Sonia Cristina de Oliveira
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1
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
Sonia Cristina de Oliveira
BRINCADEIRAS DE CRIANÇAS ABRIGADAS ― ESTUDO ETNOGRÁFICO
EM INSTITUIÇÃO DE ACOLHIMENTO
Orientador: Prof. Dr. Cleomar Ferreira Gomes
CUIABÁ/MT
2014
2
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
Sonia Cristina de Oliveira
BRINCADEIRAS DE CRIANÇAS ABRIGADAS ― ESTUDO ETNOGRÁFICO
EM INSTITUIÇÃO DE ACOLHIMENTO
Orientador: Prof. Dr. Cleomar Ferreira Gomes
CUIABÁ/MT
2014
3
SONIA CRISTINA DE OLIVEIRA
BRINCADEIRAS DE CRIANÇAS ABRIGADAS ― ESTUDO ETNOGRÁFICO
EM INSTITUIÇÃO DE ACOLHIMENTO
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Educação da Universidade Federal de Mato
grosso, como requisito à obtenção do título de
Doutora em Educação na linha de pesquisa.
Culturas Escolares e Linguagens.
Orientador: Prof. Dr. Cleomar Ferreira Gomes
Cuiabá/MT
2014
4
Dados Internacionais de Catalogação na Fonte.
O48b Oliveira, Sonia Cristina de Oliveira.
Brincadeiras de crianças abrigadas estudo etnográfico em
instituição de acolhimento / Sonia Cristina de Oliveira Oliveira. --
2014
267 f. ; 30 cm.
Orientador: Cleomar Ferreira Gomes.
Tese (doutorado) - Universidade Federal de Mato Grosso,
Instituto de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação,
Cuiabá, 2014.
Inclui bibliografia.
1. Crianças abrigadas. 2. Infância. 3. Brincadeiras. I. Título.
Ficha catalográfica elaborada automaticamente de acordo com os dados fornecidos pelo (a) autor(a).
Permitida a reprodução parcial ou total, desde que citada a fonte.
5
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
PRÓ-REITORIA DE ENSINO DE PÓS-GRADUAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
Avenida Fernando Corrêa da Costa, 2367 - Boa Esperança - Cep: 78060900 - CUIABÁ/MT
Tel : 3615-8431/3615-8429 - E-mail : [email protected]
FOLHA DE APROVAÇÃO
TÌTULO: “Brincadeiras de crianças abrigadas ― estudo etnográfico em
instituição de acolhimento”
AUTORA: Sonia Cristina de Oliveira
Tese de doutorado defendida e aprovada em 04/12/2014
Composição da banca examinadora:
______________________________________________________________________
Presidente Banca / Orientador Doutor Cleomar Ferreira Gomes
Instituição: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
Examinador Interno Doutor Evando Carlos Moreira
Instituição: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
Examinadora Interna Doutora Jane Teresinha Domingues Cotrin
Instituição: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
Examinadora Externa Doutora Marynelma Camargo Garanhari
Instituição: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ/UFPR
Examinadora Externa Doutora Tania Marta Costa Nhary
Instituição: UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEITO/UERJ
Examinadora Suplente Doutora Ana Carrilho Romero Grunennvaldt
Instituição: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
Examinadora Suplente Doutora Romilda Teodora Ens
Instituição: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓILICA/PUC
CUIABÁ, 04/12/2014.
6
Às crianças, seus cuidadores, recreadoras, participantes da
pesquisa empírica, por tudo o que vivi e aprendi com eles,
permitindo-me pôr em perspectiva as diferentes teorias
estudadas, revisitadas e chegar às reflexões aqui trazidas.
7
Agradecimentos
À Primeira Vara Especializada da Infância e Juventude de Cuiabá/MT, pela
autorização.
Ao Lar da Criança, que permitiu minha presença como pesquisadora.
Às cuidadoras, que me acolheram nesse espaço de trabalho.
À professora de Educação Física, pelo acolhimento e aval de minha presença,
em suas aulas.
Com mais carinho, às crianças participantes da pesquisa, com as quais convivi,
brinquei, ouvi seus segredos e partilhei alegrias e brincadeiras. Aprendi com elas que
mesmo frente à situação difícil é possível brincar, fantasiar e sonhar.
Agradeço ao pessoal de apoio do programa de Pós-Graduação, na pessoa da
secretária Luísa, que sempre me atendeu gentilmente.
Aos professores doutores Evando Carlos Moreira, Tania Marta Costa Nhary,
Marynelma Camargo Garanhari, Jane Teresinha Domingues Cotrin, pela leitura
impecável, de modo ímpar, no momento de minha qualificação, passo decisivo para
ajustar meu trabalho ao momento final.
Especialmente, ao meu orientador, professor Dr. Cleomar Ferreira Gomes, com
quem pude fazer meus questionamentos, perguntar, duvidar, discordar, mas acima de
tudo, por me apoiar e, de forma amigável, sempre esteve disponível para me orientar, e
desse modo, juntos, fomos fazendo o percurso deste trabalho. A você, Cleo, muito
obrigada. Meu carinho também a Lya e a Flávia, que fazem parte de sua vida.
A minha família, respectivamente, minha mãe Eunice, minha filha Letícia, meu
esposo Admilson e irmãos Francisco e família, João e filhos, Eliana e filha, Elisangela e
filha e André, que diretamente fazem parte de minha vida, da minha história, e mesmo
separados, em alguns momentos, pela distância física, somos ligadas pelo amor que nos
une.
As minhas amigas, Tatiane Lebre, Nídia Ferreira, Elessandra pelo carinho e
amizade.
A Deus, autor da minha fé, pela fidelidade comigo e cuidado eterno com minha
vida.
8
No amor de uma criança tem tanta canção pra
nascer, carinho e confiança, vontade e razão de
viver.
Cláudio Nucci
9
RESUMO
A pesquisa teve por finalidade investigar o brincar no contexto de abrigo, e saber como
as brincadeiras se ajustam ou se integram como um instrumento de acolhimento,
desenvolvimento e de aprendizagens para a vida social das crianças. A ideia central,
perseguida na investigação, incide em questões de pesquisa com as seguintes
proposituras: 1) Se toda criança brinca e quando brinca ela traz conteúdos relacionados
a sua experiência? Como essa criança “aprisionada” organiza e vivência essa
experiência lúdica? 2) Se as brincadeiras têm determinações de aspectos sociais e
culturais, com quais referências as crianças usam o imaginário quando brincam, uma
vez que são marcadas pelo abandono, negligência e violência? 3) As brincadeiras são
atividades que servem para seu imaginário infantil como instrumento de elaboração de
perdas? Nisso resultou em verificar o funcionamento de como surgem as brincadeiras,
como se estruturam, se organizam e vivenciam as experiências lúdicas e como trazem
elementos do cotidiano nessas atividades. Enfim, que relação faz do brincar com sua
experiência? É um estudo de caso, do gênero etnográfico e se arrima no solo
paradigmático da Sociologia da Infância e de teóricos que discutem a brincadeira numa
perspectiva sociocultural. O terreno da pesquisa é uma instituição de acolhimento em
Cuiabá/MT, que abriga e protege crianças de até 12 anos, vítimas de algum tipo de
negligência ou violência familiar. A amostra envolveu cuidadores e crianças de 2 a 5
anos. Os episódios foram colhidos com observação em situações de brincadeiras,
apontamentos no diário de campo, registro em vídeo e áudio. A compreensão dos dados,
cujo foco recai sobre as brincadeiras e as significações no cotidiano da instituição,
revela aspectos importantes da rotina, da experiência e história de vida das crianças. A
pesquisa aponta que as brincadeiras ajudam criar laços afetivos, enriquecem as
interações entre elas e ajuda na elaboração das perdas. O desafio à autoridade e a
transgressão são estratégias importantes envolvidas no funcionamento das brincadeiras.
As crianças lutam por autonomia na tentativa de conquistar o seu espaço, algumas
exercitam este protagonismo por meio da transgressão, a brincadeira dá voz à criança e
possibilita ações com autonomia e autoria. As brincadeiras refletem muito da criança,
expressa em relação a elas, de sua história e sobre a instituição, e no processo de brincar
mais vale a interação do que os objetivos da instituição. Elas se beneficiam
simplesmente por estarem juntas, organizam e vivenciam as experiências lúdicas em
torno de questões da instituição e lembranças de sua família. Entre tantas questões
apontadas, uma delas é o fato de a rotina institucional e o atendimento implicar
diretamente na organização, espontaneidade e autonomia para brincar. O estudo sugere
entre outras questões, uma reorganização das atividades lúdicas, isso envolve a
logística, mais diálogo, capacitação e planejamento com espaço para as brincadeiras.
Esta pode não ser o mais importante para os pequenos, mas, sem dúvida ocupa a maior
parte do tempo.
Palavras-chave: Crianças abrigadas. Brincadeiras. Infância.
10
ABSTRACT
The research aimed to investigate the play in the shelter of context, and knowing how
the play fit or joining as an instrument of acceptance, development and learning for the
social life of children. The central idea, pursued in research, focuses on research
questions with the following propositions: 1) If every child plays and when he plays it
brings content related to your experience? As this child "trapped" organizes and
experience this playful experience? 2) If the games are determinations of social and
cultural aspects, with which children references use the imagination at play as they are
marked by abandonment, neglect and violence? 3) The games are activities that cater to
your child's imagination as drafting losses instrument? It resulted in checking the
operation of the games as they occur, how to structure, organize and experience the
playful experiences and how they bring everyday elements in these activities. Anyway,
what relationship does the play with your experience? It is a case study of ethnographic
genre and is anchored in the soil of paradigmatic sociology of childhood and theoretical
discussing the game in a sociocultural perspective. The field of research is a host
institution in Cuiabá / MT, which houses and protects children up to 12 years, victims of
some type of neglect or family violence. The sample involved caregivers and children 2-
5 years. The episodes were collected with observation in situations of play, notes in
field diary, record video and audio. The data analysis, whose focus is on the games and
the meanings on other everyday, reveals important aspects of routine, experience and
history of children's lives. The research shows that the games help create emotional ties,
enrich their interactions and help in the preparation of losses. The challenge to the
authority and transgression are important strategies involved in the operation of games.
Children fighting for autonomy in an attempt to win their space, some exercise this role
through transgression, the play gives voice to children and allows actions with
autonomy and authorship. The games reflect very child expressed about them, their
history and about the institution, and in the process it is better to play the interaction of
the goals of the institution. They simply benefit by being together, organize and
experience the playful experiences around issues of the institution and your family
memories. Among the many issues raised, one of them is the fact that the institutional
routine and the service directly involve the organization, spontaneity and autonomy to
play. The study suggests among other things, a reorganization of recreational activities,
this involves logistics, more dialogue, training and planning with room for play. This
may not be the most important for small, but undoubtedly occupies most of the time.
Keywords: Children sheltered. Play. Childhood
11
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.............................................................................................................13
CAPÍTULO I................................................................................................................. 22
INFÃNCIAS E BRINCADEIRAS: MARCOS HISTÓRICOS E A CRIANÇA
CONSTRUÍDA NA SOCIOLOGIA DA INFÂNCIA
1.1 As crianças e as brincadeiras nas sociedades caçadoras-coletoras, no surgimento da
agricultura, nas civilizações clássicas e no contexto das religiões..................................23
1.2 A criança na Idade Média.........................................................................................34
1.3 A infância na Modernidade.......................................................................................38
1.4 A Infância e a Sociologia...........................................................................................45
1.4.1. A criança construída na Sociologia da Infância....................................................45
1.4.2. Resgate Histórico da Sociologia da Infância e teorias tradicionais...................... 58
1.4.3. Reprodução interpretativa: cultura de pares..........................................................75
CAPÍTULO II................................................................................................................79
INFÂNCIA, BRINQUEDOS, BRINCADEIRAS E JOGOS
2.1. Compreensão sobre o brincar...................................................................................80
2.2.Concepções sobre o brincar: sociocultural, filosófica e psicológica........................82
2.3. Jean Château: a atividade lúdica proporciona um encantamento em crianças.........84
2.4.Walter Benjamin: A brincadeira da criança determina conteúdo imaginário............86
2.5. Gilles Brougère: A brincadeira é uma forma de interpretação dos significados
contidos nos brinquedos..................................................................................................88
2.6. Roger Caillois: Brincadeira é uma atividade fictícia...............................................89
2.7. Johan Huizinga: Brincadeira é uma atividade voluntária, sujeito a ordens deixa de
ser jogo............................................................................................................................93
2.8. Vygotsky: a brincadeira impulsiona desenvolvimento........................................... 96
CAPÍTULO III............................................................................................................103
CRIANÇAS, BRINCADEIRAS E INSTITUCIONALIZAÇÃO
CAPÍTULO IV.............................................................................................................113
METODOLOGIA: A PESQUISA, OS SUJEITOS E O LOCAL DA PESQUISA
4.1. Ética, compromisso, responsabilidade na pesquisa com crianças..........................115
4.2. Crianças como agentes sociais e infância como fenômeno social: participação em
pesquisas e questões metodológicas..............................................................................122
4.3. Reflexões sobre métodos etnográficos no estudo com crianças.............................126
4.4. Lócus da pesquisa: descrição, apontamentos e reflexões.......................................129
4.5. Envolvimento com o grupo: aproximação, escolha, entrada no campo e inclusão
nas brincadeiras observadas...........................................................................................133
4.6. Estratégias de pesquisa: observações, entrevistas, anotações de campo, vídeos
audiovisuais .................................................................................................................151
4.7. Procedimentos e critérios para analisar e compreender os dados ..........................156
CAPÍTULO V..............................................................................................................159
EU VI, BRINQUEI, CONHECI, PARTICIPEI E ANOTEI AS BRINCADEIRAS
E EXPERIÊNCIAS NO ESPAÇO INSTITUCIONAL
5.1 As brincadeiras observadas que falam sobre e com as crianças e a instituição.......160
12
5.1.1. A separação nas brincadeiras de meninos e meninas..........................................162
5.1.2 A separação grupos de irmãos nas brincadeiras...................................................167
5.1.3. A busca de autonomia na brincadeira por meio da transgressão.........................170
5.1.4. As brincadeiras das crianças x cuidadores sentinelas .........................................177
5.1.5. Brincadeiras tradicionais e personagens da televisão..........................................180
5.1.6. A permissão para brincar numa brincadeira em andamento................................182
5.1.7. Brincadeiras e punições brincadas.......................................................................187
5.1.8. Família imaginada, pensada e brincada...............................................................192
5.2. Entrevistas das crianças: conversando, brincando e ouvindo segredos Sonhos e
revelações......................................................................................................................197
5.2.1. Brincadeiras preferidas das crianças...................................................................198
5.2.2. Lugares e momentos permitidos para brincar......................................................203
5.2.3. Aborrecimento quando está brincando................................................................205
5.2.4. Brincadeira de casinha . 208
5.3. Entrevistas com as orientadoras: olhares e percepções da realidade institucional.210
5.3.1. Espaços em que as crianças mais brincam..........................................................210
5.3.2. Percepção sobre as brincadeiras das crianças......................................................212 5.3.3. Brincadeiras e relação com a experiência de vida das crianças..........................216
5.3.4. Importância da brincadeira para as crianças........................................................218
5.3.5. Brincadeiras livres ou as dirigidas pelos recreadores..........................................219
5.3.6. Conhecer as crianças pelas brincadeiras..............................................................222
5.3.7. As pessoas que brincam com as crianças............................................................223
5.3.8. Importância das brincadeiras para a instituição..................................................224
5.3.9. Capacidade das crianças para brincarem sozinhas..............................................226
5.3.10. Brincadeira de casinha.......................................................................................227
5.3.11. Sugestões para as brincadeiras..........................................................................230
CAPÍTULO VI.
OLHARES, REFLEXÕES E PROPOSIÇÕES A RESPEITO DAS CRIANÇAS,
BRINCADEIRAS E INSTITUCIONALIZAÇÃO...................................................233
REFERÊNCIAS...........................................................................................................253
ANEXOS.......................................................................................................................264
13
14
INTRODUÇÂO
Indiscutível que o brincar faz parte da vida das crianças. Uma atividade que os
homens organizam tempo e espaço para elas desde a época da sociedade caçadoras-
coletoras até os dias atuais. A questão que se modifica com o tempo são importância e
espaços dedicados a essa particularidade, presente muito mais na infância do que na
vida adulta, em termos de dedicação.
Os conceitos criança e infância estão atravessados entre as posições biológicas
e culturais, o que implica uma pista da construção social para entender as várias
infâncias de acordo com perspectiva social e histórica.
Discorro um pouco de fragmentos de minha história profissional e acadêmica
para contextualizar a construção do objeto e autores visitados. Possuo graduação em
Psicologia e minha atividade profissional enquanto funcionária pública estadual se
aplica ao atendimento e acolhimento de adolescentes que cumprem medida
socioeducativa de internação, conforme Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA.
Foi esta experiência de trabalho que me moveu para os estudos do mestrado. A
experiência de trabalho me fez interrogar sobre o brincar dos adolescentes e em
cumprimento dessa medida percebi que a brincadeira, embora fosse um elemento
presente na experiência de internação, nem sempre tinha o espaço e a compreensão
como atividade inerente a eles.
Observei que a atividade lúdica possuía pouco espaço e, principalmente,
significado na rotina de educação dos adolescentes privados de liberdade. Isso me levou
a crer que uma investigação revelaria dados essenciais à reformulação de propostas com
base em ações diferenciadas, voltadas para a importância da ludicidade no processo
educacional. Esse foi meu estudo de mestrado que, no término, entre outras, duas
constatações foram consideradas significativas. Uma se refere ao fato de os adolescentes
brincarem todo o tempo e em todos os lugares na instituição, mesmo estando presos. A
outra, algumas brincadeiras revelam seu lado “infantil”, com jogos ligados à infância1.
Percebi que, terminei o trabalho de mestrado com outras perguntas, e uma vez
encerrada a minha dissertação, ficou muito evidente que os adolescentes brincam todo o
tempo, mesmo esse aspecto não sendo percebido, compreendido e considerado na
instituição e na proposta de atendimento.
1 Resultado completo da pesquisa ler OLIVEIRA, Sonia C. & GOMES, Cleomar F. Adolescência e
ludicidade: jogos e brincadeiras de adolescentes autores de atos infracionais. Cuiabá: EdUFMT, 2010.
15
Na sequência, meu foco e minhas perguntas se moveram em direção às
crianças pequenas institucionalizadas que estão sob custódia do estado. Perguntei-me se
a brincadeira tinha espaço e valia na rotina da instituição, pois segundo Château (1987)
a atividade lúdica proporciona um encantamento em crianças e faz parte da natureza
humana o ato de brincar, com a vantagem de favorecer o desenvolvimento da criança e
mesmo dos adultos que se realizam plenamente, entregando-se por inteiro ao jogo. É
pelo jogo, pelo brinquedo, que crescem a alma e a inteligência, “o homem só é completo
quando brinca” (SHILLER APUD CHÂTEAU, 1987, p. 13).
Mergulhei em diálogo com vários autores que consideram o brincar não como
uma dinâmica interna do indivíduo, mas uma atividade dotada de significação social,
perspectiva sociocultural que como qualquer outra necessita de aprendizagem e deve ser
interpretada pelos atores sociais envolvidos, explicando melhor, o ato de brincar faz
parte da natureza humana e dos animais, porém, a experiência e tipos de brincadeiras
fazem parte do universo da vivencia e cada cultura organiza a seu modo.
Fiz uma imersão no aporte teórico sobre brincadeiras, adotando como ponto de
partida os estudos realizados no âmbito das teorias que investigam o jogo numa
perspectiva histórica e cultural, com base em autores, tais como Huizinga, Benjamin,
Château, Brougère, Caillois e Vigotsky. Esses autores elegem como explicação a
importância de se compreender o jogo, a brincadeira como uma ação que necessita de
aprendizagem, dotada de significações a partir da vivência na cultura, isto é, analisam o
jogo com determinações de aspectos sociais, simbólicos e, portanto, culturais.
A abordagem cultural analisa o jogo como uma expressão da cultura, uma ação
que possui influências do mundo onde cada cultura em particular dá um sentido, e esse
se inscreve num sistema de significação pessoal dada pelos sujeitos, em função de suas
percepções e da imagem que possuem da atividade.
Na sequência, a discussão teórica sobre a infância focada nos princípios da
Sociologia da Infância ― SI, com autores como Sarmento, Corsaro, Prout, Qvortrup,
Montandon, Sirota e outros. A Sociologia da Infância tem grifado, nos últimos tempos,
que as crianças são atores sociais porque interagem com as pessoas, com as instituições,
e reagem frente aos adultos quando desenvolvem estratégias de luta para participar no
mundo social.
No entanto, o modelo de infância previsto na Sociologia da Infância ainda não
encontrou vez e voz nas instituições com relação à ideologia de cuidar, proteger e
16
socializar em pleno século XXI, ao contrário, aprisionou a criança em casa, na escola e
nas instituições jurídicas.
As escolas possuem muros cada vez mais altos para a sua segurança e a dos
alunos, em detrimento de parques, brinquedos e espaços para brincadeiras. A justiça
aprisiona para proteger e o que parece proteção acaba virando privação.
Historicamente, conforme Nascimento, Lacaz e Filho (2010), dois momentos
são importantes antes da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA);
lei que delineia os critérios de atendimento e cuidados da infância; primeiro, o decreto
nº 17.943-A, de 1927, conhecido como Código Mello Mattos, que vigorou no país
durante 52 anos, passou por algumas alterações, porém sem ser modificado em seu
caráter higienista e repressor, sendo característica importante à higienização da
sociedade. A proposta não derruiu os muros de muitos abrigos de acolhimento, dos
quais convivem com práticas e ações similares aos orfanatos/instituições de
atendimento em grande escala.
Com o advento do ECA, crianças e adolescentes passam a ser considerados
sujeitos de direitos, não sendo mais considerados objetos de proteção, ou seja, não mais
como menores à disposição da ação do poder público, em casos de abandono e/ou
delinquência, passível de medidas assistencialistas, segregadoras e repressivas como
previa nos Códigos de Menores de 1927 e 1979. O ECA propõe que as crianças e
adolescentes, antes vistas como portadores de carências sejam cidadãos, sujeitos de
direitos.
