos-lei criados em

nome do estuado de guerra.

Palavras-chave: Segunda Guerra Mundial, Decretos-lei, Trabalhadores.

A questão trabalhista tem ganho espaço nos Programas de Pós-Graduação

brasileiros, porém os períodos mais pesquisados compreendem principalmente os anos

anteriores a 1937, ou então posteriores a 1945. O Estado Novo, foi por muito tempo

visto como um limbo na questão das lutas de classe. No entanto, esta perspectiva tem

sido modificada, trabalhos como de Gláucia Konrad (2006), Alexandre Fortes (2004),

Clarice Speranza (2012), Maria Célia Paoli (1987), Fernando Teixeira da Silva (1992),

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Hélio Costa (1995), entre outros, têm demonstrando o quanto este período foi de luta e

resistência.

Porém, ainda são escassas as pesquisas que abordam as implicações da

Segunda Guerra Mundial nesse contexto. Para Alexandre Fortes isso ocorre, pois,

“fatores domésticos continuam a preponderar nas explicações sobre os processos

inovadores ocorridos naquela primeira metade dos anos 1940”. Desta forma, “a análise

dos efeitos da Guerra sobre as relações de trabalho no país tende a ficar diluída num

debate mais geral sobre o legado de Getúlio Vargas”. (FORTES, 2015, p. 1). Este artigo

está ligado a uma pesquisa de doutorado, que encontra-se em fase inicial, a qual tem por

objetivo compreender os conflitos e os impactos que a Segunda Guerra Mundial gerou

no âmbito do trabalho nas cidades de Pelotas, Porto Alegre e Santa Maria.1

A Segunda Guerra Mundial teve início em 1939, no entanto, embora o Brasil

tenha mantido uma política de neutralidade nos primeiros anos, o povo brasileiro

acabou sendo afetado indiretamente com a escassez alguns produtos como a farinha de

trigo2, o açúcar branco3, a carne de rês verde4, o ferro, a borracha, o combustível, entre

outros. Além disso, os decretos-lei, n. 8.567, de 19 de janeiro de 1942 e o n. 9.080, de

20 de março de 1942 nomearam algumas empresas como de “interesse militar” e

criaram o cargo de “Diretor Técnico” para atuar nestas. Ao total o decreto citou sete

empresas: a Fábrica Electro-Aço Altona, em Santa Catarina; a Companhia Brasileira de

Cartuchos, Laminação Nacional de Metais e Companhia Nitro-Química Brasileira,

todas em São Paulo; Fábrica Lindau & Comp. e Amadeu Rossi, ambas no Rio Grande

do Sul e a indústria civil Aliança Comercial de Anilinas Limitada, sediada no Rio de

Janeiro. Tais decretos demonstravam a preocupação do governo com a produção de

certos setores que interessavam ao país, e também davam indícios do que mais adiante

seria chamado de batalha da produção.

O Brasil só rompeu sua política de neutralidade, aproximando-se dos Aliados,

em 22 de agosto de 1942, após ataques de submarinos alemães a cinco navios

1 Essas três cidades contam com um grande volume de processos da Justiça do Trabalho ajuizados

durante a década de 40, porém a partir das descobertas que existem 6 caixas de arquivo com processos

trabalhistas referentes a cidade de Rio Grande, 2 caixas de Santana do Livramento, 3 caixas de São

Gabriel e 1 caixa de São Leopoldo, estamos pensando em alargar nossa análise. 2 Para mais ler, PUREZA, 2009. 3 Para mais ler, CYTRYNOWICZ, 2002. 4 Para mais ler, SILVA, 2014.

3

brasileiros que navegavam em águas nacionais. Entretanto, desde janeiro de 1942, o

governo brasileiro já sinalizava para tal decisão, uma vez que, em dezembro de 1941,

diante do ataque japonês ao porto de Pearl Harbor, o Brasil declarou solidariedade ao

“irmão da América”, e logo após, em janeiro de 1942, rompeu relações diplomáticas

com os países que compunham o Eixo, ou seja, Alemanha, Itália e Japão.

