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SONHOS E PESADELOS PÓS-MODERNOS: Shakespeare, mitologia e psicanálise em Sandman - prelúdios e noturnos, de Neil Gaiman 16/09/2008 Enéias Farias Tavares* Oh senhor, como são tolos esses mortais”, sussurra Morfeus, o deus do sono e dos sonhos, recém liberto de um cativeiro de mais de setenta anos, infligido por um grupo de ocultistas que desejava aprisionar Morte, irmã mais velha do protagonista de Sandman, de Neil Gaiman. O romance gráfico inicia com a fuga da divindade e com uma vingança de pesadelos intermináveis contra seu captores, enquanto cita o Puck shakespeariano de Sonhos de uma Noite de Verão. No entanto, diferente da peça elisabetana, Sandman não é sobre casais enamorados, deuses entediados ou bobos endiabrados, mas sobre os pensamentos aterradores que cada ser humano traz dentro de si. Num universo em que uma família de deuses (os perpétuos Destino, Morte, Sonho, Desespero, Desejo, Delírio e Destruição) se mistura a psicopatas, poetas, mitos e pessoas comuns, o inconsciente humano na visão de Gaiman se desnuda num texto repleto de referências religiosas e literárias. Não basta dizer que Sandman é um sucesso mundial de público e crítica, frase já insignificante depois de tantas obras semelhantes. Antes, o que é preciso ser reiterado a respeito do texto gaimaniano é que ele pode ser o que cada leitor quiser, onde quer que esteja, quem quer que seja, o que talvez seja o segredo das grandes obras ficcionais que perduram após décadas de diferentes releituras. A série Sandman, publicada pela Vertigo (selo adulto da editora DC Comics) entre 1989 e 1994, é um dos textos mais apreciados da última década, corroborado pelas sucessivas edições dos dez volumes que compõem a saga do deus dos sonhos. Somado ao texto primoroso de seu criador, a variedade de ilustradores – dentre eles o regular capista Dave McKean – é um deleite para os olhos de qualquer apreciador de uma boa história. Figura 1: Capítulo 1 – O Sono dos Justos / Capítulo 2 – Anfitriões Imperfeitos Arte de Dave McKean No primeiro volume da série, Prelúdios e Noturnos somos apresentados ao mundo criado por Gaiman por meio de sonhos e pesadelos, tão comuns como qualquer outro pensamento ou sentimento humano. Aprisionado por Roderick Burgess, um homem ambicioso e amoral que deseja o que todos nós já estivemos, estamos ou sempre estaremos interessados: vida eterna, Sandman aparece pela primeira vez como um deus vencido, aprisionado, humilhado e enfraquecido. Em sua constituição psicológica, Morfeus ou Sonho, apesar de dividir ainda outro nome com o próprio deus grego dos sonhos, Oneiros, é um deus hebraico que tem no Javé bíblico seu principal modelo comportamental. Silencioso e repleto de orgulho. Caprichoso e incansável, ele é um

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SONHOS E PESADELOS PÓS-MODERNOS: Shakespeare, mitologia e psicanálise em Sandman - prelúdios e noturnos, de Neil Gaiman 16/09/2008 Enéias Farias Tavares*

“Oh senhor, como são tolos esses mortais”, sussurra Morfeus, o deus do sono e dos sonhos, recém liberto de um cativeiro de mais de setenta anos, infligido por um grupo de ocultistas que desejava aprisionar Morte, irmã mais velha do protagonista de Sandman, de Neil Gaiman. O romance gráfico inicia com a fuga da divindade e com uma vingança de pesadelos intermináveis contra seu captores, enquanto cita o Puck shakespeariano de Sonhos de uma Noite de Verão. No entanto, diferente da peça elisabetana, Sandman não é sobre casais enamorados, deuses entediados ou bobos endiabrados, mas sobre os pensamentos aterradores que cada ser humano traz dentro de si. Num universo em que uma família de deuses (os perpétuos Destino, Morte, Sonho, Desespero, Desejo, Delírio e Destruição) se mistura a psicopatas, poetas, mitos e pessoas comuns, o inconsciente humano na visão de Gaiman se desnuda num texto repleto de referências religiosas e literárias.