Quando nos deparamos com essas palavras salta a esperança de que podemos
encontrar a criança pensada na Sociologia da Infância da infância no interior das
instituições, crianças vistas como atores sociais que interagem com as pessoas, com as
instituições e com os adultos. As crianças são personagens ativas na sociedade e não
meramente espectadoras, são atores sociais, que adquirem voz e são credoras de direito.
Mediante essa discussão, para possibilitar esse novo olhar e assumir o modelo de
cidadania e direitos que a Sociologia da Infância propõe a respeito da infância, é
necessário desconstruir ideias cristalizadas há séculos de tábula rasa, pecaminosa,
receptáculo da educação dos adultos e tantas outras conotações que nos fizeram ter uma
imagem negativa.
Neste contexto de direitos, as crianças participam coletivamente na sociedade e
são construtoras, investigadas pelos seus próprios méritos, e não indiretamente por meio
de outras categorias da sociedade, isso rompe com a relação de poder do adulto sobre
17
elas, e as inserem num contexto social, cultural e relacional, igualmente, produto e
produtora de cultura.
Com este fio condutor de crianças ativas e participativas, este trabalho toma
como participantes aquelas institucionalizadas sob custódia do estado, que foram
retiradas das famílias por negligência, maus tratos, abandono e outras questões que
envolvam ausência de cuidado e responsabilidade com elas, ou como preferem algumas
discussões, crianças acolhidas, exigentes de uma urgência para que seus direitos sejam
cumpridos e sua permanência em instituição seja compreendida como um direito, uma
vez que não podem contar como um privilégio.
A pesquisa teve por finalidade investigar o brincar no contexto de abrigo, e
saber como as brincadeiras se ajustam ou se integram como um instrumento de
acolhimento, desenvolvimento e de aprendizagens para a vida social das crianças. A
ideia central, perseguida na investigação, incide em questões de pesquisa com as
seguintes proposituras:
1) Se toda criança brinca e quando brinca ela traz conteúdos relacionados a sua
experiência. Como essa criança “aprisionada” organiza e vivencia essa experiência
lúdica?
2) Se as brincadeiras têm determinações de aspectos sociais e culturais, com
quais referências as crianças usam o imaginário quando brincam, uma vez que são
marcadas pelo abandono, negligência e violência?
3) As brincadeiras são atividades que servem para seu imaginário infantil como
instrumento de elaboração de perdas?
Nisso resultou em verificar o funcionamento de como surgem as brincadeiras,
como se estruturam, se organizam e vivenciam as experiências lúdicas e como trazem
elementos do cotidiano nessas atividades. Enfim, que relação faz do brincar com sua
experiência?
É um estudo de caso, do gênero etnográfico e se arrima no solo paradigmático
da SI e de teóricos que discutem a brincadeira numa perspectiva sociocultural. O
terreno da pesquisa é uma instituição de acolhimento em Cuiabá/MT, que abriga e
protege crianças de até 12 anos, vítimas de algum tipo de negligência ou violência
familiar.
A amostra envolveu um grupo de crianças e orientadores, crianças entre 2 a 5
anos; os episódios foram colhidos com observação em situações de brincadeiras, com
apontamentos no diário de campo, registro em vídeo e áudio. A análise e compreensão
18
dos dados recaem sobre as brincadeiras e as significações no cotidiano da instituição e
na experiência das crianças.
Durante todo o trabalho de reflexão, teorização e olhares indicativos de outra
forma de atendimento, intercalamos citações literais de entrevistas, transliterações de
anotações de campo, falas ouvidas das crianças e dos adultos que não foi possível
gravar em função do momento e da atividade, sendo depois anotadas as ideias centrais
em formato de texto no diário de campo.
Com o intento de organizar o trabalho, estruturei-o em seis capítulos:
No primeiro capítulo, denominado Infância e Brincadeiras: marcos históricos, e
a criança construída na sociologia da infância, elaborei um trabalho exaustivo com
alguns lances da história desde as sociedades caçadoras coletoras, porém não se trata de
um capítulo histórico, apresento alguns costumes e formas de se relacionar com a
infância desde o período caçadores - coletores, agricultura e em alguns nichos da Idade
Média até chegar à exigência que a Sociologia da Infância tem grafado na literatura,
nos últimos tempos, sobremaneira quando a criança passa a ser ator social, adquirindo
voz e formas próprias de assimilar e interpretar o mundo.
Principio as ideias sobre infância com base no trabalho de Stearns (2006),
Heywood (2004), Ariès (1981) e Postam (1999). Neste cenário, a história cultural da
infância, ao mesmo tempo em que possui marcos, se move por caminhos flutuantes com
o passar do tempo e anuncia que existem infâncias. Por exemplo, a criança poderia ser
considerada impura no início do século XX como foi na Alta Idade Média, igualmente,
as influências culturais das religiões como Cristianismo, Budismo, Confucionismo e o
Iluminismo geraram importantes questões que tiveram forma cíclica, em vez de linear.
Ao emergir-se na Sociologia da Infância notamos que traz implicações
conceituais e metodológicas, anuncia um ser ativo, criativo e que deve ser considerado
pelo que é, e não pela falta ou por aquilo que deverá ser. A infância não desaparece, mas
se transforma e se reconstrói de acordo com o processo histórico.
No universo de uma nova Sociologia da Infância, algumas proposições são
fundamentais, por exemplo, as crianças são agentes ativos que constroem suas próprias
culturas, contribuindo para a produção do mundo adulto e a infância é uma forma
estrutural ou parte da sociedade. Entre os teóricos visitados, possui um significado
especial Willlian Corsaro. A partir do contato com as pesquisas etnográficas desse
autor, que propõe o conceito de reprodução interpretativa como substituição de
19
socialização, fomos desafiados a pensar na pesquisa e na infância em outras bases
teóricas e metodologias.
Na sequência, no capítulo 2, apresento discussões sobre Infância, brincadeiras e
jogos, sendo o termo brinquedo entendido, também, como objeto suporte de brincadeira,
como a descrição de uma atividade estruturada com regras implícitas ou explícitas. Os
termos jogo e brincadeira são tratados como sinônimo, neste trabalho.
Neste aspecto, é bom registrar que o conceito brincadeira, com sua exibição
semântica, não existe noutra cultura linguística, como nós a utilizamos por aqui. A
qualidade que tem um objeto (brinquedo) ou uma atividade (brincadeira) que faz
despertar um estado lúdico, a espontaneidade, o senso de humor e a alegria. É uma
atividade livre, instável, voluntária e não sujeita a ordens externas ao seio da própria
brincadeira.
Na sequência, enuncio ideias dos autores Jean Château, Walter Benjamin,
Gilles Brougère, Roger Caillois, Johan Huizinga e Vygotsky. Estes autores adotam o
jogo numa perspectiva histórica e cultural, elegem como explicação a importância de se
compreender o jogo e a brincadeira como uma ação que necessita de 2aprendizagem,
dotada de significações, a partir da vivência na cultura, isto é, analisam o jogo com
determinações de aspectos sociais, simbólicos e, portanto, culturais.
No capítulo 3, Crianças, institucionalização e brincadeiras, utilizo, algumas
vezes, os termos abrigo e instituição, bem como abrigamento e institucionalização de
forma indiscriminada, por conta de trabalhos, leituras, pesquisas que são relatadas de
diversas épocas, nas quais o termo abrigo/abrigamento não era empregado. Menciono a
problematização das crianças institucionalizadas e como seria viável muitas mudanças
nas instituições de acolhimento, e que as transformações não se restrinjam apenas à
manutenção da edificação que sedia o abrigo ou instituição, mas que se efetivem
políticas de acolhimento, tendo como preocupação a infância e suas particularidades.
Entre essas mudanças, destaco a importância de se valorizar mais a brincadeira no
cotidiano das crianças.
No capítulo 4, registra-se a pesquisa, os participantes e o local, indica-se o
caminho percorrido, definição metodológica, conhecimento das crianças, campo e
escolhas. Ou seja, descrevo o local da pesquisa e os sujeitos, que são crianças que estão
2 O ato de brincar faz parte da natureza humana e dos animais. Entretanto, a experiência e tipos de
brincadeiras fazem parte do universo da vivencia e cada cultura organiza a seu modo.
20
na instituição encaminhadas pela justiça por serem abandonadas ou sofreram maus
tratos. Algumas permanecem até serem reintegradas à família, outras, sem haver a
possibilidade de integrá-las são postas para a adoção.
Pontuo inicialmente as questões éticas, porém a pesquisa com as crianças é um
processo complexo com poucas pesquisas que, de fato, tenham dado conta de permitir
que a criança seja ator no processo investigativo.
E são muitas as razões. Primeiro, porque historicamente as investigações eram
feitas por intermédio da escola, da família e da justiça, logo, os estudos sempre eram
fundamentados por meio do olhar e das informações dos adultos.
Crianças não eram consideradas hábeis para se pronunciarem sobre os fatos e
sobre si mesmas, logo, o respeito e a permissão da criança no processo investigativo
tornam-se sempre muito difícil de lidar.
A justiça considera a criança incapaz e sem condição de responder por seus
atos; esse assunto atravessa as questões investigativas que não consideram importante a
permissão dada pela criança. Nesta pesquisa, existe o esforço de se levar em conta a voz
e o envolvimento da criança, um processo com sua efetiva participação.
Trago os episódios das brincadeiras, transformados e descritos em textos, o
âmago da pesquisa. É o momento em que faço minhas reflexões e recomendações. É um
momento, também, que trago o material empírico e me posiciono com muitas falas que
implicam resultados e, mesmo não sendo o último capítulo, apresento implicações e
muitas questões pertinentes ao serviço de acolhimento, nas instituições.
O capítulo 5, denominado Eu vi, brinquei, conheci, participei e anotei as
brincadeiras e experiências no espaço institucional, anuncio parte essencial do trabalho,
os episódios relatados com inferências, percepções, apontamentos do que significam
minhas descobertas, as ideias centrais, uma tentativa de pensar em contribuições para o
atendimento com base na minha vivência e nos resultados obtidos.
No capítulo 6: Olhares, reflexões e proposições a respeito das brincadeiras,
crianças e instituição, esforcei-me para finalizar a descrição dos fatos, registrando como
foram vivenciados, percebidos e relatados, sem me eximir das percepções baseadas em
estudos e experiência, e igualmente dar visibilidade à voz das crianças com seus gestos
e brincadeiras.
Nos capítulos anteriores, os resultados estão explícitos, porque ao mesmo
tempo em que os descrevo, faço as devidas reflexões e ponderações com uso de lentes
teóricas ou não, bem como algumas ilações e proposições. No último capítulo
21
conclusivo, como as considerações finais foram expostas, transformo-as em questões
reflexivas, provocativas e sugestões de outras formas de intervir que possam interessar o
leitor preocupado com a infância, e, quem sabe, pensar em outras bases o modo de
acolhimento nas instituições.
São reflexões para profissionais que acreditam na possibilidade de
atendimento, conforme preconizam as diretrizes e leis vigentes e igualmente para
pessoas dispostas a acolher com respeito os direitos das crianças.
O compromisso deste trabalho é trazer à luz a experiência de uma instituição
que faz um trabalho pouco divulgado em sua cientificidade e seu caráter social.
De modo genérico, as escolas são mais flexíveis e acolhedoras com pesquisas,
diferentes de instituições de acolhimento, de responsabilidade do Poder Judiciário, local
em que os dirigentes com a responsabilidade de proteger a privacidade das crianças,
inclusive por conta de responsabilidade legal, são pouco acolhedores e confortáveis com
a presença de um pesquisador, que pode desvelar assuntos e problemas não muito
favoráveis para a gestão, que é normalmente atravessada por influências políticas,
interferindo em suas decisões, em sua rotina e até no atendimento da instituição.
Entre muitas questões, este trabalho aponta que a solução não se resume em
capacitação dos funcionários, em especial, dos cuidadores sobre os quais é depositada
muita responsabilidade. Esses têm uma história e responde à ausência e falta de
capacitação, igualmente efetivam um modelo de gestão. Capacitação é apenas uma das
ações. As instituições precisam aprender outras formas de lidar com a infância de
direitos, com rotinas que privilegiem a autonomia, a criatividade e, prioritariamente, as
próprias crianças, e não o funcionamento da instituição.
A pesquisa teve como sujeito uma amostra de crianças e cuidadores, as leituras
feitas foram direcionadas relativamente à brincadeira infantil que falam sobre e com a
criança. Concomitantemente, revelaram-se aspectos do funcionamento da instituição,
como, por exemplo, que as brincadeiras são atividades que devem ter hora marcada e
vigilância, talvez porque onde tem duas ou três crianças há transgressão e rebeldia,
principalmente as crianças pequenas quando estão presentes, logo surgem muitas regras,
e assim, elas diminuem as relações e tornam as brincadeiras desinteressantes.
Fazer esta pesquisa, por vezes, me pareceu muito difícil. Ao mesmo tempo em
que me propus a conhecer e a investigar, muitas foram as situações em que desejei
profundamente intervir, fazer e contribuir, longe da função de pesquisadora, esforçando-
me para relatar o vivido, mas foi impossível me negar em algumas provocações no
22
sentido de pensar em outras formas de acolhimento, ou apontar o real para que
possamos pensar em aproximar do ideal. Ao mesmo tempo em que registrei os dados fiz
sugestões, dialoguei com teóricos e triangulei com os próprios dados.
Acredito que a descrição das situações reais possam suscitar algumas
inquietações para a instituição, entretanto, espero que se transforme num diálogo e
propositura de algumas mudanças, um convite para novos olhares a nossa infância.
23
CAPÍTULO 1
INFÂNCIA E BRINCADEIRAS: MARCOS HISTÓRICO E A CRIANÇA
CONSTRUÍDA NA SOCIOLOGIA DA INFÂNCIA
“Brincar com crianças não é perder tempo, é ganhá-
lo; se é triste ver meninos sem escola, mais triste
ainda é vê-los sentados enfileirados em salas sem ar,
com exercícios estéreis, sem valor para a formação
do homem.”
Carlos Drummond de Andrade
24
1.1. As crianças e as brincadeiras nas sociedades caçadoras-coletoras, no
surgimento da agricultura, nas civilizações clássicas e no contexto das religiões
A proposta de investigação deste trabalho é o brincar no contexto de abrigo,
mas o estudo das brincadeiras remete naturalmente às informações de como, ao longo
dos tempos, a criança foi compreendida e, aos poucos, construída a categoria infância,
no processo histórico.
O estudo das brincadeiras está atrelado às questões de criança e infância, pois a
forma de se conceber a criança em cada momento histórico revela muito sobre as
brincadeiras, inclusive, seu grau de importância e liberdade para brincar.
Historicamente, a literatura sobre infância possui a tendência de sublinhar
como marco a Idade Média, porque é muito difícil construir histórias elaboradas uma
vez que crianças não escrevem e tudo é registrado pelos adultos, por isso, é fácil falar de
infância que em parte é estabelecida pelos adultos e instituições do que a respeito das
próprias crianças.
Neste capítulo, pontuo ideias sobre a infância perquiridas no período dos
caçadores, transição para a agricultura, surgimento das civilizações clássicas e o
impacto das religiões. Não é uma construção histórica, uma vez que este trabalho não é
histórico, são questões pertinentes às crianças que possuem, por sua vez, estreita ligação
com as brincadeiras e com a construção da infância.
O historiador Stearns (2006)3 é o autor de base deste capítulo e referência para
compreender questões emanadas desse período histórico que conduzirá o texto,
posteriormente, a um diálogo mais estreito com os estudos da Sociologia da Infância .
Esse período teve enormes implicações para a infância4, embora, considere
difícil saber com exatidão pela distância no tempo: “O assunto é muito extenso e
existem enormes lacunas no conhecimento histórico disponível.” (STEARNS, 2006,
PREFÁCIO)
Diferente de Ariès (1981) e Heywood (2004), o historiador Stearns (2006)
busca compreender a infância a partir do que ele considera das transformações das
condições humanas que é a troca da caça e coleta pela agricultura. Grandes adaptações
3 A pesquisa de Stearns passeia pela história das sociedades agrárias e clássicas àquelas dos séculos XX e
XXI, do Ocidente à Índia e ao Japão, passa pelas sociedades comunistas e analisa papeis e funções das
crianças. 4 O autor Stearns usa a expressão mesmo quando fala dos tempos primórdios, porém, deixa claro que
crianças sempre existiram e infância é uma construção social
25
na forma de lidar com as crianças estiveram envolvidas nessa transição, sendo
importante considerar até que ponto os adultos se davam conta de que estavam
redefinindo a infância.
As sociedades em toda sua existência se preocuparam com as crianças cada
uma a sua maneira, logo, fazer, na medida do possível, uma leitura do passado
possibilita melhor compressão dos fatos e do modo pelo qual as crianças são percebidas
e tratadas nas diferentes sociedades. Nesse processo, fica evidente a variação da
construção do termo infância ao longo do tempo, o que indica imensas diferenças de
uma sociedade para outra, de um período para outro. (STEARNS, 2006).
Neste contexto, a caça e a coleta consistem num marco importante na
economia natural dos seres humanos. As primeiras ideias e experiências voltadas para a
infância se formaram nesse contexto, um período difícil para reunir informações, “a
maior parte das evidências decorrem de resquícios materiais somados à observação de
sociedades caçadoras-coletoras que sobreviveram aos tempos modernos”.
(STEARNS,2006, p. 21).
A proposta de investigar a infância como parte da experiência humana é um
desafio necessário, pois as convergências e diferenças de uma sociedade a outra torna o
assunto ímpar, e também as “infâncias refletem as sociedades, por intermédio dos
adultos que surgem das crianças”. (STEARNS, 2006, p.20).
É importante investigar a infância nessas sociedades, porque os traços dos
hábitos da caça e da coleta subsistem mesmo em economias muito diferentes, e alguns
dos aspectos naturais ou inerentes da infância estão presentes e são determinantes pelos
ajustes exigidos para a prolongada dependência na infância, visto que as crianças,
diferentes de outros animais, precisam de um tempo maior de dependência do adulto
para sobrevivência, sendo este um traço comum em qualquer sociedade. (STEARNS,
2006).
Ao considerar essas particularidades, torna-se relevante compreender os
aspectos das experiências infantis inseridas nesse período, quando os povos dessa
sociedade cresciam lentamente porque mantinham reduzido o número de filhos para
facilitar o deslocamento para manejo da caça e pesca.
O primeiro fato que se pode destacar trata-se da baixa taxa de natalidade, as
famílias precisavam se locomover em busca de comida, era difícil levar muitas crianças.
Em função disso, poucas famílias, tinham mais do que quatro crianças durante seu
período reprodutivo, pela sobrecarga prolongada que cada filho significava diante do
26
suprimento alimentar disponível, faziam o controle com uso da prática de infanticídio e
plantas abortivas em algumas comunidades, somado ao número de doenças e má
nutrição que propiciavam a redução do número de nascimento das crianças à medida
que limitava a fecundidade e afetava as taxas de sobrevivência. (STEARNS, 2006).
O segundo fato refere-se ao envolvimento das crianças nas ocupações, mesmo
em número reduzido, ajudavam as mulheres na coleta de sementes, nozes e bagos. Neste
envolvimento, de forma sutil, já existia um prenúncio de cuidados com os pequenos,
pois essas ocupações de auxílio aos adultos não se sobrepunham às necessidades
infantis, estas eram mais importantes do que o trabalho, pois até o início da
adolescência, os garotos não participavam da caça, entendiam que as crianças
atrapalham no rendimento, alguns grupos não delegavam funções antes dos quatorze
anos. Assim, até o início da adolescência os garotos não participavam da caça, por isso
era reduzido o papel que as crianças desempenhavam na vida econômica, antes de
chegarem à fase da adolescência.
Em terceiro, temos as brincadeiras infantis. Crianças de sociedades caçadoras e
coletoras tinham muitas oportunidades de brincar, por exemplo, misturando grupos de
idades. Para Stearns, que usa termos modernos para registrar história, mesmo com a
visão de que as crianças poderiam ser um estorvo quando os adultos precisavam ir à
caça e pesca, estas tinham muito espaço e oportunidades com esses adultos. O trabalho
era vital, todavia, não era demasiado. Muitos caçadores - coletores trabalhavam poucas
horas por dia, isso deixavam bastante tempo para, entre outras coisas, dedicarem-se a
brincadeiras com as crianças, logo, com frequência, em muitos grupos, crianças e
adultos brincavam juntos. (STEARNS, 2006, p.23).
Com base no autor, muitas sociedades começaram a oferecer divertimento para
as crianças das famílias dos líderes - uma primeira prática que expressa diferenças
sociais. Assim, a infância era uma época de brincar e de trabalho auxiliar ocasional,
embora o estágio adulto chegasse cedo, seja exemplo, os meninos que iam à caça e as
meninas que se casavam precocemente.
Por último, existia certa complexidade na questão das diferenças de sexo,
inicialmente, meninos e meninas menores eram cuidados pelas mulheres e usavam
brincadeiras semelhantes. Depois, os meninos mais velhos separavam-se para praticar
jogos em grupos e assim iniciar a aprendizagem do ofício da caça.
O trabalho das mulheres era diferente, porém, fundamental na economia, isso
reduzia as distinções de posição entre meninos e meninas durante o crescimento. Como
27
os grupos eram pequenos e bastante isolados, propiciou-se o aparecimento de diversas
abordagens de educação pela ausência de comunicação entre eles. Exemplo, a raiva, em
que alguns grupos encorajavam esse sentimento entre as crianças, e os pais davam o
exemplo com sua própria forma de disciplina; por isso, na experiência de sociedades
caçadoras-coletoras, revelam enormes variações de um local para outro, quanto a tipos
específicos de comportamentos que eram estimulados entre as crianças. (STEARNS,
2006).
A partir dessas reflexões, é possível reconhecer que à época da caça e coleta
existia muito das questões presentes hoje com a infância tais como: cuidados especiais,
tempo para brincar, afeto e compreensão de que as crianças precisam de cuidados
específicos por conta da dependência dos adultos. As crianças eram poupadas da caça,
ficando aos cuidados maternos, oportunizando brincadeiras e ocupações semelhantes
para ambos os sexos e a coleta era um trabalho realizado por mulheres e crianças que
consistia, sobretudo, em coletar frutos silvestres. Mulheres e crianças trabalhavam
iguais, na verdade, existia uma mistura de cuidados e atribuições que preparava para a
vida adulta, os mais velhos participavam de treinamentos específicos para aprender o
ofício dos adultos, sendo que as atividades de brincadeiras sugerem afetividade e
proximidade das crianças com os pais, existia espaço e oportunidades para crianças
nessa época.