Após a declaração brasileira de guerra à Alemanha e Itália5, em 1942, o

governo brasileiro optou pela formação de dois front’s, um interno e outro externo. O

front externo era formado por soldados e enfermeiras que, voluntariamente ou por meio

de convocações, seriam enviados para a frente de batalha. Já, o front interno era

composto por todos os brasileiros, que, mobilizados tinham o dever de proteger o Brasil

dos espiões nazifascistas, se mantendo preparados para ataques dos inimigos a alvos

civis e também, garantir suprimentos como fardas, armamento e alimentação aos

soldados que haviam sido enviados para o campo de batalha.

Para que a criação desses front’s fosse possível, o governo brasileiro implantou

diversas medidas, entre elas, a criação de vários decretos-lei, como por exemplo o de

número 4.328, elaborado no dia 23 de maio de 1942, o qual previa que os bancários

deveriam trabalhar das 11h:30min. às 17h:30min., com um intervalo de trinta minutos

para descanso, haja vista que, devido as implicações da guerra havia uma crise do

transporte.

Os decretos-lei também faziam referência a jornada de trabalho, como por

exemplo o n. 4.639, de agosto de 1942, o qual permitia que as “empresas de serviços

públicos ou que a produção interessem à defesa nacional, estendessem suas jornadas de

trabalho para dez horas”, também previa acréscimo de 20% sobre a remuneração normal

das últimas horas trabalhadas, e se houvesse “necessidade imperiosa”, a mesma poderia

estender a duração do trabalho além do limite fixado na lei, “seja para fazer face a

motivo de força maior, seja para atender à realização ou conclusão de serviços

inadiáveis cuja inexecução possa acarretar prejuízo manifesto”. (Decreto-lei n. 4.639,

1942). O decreto-lei 6.688, de julho de 1944 seguia a mesma linha do decreto-lei 4.639,

pois estabelecia que fábricas de fio natural ou sintético, tecelagens, malharias ou de

5 A declaração de guerra foi feita aos países agressores, ou seja, Alemanha e Itália, uma vez que o Japão,

até 1942, não havia atacado embarcações brasileiras. (KOIFMAN; ODA, 2013)

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acabamento têxtil, seriam consideradas de interesse nacional, equiparados aos de

interesse militar. Este decreto foi dividido em sete capítulos e trinta artigos, porém, aqui

iremos nos deter no terceiro.

Em suma, o capítulo três previa: jornada de trabalho normal de 10 horas diárias

para as fábricas de interesse nacional, pagas as duas últimas horas com acréscimo não

inferior a 20% sobre a remuneração normal; permissão do regime de trabalho contínuo,

assegurado aos trabalhadores por turmas de revezamento, o descanso semanal; trabalho

noturno feminino, porém este não podia exceder 8 horas; o direito a férias poderia ser

convertido em indenização paga em dobro; permissão para que mulheres e

trabalhadores com mais de 16 anos realizassem serviços noturnos (entre 22h e 5h da

manhã).

Porém, a ampliação da jornada de trabalho não era novidade para os

trabalhadores. Em sua pesquisa sobre o estado de São Paulo, Roney Cytrynowicz

afirmou que: “um levantamento realizado pela própria CETEX6 em 1944 mostrou que

em São Paulo, os operários da indústria têxtil já cumpriam, na média, as jornadas mais

longas do país, como 13h30 nas seções de tecelagem (12h no país), ou seja, em muito

excedentes da jornada fixada pala CLT.”. (CYTRYNOWICZ , 2002, p. 203).

Com o intuito de garantir a arrecadação de fundos para guerra, o governo

brasileiro criou o decreto-lei n. 4.789, de outubro de 1942, conforme previsto no artigo

6º deste, a partir de 1943 os empregadores ficariam obrigados ao “recolhimento

compulsório, mês a mês, nos institutos e caixas de aposentadoria e pensões respectivos,

de importância igual a três por cento do montante dos salários ou ordenados ou

comissões que tiverem de pagar aos associados desses institutos”. (Decreto-lei n. 4.789,

1942).