Não basta dizer que Sandman é um sucesso mundial de público e crítica, frase já insignificante depois de tantas obras semelhantes. Antes, o que é preciso ser reiterado a respeito do texto gaimaniano é que ele pode ser o que cada leitor quiser, onde quer que esteja, quem quer que seja, o que talvez seja o segredo das grandes obras ficcionais que perduram após décadas de diferentes releituras. A série Sandman, publicada pela Vertigo (selo adulto da editora DC Comics) entre 1989 e 1994, é um dos textos mais apreciados da última década, corroborado pelas sucessivas edições dos dez volumes que compõem a saga do deus dos sonhos. Somado ao texto primoroso de seu criador, a variedade de ilustradores – dentre eles o regular capista Dave McKean – é um deleite para os olhos de qualquer apreciador de uma boa história.

Figura 1: Capítulo 1 – O Sono dos Justos / Capítulo 2 – Anfitriões Imperfeitos

Arte de Dave McKean

No primeiro volume da série, Prelúdios e Noturnos somos apresentados ao mundo criado por Gaiman por meio de sonhos e pesadelos, tão comuns como qualquer outro pensamento ou sentimento humano. Aprisionado por Roderick Burgess, um homem ambicioso e amoral que deseja o que todos nós já estivemos, estamos ou sempre estaremos interessados: vida eterna, Sandman aparece pela primeira vez como um deus vencido, aprisionado, humilhado e enfraquecido. Em sua constituição psicológica, Morfeus ou Sonho, apesar de dividir ainda outro nome com o próprio deus grego dos sonhos, Oneiros, é um deus hebraico que tem no Javé bíblico seu principal modelo comportamental. Silencioso e repleto de orgulho. Caprichoso e incansável, ele é um

pesadelo de vontade, poder e frieza, que, no decorrer dos dez volumes da série, repensa suas decisões e vontades.

Também vale ressaltar o elenco coadjuvante da obra de Gaiman. Caim e Abel, as Hécates, John Constantine e a Morte são apenas alguns dos muitos personagens que aparecem no primeiro volume da obra que poderia ser classificado como um conto soturno de vingança, poder e morte. Shakespeariano demais? Talvez, embora a presença ficcional do bardo aconteça apenas no segundo volume, Casa de Bonecas, num diálogo memorável com outro dramaturgo elisabetano, Christopher Marlowe. Como se pode perceber, Neil Gaiman preenche cada página do seu épico textual e gráfico com referências comuns à nossa cultura enciclopédica: Literatura, música, cinema, religião, filosofia e ciência se entrecruzam com os temas presentes no texto. Só em Prelúdios e Noturnos, além de Shakespeare, temos menções a peça Fausto de Marlowe, ao poema Terra Devastada de T. S. Eliot, a novela Alice Através do Espelho de Lewis Carroll, a simbologia do Tarô, a doença do sono (ou encefalite letárgica, mostrada no filme Tempo de Despertar, de Penny Marshall, com Robert de Niro e Robin Williams), ao ocultista Aleister Crowley, ao músico Elvis Costello, entre outras referências mais óbvias como Cristo, Elvis, Marylin Monroe, Julio César, Humphrey Bogart e John Wayne, entre outras. Talvez uma das intenções do escritor inglês seja criar um conto moderno que consiga costurar uma cultura tão retalhada e fragmentada como a nossa. Daí as interpretações de Sandman como obra pós-moderna.

Figura 2: Capítulo 3 – Dream a Little Dream of Me / Capítulo 4 – Uma Esperança no Inferno