Aos poucos, ocorre o declínio dos nômades. Com a experiência, os homens
perceberam que os grãos eram germinados na terra e que podiam ser amplamente
plantados e cultivados. Surge o início da agricultura, um sistema econômico novo e
diferente, que possui entrelaçamento com a história social da humanidade e tornou-se o
sistema mais comum para os homens. Neste contexto, modifica-se a estrutura familiar e
a forma de lidar com as crianças, o que trouxe muitas implicações e mudanças para a
infância. Os modos como se estabelecia a agricultura determinava os novos e
duradouros atributos da infância, possuindo implicações sem volta na história. É
importante levar em conta algumas formas de comportamentos próprios dessa época, e
igualmente, compreender os aspectos das experiências infantis inseridas nas sociedades
caçadoras-coletoras.
A primeira delas é a redefinição da utilidade das crianças no trabalho. Elas
passaram a exercer um papel fundamental, na maior parte dos tipos de sistema agrícola.
Antes dos cinco anos, não trabalhavam, mas em meados da adolescência podiam
contribuir ativamente para a economia familiar, lavorando nos campos e ao redor da
28
casa. Não se tem informações precisas de quando as famílias da era agrícola perceberam
que as crianças poderiam ser uma força de trabalho, agora as crianças podiam e
deveriam ajudar sistematicamente e não mais apenas ocasionalmente como nas
sociedades caçadoras - coletoras. (STEARNS, 2006).
A segunda modificação, elevou-se o número de natalidade. Nas sociedades
agrícolas, têm-se registros nos quais as famílias mais abastadas tinham mais filhos do
que as menos ricas. Assim, a infância tornou-se mais importante na economia, também,
quantitativamente. Em decorrência disso, os povoados agrícolas tiveram uma população
formada, em grande quantidade, por crianças. Com altas taxas de natalidade, crianças e
jovens representavam metade dos habitantes, a infância se tornou numerosa porque era
importante como força de trabalho, tendo ênfase na quantidade de filhos para
impulsionar a economia. (STEARNS, 2006).
As sociedades agrícolas podem não ter tratado bem as crianças, por tê-las
inserido no trabalho, porém estavam preocupadas com elas. Em decorrência disso, era
que todo povoado cuidava das crianças, a responsabilidade não cabia apenas aos pais,
além do mais, tinham espaço na sociedade e, inclusive, nas leis, como os códigos legais,
da Mesopotâmia5, que mencionavam obrigações para com as crianças. Na medida em
que possuíam muitos irmãos à infância tornou-se fase de identificação para as próprias
crianças já que havia mais irmãos para interagir. (STEARNS, 2006, p. 27).
A terceira modificação foi o trabalho que tornou-se uma atividade central. As
crianças pequenas ajudavam as mães nas tarefas; as maiores poderiam cuidar de animais
domésticos; auxiliar serviços mais leves no campo, inclusive na coleta; os meninos
adolescentes poderiam caçar, como auxílio à produção principal, mas o ponto essencial
era a atividade de trabalho regular como parte da equipe de trabalho da família, este é
um conceito que foi transferido para a manufatura.
O trabalho explica a nova extensão e importância da infância, concomitante,
insere-se uma nova preocupação que não tinha na era da caça e coleta em que a família
passa a reter as crianças e jovens por mais tempo para usufruir o máximo do trabalho
destes. Em algumas sociedades, os pais passaram a gerar filhos por volta dos quarenta
anos, a fim de tê-los em casa na velhice, pois era fundamental retardar a maioridade dos 5 O Código de Hamurabi é um dos mais antigos conjuntos de leis, documento da antiga Mesopotâmia.
Segundo os cálculos, estima-se que tenha sido elaborado por volta de 1700 a.C. A lei de talião é o ponto
principal e fundamental para o Código de Hamurabi, e talião não é um nome próprio, o termo vem do
latim talionis, que significa “como tal”, “idêntico”, daí temos simbolizada a expressão “olho por olho,
dente por dente”. http://www.infoescola.com/historia/codigo-de-hamurabi/
29
filhos para que muitos pudessem continuar trabalhando para os pais. O casamento até
podia ocorrer desde que o jovem casal continuasse na família, não era dada total
independência.
Diferente da era da caça, em que os ritos de passagem demonstravam
independência econômica, pois ao saber caçar e coletar os jovens poderiam ter seu
sustento, na era agrícola os ritos de passagem passaram a ter conotação religiosa. Fato
importante, no entanto não conferia independência econômica igual às proezas na era da
caça.
O fato de aumentar o período para a maioridade dos filhos, para que pudessem
permanecer mais tempo com a família e ajudar na produção, impõe mais obediência às
crianças com o fim de garantir a mão de obra e a força de trabalho para a economia
familiar. Formou-se o conceito de propriedade, logo, a herança, o que justifica a
contribuição e maior tempo de permanência na família. Houve também certa
aceitabilidade das características de juventude, atividades tais como festivais agrícolas,
sair da rotina dos adultos, jogos, disputas esportivas, entre outros.
Com a crescente ênfase no trabalho e a nova categoria sutil de juventude, as
sociedades agrícolas iniciaram pelo menos três mudanças no conceito e experiência da
infância.
Em primeiro lugar, as diferenças de status na infância e através da infância,
estas já tinham surgido na era da caça, mas tornam-se mais elaboradas na sociedade
agrícola. Exemplo, o uso de faixas na cabeça para diferenciar o crânio, aspecto visível
de posição social, uso na China de apertar os pés ao ponto de quebrar ossos, para
diferenciar classes, a questão nutricional, as crianças ricas tinham acesso a melhores
comidas e mais adequadas quanto aos fatores de proteínas, por isso tinham-se tamanhos
diferentes de estatura.
Em segundo lugar, a diferença envolvia treinamento e especialização de acordo
com Stearns (2006, p. 31). O autor mostra a abundância de alimentos produzidos da era
agrícola, maiores do que a sociedade caçadoras-coletoras o que abriu-se espaço para as
crianças fazerem treinamentos com a finalidade de se tornarem artesãos, uma atividade
que era associada ao trabalho, e em alguns casos, incluía-se escolaridade formal6.
6 A escolaridade formal envolvia a aprendizagem específica para se tornarem artesãos, guerreiros,
sacerdotes ou funcionários governamentais. Nestes casos, dependendo do cargo, exigia-se ensino com
mestres.
30
Os adultos, aqueles que viviam até por volta dos 60 anos, ajudavam a cuidar
das crianças enquanto seus pais trabalhavam, com isso, é possível pensar que o
relacionamento familiar cresceu, na era agrícola. (STEARNS, 2006).
Conforme menciona o autor, novos tipos de distinção entre meninos e meninas
foram encorajados, os quais, neste contexto familiar coube à mulher a ocupação de
tarefas distintas dos homens; estes e os pais foram investidos de enorme autoridade,
detentores de poder supremo no seio da família. Essas mudanças se traduziram em
esforços definitivos para diferenciar meninos e meninas, não só em termos de tarefas e
funções na vida, mas também em grau de importância.
Nas sociedades agrícolas7, o pai exercia o controle de propriedade, o que lhe
dava direitos de lidar com os filhos de forma e modo diferente da mãe, que tinha menor
poder e autoridade. Algumas sociedades negavam propriedades para as filhas, mas
outras lhe concediam direitos. Algumas davam atenção especial ao filho mais velho, por
meio da primogenitura e desamparavam os mais novos, outros dividiam entre os filhos,
por outro lado, as mães investiam na afetividade.
Nesse contexto, compartilharam-se certo número de características ao longo do
tempo e do espaço, mas também variavam muito, como era visível em práticas de
meninos e meninas, exemplo, na China, onde os meninos eram mais aceitos e o
infanticídio de meninas, aceitável.
A maior parte das sociedades agrícolas valorizava as famílias extensas com
laços entre avós, filhos adultos e seus cônjuges e crianças. As mulheres geralmente
mudavam-se para as famílias dos maridos, mas era possível existir famílias divididas
em núcleos. Algumas davam ênfase aos cuidados dos pais com as crianças, talvez, com
exceção, nas classes superiores, por exemplo, as famílias polinésias trocavam suas
crianças, servindo-se de modo informal do que chamamos de adoção.
Famílias importantes e sociedades inteiras encaravam, durante a era agrícola, a
infância de forma diferente daquela definida pelos grupos caçador-coletores. Exemplo, a
necessidade de contar com o trabalho, obediência, usa de códigos legais para expressar
a inferioridade das crianças, diferenças de status, questões de gênero, escola para elite,
enfim, a noção de um período de espera prolongado entre a infância e a maturidade
tornou-se ausente.
7 A primeira atividade agrícola ocorreu entre 9000 e 7000 a.C. em certos lugares privilegiados da Sírio-
Palestina, do sul da Anatólia e do norte da Mesopotâmia. Aconteceu também na Índia (há 8 mil anos), na
China (7 mil), na Europa (6.500), na África Tropical (5 mil) e nas Américas (México e Peru) (4.500). Em
3000 a.C., a revolução neolítica já tinha atingido a Península Ibérica e grande parte da Europa.
31
Na estrutura da agricultura, funcionaram padrões específicos de civilizações e
religiões que propiciaram mudanças e variações que a espécie humana jamais
experimentou, isso exigiu sérias adaptações e novas formas de lidar com as crianças,
talvez não se possa saber com mais detalhes até que ponto os adultos tinham
consciência de estarem redefinindo a infância à Era da agricultura e alguns anteriores
costumes da época da caça e coleta, não só estiveram presentes nas épocas subsequentes
como estão presentes na infância até os dias atuais. (STEARNS, 2006).
O surgimento da civilização clássica, uma forma muito particular de
organização humana, e o surgimento das religiões, também afetaram a infância à
medida que ocorreram muitas mudanças na vida das crianças. Sobre a infância, em
relação às primeiras civilizações, têm-se poucas informações. O cenário se modifica
com o florescer das grandes civilizações clássicas na China, Índia e
Mediterrâneo/Oriente Médio, de cerca 1000 a.e.c8., até o colapso dos impérios clássicos
por volta do 5º ou 6º séculos e.c..”. (STEARNS, 2006, p.38).
Segundo Stearns (2006, p. 38), “cada uma das civilizações clássicas gerou
sistemas de crença características e estilos artísticos, padrões políticos, estruturas sociais
e de comércio que [...] envolviam a infância [...]". E mesmo quando essas três
civilizações mencionadas chegaram ao fim, transmitiram herança que sobreviveu até
séculos recentes, com repercussões atuais. Importante pensar, como sociedades clássicas
diferentes criavam infâncias distintas dentro das restrições comuns da era da
agricultura? Supõe-se que antes do período clássico, a própria civilização, desenvolvida
ao longo dos principais vales de rio, definiram mudanças para a infância.
A primeira mudança foi trazida das sociedades agrícolas primitivas, em que as
crianças eram ligadas ao grupo social em que tinham nascido, as leis mesopotâmicas
primitivas, exemplo, Código de Hamurabi, no qual dizia que as crianças nascidas de
escravos herdavam a escravidão, a menos que fossem libertadas. Igualmente, era
herdado também status de nobreza, uma vez que a lei romana dava atenção a essas
características; criança de pai escravo e mãe livre, seria livre.
A segunda mudança, como resultado do desenvolvimento dos Estados,
envolvem as leis formais que definia a infância e as obrigações das crianças, sendo que
muitas civilizações antigas usavam as leis para enfatizar a obediência. Tanto a lei
mesopotâmica, como a judaica, especificavam os direitos dos pais a punirem seus filhos
8 a.e.c. (antes da era comum) é o equivalente a a.C."(antes de Cristo) que é usado em textos cristãos para
marcar o ano e a época
32
desobedientes, podendo, inclusive, na lei judaica, matar o desobediente. Na Fenícia,
havia alguns casos, em civilizações antigas, em que crianças eram sacrificadas em ritos
religiosos, porém, existem apontamentos das civilizações dos vales dos rios, de
momentos ternos e com brincadeiras com as crianças. Os códigos legais das civilizações
antigas davam atenção à hereditariedade, para minimizar disputas e assegurar a
propriedade entre as gerações. Observa-se que essas leis encaminhavam tratamentos
diferentes, garotos mais velhos versus garotos menores, em certos casos, meninos
versus meninas, em quase todos os casos. A herança gerou um instrumento disciplinar
para manter as crianças perto da família, fornecendo mão-de-obra até os últimos anos da
adolescência ou mais.
A terceira mudança é a escolarização para uma minoria de crianças, pois as
antigas civilizações já dominavam a escrita, os escritos denunciam que a experiência
das crianças nas antigas civilizações teria sido severa. Com o marco da escrita permite
saber mais sobre a experiência da classe alta, única geralmente mais letrada, do que as
outras.
As três civilizações clássicas eram todas patriarcais e dependiam da economia
agrícola, no entanto, diferem em muitos aspectos, a China, uma das primeiras
civilizações clássicas da humanidade e pioneira a adquirir um formato razoável e claro,
pouco antes de 1000ª.e.c., fornece elementos iniciais de comparação, sua cultura e as
instituições deram forma a uma série de características distintas da infância. À medida
que fortalecia o confucionismo na China e as instituições políticas, iam-se ligando a
infância às características mais amplas da sociedade, esta constituída de classe alta e
baixa, o que refletiu diretamente na infância, sendo que uns eram educados e outros
encaminhados para o trabalho.
O confucionismo enfatizava a hierarquia, que por sua vez trouxe a prática da
ama-de-leite em muitas famílias da classe alta. Implantou ordem com maneiras rígidas
para reprimir o impulso individual e promover a harmonia, assim impôs uma série de
características à infância, em particular, o tempo e a forma de vivenciar lutos de pais
mortos, dando prioridade o tempo de luto do pai. Muitos pais tentavam ter excessiva
formalidade no relacionamento com os filhos, estes deveriam cumprimentar os mais
velhos todas as manhãs, e na sequência, criaram um manual rígido de normas de
etiquetas no relacionamento familiar, que incluía formas de se comportar para as
crianças.
33
Eram feitos registros das crianças mais na coletividade do que em grupo. Os
pais tinham domínio absoluto sobre os filhos, podiam puni-los por preguiça, jogo,
bebida, inclusive banir da família e as leis que protegiam as crianças eram frágeis. Por
isso, mesmo não sendo permitido o infanticídio, em tempos com problemas econômicos
as meninas eram banidas, mesmo assim, o estado tentava proteger as mulheres grávidas
porque era importante o nascimento, entretanto, os filhos nascidos com defeito eram
permitidos matar para não ficarem muito caro os cuidados e famílias com dificuldade
econômica, às vezes, vendiam filhos como escravos.
O confucionismo estimulava a educação da classe alta, os outros
ocasionalmente, um ou outro que demonstrasse talento era protegido. Quanto as
meninas, algumas, aprendiam a dançar para serem concubinas de um homem rico,
famílias ricas adotavam quando não podiam ter filhos para ter herdeiros.
O pai era uma figura autoritária e distante, com laços afetivos suprimidos na
relação com os filhos, mas a mãe tinha forte ligação com a prole. É fato que toda essa
rigidez tinha suas brechas e as questões pessoais, que de algum modo, influenciavam
algumas famílias. A China pós-clássica sofreu mudanças, com menos disciplina e mais
espontaneidade e estímulo às brincadeiras.
As sociedades clássicas do Mediterrâneo não tinham a organização do
confucionismo, uma vez que grande parte da cultura grega e romana apresentam
informações que permitem fazer comparação, tendo a China como ponto de partida.
Nesse cenário, três características da infância do Mediterrâneo Clássico se sobressaem.
Primeiro, registros da civilização mediterrânea clássica evidenciam ligações
menos intensas das crianças com os pais, e mais com as mães, diferente da China, no
mesmo período.
Segundo, as representações da infância, (Grécia e Roma) com características
individuais aparecem com mais frequência e as imagens menos estilizadas.
Terceiro, o debate Grego, principalmente o romano sobre a infância envolvia
preocupações com a juventude e mais pesar quando morria um garoto adolescente do
que na China. Como já dito, mesmo com essas diferenças é possível semelhanças que
indicam traço comum entre as infâncias oriundas de sistemas culturais e políticos
diferentes.
Na China e no Mediterrâneo Clássico eram feitas cerimônias para marcar a
maturidade dos garotos por volta dos 15, quando pontuavam diferenças entre meninas e
meninos, embora em grau de importância diferente. A obediência e a disciplina eram
34
comuns e ambas as culturas mostravam pouco apreço pelas qualidades infantis e
defendiam a maioridade precoce, porém dependente, consequentemente, era possível o
casamento cedo. Na Índia, a religiosidade evoluiu para hinduísmo, sistema de casta
indiano que contrastava com a escravidão do mediterrâneo, entrando em choque com as
culturas mais seculares da China e regiões mediterrâneas.
Diferente das duas sociedades anteriores, a religião da Índia teve um leque
maior de rituais que envolvem as crianças, destinada a marcar os estágios de seu avanço
espiritual, evitarem doenças e maus tratos. O processo começa desde o nascimento, com
uma série de cerimônias que marcavam os estágios da educação. Ao completar os
estudos, na casta dos mercadores, por volta dos 16 anos, o aluno passava por um ritual
complexo de cerimônias elaboradas, com características diferentes, para todas as castas
e ocasiões, como marcos religiosos da infância e do avanço em direção à maturidade,
incluindo até o casamento. Isso significa que o hinduísmo tinha uma visão mais
tolerante com as crianças, maior atenção à individualidade inata, um ser divino. A
família oferecia brinquedos tais como piões e bolas de gude. Época de estimular a
fantasia e tempo de ficar afastado da realidade do adulto.
O casamento era negociado entre os pais antes dos dez anos, antes de aflorar o
interesse pela sexualidade, para que pudesse garantir a pureza. O controle era exercido
mediante educação severa, trabalho ou casamento precoce. O modelo indiano sugere
algumas distinções duradouras de infância, desencadeadas no período clássico que ainda
persistem até hoje.
Depois da Era das civilizações clássicas específicas, a expansão da civilização
como uma forma necessária de organização humana, imprime outras importantes
mudanças. É evidente que nem todos os desdobramentos do período pós-clássico
tiveram relação direta com a infância. Mas há de se considerar que as mudanças
religiosas constituíram um marco que implicou mudanças significativas na infância.
Cada religião tinha seu próprio entendimento do que a infância era e como as
responsabilidades religiosas das crianças deveriam ser definidas.
São muitas as implicações das práticas religiosas mais amplas relacionadas à
infância, como as religiões que surgiram no Oriente Médio. ― judaísmo, cristianismo e
islamismo ― todas ressaltavam o orgulho e a responsabilidade dos pais, igualmente,
deram ênfase à obediência, isso implicava disciplina com as crianças. Houve forte
louvor às crianças e aos cuidados maternais e paternais e assim, as grandes religiões
trouxeram dois grandes elementos à infância.
35
O primeiro impacto foi a criança vista como ser divino e como decorrência se
opunha ao infanticídio, assim, um dos primeiros resultados do cristianismo no final do
Império Romano foi tornar público éditos declarando ilegal o infanticídio. Surgem leis
para proteger e acabar com a venda de crianças, os primeiros cristãos tentaram
desencorajar o uso de amas-de-leite para cuidar das crianças e aumentar os laços de
afetividade com a mãe. Maomé, no Islã, também, desenvolveu recomendações de
proteção e renunciou à tradição árabe do infanticídio e vendas de crianças; assim, a taxa
de matança de crianças como forma de controle da natalidade declinou sob a égide das
grandes religiões.
O segundo impacto oriundo das grandes religiões foi a atenção dada à
educação religiosa para as crianças, como na China, o hinduísmo e o judaísmo; este
último estimula a alfabetização para ler livros sagrados. As grandes religiões
estimulavam a escolaridade e a considerava importante, eram patriarcais, julgavam ser
mais importante a educação religiosa para os meninos do que para as meninas.
O budismo, considerada a mais velha religião do mundo, tinha implicações
difusas para a infância, comparada ao islamismo e mesmo ao cristianismo. Esses dois
tinham livro canônico único, enquanto o budismo apenas registros. Os budistas
opunham-se ao casamento de meninas durante a infância, acreditavam que este era um
contrato que requer maturidade, no entanto, tinham forte crença no celibato como o
estado mais santo e o parto como ato profano, assim acabavam sendo uma religião que
tinha pouco interesse nas crianças com essa crença negativa sobre maternidade. Mesmo
assim, os budistas não deixavam de organizar os rituais para as crianças como todas as
grandes religiões.
A expansão das religiões fez com que se repensasse o infanticídio, as novas
visões acerca da educação e apresentou novas justificativas para defender a obediência,
logo, as implicações da religião impuseram mais marcas à infância e as ideias sobre
crianças do que as culturas clássicas.
1.2 As crianças na Idade Média
A infância não é algo fixo e imutável, sofre mudanças e transformações de
acordo com o momento histórico vivido por cada sociedade. Sobre este tema, o
36
historiador medievalista francês, Philippe Ariès9 (1914/1984) estimado pela crítica dos
historiadores contemporâneos, tem estudo considerado ímpar e traduzido para o
português por Dora Flaksman. A obra História social da criança e da família, publicada
em 1960, destaca a história da criança na Idade Média e princípio da Idade Moderna na
Europa, na qual expõe a infância numa análise histórica.
Ariès principia dizendo que até a Idade Média não existia sentimento de
infância, ou seja, o mundo medieval não dava a atenção devida, e tão pouco percebia o
período de transição para a idade adulta, desvelando que o surgimento da noção de
infância emergiu apenas no século XVII, junto com as transformações que começaram a
se processar na transição para a sociedade moderna:
[...] a descoberta da infância começou sem dúvida no século XIII, e sua
evolução pode ser acompanhada na história da arte e na iconografia dos
séculos XV e XVI. [...] Mas seu desenvolvimento tornou-se [...] numerosos e
significativos a partir do fim do século XVI e durante o século XVII (ARIÈS,
1981, p. 65).
No século XVI e início do século XVII, a infância era ignorada, crianças eram
tratadas com liberdades grosseiras e brincadeiras indecentes, não havia sentimento de
respeito e nem se acreditava na inocência delas.