Os sindicatos também sofreram implicações em decorrência da guerra, prova

disso foi a criação do decreto-lei 4.637, de agosto de 1942, o qual determinava que estes

deveriam colaborar com os poderes públicos enquanto durasse o estado de guerra. Para

isso, era solicitado que as entidades sindicais dos empregadores e dos empregados

mantivessem contato para que, ambas conseguissem conciliar os dissídios decorrentes

6 Comissão Executiva Têxtil.

5

de contratos de trabalho. Além disso, a partir de então os trabalhadores súditos do Eixo7

estavam proibidos de participar de assembleias ou reuniões, não poderiam ter acesso a

sede dos sindicatos e seus direitos eleitorais foram suspensos.

Glaucia Konrad, em sua tese de doutorado intitulada Os trabalhadores e o

Estado Novo no Rio Grande do Sul: um retrato da sociedade e do mundo do trabalho

(1937-1945), apresenta cartas escritas por trabalhadores para Getúlio Vargas e ao

interventor do Estado na época, Osvaldo Cordeiro de Farias. Os imigrantes alemães e

italianos, Hans Nicolai, Marta Mehnert e Fidelis Mastrascusa em carta endereçada ao

presidente Vargas, explicavam que estavam “devidamente legalizados na Repartição

Central de Polícia do Rio Grande do Sul” e que eram estudantes do Instituto de Ensino

Comercial do Sindicato dos Empregados do Comércio de Porto Alegre. Entretanto, o

decreto-lei n. 4.637 lhes impedia de frequentar a sede do sindicado, local onde tinham

aula. O Departamento Nacional do Trabalho em resposta, alegou que as medidas

previstas pelo decreto-lei que se referiam as limitações “de direitos políticos da vida

sindical”, não falavam nada sobre restrições aos serviços de assistência dos sindicatos,

deste modo, os imigrantes estavam liberados para frequentar as aulas8.

(KONRAD,2006, p. 243).

Outro decreto-lei criado no contexto de guerra foi o n. 4.638 de, 31 de agosto

de 1942, através do qual, o governo federal criou uma exceção para a Lei 62, de 5 de

junho de 1935. De acordo com essa, o trabalhador que permanecesse na mesma empresa

por dez anos ou mais adquiria estabilidade, ou seja, não podia ser demitido sem abertura

prévia de um inquérito administrativo para apuração de falta grave ou força maior.

Entretanto, considerando o estado beligerante do país, o decreto permitia a rescisão de

contratos de trabalho de empregados alemães, italianos e japoneses.

O decreto-lei n. 4.902, de 31 de outubro de 1942, tratava sobre as obrigações

que as empresas teriam com os funcionários convocados, entre essas estava “o

pagamento mensalmente de 50% (cinquenta por cento) do vencimento, ordenado, ou

salário do funcionário durante o tempo em que o mesmo permanecer convocado”.

7 Súdito do Eixo era a nomenclatura oficial utilizada para referir-se a alemães, italianos e japoneses. 8 Caso apresentado na tese de Glaucia Konrad foi encontrado ANRJ/FGCPR, Série Ministério do

Trabalho, Lata 404, 35985-942/SC – 1171. GM 12172- 42. Parecer do ministro do Trabalho Marcondes

Filho, em 6 de novembro de 1942.

6

(Decreto-lei n. 4.902, 1942). O decreto-lei n. 5.612, de 24 de junho de 1943, previa

algumas mudanças nos outros artigos do decreto-lei n. 4.902, porém mantinha o

pagamento de metade do salário aos convocados.

No Rio Grande do Sul, as fábricas Lindau e Forjas Taurus, Amadeo Rossi,

Eletro Aço Plangg, Abramo Eberle e Gazola Travi foram mobilizadas. Entretanto, as

minas de carvão do Rio Grande do Sul, não foram consideradas oficialmente de

interesse militar ou nacional, porém, por meio de portaria lançada em 11 de março de

1943, no Diário Oficial da União, os trabalhadores da produção e transporte de carvão

foram considerados “mobilizados”. De acordo com Clarice Speranza, tal medida não

declarava as minas do Rio Grande do Sul “interesse militar”, apenas “visada impedir o

abandono de trabalho, coibindo a transferência de trabalhadores entre as empresas”

(SPERANZA, 2012, p. 116).