Arte de Dave McKean

Em Prelúdios e Noturnos, encontramos a busca de um ser que, preso por décadas, volta um tanto perdido a sua velha vida. Velhos conhecidos, velhos amuletos e velhos lugares se misturam numa trama que vai da terra ao inferno, literalmente, dentro de poucas páginas. Neste aspecto, a amálgama entre a cultura greco-romana, judaico-católica e pop-contemporânea é surpreendente. Quando Morfeus visita um inferno dantesco para recuperar seu elmo perdido, uma batalha discursiva é travada, como nos antigos campeonatos retóricos da Atenas clássica, num cenário que lembra um pub inglês. Morfeus sai vencedor, mas não sem antes desgostar um Lúcifer rafaélico com o rosto e a voz de David Bowie. E talvez seja exatamente essa mescla de diferentes elementos que façam de Neil Gaiman um dos escritores mais cônscios da nossa contemporaneidade. Num mundo bagunçado e barulhento, repleto de ruído e carente de sentido, Sandman dança por ondas de rádio oníricas em busca de um passado que não pode mais ser recuperado, pelo menos não no campo espiritual. O Sandman que ressurge, já perto do fim do primeiro volume, é um deus recuperado em armas, mas ferido em espírito. Um deus que percebe que não fez tanta falta quanto gostaria. Tal temática, a da fragilidade das crenças espirituais e de seus símbolos, recorrente em todos os volumes de Sandman, aparece também em outro romance de Gaiman, Deuses Americanos, no qual deuses antigos são substituídos por divindades modernas a TV, a Mídia e o Esporte. A questão proposta por Gaiman é quem realmente hoje, num cenário

virtual e individual como o nosso, ainda pode acreditar nos velhos deuses? Nesse aspecto, Sandman é um voltar à fonte. Um conto que vai buscar nos mitos mais antigos de nossa civilização ocidental um sentido para uma contemporaneidade tão paradoxal.

Embora comece como uma série de terror, uma clara tentativa de Gaiman de superar a influência das histórias de Alan Moore em Monstro do Pântano, o que surpreende nesse primeiro volume é o caráter humano que o amarra. Prelúdios e Noturnos, como o próprio autor afirma, é um tanto irregular, pois é nítida a tentativa do escritor e dos ilustradores de mesclar vários gêneros que ora soam confusos, ora brilhantes, evidenciando a procura de todos eles por um estilo que só se evidenciaria mais tarde, especialmente no volume 3, Terra de Sonhos. No entanto, se os primeiros sete capítulos evidenciam essa busca, o epílogo da série salta aos olhos como o primeiro grande momento da série. Em O Som de Suas Asas, Gaiman mostra que, apesar de Sandman ser lido e comentado como uma grande história sobre sonhos, mistérios, arte e reflexão, o que mais interessa ao autor são os dramas da condição e da própria essência humana. Sobre essas diferentes tonalidades humanas, presentes numa história sobre deuses, anjos e monstros, a editora Karen Berger escreve: “Foi o elemento de humanidade e de relações interpessoais que começou a transparecer no trabalho de Neil. Ironicamente, o catalisador dessa ressonância emocional é uma personagem que, tradicionalmente, representa a antítese de tudo isso”. É essa humanidade patente, que começa a aparecer quando os super-heróis do universo DC desaparecem dando lugar a pessoas comuns o jovem Franklin, prestes a encontrar a bela e jovem Morte. São especialmente esses personagens mais “simples” e “comuns” e os elementos “humanos” dos perpétuos os responsáveis pelo interesse dos apreciadores de arte e também pela fascinação do público feminino por Sandman. Sobre a “irregularidade” do primeiro volume, é exatamente o caráter não convencional desses primeiros capítulos o que torna Prelúdios e Noturnos uma obra tão primorosa. O que inicia como um mero conto de terror, com satanistas, vilões insanos e uma visita perturbadora ao inferno, se transforma no epílogo final num tocante encontro entre dois irmãos que não se viam há décadas. De um lado, um angustiado Sonho dá farelos de pão a pombos e reclama sua sorte. Do outro, uma singela e vivaz Morte o aconselha a crescer.

Figura 3: Capítulo 5 – Passageiros / Capítulo 6 – 24 Horas

Arte de Dave McKean

Entrevistado sobre a caracterização da Morte, o ilustrador Mike Dringenberg define a jovem e bela Morte como uma “pessoa extremamente agradável de se ter por perto. Ele (Gaiman) originalmente a descreveu como alguém com certo ar de Louise Brooks. Ele queria aquele visual, com uma cabelo meio curto e preto, com muito mais estilo”. Se durante todo o livro somos levados a acompanhar o protagonista numa busca que