A pesquisa feita por Ariès, mostra que até por volta do século XII, a arte
medieval desconhecia a infância ou não tentava representá-la, mas não pela
incompetência ou à falta de habilidade, talvez porque não houvesse lugar para a infância
nesse mundo. (ARIÈS, 1981, p. 59). Destaca o autor que “na sociedade medieval [...] o
sentimento da infância não existia, o que não quer dizer que as crianças fossem
negligenciadas, abandonadas ou desprezadas. Ariès (1981, p. 156) esclarece que:
O primeiro sentimento da infância, caracterizado pela “paparicação”, surgiu
no meio familiar, na companhia das criancinhas pequenas. O segundo, ao
contrário, proveio de uma fonte exterior à família: dos eclesiásticos ou dos
homens da lei, raros até o século XVI, e de um maior número de moralistas
no século XVII, preocupados com a disciplina e a racionalidade dos
costumes.
9 Embora ele tenha sofrido críticas por só pesquisar a classe alta da sociedade da época, seu mérito foi ter
feito uma pesquisa inédita, apesar da escassez de fontes (limitadas a obras de arte, iconografia, e registros
médicos das crianças nobres) as crianças menos favorecidas não aparecem no contexto estudado pelo
autor.
37
Os moralistas se sensibilizaram quanto ao fenômeno da infância considerado
negligenciado, evitaram considerar as crianças como brinquedos encantadores, pois
viam nelas frágeis criaturas de Deus que era preciso, ao mesmo tempo, preservar e
disciplinar, e esse sentimento, por sua vez, passou para a vida familiar. Finalmente, no
século XVIII, coexiste na família esses dois sentimentos antigos somados a um novo, a
preocupação com higiene e a saúde física.
De acordo com Stearns (2006, p. 73), Ariès se “via influenciado pelas
afirmações comuns à época na França e em outros lugares, de que família
contemporânea encontrava-se em crise [...] a visão que tinha do passado o convencera
de que a relação entre infância moderna e a pré-moderna tinha sido incompreendida”.
Embora não pensasse que os pais deixassem de ter afeição pelas crianças, isso era uma
manifestação natural, mas o fato era que não dedicavam muito tempo e atenção.
Na visão de outros autores, a infância sempre existiu desde os primórdios da
humanidade, entretanto, a noção enquanto construção histórica e categoria social são
considerados recentes.
Heywood (2004, p.24 grifo do autor) em seu estudo sobre a história da infância
faz críticas contundentes ao trabalho de Ariès, pontua que “era um historiador amador,
de “fim de semana” [...] que os críticos o acusam de ingenuidade no trato das fontes
históricas, e são particularmente severos em relação a suas evidências iconográficas . As
críticas desvelam fragilidades quanto ao método, ingênuo uso das fontes, muito
centrado na Idade Média e pouco assertivo ao afirmar que não houve infância à época
medieval; deste modo, suas teses correm o risco de simplificar a compreensão da
infância por aqueles menos leitores da história.
O autor aponta que é um caminho perigoso considerar a ausência ou a presença
do sentimento da infância em um ou outro período da história. Sua investigação pontua
que existia uma infância na Idade Média, que neste período a infância “não passou tão
ignorada, mas foi antes definida de forma imprecisa, e, por vezes, desdenhada”.
(HEYWOOD, 2004, p. 2). O autor pensa que o mundo medieval provavelmente teve
algum conceito de infância, mas suas concepções sobre ela eram diferentes das nossas.
Disso decorre a dificuldade de entendimento, até porque “criança é um construto
social que se transforma com o passar do tempo [...] e varia entre grupos sociais e
étnicos dentro de qualquer sociedade.” (HEYWOOD, 2004, p. 19). A infância é, pois,
em grande medida, resultado das experiências dos adultos, e também uma abstração que
38
se refere a uma determinada etapa da vida, diferentemente do grupo de pessoas sugerido
pela palavra criança, por isso é essencial entender o que é ser criança e infância.
O que caracteriza a infância são suas peculiaridades no que tange ao
comportamento lúdico e características de desenvolvimento, logo, a infância existe para
toda e qualquer criança, pois mesmo submetida a condições inóspitas, ela é vivida. Por
isso, a infância é singular, cada criança vive a sua de modo próprio, daí usarmos o termo
infâncias (plural), pois há muitas, cada qual vivida dentro de sua especificidade, seu
contexto cultural, social, educativo, familiar, religioso.
Todas as sociedades tiveram o conceito de infância, a noção de que as crianças
podem ser diferentes dos adultos de várias formas, o que não existe consenso é sobre as
concepções as quais especificam as formas de distinção como diferenças quanto à
duração da infância, às qualidades que as diferenciam dos adultos e formas de lidar e
atribuir cuidados, por isso, quando Ariès sugere que na Idade Média não existia
sentimento de infância, parece um pouco dissonante das questões históricas.
É possível detectar relatos sobre infância desde o final do Império Romano e,
inclusive, preocupações legais, por isso é simples demais dizer que as civilizações
tinham ou não consciência a respeito da infância, pois o mundo medieval teve conceito
sobre infância, mas suas concepções eram diferentes das nossas, caracterizavam a
infância diferente, “conclui-que a infância durante a Idade Média não passou tão
ignorada, mas foi antes definida de forma imprecisa, e, por vezes, desdenhada”.
(HEYWOOD, 2004, p. 29).
O que a infância tinha a seu favor para o homem da igreja da Idade Média era
sua suposta ignorância da luxúria, uma criança inocente. A associação da infância à
inocência tornou-se profundamente arraigada na cultura ocidental, em especial, após os
românticos deixarem sua marca, no século XIX quando muitas mudanças ocorreram
neste século.
Até final do século XVII e início do século XVIII as crianças vestiam roupas
iguais a dos adultos, a ideia de adulto em miniatura, sendo que a forma de vestir das
crianças foi considerada um marco. E as mudanças ocorridas beneficiou, primeiro, os
meninos, em especial, da classe nobre, sendo uma tentativa de diferenciar crianças de
adultos.
A questão de gênero era muito presente, durante a Idade Média e quando se
usava o termo criança, muitas vezes, se parecia ter em mente um menino. As meninas
eram quase invisíveis, na literatura do sul da França. Sobre o aparecimento do
39
sentimento, dito por Ariès, é possível atribuir às novas formas de tráfico comercial e
produção mercantil que explodiram na Europa, no final da Idade Média. Logo, uma
nova forma de relacionamento surge sobre os mais jovens, ratificando outro modo de
relacionamento entre as faixas etárias diferentes.
Na Idade Média, a criança vivia misturada aos adultos, não havendo, inclusive,
diferença quanto a vestimentas, jogos, atividades, aprendizagens e, até mesmo, em
relação ao trabalho era vista como um pequeno adulto. Gradativamente, foi sendo
valorizada em si mesma, mas a partir de uma visão que considerava a infância como a
idade da imperfeição.
É importante pensar que a infância em si pode ser melhor compreendida no
contexto das condições sociais de uma sociedade pré-industrial, isso nos faz inferir que,
de fato, Ariès tinha razão em dizer que as crianças medievais eram gradualmente
inseridas no mundo adulto como servas ou aprendiz, ele não foi pioneiro em observar
que a distância entre condutas infantis e adultas eram menos distante na época medieval.
1.3. A infância na Idade Moderna
A criança, historicamente, foi vista de forma ambígua nos diferentes momentos
em que se discutem suas peculiaridades. Nesta discussão, ficam evidentes as questões
de impureza x inocência, características inatas x características adquiridas,
independência x dependência e as questões de gênero. Contudo, é possível inferir que
a era Pré-Moderna tem vantagens sobre a Moderna visto que, mesmo acreditando que
havia certa negligência no passado, possuíam mais liberdade do que na Modernidade,
marcada pela vigilância, monitoramento e institucionalização.
Ao partir da premissa de que a infância foi descoberta neste período, C. John
Sommerville sustenta que “um interesse permanente pelas crianças na Inglaterra
começou com os puritanos, que foram os primeiros a se questionar sobre sua natureza e
seu lugar na sociedade”. (HEYWOOD, 2004, p.36).
Os puritanos, um grupo que surgiu na Inglaterra no século XVI, não tinha uma
ideia elevada sobre as crianças, alguns mais radicais diziam que eram um fardo sujo do
pecado original ou pequenas víboras. Esta percepção não poderia ter práticas muito
acolhedoras com as crianças, mas os puritanos como um movimento e desejosos por
conquistar os jovens, foram impelidos de assumir posturas de interesse pelos mais
40
jovens. Esta ideia é parecida com o movimento dos reformadores na França, que tinham
opinião inferior sobre as crianças, vistas como fracas e culpadas do pecado original.
Vale ressaltar que os jansenistas, em especial os de Port-Royal do mosteiro
beneditinas, movimento de caráter dogmático e moral, que se baseia na observância dos
preceitos destinados a regular a convivência comunitária, afirmavam que as crianças
valiam a atenção, que se deveria dedicar a vida à sua instrução e que cada indivíduo
precisava ser compreendido e auxiliado.
Alguns historiadores observavam a esfera cultural para explicar o interesse
renomado nas crianças durante esse período. Outros destacam o impacto das
transformações econômicas, argumentando que o período entre os séculos XV e XVIII
testemunhou o surgimento do capitalismo na Europa Ocidental e toda transição traz
consequências, logo interfere na infância.
Segundo Stearns (2006) com relação às mudanças da Idade Moderna, três
principais momentos separam a infância moderna das características da infância das
sociedades agrícolas. A infância moderna emerge, inicialmente, no Ocidente, nos
séculos XVII e XIX e engloba três fatos importantes. O primeiro, a passagem da
infância voltada ao trabalho, para a escolaridade; o segundo, relacionado com a
urbanização, estimulou-se a limitar o tamanho da família a patamares muito baixos;a
terceira, uma transição fundamental do modelo moderno, trata-se da redução da taxa de
mortalidade infantil. Essas mudanças trouxeram novos ajustes quando ou onde
ocorreram: “O modelo moderno trouxe escola, menos mortes, menos crianças no
conjunto da população e em cada família, com muitas outras implicações e
consequências”. (STEARNS, 2006, p. 94).
Os pensadores do século XVII estão mais próximos a nossas noções de
infância, afirmam que as crianças são importantes em si, em vez de serem simplesmente
adultos imperfeitos. A contribuição de John Locke como sendo uma das influências
mais importantes na modificação de atitudes com relação à infância do século XVIII,
serviu para projetar a imagem da criança como tábula rasa. A criança era nem boa e
nem má. Logo, propiciou uma brecha para pensar que a educação pode fazer uma
grande diferença para a humanidade.
Mesmo o autor recebendo algumas críticas, a contribuição serviu para
encorajar uma atitude simpática com relação às crianças que era raro em períodos
anteriores. Igualmente, permitir atitudes infantis adequadas à sua idade. De acordo com
Heywood (2004) ao final, Locke não escapa de uma concepção negativa da infância
41
quando externa seu desejo de desenvolver a capacidade de raciocínio nas crianças numa
idade precoce, isso significa que as crianças precisam de ajuda, pois são fracas e sofrem
de uma enfermidade natural.
Uma figura importante na reconstrução da infância durante o século XVIII foi
Jean-Jacques Rousseau, que proclama o amor à infância e preservação da natureza boa
da criança, se opõe ao pecado original e cultua a inocência. O homem é bom por
natureza, mas está submetido à influência corrupta da sociedade, assim a criança nasce
inocente, mas corre o risco de ser sufocada por preconceitos, autoridade ou instituições.
Ele desprezou um conselho de Locke para que se argumentasse com as
crianças, pois esta faculdade não estaria desenvolvida integralmente até a
adolescência. Seu contra-argumento era de que a natureza deseja que as
crianças sejam crianças antes de serem adultas. A infância tem formas
próprias de ver e pensar, sentir, e particularmente, sua própria forma de
raciocínio, sensível, pueril, diferentemente da razão intelectual ou humana do
adulto. (HEYWOOD, 2004, p.38).
Era importante respeitar a infância e deixar a natureza agir antes de resolver agir
em seu lugar, mas um grande obstáculo para a efetivação da proposta foi a questão da
exploração do trabalho infantil, esta forma severa de aniquilação da infância.
A exploração capitalista do trabalho infantil representava uma mão-de-obra
barata. Com disciplina, baixo custo e coerção, as consequências desta prática aos
poucos ganharam visibilidade e voz, e no final do século XIX, algumas denúncias. E
neste processo surge como resultado as primeiras leis que proibiam o trabalho infantil,
pois esta visão utilitária e perversa vai de encontro à proposta de Rousseau que estava
redescobrindo a infância.
O projeto rousseauniano pode-se dizer que abriu espaço para diálogo e
discussão de estudiosos em pensar a infância como um período peculiar, conforme
Postman (1999, p.72)
[...] quaisquer que tenham sido seus defeitos pessoais, os escritos de
Rousseau despertam uma curiosidade sobre a natureza da infância que
persiste até hoje. Poderíamos dizer com justiça que Friedrich Froebel, Johann
Pestalozzi, Maria Montessori, Jean Piaget e Arnoldo Gesell são todos
herdeiros intelectuais de Rousseau.Certamente o trabalho deles partiu da
hipótese de que a psicologia infantil é essencialmente diferente da dos
adultos e deve ser valorizada por si própria.
42
A interpretação que faz sobre infância levada ao limite, visando salvar a
humanidade de seus vícios, faz com que vislumbre uma infância completamente livre de
qualquer resquício de maldade, o que faz pensar se algum dia existiu tal inocência. Ao
descobrir a infância, o autor radicaliza sua concepção, levando ao extremo um conceito
muito difícil de ser objetivado, logo, se apaixona demais pelo pensamento de Rousseau,
talvez corre o risco de passar parte de seus estudos, na busca desse estágio de pureza e
inocência.
A concepção romântica que surge no final do século XVIII e início do século
XIX possui influências pessimistas do protestantismo e inspiração na obra de Rousseau
que preconiza a valorização do bem e da inocência. Em função disso, valorizava a
inocência e a naturalidade da criança e acentuava assim o seu caráter romântico.
O Romantismo constrói uma visão idealizada e sacralizada da criança, que é
vista como um ser redentor que proporciona a harmonia e imprime mudança em relação
à noção da visão de inocência e apresentava as crianças como “criaturas de profunda
sabedoria, sensibilidade estética mais apurada e uma consciência mais profunda das
verdades morais duradouras”. (HEYWOOD, 2004, p.39).
Conforme este autor, a visão romântica da infância estava longe de ser
predominante. Primeiro, porque a tradição mais antiga de manchar as crianças com o
pecado original custou a desaparecer. Segundo, a ênfase na inocência da infância tinha
pouca relevância para as vidas da maioria dos jovens, que ainda estavam sendo
inseridos no mundo dos adultos muito cedo. Por outro lado, as novas ideias tinham mais
alcance na classe média, que tinha interesse na domesticação e na educação.
No final do século XIX e início do século XX, surgem diversos estudiosos para
a construção da infância contemporânea. Viviana Zilizer, citada por Heywood, refere
que entre as décadas de 1870 e 1930, surgiu na América a criança sem valor econômico
e de valor emocional. Em meados do século XIX emerge essa criança nas classes
médias urbanas, mas as famílias de classe trabalhadora continuaram a contar com a mão
de obra das crianças até ser extinta esta prática por força de lei e escola obrigatória.
Para estimular a retirada das crianças dos locais de trabalho, os reformadores
norte-americanos promoveram uma sacralização da infância, teve um aumento no valor
sentimental das crianças, tanto para a classe trabalhadora quanto para a classe média,
fato que se repetiu no mesmo período na Inglaterra, uma “reconceituação” da infância.
A infância recebeu, ao longo das mudanças sociais, econômicas e culturais
muitas conotações, como por exemplo, no Século XVIII com o surgimento da escola
43
pública, desponta a criança aluna, surgindo na contracorrente da criança delinquente, à
luz de tendências de socialização que acentuam a escola como um dos principais meios
de moralizar as crianças e evitar a reprodução de comportamentos desviantes e
perturbadores da ordem social, a escola como fonte de socialização e uniformização,
com a meta de impor um padrão universal de saberes e comportamentos, e assim ser um
meio de prevenção e moralização das classes populares. (CASTRO, 2012).
A Revolução Industrial que perpassa também entre os séculos XVIII e XIX
imprime novo olhar sobre a infância, que passa a ser vista como de grande valor
econômico que podia ser explorado pelas famílias. Nasce, assim, a criança operária, e
por conta da necessidade de mão-de-obra, se materializa o não cumprimento dos
direitos infantis de acesso à escola. Esse fato impulsiona as crianças de novo ao
mercado de trabalho. Na Era Industrial, as crianças foram presas de um regimento
econômico que as atrelaram como fonte necessária para a manutenção da renda familiar.
A criança operária somente adquiriu visibilidade social quando os movimentos
filantrópicos iniciaram campanhas de denúncia e sensibilização relativas às condições
sub-humanas em que estas crianças sobreviviam. (CASTRO, 2012)
No século XIX e início do século XX, criam visibilidade as preocupações
advindas das áreas da saúde, da prevenção social e da educação, e assim, destaca-se a
criança bem estar a qual para esta concepção se organizam os serviços específicos e
especializados para atender as suas necessidades peculiares. Como consequência, no
século XX, a infância é alvo de atenção e definição de campos muito específicos tais
como a medicina e a psicologia, esta última foi a que mais influenciou as posturas e
atitudes para com as crianças. Logo despontou outra concepção: a da emergente criança
psicológica, fruto de contribuições psicológicas e médicas, iniciando as discussões no
contexto do século XIX devido à preocupação científica de respostas para entender o
processo de desenvolvimento infantil. (CASTRO, 2012)
No século XIX, coexiste a criança sem valor econômico, mas de um valor
emocional incontestável, cujo olhar passa a ser aceito no século XX. Todas essas
mudanças mostram que a história da infância não é linear, e sim “a história cultural da
infância tem seus marcos, mas também se move por linhas sinuosas com o passar dos
séculos: a criança poderia ser considerada impura no início do século XX tanto quanto
na alta Idade Média”. (HEYWOOD, 2004, p. 45).
Com a evolução nas relações sociais que se estabelece na Idade Moderna, a
criança passa a ter um papel central nas preocupações da família e da sociedade. A nova
44
percepção e organização social fizeram com que os laços entre adultos e crianças, pais e
filhos fossem fortalecidos, já que a partir deste momento, a criança começa a ser vista
como indivíduo social, dentro da coletividade, e a família tem grande preocupação com
sua saúde e sua educação. Inaugurou-se assim a construção da infância moderna,
assumindo o signo de liberdade, autonomia e independência.
À guisa de término desta seção, digo que autores como Heywood, (2004);
Stearns, (2006); Faria, Dermatini e Prado (2009) deixam claro que é muito audaciosa a
afirmação descoberta da infância. Os registros deixam explícito que não existe um
período, pois a história cultural da infância, do mesmo modo que possui marcos, se
move por caminhos flutuantes com o passar do tempo. A criança poderia ser
considerada impura no início do século XX tal qual foi na Alta Idade Média,
igualmente, as influências culturais das religiões como Cristianismo, Budismo,
Confucionismo e o Iluminismo geraram importantes questões que tiveram forma cíclica,
em vez de linear.
Com base nos registros históricos, nota-se que algumas características se
originaram desde a Era da caça, se mantém com nova configuração conforme o
momento econômico e político, exemplo, as questões das diferenças sociais existem, ou
seja, as diferenças de status vêm desde a era dos caçadores e coletores e continuaram na
era agrícola de forma mais elaborada, e no século XXI essa questão representa violência
e exclusão social.
O trabalho infantil costuma ocupar muitas páginas de discussão e denúncias na
mídia, entretanto, existe desde a era da caça, em que as crianças ajudavam as mães nas
atividades diárias, porém, esta não era uma atividade primordial das crianças, que
tinham espaço para brincadeiras com seus pais quando retornavam do campo. Na era da
agricultura as famílias perceberam que as crianças poderiam ser uma mão de obra
importante, assim o trabalho tornou-se atividade central na vida dos pequenos.
Isso configurou outra infância que envolvia treinamento e especialização, em
alguns casos, incluía-se escolaridade formal, alguns adultos que viviam até por volta
dos 60 anos, ajudavam a cuidar das crianças enquanto seus pais trabalhavam. Surgiu a
diferença entre sexos. Essas mudanças foram traduzidas em diferenças entre meninos e
meninas não somente em termos de tarefas e funções na vida, mas também em grau de
importância, sendo as meninas consideradas inferiores. Era um sistema definido a
questão dos papéis entre homem e mulher. E no século XXI ainda temos problemas com
45
ocupações para homens e mulheres, e mantemos esta necessidade de diferenciar as
crianças por sexo.
As questões das leis formais para proteção infantil que definia a infância e suas
obrigações surgem como resultado do desenvolvimento dos Estados, na era da
agricultura que, apesar de serem frágeis, era um prenúncio de cuidados legais.
Atualmente, no Brasil, temos o Estatuto da Criança e do Adolescente que ainda luta
para impor uma política de cuidados e olhares com a infância.
No período da agricultura, a escolarização alcançava mais os ricos do que os
pobres, isso refletia inclusive em estudos e pesquisas. Daí, talvez decorra o fato de
algumas pesquisas, como a de Ariès, usar a classe média como referência em seu
estudo. Nos dias atuais, ainda persistem problemas com a escolarização de qualidade
para todos, embora, neste cenário, existam avanços no âmbito da educação impresso nas
leis, como por exemplo, a inclusão da educação para crianças pequenas.
Em relação à afetividade, é uma questão muito importante nos dias atuais.
Tem-se estimulado a sensibilização dos pais para que tenham melhores vínculos e
proximidade com os filhos, nossa cultura passou a valorizar afetos entre pais. Porém, os
chineses não demostravam o afeto, isso não quer dizer que não amassem seus filhos, o
certo é que as posturas sociais baseadas no confucionismo na China teve forte impacto
na infância.
O período de infância na China e na região mediterrânea na Era Clássica
apresentavam mais pontos comuns do que diferenças, exceto algumas questões como o
amor materno Chinês ou a preocupação Mediterrânea com a mocidade.
Existia na sociedade agrícola insistência à obediência e, na transição controlada
para a seriedade da idade adulta, inferioridade das crianças, distinção entre infância de
leite, os escolarizados, os comuns e os que trabalhavam. A insistência chinesa em
incluir comportamentos esmerados e o empenho indiano em estimular a imaginação,
influencia as visões da infância, até hoje.