Segundo Glaucia Konrad, “a palavra de ordem para o momento era “disciplina

e muito trabalho, haja o que houver” (KONRAD, 2006, p. 256). Todavia, Angela de

Castro Gomes acredita que se tratava de um momento político especial, visto que os

trabalhadores “de um lado, eram forçados a trabalhar em condições em que não tinham

vigência de vários direitos sociais já garantidos por lei, e de outro, eram conclamados a

assumir um papel central na “batalha da produção” desencadeada justamente pelo

homem cujo maior título era de ter outorgado estes direitos sociais” (GOMES, 2013, p.

225).

Em geral, o período da guerra, 1939 a 1942, foi bastante ambíguo no que se

refere as questões trabalhistas. Haja vista que, ao mesmo tempo em que se elaboravam

decretos-lei em nome do esforço de guerra, ora flexibilizando ora retirando os direitos

trabalhistas já conquistados pelos trabalhadores. Também era elaborada e implantada, a

Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, na qual estes direitos permaneciam

garantidos.

A CLT, foi criada em 1943, como parte de uma perspectiva populista de

governo. Entretanto, Ângela de Castro Gomes prefere utilizar a expressão “trabalhismo”

ao invés de populismo, tendo em vista a carga pejorativa que tal termo carrega. Além

disso, para a autora, a CLT veio para coroar os esforços de implementação deste projeto

de governo. (GOMES, 2002)

7

Daniel Aarão Reis (2007) também defende a não utilização do populismo. Para

o autor, a utilização do conceito de populismo não possibilita a compreensão do

processo histórico brasileiro. Desta forma, Reis defende a utilização do conceito

trabalhismo, sendo este a forma nacional do que o autor chama da tradição nacional-

estatista.

Para Jorge Ferreira, o trabalhismo foi um projeto implantado pelo Estado a

partir de 1942, que atendia interesses comuns do Estado e dos trabalhadores. Além

disso, estavam presentes:

Ideias, crenças, valores e códigos comportamentais que circulavam entre

os próprios trabalhadores muito antes de 1930. Compreendido como um

conjunto de experiências políticas, econômicas, sociais, ideológicas e

culturais, o trabalhismo expressou uma consciência de classe, legítima

porque histórica [...]. (2013, p. 103)

Todavia, não existe um consenso entre historiadores sobre a não utilização do

termo populismo. Por exemplo, Alexandre Fortes (2007), não utiliza o termo

trabalhismo, pois acredita que essa troca não rende muitos frutos. Visto que “estaríamos

diante de um fenômeno totalizador”, no qual compreende que os comunistas, socialistas

e anarquistas teriam sido vencidos pelo estado ditatorial de Vargas, estando nas mãos

deste último a constituição da classe operária.

Os historiadores Fernando Teixeira da Silva e Hélio Costa, acreditam que o

sistema populista designava o que era politicamente possível, no entanto não impedia a

existência de diversos projetos políticos nem mesmo substituía a ação das classes

sociais. Os trabalhadores não eram massa de manobra, eles impunham limites à

exploração política e econômica. “Ao contrário da adesão cega e ativa, podia funcionar

um pragmático realismo com elevado senso de cálculo em torno dos retornos e

benefícios possíveis”. (SILVA; COSTA, 2014, p. 225).

Para o brasilianista Jonh French, havia um “abismo”, entre o que a CLT previa

e a realidade cotidiana dos trabalhadores brasileiros. Desta forma, para o autor, a

legislação só passou a ser aplicada “na medida em que os trabalhadores lutaram para

transformar a lei de um ideal imaginário em uma realidade futura possível. ” (FRENCH,

2002, p.10). Ou seja, o direito foi encarado pelos trabalhadores brasileiros como uma

forma de luta “por dentro” do sistema.

8

Deste modo, partimos do princípio que tanto a Justiça do Trabalho quanto a

legislação trabalhista representavam meios de resistências legais, pelos quais os

trabalhadores poderiam requerer seus direitos, além de denunciar abusos cometidos

pelos patrões, para isso, buscamos o referencial de E. P. Thompson.

No livro Senhores e Caçadores, Thompson analisa a criação e aplicação da

primeira legislação inglesa, no século XVIII, a qual punia com pena de morte,

indivíduos que ultrapassassem os limites da floresta real de Windsor para pescar, caçar

ou roubar animais. Segundo Thompson, embora as leis sejam formadas por interesse,

ideologia e lógica da classe dominante, estas acabam alcançando uma autonomia

limitada, pois existe uma retórica de justiça, perante a qual todas as pessoas são iguais.