poderia seguir o esquema Fuga-Vingança-Busca-Resposta a história culmina com essa jovem de cabelos negros e curtos. Ao fugir da prisão de Burgess, Morfeus passa a procurar por seus amuletos de poder, busca mostrada nos capítulos 2-7. Mas o quê no romance parece uma busca física por objetos precisos - uma algibeira, um rubi e um elmo - é, na verdade, uma busca por sentido espiritual, uma busca por força e auto-afirmação. No oitavo capítulo, ao encontrar Morte, sua irmã, Sandman ainda está preso ao Romantismo que marcava o século 19, época em que foi aprisionado. Ele é um Byron citadino sentado numa praça suja chorando seu drama particular enquanto o mundo caótico e barulhento do final dos anos oitenta queima atrás de si. O conselho da Morte é no mínimo irônico: Viva! Por fim, em Som de suas Asas, encontramos um Sandman renascido, ciente de que os tempos, assim como os sonhos, mudam.

Tal variação psicológica perpassa cada um dos oito capítulos de Prelúdios e Noturnos, na forma como Gaiman trabalha cada uma de suas personagens. Sobre a estrutura irregular e, às vezes, brilhante desse primeiro volume, Gaiman escreve:

Houve um verdadeiro esforço de minha parte, nas histórias deste livro, para explorar todos os gêneros disponíveis: O Sono dos Justos tinha a intenção de ser uma história de terror britânica clássica; Anfitriões Imperfeitos apresenta algumas das convenções dos antigos gibis de terror da DC e da EC (os anfitriões, portanto); Dream a Little Dream of Me é uma história de terror britânica levemente contemporânea; Uma esperança no Inferno remonta ao tipo de fantasia obscura que se vê em Unknown, da década de 1940; Passageiros foi uma tentativa (talvez mal-orientada) de enfiar super-heróis no mundo de Sandman; 24 Horas é um ensaio sobre histórias e autores e um dos poucos contos genuinamente aterrorizantes que escrevi; Som e Fúria arrematava o enredo; e O Som de suas asas foi o epílogo e a primeira história de seqüência que senti ser verdadeiramente minha e na qual percebi que estava começando a encontrar minha voz.

Embora o resumo de Gaiman privilegie a estranheza de Prelúdios e Noturnos, ao fim, o que emerge de toda a série é familiaridade com que as personagens se mostram em suas angústias, aflições e desapontamentos. De acordo com Conrado Roel, Sandman casa brilhantemente esses dois extremos da sensibilidade humana: o que há de mais aterrador e inquietante com o de mais sensível e complexo. Sobre a história 24 horas, considerada por Gaiman como um dos contos mais aterradores de Sandman, Roel escreve:

Em Gaiman, o sofrimento assume seu próprio tempo, destilado e amplificado em momentos de agonia. Se expande através das reações das vítimas, passa pela culpa auto-assumida no momento da dor em nome dos demônios pessoais e chega até o desvario último que personaliza cada uma delas. (...) A escritura da blasfêmia deixa de ser gauche e moveu-se para fora dos limites do pecado dos homens. A purgação torna-se trivial. Afinal, nestes dias, há crime que mereça purgação semelhante a se deparar com a monstruosidade sobrenatural, ou ser vítima dela? E mais uma vez não é mera coincidência o papel das histórias em quadrinhos (HQ) nesta mudança de foco, em que o

horror deixou de ser o fiel da balança na miséria humana e passou a pano de fundo de temas universais, como o amor, a busca por si mesmo, por coerência.