Na Revolução Industrial temos a criança operária, essa visão toma corpo e
forma na era da agricultura, anterior à Idade Média, mas, também, na era medieval, a
criança vivia entre adultos e não era poupada de nada, por isso foi considerada um
adulto pequeno. Houve, na Idade Média, uma grande diferença de tratamento da
criança do povo e da criança burguesa, aguçando-se as diferenças de classes. Apesar
disso, investigar o mundo da infância medieval com os olhos da contemporaneidade é
46
possível pensar que não havia uma ausência do sentimento de infância, mas uma forma
própria e diferente da nossa.
Para o inglês Colin Heywood (2004), a infância só pode ser compreendida
como uma construção social. Os termos criança e infância são termos diferentes e estão
condicionadas às questões culturais, filosóficas, econômicas e, por muitas vezes,
religiosas, com base na perspectiva social e histórica, não existe somente uma infância,
mas várias.
1.4. A infância e a Sociologia
1.4.1. A criança construída na Sociologia da Infância - (SI)
A Sociologia da Infância tem grafada, nos últimos tempos, que as crianças são
atores sociais porque interagem com as pessoas, com as instituições, reagem frente aos
adultos e desenvolvem estratégias de luta para participar no mundo social. Em outros
termos, as crianças participam coletivamente na sociedade e são dela sujeitos ativos e
não meramente passivos. Logo, devem ser estudadas pelos seus próprios méritos, e
assim romper com a relação de poder do adulto sobre elas.
A criança, nesse contexto sociológico, é considerada um ser social, histórico e
produtora de cultura, e para dar este “salto” é preciso desconstruir ideias organizadas há
séculos tais como de tabula rasa, pecaminosas, receptáculo da educação dos adultos e
tantas outras conotações que nos fizeram ter uma imagem negativa da criança.
Na seção anterior, apontamos que Ariès (1981) ao falar do processo histórico
em seu estudo anuncia duas questões básicas: a primeira é que a sociedade tradicional
da Idade Média não via a criança como ser distinto do adulto; a segunda, menciona a
transformação pela qual a criança e a família passam, e assim ocupam lugar central na
sociedade. E na sequência, alguns contrapontos na esteira de outros autores que
consideram que criança e infância sempre existiram, entretanto, com significados e
formas distintas de lidar de acordo com o contexto histórico que envolvem questões
econômicas, sociais e culturais.
Falar da infância é uma questão muito difícil, envolve inclusive nossas
experiências, a criança que fomos e todas as peripécias de nossa meninice. Mas, longe
de elencar as proezas de minha infância, embora me sinta atraída, quero falar como de
47
fato a Sociologia pensou esta criança com a qual estamos ainda engatinhando em
algumas proposituras e formas de compreender conceitual e metodologicamente na
pesquisa.
De acordo com Kohan (2009), os estudiosos sobre a etimologia dizem que os
primeiros nascimentos da palavra infância estão ligados às normas e ao direito, ao
domínio da res publica muito mais do que ao âmbito privado ou familiar [...] um
indivíduo de pouca idade é denominado infans. Esse termo está formado por um prefixo
privativo in e fari, “falar”, daí seu sentido de “que não fala”, incapaz de falar [...],
porém, logo infans – substantivado – e infantia são empregados no sentido de “infante”,
“criança” e “infância” [...] é desse sentido que geram os derivados e compostos, todos
de época imperial, como infantilis, “infantil”; infanticidium, “infanticídio”, etc.
(KOHAN 2009, p. 40).
Compreender o termo infância é revisitar certos lugares como se fossem a
primeira visita. Os dicionários Aurélio e Priberam apontam que criança é menino ou
menina no período da infância; uma pessoa estouvada, pouco séria, de pouco juízo, um
ser humano no início de seu desenvolvimento, ou seja, criança lembra começo,
princípio, os primeiros anos. E infância é uma palavra latina, que desde o seu
surgimento está associada a uma falta, ausência, inscrita no marco de uma
incapacidade, período de vida humana desde o nascimento até à puberdade. Logo, fica
evidente que os dicionários indicam a criança e infância como sinônimos. Criança é
período da infância e infância é como criança. Em especial, o termo criança, remete a
pessoa estouvada que liga a imagem de quem pouco pensa nas consequências de seus
atos, sem juízo e incapaz de pensar.
A infância se associa a falta de alguma coisa que induz a exclusão pela
ausência de capacidade. Parafraseando Castello e Márcio (2006 apud KOHAN, 2009,
p.41) o termo infans podia designar criança em idade muito mais avançada,
aproximadamente de doze ou treze anos, disso decorre a ideia que infans não remete
somente a criança pequena que não adquiriu ainda a capacidade de falar, mas se refere
aos que, por sua minoridade, não estão ainda habilitados para testemunhar nos tribunais.
Neste contexto, a infância trata daquele “que não pode valer de sua palavra
para dar testemunho”, e na cultura latina, onde res publica10
é tema importante, os que
1010 Res publica é um termo de origem latina que significa “coisa pública”.
48
não podem participar são, de algum modo, marginais, excluídos temporariamente,
exemplo, as crianças.
A etimologia latina da palavra “infância” agrega as crianças aos não
habilitados, aos incapazes, a toda uma série de categorias que encaixadas na perspectiva
do que elas “não têm” são excluídas da ordem social.
A infância está marcada desde a sua etimologia por uma falta não menor,
uma falta que não pode faltar, uma ausência julgada inadmissível, a partir da
qual uma linguagem, um direito e uma política dominantes consagram uma
exclusão. Por razões de uma falta, a infância ficou de fora [...] (KOHAN,
2009, p.41).
Esta visão da infância como falta, incapacidade, ilumina a trajetória
pedagógica, discursos filosóficos e saberes da Modernidade, uma longa trajetória em
que as crianças foram percebidas como passivas, merecedoras de socialização e
incapazes de falar. Chegou o momento de ouvir as crianças e considerá-las a partir do
que ela tem e não do que lhe falta, como presença e não como ausência; como
afirmação e não como negação; como força e não como incapacidade.
Este trabalho se inclui no campo da Sociologia da Infância que tem feito um
esforço metodológico e teórico para compreender a infância em outras bases, e assim
construir novos olhares sobre a socialização e formas de intervenção teórica,
metodológica e prática com a infância. Sendo uma questão importante distinguir criança
e infância, estes conceitos definitivamente não são iguais. (DEMARTINI, 2009).
Durante muito tempo, a criança foi investigada por áreas como a psicologia,
pediatria, neurologia e psiquiatria e estudada pela área da saúde, recentemente, virou
objeto de interesse de várias áreas. E assim, mediante as discussões com uso de teorias
do desenvolvimento, contribuições da psicologia, e de outro lado, dos sociólogos da
infância, surgiram novas proposituras a partir dos anos de 1990, as quais foram
essenciais para a compreensão do que é ser uma criança, atualmente, nos estudos da
Sociologia da Infância. (VALENÇA, 2011).
O surgimento da SI, no hemisfério norte, está interligado com a crítica que se
faz a ausência da infância na Sociologia que se preocupou mais com a adolescência e a
juventude, enquanto as crianças foram incorporadas aos estudos da sociologia da família
e da sociologia da educação. (MÜLLER; CARVALHO, 2009).
49
A sociologia da família não centrou seus estudos diretamente na criança,
entendeu-a como um objeto das práticas educativas dos pais, ao passo que a sociologia
da educação focou na escolarização das crianças. Deste modo, a criança não era
considerada alvo de pesquisa, mas sim a sua trajetória escolar e os processos de
socialização.
Com base nas ideias pré-concebidas sobre infância passiva, sem fala, imatura,
vir -a- ser e outras conhecidas, a sociologia tradicional deixou as crianças silenciadas. E
o papel da Nova Sociologia da Infância foi romper com o modo limitado com que a
infância foi historicamente pensada, e acima de tudo, dar visibilidade à criança como
ator social.
O sociólogo Prout (2010) faz um resgate da incursão da Nova SI11
e aponta
alguns desafios, sendo um deles a tarefa de criar um espaço para a infância no discurso
sociológico e enfrentar a complexidade da infância como um fenômeno contemporâneo,
complexo, ambíguo, diria instável. Infância encontra-se em constante mudança e a SI só
poderá desenvolver-se se for capaz de romper as concepções dogmáticas e fechadas.
Sinaliza que por volta dos anos de 1970, existem sinais de uma crise da representação
da infância, mudanças essas indicadas em textos, como o de Postman (1999) que
anunciava o “desaparecimento da infância”.
A concepção de infância conhecida atualmente é uma invenção da
Modernidade. Na Idade Média, as crianças viviam junto com os adultos e tinham acesso
a quase todos os comportamentos comuns à cultura, por isso, a ideia de infância
discutida na SI não existia até o fim da Idade Média, ou seja, não havia espaço
separado, não existia mundo para a infância, e isto a tornava invisível na sociedade
medieval.
Considera ainda Postman (1999), que com o surgimento da televisão, a
infância imprime outra configuração, pois todas as questões que diferenciaram a criança
do adulto com o advento da escrita se desmorona com esse aparelho. A televisão não
tem hierarquia de compreensão conforme nos livros, a imagem é sem restrição, assistir
televisão não precisa de compreensão; desse modo, destrói a divisão entre a infância e a
idade adulta, uma vez que não requer aprendizagens específicas, não faz exigências
11
O autor utiliza o termo nova Sociologia da Infância em referência ao conjunto dos trabalhos que
conceituam as crianças como atores sociais e a infância como entidade ou instituição socialmente
construída, que começaram nos anos 1970, difundiram-se e foram codificados nos 1990. Exemplos são os
textos de James, Jenks e Prout (1998), Qvortrup et. al. (1994) e Corsaro (1997).
50
complexas à mente, não segrega o público e fornece a todos as mesmas informações
sem segredos. Logo, sem segredos não pode existir a infância.
Na visão de Prout (2010) não é difícil desmentir essa ideia do sumiço da
infância e Sarmento (2002) aponta que a infância existe como categoria social e com
características próprias, portanto, a infância está em processo de mudanças e não de
desaparecimento.
A pesquisadora Barbosa (2011) aponta em sua pesquisa sobre o imaginário
infantil e a influência da mídia televisiva, na cultura lúdica contemporânea, que a mídia
se transforma em um espaço de brincadeira no momento em que a criança consegue
transferir imagens e símbolos televisivos para a sua realidade brincante, criando
situações, mesclando personagens e enredos, construindo e depositando elementos a
cada novo episódio, fazendo do hábito um instrumento lúdico, portanto para a
pesquisadora o desenho animado se torna uma grande fonte para que as crianças se
apropriem, criem suas brincadeiras, estimulando, assim, a sua imaginação.
A pesquisa postula que a criança brinca de diferentes formas: com o seu corpo,
com a sua imaginação, com o outro e com a TV, mas especificamente, com os desenhos
animados. Este estudo vai de encontro à ideia de que a televisão mata a infância, pelo
contrário, ela se torna outro elemento constituinte da infância.
Retomo as questões que desencadeiam o contexto do surgimento da sociologia
da infância que surge num momento de dúvidas, interrogações, questionamentos e
problematização da sociologia. Por isso, de acordo com Prout (2010) ela emerge em sua
forma atual nos anos 1980-1990 em que três questões foram importantes: a Sociologia
interacionista (1960) desenvolvida principalmente nos Estados Unidos que
problematizou o conceito de socialização da sociologia que torna as crianças muito
passivas. Na sequência, em especial na Europa (1990) ressurge a Sociologia estrutural
que percebe a infância como dado permanente da estrutura social, e ainda, na Europa e
nos Estados Unidos (1980) o Construtivismo social desestabilizou o conceito
consagrado sobre a infância.
O trabalho sobre o desenvolvimento da SI ocorre num cenário de muitas
transformações sociais, desencadeadas pelas consequências da Modernidade, que por
sua vez, imprime fortes mudanças, dando origem a termos tais como modernidade
tardia, sociedade de risco, pós-modernidade e outros, que refletem questões de
insegurança, novas formas de configuração familiar, novos padrões de consumo,
51
mudanças na participação de trabalho, no emprego e na economia. E a infância estava
profundamente envolvida nesses fenômenos.
A proposta do desaparecimento da infância deveria postular sobre as suas
transformações, pois à medida que imprime um discurso de infância como parte do
contexto histórico e social se modifica junto com a sociedade ao invés de sumir; por
outro lado, essas reflexões foram importantes para entender que as ideias sobre infância
não eram mais adequadas, uma vez que estavam acontecendo modificações no caráter,
condições sociais, econômicas e relacionais da infância.
A Sociologia considerada Moderna se tornou inadequada para dar respostas aos
problemas sociais, considerado fruto das consequências da Modernidade que visou
busca da ordem, pureza e eliminação das ambivalências, separação das coisas buscadas
com tanto esmero, não foi suficiente para compreender a vida social atual. E foi neste
contexto, em meio a tantas mudanças no caráter da vida social e em meio à crise da
teoria social, que tem início a SI contemporânea, que tentou manter-se em sintonia com
um conjunto complexo de mudanças sociais, das quais são consequências do contexto
da Modernidade.
Mediante esse contexto, na visão de Prout (2010) a SI nasce com problema à
medida que herda tardiamente as dicotomias da sociologia tais como estrutura x ação,
local x global, identidade x diferença e continuidade x mudança. Além disso, deve-se
considerar que a teoria social nunca havia dado espaço para a infância diretamente, e
quando os fundamentos sociológicos sobre modernidade estavam desmoronando,
ironicamente se estendiam com atraso à infância. Para o autor, existem dois elementos-
chaves na SI, a ação das crianças e a ideia de infância como uma estrutura social. São
ideias que migraram da Sociologia Moderna que, por sua vez, resultou em paradoxos,
no mínimo complexos.
Enquanto a teoria social se ajustava à modernidade tardia descentrando o
sujeito, procurando metáforas para mobilidade, fluidez e complexidade, a SI valorizava
a subjetividade e ia edificando a infância como estrutura, logo finca suas bases no
interior das oposições da Sociologia Moderna e desponta com três dicotomias para
digerir, que são:
Crianças como atores sociais versus infância como estrutura
social. A novidade é considerar a ação da criança e as infâncias
52
construídas mais diversas e locais, mediante interação contínua entre
atores humanos, porém a vida social é frágil e incerta, precisa ser
trabalhada, mantida e reparada, mas ainda trata-se superficialmente da
ação das crianças como atores, pois é entendida como característica
essencial e pouco mediada, logo, não requer muitas explicações, por
fim, em relação à estrutura, pode incorrer no erro de homogeneizar as
formas de infância encontradas dentro das fronteiras que se imagina
segura, uma vez que a estrutura social tem a ver com a padronização
em larga escala da infância de uma determinada sociedade.
Infância como constructo social versus infância como natural
envolve o dilema da natureza e cultura, entre outras questões, o que
mais chama a atenção é a possibilidade de substituir o reducionismo
biológico pelo sociológico.
Infância como ser versus infância como devir. Hoje, o caráter
inacabado dos adultos é tão evidente quanto das crianças. Ambos são
devires. Ao definir a criança como ser de direito próprio, corre-se o
risco de endossar o mito da pessoa autônoma e independente, como se
fosse possível viver sem uma rede de interdependência, pois crianças
e adultos devem ser vistos por meio de uma multiplicidade de devires,
nos quais todos são incompletos e dependentes.
Perfilham-se duas propostas para solucionar as dicotomias construídas sobre
infância. Uma é a coexistência pacífica de diferentes sociologias da infância12
, que
seguem caminhos diferentes, localizadas em diferentes pólos sem se preocuparem em
investigar o território que as conecta. A outra, são as diferentes abordagens da SI
situando-as em um conjunto de dualismos que caracterizam as crenças e os valores da
teoria sociológica tais como: ação e estrutura, identidade e diferença, continuidade e
mudança, local e global.
Consideradas essas duas abordagens inadequadas, é preciso encontrar novas
ideias para compreender a infância como fenômeno complexo, não redutível a um
extremo ou outro de uma separação polarizada, pois o importante não é buscar uma
síntese nas oposições, talvez isso não seja possível, mas focar a atenção aos materiais e
12
Conforme Prout (2010) isso é evidente no texto de Bill Corsaro, The sociology of childhood (1997).
53
práticas a partir dos quais é gerada e emerge uma infinidade de novos fenômenos,
incluindo distinções e dicotomias, denominados de o terceiro excluído. (PROUT, 2010)
Propõe o autor que a Sociologia da Infância seja desvinculada do olhar
moderno, porque inclusão do terceiro excluído exige atenção às questões atuais de
interdisciplinaridade, hibridismo do mundo social, às suas redes e mediações, à
mobilidade e à relação entre gerações:
Interdisciplinaridade, esta é a principal razão para o
reconhecimento de que a infância é um fenômeno complexo.
Hibridismo, a infância é complexa porque é híbrida, constituída
mediante redes heterogêneas do social que são simultaneamente
reais como a natureza, narradas como o discurso e coletivas
como a sociedade. Os fenômenos sociais devem ser
compreendidos como entidades complexas nas quais se dão um
misto de cultura e natureza como condição de possibilidade, ver
a infância em uma enorme variedade de artefatos materiais.
Redes e Mediações, esta questão conduz a uma preocupação
comum de encontrar uma linguagem analítica para falar sobre a
ordenação da infância. Como sugestão, propõe a teoria do ator-
rede como uma opção para repensar a infância. O uso da
metáfora rede, diz: “A infância poderia ser vista como um
conjunto de ordens distintas, às vezes, concorrente e, às vezes,
em conflito, podem ser frágeis, mas podem também estabilizar-
se, difundir-se, e, com isso, ser encontradas em larga escala”
(PROUT 2010, p. 741).
A teoria do ator-rede pode se livrar da dicotomia ação/estrutura, porque os
atores podem ser de diferentes tipos tais como humanos que envolvem crianças e
adultos; não humanos como os artefatos e tecnologias, todos híbridos de cultura e
natureza, e produzidos por redes de conexão e desconexão. Sendo outro aspecto, o fato
de que os atores podem se apresentar em todos os tamanhos, dos pequenos, como a
criança individual, aos grandes como o Estado ou a mídia. E todos os atores são redes,
embora possam aparecer e agir como pontos.
54
Novas formas de infância aparecem quando criam novos espaços de conexões
em rede, por exemplo, entre crianças e tecnologias, como a TV e a internet. Essas novas
redes podem se sobrepor e coexistir com outras mais antigas, mas também podem entrar
em conflito com elas, sendo importante saber que rede produz uma forma particular de
infância ou de criança.
Os fluxos entre fronteiras e o declínio da noção de sociedade como entidade
distinta e delimitada requer nova ênfase sociológica na mobilidade, pois as sociedades
são cada vez menos capazes de defender suas fronteiras permeáveis, e tendem a adotar
um nível mais baixo de defesa, na tentativa de regular e modelar novos intensos fluxos
de pessoas, informações e produtos que as atravessam. Esses processos têm implicações
para a infância à medida que a criança assume inúmeras mobilidades com o
enfraquecimento das fronteiras e inclusive com a contribuição das mídias.
Às gerações, este enfoque traz a ideia de um sistema geracional ou ordem, uma
definição em que a geração é vista como um sistema de relação no qual se produzem as
posições de criança e de adulto. A autora Alanen (2001, p. 12 apud PROUT, 2010,
p.744) define que pode ser um sistema socialmente construído de relações entre
posições sociais, no qual crianças e adultos detêm posições sociais específicas, definidas
em relação às outras e constituindo, por sua vez, estruturas específicas.
Existe uma preocupação no padrão de relações entre adultos e crianças, na
medida em que estas constituem um elemento mais ou menos duradouro e estável dos
sistemas sociais. As questões de pesquisa estão voltadas, para:
[...]detectar as relações invisíveis, diretas e indiretas, através das quais as
crianças se incorporam firmemente em conjuntos estruturados de relações
sociais mais amplas do que suas relações locais muito imediatas e
potencialmente extensivas ao sistema social global”. (ALANEN, 2001, p. 12
citando PROUT, 2010, p. 744).
Prout concorda que a ideia de Alanen, vai ao encontro da proposta do terceiro
excluído, quando deixa de ver a infância como uma categoria para vê-la como algo que
se produz dentro de um conjunto de relações, pois se interessa pelos recursos, tanto
discursivos como materiais, e nas práticas envolvidas na construção da infância. Logo,
está no mínimo aberta ao caráter híbrido da infância.
Vale ressaltar que outros pontos ele diverge da autora, exemplo, o conceito de
geração que utiliza uma linguagem de sistema ou estrutura, em vez de rede e tende a
55
supervalorizar a estabilidade e a solidez das relações intergeracionais. Apesar dessa
crítica, a autora pensa o conceito de geração com menos preocupação com a ideia
estrutural, logo uma visão crítica e, sobretudo, possível uma reinterpretação do conceito
de geração. As relações não são estáveis e fixas, logo é possível pensar em crianças e
adultos como devires parciais.
Os estudos de Prout (2010) apontam a importância de pesquisar as relações
geracionais e do curso de vida, pesquisar na trajetória de vida, pois constatar o percurso
de vida é fundamental, uma possibilidade ampla que inclui tempo histórico, tempo
individual, história de vida e tempo institucional.
Essa abordagem conduz à multiplicidade e complexidade de infâncias e não
reduz o fenômeno a uma relação lógica ou interna entre dois termos, adultos e criança,
mas admite a importância das possibilidades externas na construção de infâncias
particulares e igualmente, aberta ao efeito de um amplo leque de fatores humanos e não
humanos na construção de múltiplas versões da infância e da idade adulta à medida que
se modificam ao longo do tempo.
Nessa reconsideração da infância, propõe-se a estudar a criança como ator
social e a infância como entidade ou instituição construída do ponto de vista social. Na
verdade, eu diria que a infância está, conectada a tudo, à medida em que destaca a teoria
do ator rede e o estudo com uso das trajetórias de vida. Por isso, afirma Valença (2011)
para a criança ser compreendida, os pesquisadores precisam incluir o estudo da
materialidade como os aspectos biológicos, sociais, culturais, tecnológicos e outros.