Assim, a lei (concordamos) pode ser vista instrumentalmente como

mediação e reforço das relações de classe existentes e,

ideologicamente, como sua legitimadora. Mas devemos avançar um

pouco mais em nossas definições. Pois se dizermos que as relações de

classe existentes eram mediadas pela lei, não é o mesmo que dizer que

a lei não passava da tradução dessas mesmas relações, em termos que

mascaravam ou mistificavam a realidade. (THOMSPSON, 1986 p.

353)

Portanto, a lei segundo o autor é um meio legal de luta que a classe dominada

dispõe, tornando-se desta forma um campo de conflito social no qual o trabalhador

como agente ativo irá agir de acordo com a conjuntura.

Conforme Maria Célia Paoli, a legislação trabalhista e sindical significou um

novo “cenário para luta entre os grupos e as classes sociais”. E a partir disto, “os atores

em luta colocaram no centro do drama a questão das formas da participação social e

política nos destinos da sociedade, isto é, a questão do acesso aos direitos de trabalho,

de vida, de expressão de seus interesses” (PAOLI, 1987, p. 70).Cria-se desta forma uma

“crença simbólica nos direitos”, e, em vista disto, “a formação da classe operária

brasileira não pode ser entendida sem considerar-se a intervenção legal do Estado nas

relações de trabalho cotidianas” (PAOLI, 1988 apud FRENCH, 2002, p.10) , uma vez

que o fazer-se da classe trabalhadora ocorre através da luta, da experiência de

exploração vivenciada diariamente. (THOMPSON, 1987). Abaixo vamos analisar um

dos processos trabalhistas ajuizados em Porto Alegre, em 1944, que faz referência a

dois decretos-lei criados em meio ao estado de guerra no Brasil.

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Processo trabalhista

Em 1942, em meio à Segunda Guerra Mundial, o porto-alegrense Alexandre

Specht Filho foi incorporado ao serviço militar, porém por ter sido considerado incapaz

momentaneamente resolveu procurar emprego. Em maio de 1943, foi admitido na

indústria de João Dalegrave, porém, após um mês e uma semana de trabalho, Alexandre

foi convocado para o serviço militar. Tendo em vista, que os decretos-lei n. 4.092 e o n.

5.6129 já estavam em vigência, o pagamento de metade do salário foi feito pelo

empregador até dezembro de 1943. Considerando o atraso no recebimento de seus

salários, Alexandre ajuizou um processo trabalhista10 na 1ª Junta de Conciliação e

Julgamento de Porto Alegre, requerendo o pagamento dos salários atrasados,

totalizando a importância de CR$ 282,00.

O reclamado João Dalegrave afirmou que o trabalhador havia sido demitido

antes de ser convocado, tendo trabalhado por apenas dezessete dias na empresa, deste

modo, não poderia ser considerado funcionário. Além disso, o empregador argumentou

que o funcionário sabia da convocação e lhe escondeu tal informação no momento da

admissão na indústria. Por sua vez, Alexandre defendeu-se argumentando novamente

que trabalhou para reclamada durante um mês e uma semana, ademais, explicou que ao

ser convocado pelo exército comunicou seu patrão mostrando-lhe a “notícia publicada

na imprensa”. A proposta de conciliação, foi negada por ambas as partes.

Após a apresentação das testemunhas e efetuada uma diligência na delegacia

junto à 8ª Circunscrição de Recrutamento Militar, ficou comprovada a versão dos fatos

apresentada pelo trabalhador. Portanto, no dia 12 de agosto de 1944, por unanimidade

de votos, a reclamação de Alexandre foi julgada procedente sendo a empresa condenada

a pagar a Alexandre, a importância de CR$ 2.231.80, “relativa à 50%, dos salários

normais e a continuar pagando os mesmos salários, de acordo com os preceitos emitidos

nos decretos-lei nº. 4.902 de 5/11/1942 e 5.612 de 26/06/1943”. (PROCESSO n. 785-

44, 1944, p. 36).