Essa “coerência” psicológica, mencionada por Roel, é o que conecta o leitor a

divindade de Gaiman. Sempre distante, porém estranhamente próximo de nossas próprias inquietações, testemunhamos Morfeus buscar não apenas seus objetos de poder, mas sua própria razão para continuar existindo. Certa vez, Gaiman resumiu o seu épico pós-moderno como um conto em que um deus tem de decidir entre mudar ou morrer, e ele decide. O Sandman de Gaiman pode ser sim um deus que está entre o mudar e o morrer. Entretanto, todos nós também estamos. E imutabilidade sempre foi e sempre será sinônimo de morte. Por isso mudamos. Por isso nos adaptamos. Por isso crescemos. E nesse sentido, a busca de Sandman é a nossa busca por sentido numa existência que por si só não tem sentido. Este deus tem um trabalho: é o guardião dos sonhos. À parte disso, é uma entidade em busca de transcendência e relevância num espaço hermético de palavras e discursos. Nesse contexto, o que seria essa “transcendência”? talvez o desejo de ser um espírito de relevância cada vez maior. Queremos ser e queremos fazer falta. Freud chamou essa eterna inquietude – mãe do ciúme e de toda carência afetiva – de neurose, deixando claro que o homem não pode desejar não ser neurótico, sendo essa por si só, a maior das neuroses. Para um artista como Paul Éluard, essa necessidade humana ganhou a seguinte máxima: Le dure désir de durer. O difícil desejo de durar. Gaiman, ciente dessa particularidade, de insaciabilidade existencial humana, cria Sandman como uma coleção dessas neuroses e contradições. Precisamente o faz continuar como divindade, como ser. O que o faz não desistir, o que o faz não desintegrar-se, apagar-se, desaparecer-se. O mesmo que nos move. Não vivemos para ter respostas, e sim para continuar fazendo mais e mais perguntas. Não vivemos para cotejar a realidade e sim para nos perder em ilusões oníricas ou neuróticas. Esse é o sentido da existência humana moderna, talvez de toda a existência e evolução humana em todas as eras. Em todo Sandman, Gaiman molda seu personagem como se molda um sonho: cheio de indefinições e falhas, lapsos e vontades, mas sem esquecer do que torna possíveis os sonhos, a inapreensível imaginação humana.

Figura 4: Capítulo 7 – Som e Fúria / Capítulo 8 – O Som de Suas Asas

Arte de Dave McKean

A própria caracterizadas das personagens desse primeiro volume reelabora o conto de terror clássico. Nele, o monstro dos pesadelos do primeiro capítulo torna-se um ser angustiado que no decorrer da série vai demonstrando sua própria fragilidade. Nem mesmo o “vilão” da história, John Dee, responsável pelo massacre em uma lanchonete no sexto capítulo, ao fim surpreende como um ser decadente e digno de piedade. No fim

do primeiro volume, após ser ludibriado pelo rei dos sonhos, Dee descreve sua ambição, não a conquista mundial ou o genocídio, apenas aceitação e afeto.

Consegui. Eu... eu o matei. Seja ele quem ou o que fosse. Morreu. O rubi... o rubi também se foi. Eu me sinto tão estranho... diferente. Bem... agora mando no mundo dos sonhos. Vou me esconder nos sonhos. Nunca mais vou voltar para o mundo real, onde as pessoas machucam você e nem se importam... Onde elas morrem quando você ainda precisa delas. Serei um monarca sábio e tolerante, distribuirei justiça e só mandarei pesadelos para dilacerar a mente dos maus e dos pérfidos! Ou de quem eu não goste. Sou o rei dos sonhos! De tudo! Mas é engraçado. Sempre achei que, quando virasse rei... ouviria aplausos. Achei que alguém diria algo.

É nesses momentos, entre vários outros, que Sandman evidencia-se como uma

obra coesa, bem escrita e artisticamente pertinente. Se em nossas vidas vivemos de sonhos que moldam quem fomos e o que desejamos ser, o texto de Gaiman toca no que temos de mais frágil, nossa própria carência. Como T.S. Eliot deixou-nos claro, não há mais busca por conhecimento ou sabedoria numa época de informação instantânea como a nossa. Nesse sentido podemos fazer uma leitura de Sandman na qual o objetivo não seja sondar ou compreender, e sim, imaginar. E nessa obra, nada é mais poderoso e surpreendente quanto a força da imaginação humana. No capítulo 4, cujo cenário é o inferno, Sandman procura por seu elmo que está em posse do demônio Chorozon. Mediado por Lúcifer Estrela da Manhã, a disputa é resolvida por um combate retórico no qual o perdedor entregará o elmo ou a própria existência. Aqui, bem longe dos combates corporais das histórias em quadrinhos convencionais e dos filmes hollywoodianos, o que importa é a capacidade imaginativa de superar o oponente via intelecto:

Chorozon: Muito bem. O primeiro lance é meu. Sou um lobo horrendo, um predador letal à espreita de sua presa. Sandman: Minha vez. Sou um caçador a cavalo, ataco o lobo com uma lança. Chorozon: Sou uma mosca que pica o cavalo e derruba o caçador. Sandman: Sou uma aranha de oito patas devorando a mosca. Chorozon: Sou uma cobra venenosa devorando a aranha. Sandman: Sou um búfalo de patas pesadas esmagando a cobra; Chorozon: Sou o antraz, a bactéria carniceira, devorando a vida. Sandman: Sou um mundo flutuando no espaço, alimentando a vida. Chorozon: Sou uma nova explodindo, cremando planetas. Sandman: Sou o universo... abrangendo todas as coisas, abraçando a vida. Chorozon: Sou a antivida, a besta do julgamento. Sou a escuridão no fim de tudo. O fim de universos, deuses, mundos, de tudo. E agora, lorde dos sonhos, o que você é? Sandman: Sou a esperança.

Como num duelo intelectual entre um deus e um demônio, a leitura do texto de

Gaiman é sempre um desafio, um desafio imposto a todo leitor exigente que procura por um texto que pode ser lido, pensado, investigado e novamente lido. Ler Sandman buscando a menção de todas as inumeráveis referências ou esperando uma perdida sabedoria shakespeariana ou bíblica, é tarefa por demais grandiosa para qualquer “tolo mortal”. Especialmente se desejamos que Puck, ou Sandman se preferir, esteja errado. A única possível leitura de Prelúdios e Noturnos, numa época em que todas as leituras são possíveis e incompletas, seria uma leitura de noites tranqüilas, em que desejamos que o tempo não passe, como nos bons sonhos. Ler o primeiro volume de Sandman, Prelúdios e Noturnos é como um sonho verdadeiro, talvez um pouco confuso às vezes, mas nunca desinteressante. Um refluxo de interminável exercício imaginativo. NOTAS Parte deste artigo foi publicado na revista digital Rabisco (www.rabisco.com.br), sob o título “Como um deus em eterno aprendizado”, em junho de 2006. Berger, Karen. Introdução a Prelúdios e Noturnos. In: GAIMAN, Neil. Sandman Vol. I – Prelúdios e Noturnos. São Paulo: Conrad, 2005, p. 7. McCABE, Joseph. Passeando com o Rei dos Sonhos: Conversas com Neil Gaiman e seus Colaboradores. São Paulo: HQM Editora, 2008, p. 81. GAIMAN, Neil. Sandman Vol. I – Prelúdios e Noturnos. São Paulo: Conrad, 2005, Posfácio. ROEL, Conrado. Os monstros é que são pop. Revista virtual O Grito! (http://www.revistaogrito.com/page/21/07/2008/entrevista-neil-gaiman/) Último Acesso: 16-08-2008. GAIMAN, Neil. Sandman – Noites sem fim. São Paulo: Conrad, 2004, p. 8. GAIMAN, Neil. Sandman Vol. I – Prelúdios e Noturnos. São Paulo: Conrad, 2005, capítulo 7, p. 18. GAIMAN, Neil. Sandman Vol. I – Prelúdios e Noturnos. São Paulo: Conrad, 2005, capítulo 4, p. 17-19. REFERÊNCIAS BERGER, Karen. Introdução a Prelúdios e Noturnos. In: GAIMAN, Neil. Sandman Vol. I – Prelúdios e Noturnos. São Paulo: Conrad, 2005. GAIMAN, Neil. Sandman – Noites sem fim. São Paulo: Conrad, 2004. GAIMAN, Neil. Sandman Vol. I – Prelúdios e Noturnos. São Paulo: Conrad, 2005. McCABE, Joseph. Passeando com o Rei dos Sonhos: Conversas com Neil Gaiman e seus Colaboradores. São Paulo: HQM Editora, 2008. ROEL, Conrado. Os monstros é que são pop. Revista virtual O Grito! http://www.revistaogrito.com/page/21/07/2008/entrevista-neil-gaiman. Último Acesso: 16-08-2008. * Enéias Farias Tavares, tradutor, crítico literário e professor de Literatura Greco Latina na Universidade Federal de Santa Maria.

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