Na entrevista concedida a Delgado e Muller (2006) o professor Sarmento da
Universidade do Minho, Portugal, pesquisador há mais de duas décadas sobre infância,
concorda com a visão de Prout de que precisa entender a infância de outro modo:
Julgo também, de acordo com Alan Prout, que a Sociologia da infância só
poderá desenvolver-se se for capaz de articular o seu programa com a
renovação da própria sociologia em geral, com recusa das concepções
dogmáticas e fechadas e com abertura à complexidade e à análise não
dicotómica das relações entre a infância como categoria geral e as
crianças como atores sociais [...] (grifo meu).
No entender de Sarmento, é importante o diálogo interdisciplinar no interior da
Sociologia da Infância. Propõe:
56
Constituir a infância como objeto sociológico, resgatando-a das perspectivas
biologistas, que a reduzem a um estado intermédio de maturação e
desenvolvimento humano, e psicologizantes, que tendem a interpretar as
crianças como indivíduos que se desenvolvem independentemente da
construção social das suas condições de existência e das representações e
imagens historicamente construídas sobre e para eles. (SARMENTO, 2005,
p. 363)
Infância é concebida como uma categoria social do tipo geracional por meio da
qual se revelam as possibilidades e os constrangimentos da estrutura social. Criança
refere-se ao sujeito concreto que integra essa categoria geracional e que, na sua
existência, para além da pertença a um grupo etário próprio, é sempre um ator social
que pertence a uma classe social, a um gênero, etc. (SARMENTO, 2005).
O termo geração, na sociologia da infância, foi sujeito a críticas por ocultar as
diferenças e desigualdades de classe, para rediscutir este conceito, a obra de Karl
Mannheim é resgatada por Sarmento (2005, p.364).
A tradição mais forte da análise do conceito de “geração” radica na obra de
Karl Mannheim (1993[1928]) [...] corresponde a um fenómeno cuja natureza
é essencialmente cultural: a geração consiste num grupo de pessoas nascidas
na mesma época, que viveu os mesmos acontecimentos sociais durante a sua
formação e crescimento e que partilha a mesma experiência histórica, sendo
esta significativa para todo o grupo, originando uma consciência comum, que
permanece ao longo do respectivo curso de vida. A ação de cada geração, em
interação com as imediatamente precedentes, origina tensões
potencializadoras de mudança social.
Mannheim considerou as gerações como dimensão analítica útil, importante,
para o estudo da dinâmica das mudanças sociais de estilos de pensamento de uma época
e da ação. Feixa e Leccardi (2010, p. 89) consideram que a análise de Mannheim sobre
gerações foi:
[...] um divisor de águas na história sociológica do conceito de geração.
Quando Mannheim desenvolveu sua teoria das gerações – fazendo inter alia
uma comparação com os amplos movimentos coletivos do século XX – teve
um duplo objetivo: distanciar-se do positivismo – a abordagem biológica das
gerações –, bem como da perspectiva romântico-histórica. Além disso, seu
maior interesse foi o de incluir as gerações em sua pesquisa sobre as bases
sociais e existenciais do conhecimento em relação ao processo histórico-
social.
57
Na visão do sociólogo húngaro Mannheim, a mudança social é interpretada
como evolução intelectual da sociedade e o conceito de geração possui forte identidade
histórica.
A socióloga Leena Alanen, possui visão crítica sobre as ideias estruturalistas
na sociologia da infância, retoma o conceito mannheimiano e destaca a capacidade de
uma reinterpretação do conceito de geração, como grupo de idade construído pelos
respectivos atores, no quadro das respectivas interações e dos processos de construção
simbólica dos seus referenciais de existência. (SARMENTO, 2005).
Ela não abandona as dimensões estruturais, mas leva em conta as relações
internas à geração e aos processos de simbolização do real. Deste modo, propõe-se a
analisar o complexo dispositivo de processos sociais por meio dos quais as crianças são
construídas na sua identidade social e diferenciadas dos adultos, o que envolve a ação
social das crianças, sendo um processo que se estabelece na prática social (ALANEN,
2001, p. 20-21 apud SARMENTO, 2005, p. 365).
A autora imprime um caráter interacionista para o entendimento de geração.
Contudo, ressalta Sarmento em que é possível a reconstrução do conceito de geração,
considerando, para além das suas dimensões externas e internas e de variável
independente ou dependente, os elementos sincrônicos e diacrônicos presentes na
respectiva construção social. O objetivo é historicizar o conceito de geração, sem perder
de vista as dimensões estruturais e interacionais. (SARMENTO, 2005, p.365).
A infância é delineada no contexto histórico. Isso exige um processo longo que
lhe concede condição social, circunscreve as bases ideológicas e normativas e define
seu lugar na sociedade. Essa construção é tensa, contraditória e não se esgota. Ao
contrário, atualiza-se sistematicamente na prática social, nas interações entre crianças e
entre crianças e adultos.
Envolve as mudanças demográficas, as relações econômicas e os seus
diferentes impactos nos desiguais grupos etários e as políticas públicas, tanto quanto os
dispositivos simbólicos, as práticas sociais e os estilos de vida de crianças e de adultos.
Enfim, a geração da infância está num processo contínuo de mudança, não apenas pela
entrada e saída dos seus atores concretos, mas por efeito conjugado das ações internas e
externas dos fatores que a constroem e das dimensões de que se compõe.
(SARMENTO, 2005).
As críticas sobre o conceito de geração, remete ao que este pode esconder as
diferenças e desigualdades. Sarmento infere que uma coisa fundamental é considerar a
58
complexidade dos fatores envolvidos nas questões hierárquicas que diferenciam
indivíduos e grupos, segundo suas posições e classes e a convergência ao mesmo tempo
entre eles.
Sarmento (2005, p.364) pontua que o Sociólogo Dianamarques Jens Qvortrup,
resgata o conceito usado por Mannhein, e enfatiza a dimensão estrutural em detrimento
dos fatores históricos: “Geração é assumida como uma variável independente, trans-
histórica, estando prioritariamente ligada aos aspectos demográficos e econômicos da
sociedade”. Logo, a geração é uma categoria permanente e estrutural, definida por
fatores estruturais, exemplo: a estabilidade e a mudança demográfica. Esta perspectiva
tende a privilegiar, na análise, as relações intergeracionais e a secundarizá-las
juntamente com os aspectos culturais e simbólicos da infância.
Delineou-se uma perspectiva estrutural para o estudo da infância e, ao mesmo
tempo, diz que as crianças são, elas próprias, coconstrutoras da infância e da sociedade.
Corsaro (2011) propõe que todas as teorias que se concentram em como as
características estruturais da sociedade afetam seus membros individuais, uma
abordagem estrutural na sociologia corre o risco de subvalorizar o papel das ações
coletivas dos indivíduos, na sociedade. Entretanto, a partir do momento em que as
crianças são, elas próprias, coconstrutores da infância e da sociedade minimiza essa
ênfase estrutural.
Na visão de Sarmento (2005), a geração é um constructo sociológico que
procura dar conta das interações dinâmicas diferenciadas os atores de uma determinada
classe etária, em cada período histórico concreto, entre as relações estruturais e
simbólicas dos atores sociais de uma classe etária definida e como são continuamente
reinvestidas de estatutos e papéis sociais e desenvolvem práticas sociais. A redefinição
do conceito abre caminho para compreender a infância e depositar a crença numa
sociologia preocupada em investigar a criança, condições e características que lhe fazem
a diferença do grupo geracional, ou seja, indispensável considerar a diversidade das
condições de existência das crianças, seus efeitos e consequências sociais, essa é uma
diferença que compete à sociologia da infância esclarecer.
A criança pensada na SI é um ser ativo, participante, ator e autor de suas ações.
Inserida num contexto social, cultural e relacional. Por isso, pode e deve ser estudada
pelos seus próprios méritos e não indiretamente por meio de outras categorias da
sociedade.
59
Os textos impressos possuem preocupação em construir a infância como um
fenômeno social ou ainda, uma construção social, para romper com as explicações de
natureza biológica tão enfática na psicologia, que não dava o devido lugar para os
fatores sociais e históricos que influenciam o desenvolvimento. Logo, dando mais
ênfase no aspecto biológico.
Importante considerar que não se pode romper com as questões biológicas e
afirmar uma preponderância das questões sociais, pois a infância nunca será somente
social. Por isso, as mútuas implicações da infância como grupo de idade nas sucessivas
infâncias historicamente datadas e suas relações com os adultos o que, em síntese, se
inscreve no projeto científico da SI. (SARMENTO, 2005).
Na seção seguinte, darei continuidade a questões históricas e teóricas do
surgimento deste campo, contribuições que dão suporte a minha pesquisa, em função de
que o trabalho possui uma escolha e delineação teórica partindo do princípio da
aceitação da forma como SI pensa e lida com a infância, atualmente. Mesmo com as
divergências de pesquisadores, existe um fio condutor no qual todos pensam numa
criança ativa e participativa, que é o ponto de partida dessa investigação, procurando
valorizar a fala e as ações das crianças como elemento essencial para responder às
indagações do projeto inicial proposto.
1.4.2. Resgate histórico da Sociologia da Infância e teorias tradicionais
Na seção anterior, discuti alguns pontos da incursão da nova SI com desafios
trazidos por Prout que propõe estudar a criança como ator social e a infância como
entidade ou instituição construída do ponto de vista social, considerando arriscado
romper com a determinação biológica e assumir uma determinação social, pois é muito
importante estudar enquanto um campo interdisciplinar, a infância, mesmo sendo social
nunca será somente social, nem tampouco biológica e cultural. Logo, um mundo
globalizado produz uma infância globalizada que exige novos enfoques teóricos.
No intento de desvelar a SI, os trabalhos de Sirota (2001) e Montandon (2001)
são estudos importantes à medida que fazem um resgate histórico de surgimento e
definição da SI e também das teorias tradicionais propostas por Corsaro (2011).
A contribuição da socióloga francesa Sirota é um balanço da produção dos
sociólogos franceses, discute os diferentes elementos que resultam na emergência do
60
campo da SI que se caracteriza por fragmentação e até certo compartimentalizado,
sendo difícil dar visibilidade a esse campo, para isso é preciso mesclar questões
institucionais e publicações para revelar as diferentes linhas de forças e como se
estrutura a aparição desse objeto. Incialmente qualificado pelos sociólogos na literatura
francesa como fantasma onipresente, terra incógnita, refugo, mudo ou como quimera. E
na literatura inglesa como marginalizado, excluído, invisível, ou como categoria
minoritária.
A criança construída na SI possui a visão de Durkheim de que precisa de
socialização e definida por instituições “A infância será essencialmente reconstruída
como objeto sociológico através dos seus dispositivos institucionais, como a escola, a
família, a justiça [...]”. (SIROTA, 2001, p.9).
A visão de criança incapaz, devir a ser, vista como um período de crescimento,
essa época em que o indivíduo, tanto do ponto de vista físico quanto moral, não existe
ainda porque está crescendo e se formando e, por isso, precisa de educação, instrução e
socialização, é uma representação dominante na sociologia.
Essa ideia contribuiu para o apagamento ou a marginalização da infância, à
medida que considerou a infância frágil, incapaz e passageira para ser estudada por si
mesma. A criança não era percebida como ser protagonista que faz parte de um
contexto histórico e cultural, mas vista como objeto de socialização pelas instituições,
ou seja, com base nessas ideias, o trabalho dos sociólogos estava voltado para as
instâncias encarregadas da socialização, para fazer acontecer o ser social,
principalmente num quadro estrutural-funcionalista.
[...] por oposição a essa concepção da infância, considerada como um
simples objeto passivo de uma socialização regida por instituições, que vão
surgir e se fixar os primeiros elementos de uma sociologia da infância. Isso
deriva de um movimento geral da sociologia, seja ela de língua inglesa ou
francesa, [...] que se volta para o ator, e de um novo interesse pelos processos
de socialização [...] a releitura crítica do conceito de socialização e de suas
definições funcionalistas leva a reconsiderar a criança como ator. (SIROTA,
2001, p. 9).
Uma primeira questão para o aparecimento da SI é o recuo ao modelo
funcionalista estruturalista e o avanço em pesquisas interacionistas, fenomenológicas,
construcionistas e interpretativas, igualmente, uma releitura crítica do conceito de
socialização. Nesta retomada, a contribuição de Ariès (1981), discutida na secção
anterior, da infância como uma construção social que depende ao mesmo tempo do
61
contexto social e do discurso intelectual, tem importância fundamental, pois torna-se
alvo de estudos em um número grande de trabalhos e amplia o interesse pelo objeto no
conjunto das ciências sociais.
A teoria de Phillipe Ariès carrega em si críticas de que postula uma única
concepção de infância, negligenciando outras formas fora dos alcances de sua pesquisa.
No que tange ao surgimento da SI postula Sirota (2001, p.10) que “o mesmo ocorre no
interior da sociologia, a emergência do objeto infância questiona os modos de
abordagem, não só no plano teórico como também no disciplinar ou metodológico”.
A literatura francesa em 1994 publica pela primeira vez a infância como objeto
de pesquisa na revista Revue de l’Institut de Sociologie de Bruxelles intitulada Infâncias
e ciências sociais13
. As pesquisas deveriam compreender a infância como um grupo
social em si, que necessita ser investigado levando em conta que possui traços
específicos que o diferenciam de outras categorias sociais, enfim, as crianças têm uma
vida cotidiana cuja análise não se reduz a das instituições.
Com base ainda nos estudos de Sirota, outro marco importante na emergência
da SI, foi o surgimento no interior da Associação Internacional dos Sociólogos de
Língua Francesa, sendo que dois comitês de pesquisa também se interessaram pela
infância. Os sociólogos da família, com a associação canadense dos sociólogos e
antropólogos de língua francesa, organizaram em Montreal, em 1995, um encontro
intitulado Infâncias. Nele apontam a inexistência de trabalho interdisciplinar no âmbito
da língua inglesa e francesa. Igualmente discutem que uma leitura social da infância
poderia propiciar, a partir de um estudo comparativo internacional, um aprofundamento
dos modos contrastantes da construção social da infância atual. Ainda, no âmbito da
problemática da família, surge a configuração da criança como parceiro e ator na
estrutura familiar.
Na sequência, os sociólogos da educação formam uma comissão “Sociologia
da Infância” por ocasião do colóquio, que transcorreu em 1993. Por um novo balanço da
sociologia da educação, este se dispôs a atualizar a evolução do campo da SI onde se
pode observar a passagem de estudos sociodemográficos aos estudos etnográficos, no
âmbito de uma socioantropologia da infância, e assim estudar a criança, e não mais
simplesmente o aluno, enquanto ator social no quadro de uma desescolarização da
13
O objetivo da publicação era construir o objeto criança a partir da concepção de crianças como atores
sociais que participam das trocas e das interações, sendo ao mesmo tempo produtos e produtoras da
sociedade
62
sociologia da educação. Em outros termos, buscou a desescolarização da sociologia da
educação e o desvelar da criança em si mesma e não mais exclusivamente o aluno.
A investigação prossegue, a partir do final dos anos oitenta e no decorrer dos
anos noventa. Estudiosos de várias áreas tais como: demógrafos, historiadores,
sociólogos e etnólogos investiram nesses estudos no interior de suas comunidades,
organizando eventos científicos importantes na constituição do campo, com uso de
trocas, debates e publicações que contribuíram para a sua estruturação. Aos poucos, o
objeto vai sendo construído.
No final dos anos 80, historiadores, sociólogos, demógrafos e etnólogos de
língua francesa, assim como um certo número de profissionais da infância
começam a trabalhar, no interior de suas comunidades respectivas, com esse
novo objeto. Esses encontros e o conjunto das publicações que deles
resultaram se refletem uns nos outros, cada um raciocinando no interior de
seus próprios quadros de referência e com suas metodologias próprias,
construindo assim uma nova paisagem científica. (SIROTA, 2001, p. 12)
É possível perceber que o objeto é construído na interface de várias disciplinas
das ciências sociais, dessa forma, imprime outra configuração disciplinar, o que
estimula o debate e a evolução da sociologia da educação. Logo, é preciso retomar a
análise do processo de socialização e assim desescolarizá-lo e fazer uma ampla
articulação com outros campos da sociologia capaz de explicar o problema da
articulação com a sociologia geral.
Em relação ao surgimento e evolução científica da SI, a aparição da noção de
ofício de criança foi um elemento importante, e uma vez utilizado na sociologia da
educação de língua francesa, permite observar o percurso histórico e sua problemática,
pois insere um papel social claro para a criança, considerando-a como categoria social
própria e reservando-lhe o lugar de objeto sociológico, ou seja, faz um esforço para pôr
em evidência de que nos papéis de filho e aluno a criança não é receptáculo passivo de
socialização, e é com base nisso que se constroem os primeiros alicerces da SI.
(SIROTA, 2001)
Conforme a autora, o desafio da noção de ofício de criança representa uma
ruptura difícil no modo de pensar da Sociologia da Educação, foi usado pela primeira
vez na literatura francesa por uma funcionária de escolas maternais, precisamente, uma
inspetora, Pauline Kergomard. Era seu desejo ter uma escola que correspondesse à
natureza infantil, onde pudessem ser operados livremente os processos de maturação e
63
desenvolvimento das crianças. Nessa escola, a criança poderia cumprir o seu papel, o de
ser criança, existindo uma adequação entre o que a instituição define e o estatuto
reservado a ela no interior da instituição, visando sua função de socializar.
De acordo com Borba (2005) as publicações de Pauline Kergomard ocorreram
no período de 1886 a 1910. Posteriormente, Chamboredon e Prévot (1973) em análise
da obra da referida inspetora e sua influência no modelo pedagógico da escola maternal
na França, fez emergir o conceito de ofício de aluno. Segundo Borba (2005, p.27):
No Brasil, em 1986, [...] retomam a noção, a partir da análise do ofício de
criança, não mais em termos de uma natureza infantil, mas através da
confrontação do habitus familiar com o habitus escolar. Trata-se agora de
confrontar os pressupostos pedagógicos e do funcionamento escolar com o
habitus das diferentes classes sociais das crianças e das famílias, configurado
por modos específicos de pensar, de agir e de fazer. A criança é
compreendida através do seu papel de aluno, e a ênfase passa a recair na
análise crítica da institucionalização da infância, posição que passou a
dominar os estudos sociológicos sobre crianças, vistas como objetos mais ou
menos passivos de uma ação de socialização.
Essas discussões abrem caminho, posteriormente, para o campo sociológico de
onde surge a noção de ofício de aluno, na literatura francesa. Embora, segundo Marchi
(2010) e Borba (2005), esta expressão somente surgiu bem mais tarde, na obra do
sociólogo suíço, Philippe Perrenoud, em seu livro “Fabricação da experiência escolar”.
Este autor vê a escolaridade como a ocupação principal da infância, e assim articula o
termo ofício de aluno às noções de currículo oculto e de currículo real. Uma sociologia
do ofício de aluno se torna assim, ao mesmo tempo, uma sociologia do trabalho escolar
e da organização educativa. Com uso do currículo real, se interessa pelas tarefas
designadas aos alunos, estudando suas estratégias, face às expectativas da família e da
escola.
O ofício da criança esteve diretamente ligado à escola e à institucionalização da
infância, ou seja, ao ofício de aluno, que é aprendido pelas crianças, tanto na esfera
formal das estruturas acadêmicas como nas esferas informais, pelo currículo oculto da
escola e poder ser definido, antes de tudo, como a aprendizagem das regras do jogo
escolar. Logo, ser bom aluno não é somente assimilar conhecimentos, mas também estar
disposto a jogar o jogo da instituição escolar e a exercer um papel que revela tanto
conformismo quanto competência. Assimilar o currículo, não somente o formal, mas
64
também o chamado currículo oculto, onde se aprendem as regras não explícitas, mas
igualmente necessárias da cena pedagógica. (MARCHI, 2010).
A sociologia do ofício de aluno se interessa pelo sentido que os alunos dão ao
trabalho cotidiano, sai do foco até então centrado na socialização adotada pelas
instituições para colocá-lo no que os alunos atribuem ao trabalho escolar e a
organização educativa. Os alunos são considerados, nesses trabalhos, como sujeitos
constituídos em diferentes universos de socialização como a escola e a família.
Sirota (2001) diz que a autonomia relativa e a especificidade do trabalho de
negociação, de rearticulação e de construção do sentido atribuído à escolaridade pelos
alunos, no exercício de seu ofício de aluno, são aprofundadas pelos trabalhos que nos
anos 90 começam a formar verdadeiramente um conjunto na sociologia de língua
francesa.
Uma etapa significativa consiste na passagem da sociologia da escolarização a
uma sociologia da socialização. Os estudos adotaram, com frequência, uma perspectiva
socioantropológica, ultrapassando as barreiras disciplinares para tomar a sério o ofício
de criança. E assim, incluem a dimensão cultural e a necessidade de se compreender a
criança como um outro e em si mesma, como ser protagonista no seu próprio processo
de socialização. Enfim, conforme Marchi (2010, p, 192. grifos da autora):
Noções ofício de criança e ofício de aluno têm, portanto, uma complexa
existência no cruzamento da Sociologia da Educação com a Sociologia da
Infância […] que acarreta uma discussão teórica nem sempre possível de
deslindar, pois nestes conceitos podemos encontrar tanto as concepções
clássicas de socialização [...]quanto as concepções contemporâneas que
enfatizam o caráter "negociado" e de "construção" da identidade pelo
indivíduo.
Nas concepções clássicas de socialização, evidenciam os efeitos da
interiorização de normas e valores pelas crianças. Existe a significação explícita da
expressão ofício de criança e onde se vislumbra sua raiz funcionalista, as crianças são
construídas como seres sociais pelas atividades e funções que lhes são socialmente
atribuídas. Assim, ser criança é desempenhar ou exercer o papel social que é atribuído a
todos os que estão na infância. (SARMENTO, 2000 apud MARGHI, 2010). De acordo
com Sarmento neste caso, o ofício da criança tem como sua principal expressão o ofício
de aluno.
65
Os sociólogos da infância, na literatura francesa, emergiram, a maior parte, da
sociologia da educação, enquanto que, no campo de língua, os sociólogos da infância
emergiram das mais diversas áreas do conhecimento. De acordo com Sarmento (2009,
p.26) “a Sociologia da Infância francófona é muito devedora, num primeiro momento,
da historiografia contemporânea, e muito em especial, da obra sobre a história da
infância de P. Ariès [...] e do trabalho de vários sociólogos da educação [...]”. E
acrescenta o autor: “A Sociologia da Infância anglo-saxônica tem origens
multifacetadas e plurais [...] é hoje um espaço de trabalho onde se cruzam sociólogos e
outros cientistas sociais de diferente proveniência disciplinar”.