9 Esses decretos-lei previam que em caso de convocação militar, as empresas deveriam pagar 50% do

salário durante o período que os trabalhadores estivessem atendendo ao chamado da pátria. 10 O processo judicial trabalhista citado foi ajuizado na 1ª Junta de Conciliação de Julgamento de Porto

Alegre, em 8 de dezembro de 1943. Encontra-se microfilmado, disponível para pesquisa no Memorial da

Justiça do Trabalho do Rio Grande do Sul.

10

Não conformado com a decisão da primeira instância, João Dalegrave recorreu

ao Conselho Regional do Trabalho (CRT), pedindo anulação da decisão tomada pelos

membros da Junta de Conciliação e Julgamento (JCJ) de Porto Alegre. Os membros do

CRT julgaram o recurso procedente, anulando a decisão da JCJ, sob a alegação que “a

decisão proferida11, apreciava matéria alheia a reclamatória, pois aplicou ao caso as

combinações dos decretos-lei 4.902, e 5.612” (PROCESSO n. 785-44, 1943, p.45).

Desta forma, a reclamação deveria ser julgada novamente pela JCJ.

Cumprindo as determinações do CRT, uma nova audiência ocorreu no dia 22

de fevereiro de 1945. Para os membros da Junta de Conciliação e Julgamento de Porto

Alegre, a reclamação, embora tenha sido mal redigida, pleiteava o recebimento de 50%

dos salários vencidos após a convocação, de acordo com os decretos-lei n. 4.902 e n.

5.612. Considerando isto, a JCJ de Porto Alegre reiterou sua decisão, condenando a

reclamada apagar a importância de CR$: 2.231.80 ao funcionário.

Entretanto, João Dalegrave recorreu outra vez ao Conselho Regional do

Trabalho, o qual considerou que o novo julgamento proferido pela 1ª Junta de

Conciliação e Julgamento de Porto Alegre não atendeu a decisão anterior expedida pelo

Conselho. Portanto, ordenou que o processo trabalhista fosse julgado novamente,

considerando apenas o pedido de Cr$ 282,00 feito pelo reclamante. A nova audiência

foi marcada para o dia 7 de junho de 1945, na qual a solicitação de Alexandre, referente

ao pagamento de metade do salário de 47 dias, foi julgada procedente.

Conclusão

Como frisamos no início deste artigo, a Justiça do Trabalho no Brasil tornou-se

um meio legal de resistência, principalmente durante o Estado Novo, quando o direito a

greve foi negado. A maior parte dos decretos-lei elaborados em meio ao estado de

guerra retiravam ou flexibilizavam os direitos conquistados pela classe trabalhadora.

Contudo, também haviam decretos que asseguravam garantias mínimas aos

trabalhadores, como o caso citado no processo que analisamos anteriormente, que

previa o pagamento de 50% do salário aos trabalhadores convocados.

11 A decisão que a citação está se referindo, é a decisão da 1ª Junta de Conciliação e Julgamento de Porto

Alegre.

11

A partir da análise do processo trabalhista ajuizado por Alexandre Specht Filho

percebemos que embora houvessem decretos-lei que tratavam a respeito do pagamento

de metade dos ordenados aos funcionários convocados, os empregadores recorriam a

brechas na legislação. Por exemplo, no caso em questão a empresa tentava provar que o

trabalhador não podia ser considerado funcionário, mentindo sobre o período que esse

trabalhou no estabelecimento.

Outro aspecto que este processo nos indica são as diferentes formas de

compreender as ações que pleiteavam o cumprimento dos decretos-lei recentemente

criados. Uma vez que, na ação pleiteada por Alexandre, não foram citadas as

numerações dos decretos-lei, apenas foi feito o pedido de 50% dos salários.

Considerando esta questão, o juiz de primeira instância, compreendeu que o pedido de

50% dos ordenados estava ligado a vigência dos decretos-lei 4.902 e n. 5.612 e julgou

procedente, porém os membros do Conselho Regional do Trabalho exigiram que os

decretos estivessem explicitamente citados, e, portanto, reconhecia o pedido do

trabalhador apenas sobre os 47 dias de atraso.

Fonte

Processos Trabalhista ajuizado por Alexandre Specht Filho, contra João Dalegrave,

Porto Alegre: 1942.

Bibliografia citada

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12

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