Na visão de Sirota (2001) a literatura anglo-saxã referente a SI desponta
primeiro e de forma mais estruturada do que a literatura francesa, tendo em vista o
grande número de trabalhos, a legitimação institucional e a constituição de redes de
pesquisadores que são elementos facilitadores do confronto de ideias, de uma análise
reflexiva e articulação teórica e institucional, contribuindo muito para a construção do
campo.
Régine Sirota e Cléopâtre Montandon consistem em duas importantes
referências sobre a infância na área da Sociologia, focalizando as produções de línguas
francesa e inglesa. Destaquei primeiro Sirota, agora será levado em conta a pesquisa
feita por Cléopâtre Montandon (2001) que elabora relevantes trabalhos sobre a criança
escrito em língua inglesa, e pontua alguns elementos similares àqueles encontrados na
produção de língua francesa. Com respeito a SI, os primeiros elementos para a
emergência desse campo tanto em língua inglesa quanto francesa vão surgir em
oposição à concepção de infância, considerada como um simples objeto passivo de uma
socialização regido por instituições ou agentes sociais.
De acordo com Montandon (2001) uma intensa atividade dos sociólogos
interessados pelas crianças e pelo reconhecimento do lugar delas no campo sociológico,
a partir dos anos 80, sugere a emergência de um novo campo que possui uma
construção social específica com uma cultura própria e merece ser considerado nos seus
traços peculiares.
Um marco importante foi o surgimento, em 1986, do primeiro número de uma
revista norte americana sobre estudos sociológicos do desenvolvimento infantil
intitulada Sociological Studies of Child Development, que surgiu do interesse de um
grupo organizado numa sessão intitulada “Desenvolvimento da criança e interacionismo
simbólico”, sendo oriunda no interior da Sociedade para o Estudo do Interacionismo
66
Simbólico de 1984, composta por sociólogos norte-americanos. Em 1992, a revista
muda de nome e passa a ser intitulada Sociological Studies of Children, mas continua
sendo responsável pela publicação de trabalhos importantes para a estruturação do
campo.
Na esteira ainda de Montandon, as duas últimas décadas do século XX
revelam uma multiplicação dos trabalhos sociológicos sobre a infância em língua
inglesa, com numerosos estudos publicados em revistas especializadas ou não, e com o
aparecimento de obras importantes para o campo como: Corsaro e Miller, 1992;
Corsaro, 1997; Fine e Sandstrom, 1988; Frones, 1995; Handel, 1988; James, Prout,
1990; Jenks, 1982; Stainton Rogers R., Stainton Rogers W, 1992; Qvortrup et al., 1994;
Waksler, 1991; Zelizer, 1985 e outros.
Um marco importante nesse contexto é a contribuição do sociólogo
Dinamarquês Jens Qvortrup que trabalhou com estudos sociais comparativos, voltados
particularmente à União Soviética e aos países do Leste Europeu, na década de 1980,
quando supervisionava projetos sobre família e divórcio, na Áustria.
Este sociólogo percebeu a ausência das crianças nos estudos e, entre 1987 e
1992, liderou o projeto pioneiro Infância como Fenômeno Social, que, sob o patrocínio
do European Center, de Viena, pesquisou a infância em dezesseis países. Em paralelo,
iniciou e presidiu o grupo de pesquisa Sociologia da Infância, da Associação
Internacional de Sociologia por dez anos.
Montandon (2001) sinaliza que após estudar os muitos trabalhos sobre as
crianças nos últimos anos constatou a existência predominante do empírico e grande
diversidade de questões exploradas. De acordo com Frones (1994 apud idem, 2001, p.
36) existem quatro grandes categorias temáticas. Ressalta os estudos de Corsaro (2007;
2009; 2011), um pioneiro a se dedicar na investigação das interações entre pares. Suas
pesquisas adotam a perspectiva da etnografia, por meio da observação participante,
registro em vídeo e notas de campo de situações de interações entre as crianças,
principalmente em atividades de brincadeira.
Será discutido adiante a visão desse autor sobre crianças produtoras de uma
cultura infantil de pares, o conceito de reprodução interpretativa, um eixo importante de
análise dessa cultura e a socialização das crianças que não deve ser vista como uma
questão de adaptação ou de interiorização de normas e valores da sociedade, mas como
um processo de apropriação, marcado ao mesmo tempo pela inovação e pela reprodução
da cultura na qual as crianças estão inseridas na brincadeira.
67
Numa primeira categoria temática, incluem-se os trabalhos que tratam das
relações entre gerações; estudam as relações entre adultos e crianças, inclusive entre
pais e filhos com temas sobre questões disciplinares, vínculos, preferências, estudos
comparativos entre países e outros. Os sociólogos estão cada vez mais envolvidos e
comprometidos com os temas comparativos, seja exemplo, o projeto de Jens Qvortrup,
que gerou uma série de relatórios nacionais importantes.
Os trabalhos que estudam as relações entre gerações e destinam lugar
importante às crianças são amparados por uma abordagem unilateral da socialização,
mas existem pesquisas com abordagens menos tradicionais, porém, a discussão sobre as
relações entre gerações continua acesa porque existem aqueles que sustentam a ideia de
uma uniformização crescente e que, por isso, não veem a utilidade de uma sociologia da
infância, e outros que dizem que as diferenças tornaram-se mais sutis e o importante
hoje é considerar não somente as diferenças entre gerações, mas também entre crianças
de idade diferentes.
Uma criança, hoje, pode conhecer mais coisas do que seus pais ou ser
amadurecido sexualmente, e continuar sendo um escolar o que, como consequência, traz
à tona a discussão sobre os limites da infância. Frones (1994, p.154 apud
MONTANDON, 2001, p.40) neste contexto, surge com uma interrogação nesses
estudos: em que medida alguns dos trabalhos que se situam na SI não poderiam
pertencer à Sociologia da família por ser tão implicados nas questões familiares.
Uma segunda categoria temática trata das relações entre crianças, ou seja, o
mundo da infância das interações e cultura das crianças. Montandon (2001) realiza uma
retrospectiva sobre várias pesquisas que enfocam interações entre crianças de várias
idades, em ambos os sexos e enfatiza que as relações entre crianças envolvem, também,
os trabalhos sobre as trocas, as brincadeiras, as relações das crianças entre si, que são as
pesquisas sobre o mundo da infância, as quais, sem dúvida, contribuíram para uma
tomada de consciência do interesse por uma SI e da inadequação dos paradigmas
teóricos existentes. Muitos desses trabalhos debruçaram-se mais sobre o ponto de vista
das crianças do que sobre suas interações. Nessa teia teórica e discursiva, os sociólogos
que estudam de perto as crianças se declararam insatisfeitos, pois se deram conta de que
a teoria da socialização que durante muito tempo conceituou as crianças como objeto da
ação dos adultos, não era mais suficiente para investigar a infância.
Corsaro (2009; 2011) foi um dos primeiros a estudar as interações de pares.
Realizou etnografias comparativas na Itália e, sobretudo, nos Estados Unidos a fim de
68
examinar como a participação das crianças nas brincadeiras de faz de conta contribui
para a produção e a extensão da cultura dos pares, oferecendo às crianças elementos de
compreensão e de preparação em relação ao mundo dos adultos. Ele é um dos
promotores de uma perspectiva interpretativa e construtivista para estudar a socialização
das crianças. Adiante, é apresentada uma seção que explica a pesquisa e os fundamentos
do trabalho de Corsaro, expoente importante na inspiração desta pesquisa.
O estudo analisa a maneira como as crianças negociam as significações
atribuídas às interações sociais, tendo em conta os pontos de vista de seus colegas e
como procura comunicar os seus, sendo que a investigação observou junto às crianças a
relação destas consigo mesmas, com o outro e com os objetos, que pressupõe todas as
formas de interação e identificou quatro posturas nas interações entre crianças:
A implicação de si mesma corresponde aos momentos em que
as crianças fazem algo e precisam interagir com objetos físicos e
com suas próprias ações e reações, uma vez que brincar consigo
próprio é uma postura na qual as crianças aprendem a levar em
conta os outros.
A observação interpretativa e a apresentação de si mesma
quando as crianças aprendem os mecanismos das interações;
elas se colocam perto de outras, observam as atividades e
anunciam de diversas maneiras a sua presença.
Em Co-implicação, as crianças tentam participar nas atividades
das outras, mas procura sugerir uma ideia, um objeto, uma
atividade e se esses índices são compreendidos pelos outros e
interpretados corretamente, então há um encontro bem-
sucedido.
E na implicação recíproca, a ação é criada conjuntamente pelas
crianças com base numa realidade comum, mais do que a
atividade em si o que conta mesmo é a compreensão recíproca.
São estudos e textos que deixam em evidência o papel das crianças na criação
do mundo social em que vivem e da sua cultura, pois as crianças possuem saberes
particulares, humor, um senso das possibilidades oferecidas pela língua, ideias sobre a
69
realidade social que as rodeia, enfim, criam e recriam uma cultura transmitida de
geração em geração com suas variedades regionais e suas especificidades locais.
Uma terceira categoria temática são os trabalhos que abordam as crianças
como um grupo de idade; trabalhos que tentam esclarecer a posição da infância como
grupo social e a posição desse grupo nos diversos contextos da vida cotidiana e nas
estruturas de poder político e econômico.
Os sociólogos que trabalham nessa perspectiva apontam as questões mais
controversas e difíceis de resolver, cruciais para o reconhecimento de uma Sociologia
da Criança, problemática que ganhou amplitude tanto na Europa quanto nos Estados
Unidos e, mais particularmente, nos países escandinavos, provocando conflitos entre
especialistas da infância.
As crianças constituem um segmento da sociedade e quando crescem deixam
esse espaço, mas outras vêm ocupá-lo, permanecendo sempre o segmento. Existem
confrontações com outros grupos de idade, assim como há confrontação de valores,
crenças, práticas de interação entre segmentos. Isso não impede que, se nos dedicarmos
a estudar a forma social da infância, possamos perceber que ela tem um núcleo cultural
específico. Os estudos adotam uma visão fenomenológica que se interesse pela
experiência das crianças, por seu papel de atores. James e Prout (1990 apud
MONTANDON, 2001) exprimiram isso numa fórmula bem sucedida, argumentando
que não é preciso estudar as crianças como seres futuros, mas como seres atuais, pois o
fato de admitir a infância como objeto sociológico não leva necessariamente a ignorar
as diferenças entre crianças.
Existe uma pluralidade de infâncias. É possível distinguir um conjunto de
traços que crianças de uma certa região, num dado momento, em determinadas
estruturas econômicas e políticas, têm em comum. É aceitável ver em que medida a
infância, em uma dada região, mudou do ponto de vista histórico, corresponde ao plural
da palavra criança, mas qualifica um grupo pertencente à categoria infância.
(QVORTRUP, 1995, p.17 apud MONTANDON, 2001, p. 48).
No momento em que a infância é considerada uma categoria social que
constitui um objeto sociológico em si, emerge uma variedade de temas. Historicamente,
as crianças são, com frequência, escondidas na categoria familiar, na investigação. Isso
reduz a visibilidade da infância, por isso, do ponto de vista demográfico, torna-se útil
buscar dados estatísticos, indicadores econômicos e sociais que levem a conhecer
70
melhor o estatuto social das crianças, de uma maneira que não seja dependente de sua
família no processo de investigação.
Do ponto de vista econômico, social e cultural, é importante saber sobre o
modo como as crianças utilizam o tempo e o espaço, pois com respeito aos estudos vê-
se com maior frequência o tempo que os adultos consagram às crianças em detrimento
do modo que as crianças utilizam esse tempo, como o tempo representa para ela, a
experiência que têm em relação a ele, são aspectos de sua vida pouco conhecidos.
O trabalho das crianças é um espaço aberto ao diálogo e discussão. Na visão
sócio histórica, as crianças sempre apresentaram uma utilidade para a economia de sua
sociedade. Nos países ocidentais, as crianças eram úteis como produtores; atualmente,
trabalham nas escolas. O trabalho escolar é útil, em sentido duplo: as crianças se
preparam para fazer parte da força produtiva de sua sociedade, e ainda, porque elas
oferecem emprego aos adultos. (QVORTRUP, 2011).
Para o autor, se as crianças não são de utilidade econômica para seus pais, elas
o são para a sociedade. Seria errado considerar as crianças como fardos que só fazem
consumir os bens e serviços na família e na escola, e que seu papel econômico no
mercado de trabalho deveria nos conduzir a reconsiderar a maneira como se conceitua a
infância.
As relações entre gerações devem ser repensadas, tendo em vista que as
transformações demográficas nas sociedades ocidentais e as mudanças na distribuição
da população segundo as idades fazem com que as famílias com crianças sejam
obrigadas a repartir o mesmo salário entre um maior número de pessoa do que as
famílias sem filhos. E também nas sociedades com mais velhos, as famílias com
crianças recebem cada vez menos compensações por parte da sociedade, logo, as
crianças se tornem cada vez mais o grupo menos favorecido.
As crianças que vivem nos países onde as condições econômicas são muito
difíceis, que conhecem a exploração econômica, assim como as crianças de rua,
suscitam cada vez mais a atenção dos sociólogos.
Uma quarta categoria temática de trabalhos que examinam os diferentes
dispositivos institucionais dirigidos às crianças com seus efeitos sobre elas são as
instituições que se ocupam das crianças: escola, instituições da primeira infância, as que
se ocupam dos lazeres, a mídia, estão cada vez mais numerosas, organizam e
influenciam a vida cotidiana das crianças. Em função disso, os estudos sobre os efeitos
71
das instituições sobre as crianças e suas famílias atraíram o interesse dos sociólogos há
algum tempo.
Historicamente, a vida das crianças nas instituições foi estudada com o objetivo
de ver se estas cumprem bem sua função, entretanto, esses trabalhos clássicos que
examinam a influência dessas estruturas sobre as crianças estão diminuindo, em
detrimento dos que atribuem às crianças um papel ativo.
As crianças, mesmo em idade muito tenra, desempenham um papel nas
instituições, é implícita e muitas vezes explícita a presença de uma luta velada dos
educadores pelo poder e dos alunos pela própria expressão nas instituições. Os adultos
(professores) estabelecem barreiras no campo de ação das crianças com o objetivo de
otimizar suas aprendizagens e nas instituições cuidadoras para manter a ordem.
Atendimento que transforma em coisas as crianças é uma herança de teorias em desuso
e não é necessária para os cuidados coletivos de crianças pequenas.
Por conta da institucionalização, a infância foi invadida por um controle social
rigoroso e regulamentação maciça no domínio da educação e dos cuidados profissionais.
Neste processo, a institucionalização exige individuação, já que os direitos e as
responsabilidades se aplicam aos indivíduos e não às famílias. Por outro lado, apesar
das instituições se dirigirem às crianças e organizarem sua vida de maneira uniforme, o
tratamento que oferecem conduz à individualização.
As abordagens educativas e psicológicas modernas insistem na individualidade
das crianças, esse duplo processo de individuação que reflete o controle social rigoroso
das crianças por intermédio das instituições, e individualização que reflete a promoção
de sua autonomia, nisso a individualização serve de algum modo à individuação, ou
seja, o controle.
Os principais trabalhos escritos em língua inglesa, abordam as relações entre
gerações, o mundo da infância, as crianças como grupo social e os trabalhos que
examinam os diferentes dispositivos institucionais dirigidos às crianças e seus efeitos
sobre elas.
Uma questão importante é a construção social da infância, que para construir
este novo modelo e afastar-se da visão Ocidental é importante buscar fundamentos nas
ideias dos sociólogos James e Prout que propõem alguns pontos essenciais para
redimensionar a infância sob um novo paradigma. Para tanto, é necessário levar em
conta uma série de proposições, resumidas a seguir:
72
1. A infância é uma construção social.
2. A infância é variável e não pode ser inteiramente separada de outras
variáveis como a classe social, o sexo ou o pertencimento étnico.
3. As relações sociais das crianças e suas culturas devem ser estudadas
em si.
4. As crianças são e devem ser estudadas como atores na construção
de sua vida social e da vida daqueles que as rodeiam.
5. Os métodos etnográficos são particularmente úteis para o estudo da
infância.
6. A infância é um fenômeno no qual se encontra a “dupla
hermenêutica” das ciências sociais, ou seja, proclamar um novo
paradigma no estudo sociológico da infância é se engajar num
processo de “reconstrução” da criança e da sociedade (JAMES;
PROUT, 1990, p.8-9 APUD MONTANDON, 2001, p.51).
Grande parte dos trabalhos sociológicos sobre a infância está associada a uma
abordagem renovada da socialização e a uma crítica da visão clássica desse processo.
O conceito de socialização antigo como um processo unilateral, ou seja, a
influência exercida pelas instituições e agentes sociais com vistas à assimilação, à
adaptação e à integração dos indivíduos na sociedade suscitou fortes reações por parte
dos sociólogos que estudam as crianças, sendo fundamental contrapor a ideia de que as
crianças são consideradas como objetos sobre os quais os adultos imprimem a cultura.
Essas ideias antigas de pensar a socialização que envolve acreditar nas crianças
como produtos inacabados, indivíduos a quem falta algo, que se enganam, que sempre
erram, que não compreendem, começam a decair com as novas formas da SI, que
precisam vencer esses pressupostos pré-concebidos.
Mantandon (2001) discute questões equivalentes ao trabalho de Sirota como a
necessidade de reconstrução do conceito de socialização.
Certo número de pontos comuns à esfera de língua inglesa e à esfera de
língua francesa parece assim emergir do conjunto da literatura. Essas
proposições são, contudo, enunciadas com pesos diferentes, segundo cada
autor, alguns insistindo na abordagem etnográfica para entender a experiência
infantil em função das perspectivas próprias às crianças, outros insistindo na
necessidade de uma articulação com as abordagens macrossociais e
quantitativas. (SIROTA, 2001, p. 19 - 20).
A autora enumera algumas proposições consideradas comuns à esfera de língua
inglesa e à esfera de língua francesa que são:
A criança é uma construção social. A infância é compreendida como uma
construção social, ela fornece um quadro interpretativo que permite contextualizar os
73
primeiros anos da vida humana, vista como fenômeno diferente da imaturidade
biológica, não é mais um elemento natural ou universal dos grupos humanos, mas
aparece como um componente específico tanto estrutural quanto cultural de um grande
número de sociedades. (JAMES; PROUT, 1990 apud SIROTA, 2001)
Essa desnaturalização da definição sem, contudo, negar a imaturidade biológica,
enfatiza a variabilidade dos modos de construção da infância na dimensão tanto
diacrônica quanto sincrônica e reintroduz a infância como um objeto ordinário de
análise sociológica, redefinindo as divisões clássicas entre psicologia e sociologia em
relação a esse período da vida.
A infância se situa, pois, como uma das idades da vida que necessitam de
exploração específica, como a juventude ou a velhice, já que é uma forma estrutural que
jamais desaparece, não obstante seus membros mudarem constantemente e, portanto, a
forma, evoluir historicamente.
As crianças devem ser consideradas como atores em sentido pleno e não
simplesmente como seres em devir, são ao mesmo tempo produtos e atores dos
processos sociais. Trata-se de inverter a proposição clássica, não de discutir sobre o que
produzem a escola, a família ou o Estado, mas de indagar sobre o que a criança cria na
intersecção de suas instâncias de socialização. A infância é uma variável da análise
sociológica que se deve considerar em sentido pleno, articulando-a as variáveis clássicas
como a classe social, o gênero, ou o pertencimento étnico.
O sociológico William Arnold Corsaro, considerado pioneiro a se dedicar a
investigação das interações entre pares, as culturas de pares, as relações entre adultos e
crianças e entre crianças, SI, os métodos etnográficos e o processo de socialização,
possui pesquisas transculturais sobre as culturas de pares e a educação inicial das
crianças na Itália, na Noruega e nos Estados Unidos, responsável por várias pesquisas
etnográficas, abordagem interpretativa e no campo da SI sustenta a existência de uma
cultura de pares.
Corsaro (2011) discute o motivo para o ressurgimento do interesse pelas crianças
na sociedade e, sobretudo, na sociologia, revisita teorias tradicionais de socialização e
de desenvolvimento infantil e os contrasta com sua proposta de reprodução
interpretativa, mas pondera que é muito difícil dar conta da grande quantidade de teoria
e pesquisa importante para uma nova SI, concordando com a história revisitada por
vários autores, aproximadamente há duas décadas, ele concorda que não existia quase
74
nada sobre crianças nos estudos da sociologia, pois esta prestou pouca atenção às
crianças e à infância.
Neste sentido, Sarmento (2009) revela que as crianças nunca foram temas
ausentes da sociologia, mas sempre foram investigadas indiretamente por meio de
outras categorias da sociedade, por exemplo, a família. Atualmente, existe visibilidade
teórica e de pesquisa, entretanto, este desenvolvimento da área demorou, e a grande
questão é compreender porque as crianças foram ignoradas durante muito tempo pela
sociologia.
As crianças foram ignoradas, negligenciadas, esquecidas e marginalizadas por
conta das visões tradicionais de socialização que as relegam a uma função passiva. Em
outros termos, devido a sua posição de dependência na sociedade e as construções
teóricas sobre infância e seu processo de socialização, vistas como incompetentes e com
necessidades relacionadas à vida futura e nunca como são no presente, capazes de
escolhas, desejos, sentimentos, diria, respeito. Assim, são deixadas de lado pelos adultos
as políticas públicas, inclusive, por teóricos sociais.
Esta questão de perceber a criança na sua completude, aliada à renovação e
transformação de abordagens tradicionais e teóricas sobre a criança e a infância,
impulsiona a atenção, em especial, para o abandono das crianças. Corsaro (2011) aponta
que novas formas de conceitualização de crianças na sociologia decorrem da ascensão
de perspectivas teóricas interpretativas e construtivistas. Estas partem da suposição que
tudo que ocorre deve ser compreendido como construções sociais, em vez de aceitas
como consequências biológicas ou fatos sociais evidentes. Por outro lado, as teorias
tradicionais veem as crianças como consumidores da cultura estabelecida por adultos.
Isso decorre em função de que as ideias sociológicas sobre criança e infância
estão atreladas ao trabalho teórico sobre socialização, processo pelo qual as crianças se
adaptam e internalizam a sociedade, sendo também, um ponto comum para o
surgimento da SI, conforme revisão teórica na língua inglesa e francesa.
As crianças vistas como objeto passivo de socialização regida por instituições
como a escola, família e justiça enxergam a criança como internalização da sociedade.
“A criança é vista como alguém apartada da sociedade, que deve ser moldada e guiada
por forças externas a fim de se tornar um membro funcional” (CORSARO, 2011,
p.19). Neste contexto, foram propostos dois modelos diferentes do processo de
socialização: primeiro, o modelo determinista; segundo, o modelo construtivista.
75
No modelo determinista, a criança desempenha um papel passivo, é
concomitante uma iniciante com potencial para contribuir para a manutenção da
sociedade e uma ameaça não adestrada, que deve ser controlada por meio de
treinamento cuidadoso, a sociedade apropria-se da criança e é vista como um
determinante do comportamento individual. No cerne dessa abordagem, surgiram duas
outras auxiliares e diferentes entre si, em suas visões de sociedade, que são: os
modelos funcionalistas e os modelos de reprodução. Os modelos funcionalistas
propunham a ordem e o equilíbrio na sociedade e destacavam a importância de formar
e preparar crianças para se enquadrarem e contribuírem com essa ordem. Por outro
lado, estudavam e descreviam aspectos muito superficiais da socialização, pois
preocupam-se pouco com as causas e como as crianças se tornam integradas à
sociedade, inclusive, existia a preocupação de requisitos necessários para o
funcionamento da sociedade. Para o autor Talcott Parsons14
, criança é uma ameaça
para a sociedade.
Por isso, deve ser apropriada e adaptada para se amoldar. Esta concepção
comportamentalista ao longo da história tornou-se alvo de críticas do modelo das
teorias construtivistas.
Os modelos de reprodução, conhecidos como reprodutivistas privilegiam
aqueles que possuem mais acesso aos recursos materiais, logo, leva à manutenção das
desigualdades sociais. Ou seja, o ponto mais crítico dos reprodutivistas, refere-se ao
fato que fornecem uma confirmação do efeito do conflito social e das desigualdades na
socialização das crianças.
Entretanto, teorias reprodutivistas e funcionalistas possuem excessiva
preocupação nos resultados da socialização, pela subestimação das capacidades ativas
e inovadoras de todos os membros da sociedade e, por sua negligência, em relação à
natureza histórica e incerta da ação social e da reprodução. Simplificam processos
altamente complexos, e no processo ignoram a importância das crianças e da infância
na sociedade, uma vez que subestimam a questão de que as crianças não se limitam
apenas a internalizar a sociedade em que nasceram.
Corsaro (2011) avalia que os reprodutivistas conseguem afastar-se do
determinismo e fornecem um papel mais ativo para a criança, por exemplo, a noção de
14
Talcott Parsons, expoente da visão funcionalista citado por Corsaro (2010).
76
habitus de Bourdieu é utilizada para entender o processo de relações entre as estruturas
sociais e as práticas sociais dos sujeitos. No entanto, essa visão ainda limita a criança na
participação e reprodução cultural e não foi suficiente para chegar a um modelo em que
a criança é vista como ativa. Nesse processo, pontua como um avanço importante as
teorias que levam em conta a ação das crianças.
Sobre essas teorias, considera notável o psicólogo russo Lev Vygotsky com sua
visão sociocultural do desenvolvimento humano com destaque o papel ativo da criança,
sendo importante avaliar os contextos de desenvolvimento e a história. Para ele, a
criança constantemente cria hipóteses sobre o seu ambiente, significando muito a
dimensão social e o sujeito em constante troca com o meio em que vive.
Em função disso, as funções mentais são internalizadas nas e pelas relações
sociais e tendo como ponto de partida o social, a aprendizagem é sempre um desafio a
ser alcançado pelo sujeito e depende de suas interações culturais, enfim, o sujeito
cognoscente pensante vigotiano internaliza o conhecimento do mundo assim como
constrói as funções psicológicas superiores, a partir da interação com o contexto cultural
que o cerca.
O desenvolvimento social da criança é sempre o resultado de suas ações
coletivas e que essas ações ocorrem e estão localizadas na sociedade. (CORSARO,
2011, p, 26)
Para Corsaro (2011) embora esse avanço forneça uma lente teórica para a
sociologia, é importante reorientar as imagens de crianças como agentes ativos já que,
até recentemente, focalizavam mais o desenvolvimento de resultados e falharam na
consideração da complexidade da estrutura social e das atividades coletivas. E assim,
propõe a abordagem que ele denomina de reprodução interpretativa.
Entre as quatros categorias mencionadas que são: relações entre gerações;
diferentes dispositivos institucionais dirigidas às crianças e seus efeitos sobre elas;
relações entre crianças e crianças como um grupo de idade. Estas duas últimas estão na
base dos fundamentos teóricos desta pesquisa, mas em algum momento, a segunda
categoria será considerada porque os sujeitos da pesquisa estão institucionalizados.
1.4.3. Reprodução interpretativa: cultura de pares e cultura
77
Este estudo situa-se no âmbito da perspectiva das crianças vistas como atores
sociais com atenção à voz, ação e participação na pesquisa, levando em conta suas
brincadeiras. O trabalho não tem a finalidade de investigar detalhadamente a cultura de
pares e as interações, embora sejam aspectos que atravessam a pesquisa, por isso serão
pontuados alguns conceitos importantes que são levados em conta na Sociologia da
Infância, em especial, a proposta de Corsaro. Ele refere que é muito difícil dar conta da
grande quantidade de teoria e pesquisa importante para uma nova Sociologia da
Infância, analisa os métodos tradicionais de socialização e de desenvolvimento infantil e
os contrasta com sua proposta de reprodução interpretativa. (CORSARO, 2011)
No universo de uma nova Sociologia da Infância algumas proposições são
fundamentais, exemplo, as crianças são agentes ativos que constroem suas próprias
culturas e contribuem para a produção do mundo adulto e a infância é uma forma
estrutural ou parte da sociedade.
Segundo abordagem de Corsaro (2011, p.31) “Numa perspectiva sociológica, a
socialização não é só uma questão de adaptação e internalização, mas também um
processo de apropriação, reinvenção e reprodução”. A socialização das crianças não é
uma questão de adaptação nem de interiorização, mas um processo de apropriação, de
inovação e de reprodução, uma preocupação com as ideias e o ponto de vista das
crianças. Como elas negociam, compartilham e criam cultura com os adultos e entre si.
O conceito de reprodução interpretativa fundamenta-se na ideia de que as
crianças participam da estabilidade e das mudanças de nossas sociedades mediante uma
reprodução interpretativa. Elas criam e participam de suas próprias e exclusivas culturas
de pares quando selecionam ou se apropriam criativamente de informações do mundo
adulto para lidar com suas próprias e exclusivas preocupações.
Propõe o conceito de reprodução interpretativa como alternativa ao pensamento
e teorias tradicionais que compreendem a criança numa visão prospectiva, linear,
individual, como consumidores da cultura estabelecida por adultos. Na visão
interpretativa, as crianças não reproduzem elementos culturais existentes de forma
automática, mas se remete a uma interpretação coletiva, são agentes sociais, ativos e
criativos, que produzem suas próprias e exclusivas culturas infantis e contribuem para a
produção das sociedades adultas.
78
A reprodução interpretativa é também um conceito utilizado por Corsaro para
validar o conceito de cultura de pares15, um conjunto estável de atividades ou rotinas,
artefatos, valores e interesses que as crianças produzem e compartilham na interação
com seus pares.
O entendimento sobre cultura, neste estudo, possui luzes no pensamento de
Geertz16
e de Bauman17
. Geertz trabalha com uma ciência interpretativa, que se permite
fazer relações com a proposta de reprodução interpretativa de Corsaro e da etnografia
como aporte deste estudo.
O conceito de cultura que eu defendo, e cuja utilidade os ensaios abaixo
tentam demonstrar, é essencialmente semiótico. Acreditando, como Max
Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele
mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e suas análises;
portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como
uma ciência interpretativa, à procura do significado. (GEERTZ, 1989, p. 4)
Para entender o conceito de cultura18
Geertz busca apoio em Max Weber,
quando diz que o homem é um animal que vive preso a uma teia de significados por ele
mesmo criada. Geertz sugere que essa teia e sua análise seja a cultura. No trabalho de
análise dessa teia, a missão do antropólogo é revelar esses significados, estabelecer
relações entre si, de forma a ensejar uma interpretação semiótica do objeto analisado.
A prática da etnografia envolve estabelecer relações, selecionar informantes,
transcrever textos manter um diário e assim por diante, porém, o que demonstra mesmo
uma boa intepretação não são apenas esses elementos, mas elaborar uma descrição
densa19
com características interpretativas em que o fluxo do discurso social procure
tentar salvar o “dito” num tal discurso, da sua possibilidade de extinguir-se e fixá-lo em
formas pesquisáveis, entendendo-se que a cultura não é nunca particular, mas sempre
pública e dinâmica. E sempre é importante indagar o papel de um evento.
O significado do conceito de cultura conforme descrito acima, vai ao encontro
da ideia do conceito de reprodução interpretativa, pois propõe que as crianças não
15
Pares são grupo de crianças que passam o tempo juntas, diariamente. 16
Clifford James GEERTZ (1926-2006). Considerado por três décadas, o antropólogo mais influente nos
Estados Unidos, talvez um dos principais antropólogos do século XX. Sua obra: A interpretação das
culturas, 1989. 17
Zygmunt Bauman, sociólogo polonês. Sua obra: Ensaios sobre o conceito de cultura, 18
A cultura é formada por teias de significados tecidas pelo homem. Significados estes que os homens
dão às suas ações e a si mesmos. 19
Descrição densa decorre da descrição inteligível dos comportamentos, acontecimentos sociais,
instituições, processos.
79
reproduzem uma experiência de forma mecânica e automática, mas agrega suas
percepções de acordo com suas experiências, idade e sentimentos, é uma criança que
cria suas próprias culturas e olhares da realidade. Logo, uma experiência muito difícil
ser compreendida nas instituições que organizam a rotina e as atividades das crianças
voltadas para os interesses da instituição, e pouco se leva em conta as produções e
aspirações infantis.
A criança da proposta de Corsaro, pensada com luzes na proposta de
reprodução interpretativa, é ativa, pensante, propõe ideias, mas, precisa de ouvidos
atentos para escutar e acolher essa infância, pois as atividades e rotinas das culturas de
pares podem servir como ações que auxiliam os pequenos na resolução de problemas e
processamento de ansiedade sobre experiências negativas e emocionalmente
estressantes.
80
CAPÍTULO 2
INFÂNCIA, BRINQUEDOS, BRINCADEIRAS E JOGOS
81
2.1. Compressão sobre o brincar
É tarefa difícil tentar definir o jogo ou, talvez, optar por uma abordagem. As
diferenças que são estabelecidas por diversos autores possuem fundamentos diferentes.
Os pesquisadores, aparentemente, não conseguem palavras que deem conta das
explicações e tampouco convergem em suas ideias. Entretanto, de acordo com a
pesquisa de Gomes (2001), essas definições, para crianças, são mais claras, conforme
explicou um menino de nove anos “[...] brinquedo é o objeto como a boneca, o carrinho;
e a brincadeira é o que a gente faz com esses objetos [...]” é simples de entender. Parece
que as crianças possuem as respostas que vários autores buscam há muito tempo.
Segundo Kishimoto (2003, p.7) “a dificuldade para a conceituação de jogo é o
emprego de vários termos como sinônimos. Jogo, brinquedo e brincadeira têm sido
utilizados com o mesmo significado”. Isso denota que, no Brasil, os termos jogo,
brinquedo e brincadeira ainda são usados de forma confusa, assinalando a imprecisão de
sua conceituação. No Brasil, segundo a autora, “estudos de Bomtempo, Hussein e
Zamberlain (1986), Oliveira (1984) e Rosamilha (1979)” têm apontado para a
indiferenciação e dificuldade existente na definição e uso dos termos.
Para Kishimoto (2001, p. 16) “Gilles Brougère (1981, 1993) e Jacques Henriot
(1983; 1989), começam a desatar o nó deste conglomerado de significados atribuídos ao
termo jogo ao apontar níveis de diferenciações”.
A autora Christie (1991b, p.4 apud KISHIMOTO, 2003, p.16) traz uma valiosa
contribuição porque “rediscute as características do jogo infantil e aponta estudos que o
distinguem de outros tipos de comportamentos e elabora critérios para identificar traços
que os distingam.
O termo brinquedo, de acordo com o dicionário Aurélio (FERREIRA, 1986, p.
286), pode abarcar vários significados: “[...] objeto que serve para as crianças
brincarem; jogo de crianças; brincadeira, divertimento; passatempo”. Percebe-se a falta
de discriminação entre o objeto e a ação relacionada com o termo. Para esclarecer
melhor o significado dos termos jogo, brinquedo e brincadeiras, associados ao ato de
brincar, alguns pontos serão vincados.
O jogo pode ser entendido de forma variada à medida que existem diferentes
tipos de jogos: políticos, de adultos, de crianças, futebol e outros. Esses jogos, embora
tenham a mesma denominação, possuem especificidades, hábeis a distingui-los uns dos
82
outros. Esta variedade de fenômenos identificados como jogo demonstra a dificuldade
em defini-lo, tanto reforçada ainda pela existência de materiais lúdicos que são
chamados tanto de jogo quanto de brinquedos. Kishimoto (2001) assinala que, para
compreender o significado dos termos e iniciar um entendimento da diferença entre jogo
e brinquedo, foi decisivo para seus estudos uma visita às obras de Brougère, Henriot e
Wittgenstein.
De acordo com Brougère (1998, p. 14-15), existem três níveis de
diferenciações, o que permite evitar certas confusões. O jogo pode ser visto como: 1) o
resultado de um sistema linguístico; 2) um sistema de regras e 3) um objeto. Para
facilitar a compreensão desses níveis, utilizamos como exemplo o jogo de xadrez:
No primeiro nível, “[...] a noção de jogo como um conjunto de
linguagem que funciona em um contexto social; isso significa que a
utilização do termo jogo deve, pois, ser considerada como um fato
social [...]”, e também o sentido do jogo depende da linguagem de cada
contexto social. Explicando melhor, o jogo assume a imagem e o
sentido que cada sociedade atribui de acordo com o lugar e o tempo.
Nesse sentido, mesmo o xadrez, um jogo que possui regras universais,
para cada sociedade, terá ele uma valoração diferente. Em função disso,
na nossa cultura, jogar xadrez está relacionado com a capacidade
cognitiva, com pessoas inteligentes.
No segundo nível, [...] o jogo subsiste de modo abstrato
independentemente dos jogadores, [...], são as regras do jogo que
distinguem o uso do mesmo objeto para jogos diferentes. Significa que,
quando alguém joga, está executando as regras e, concomitantemente,
participando de uma atividade lúdica.
Terceiro, o último nível, se refere ao jogo como objeto. Ao retomar o
xadrez, seu tabuleiro serve para outras brincadeiras, como damas, por
exemplo. Esses três níveis permitem uma compreensão do jogo,
diferenciando significados atribuídos por diferentes culturas, pelas
regras e pelos objetos que os caracterizam.
83
O brinquedo poderia ser associado ao terceiro nível, entretanto este termo é
bem específico. [...] O brinquedo supõe uma relação com a infância [...] ausência de
relação direta com um sistema de regras que organize sua utilização [...] não parece
definido por uma função precisa, trata-se, antes de tudo, de objeto que a criança
manipula livremente, sem estar condicionado às regras [...] ele é rico de significados
que permitem compreender determinada cultura, possui uma dimensão social e
desencadeia a brincadeira, ou seja, estimula a representação, permite várias formas de
brincadeiras e está inserido em um sistema social que lhe confere razão de ser.
A brincadeira é livre, não determinada. É uma forma de interpretação dos
significados contidos nos brinquedos. Ela escapa a qualquer função precisa e é, sem
dúvida, esse fato que a definiu em torno das ideias de gratuidade e até de futilidade.
(BROUGÈRE, 1995).
Conforme Kishimoto (2001), concordando com Brougère, os brinquedos
contêm sempre uma referência ao tempo de infância do adulto, com representações
veiculadas pela memória e pela imaginação. Enquanto objetos, são sempre suporte de
brincadeira. Esta é a ação que a criança desempenha ao concretizar as regras do jogo,
ao mergulhar na ação lúdica, pode-se dizer que é o lúdico em ação. Assim, brinquedo e
brincadeira se relacionam diretamente com criança e não se confundem com o jogo.
Dessa forma, neste trabalho, o termo brinquedo será entendido, também, como
objeto suporte de brincadeira; e a brincadeira, como a descrição de uma atividade
estruturada com regras implícitas ou explícitas. O jogo, por sua vez, compreendido
como objeto que possui regras explícitas e como atividade sinônima de brincadeira.
2.2. Concepções sobre o brincar: sociocultural, filosófica e psicológica
A psicologia infantil as teorias clássicas possui sua origem no pensamento
romântico e na biologia. Ela destaca o jogo como forma de compreender melhor o
funcionamento das emoções da personalidade dos indivíduos. O seu aporte serviu para
justificar as instituições românticas, construindo, assim, uma ciência do jogo que torna
natural esse fenômeno.
Nessa concepção, o jogo pode mostrar-se como tendo efeitos importantes no
que se refere ao desenvolvimento e à educação da criança. Com base nessa perspectiva,
84
surgem as concepções pedagógicas que compõem programas de educação infantil
enraizados na atividade lúdica da criança.
Por outro lado, é uma abordagem que oculta a dimensão social do jogo para
fazer dele o lugar de uma expressão espontânea da criança. Parece que a psicologia não
estuda o jogo em si mesmo, mas o que é executado pela criança nos comportamentos
lúdicos. O jogo é testemunha de um processo de desenvolvimento. (BROUGÈRE, 1998;
KISHIMOTO, 2003).
Na abordagem filosófica, as discussões a respeito do jogo que perpassam as
representações nos dias atuais trazem raízes expressas em textos do pensamento
ocidental, como o de Aristóteles, que analisa a recreação como descanso do espírito, ou
Platão, que assinala a importância do aprender brincando.
O interesse pelo jogo aparece também nos escritos de Horácio e Quintiliano,
que se referem às pequenas guloseimas em forma de letras, produzidas pelas doceiras de
Roma, com a finalidade de estimular a aprendizagem de letras. De tempos mais
recentes, destacam-se, por igual, Froebel e Dewey, o primeiro merece ser lembrado por
ser o introdutor do jogo na educação infantil e por conceber o brincar como atividade
livre e espontânea da criança, o segundo, por atribuir ao jogo papel essencial na
educação infantil. (KISHIMOTO, 2003)
A filosofia incentivou a reflexão e a análise de diferentes formas de
compreender o jogo e suas múltiplas linguagens, o que permite atualmente produzir
investigações com olhares múltiplos.
A abordagem cultural analisa o jogo como uma expressão da cultura e critica a
psicologização do brincar, que defende esta ação do indivíduo isolado das influências
do mundo.
Conforme Kishimoto (2002, p. 20), “[...] concepções como essas apresentam o
defeito de não levar em conta a dimensão social da atividade humana que o jogo, tanto
quanto outros comportamentos, não pode descartar.”
As brincadeiras não são algo que nasce espontaneamente com os indivíduos e
naturalmente se desenvolve “[...] não é uma dinâmica interna do indivíduo, mas uma
atividade dotada de uma significação social precisa que, como outras, necessita de
aprendizagem.” (BROUGÈRE, 1998, p. 1)
Os estudos dos autores que se coadunam com essa concepção compreendem
que cada cultura dá um sentido para o jogo, e esse se inscreve num sistema de
85
significação pessoal dada pelos sujeitos em função de suas percepções e da imagem que
possuem da atividade.
Como referencial teórico, a pesquisa parte dos estudos realizados no âmbito
das teorias que investigam o jogo numa perspectiva histórica e cultural, por autores
como Huizinga, Brougère, Château, Benjamin e Caillois. Esses autores teorizaram sobre
a relevância de compreender o jogo, a brincadeira, como uma ação que necessita de
aprendizagem dotada de significações a partir da vivência na cultura.
Esta pesquisa fez uma opção por autores que analisam o jogo com
determinações de aspectos sociais e culturais, tornando-os os principais interlocutores
nessa investigação. A seguir, serão discutidos alguns fundamentos desses teóricos.
2.3. Jean Château: a atividade lúdica proporciona um encantamento em crianças
Um escritor francês, que descreveu em sua obra “O jogo e a criança” (1987), um
estudo importante sobre a relação do jogo com a infância, revelando um verdadeiro
espaço de observação, que propõe a percepção total da criança e a compreensão da
importância dos jogos para a vida adulta. Sustenta em sua obra que a atividade lúdica
proporciona um encantamento em crianças, em adolescentes e em adultos. Faz parte da
natureza humana o ato de brincar, com a vantagem de favorecer o desenvolvimento da
criança e mesmo dos adultos. Estes se realizam plenamente, entregando-se por inteiro
ao jogo. Portanto, o brincar é uma atividade inerente ao ser humano.
O jogo tem papel principal no desenvolvimento da criança e mesmo do adulto.
Possibilita a percepção total da criança, é uma atividade séria em que o faz de conta, as
estruturas ilusórias infantis e o arrebatamento têm importância fundamental. Para a
criança, quase toda a atividade é jogo, e é pelo jogo que ela adivinha e antecipa as
condutas superiores. Deixa claro, ainda, que o brincar é uma atividade inerente ao ser
humano, “[...] pois é pelo jogo, pelo brinquedo, que crescem a alma e a inteligência [...]
uma criança que não sabe brincar será um adulto que não saberá pensar”. (CHÂTEAU,
1987, p. 15).
Segundo o autor, é necessário, ao estudar a infância, considerar o brinquedo,
pois a criança, pelo jogo, desenvolve as possibilidades que emergem de sua estrutura
particular, tenta se realizar em seu mundo lúdico, visto que o jogo proporciona a fuga do
86
real, é uma evasão; da mesma forma que o adulto quando procura no jogo o
esquecimento e a realização de seus problemas.
O jogo pode ser instrumento de transmutação da realidade, algo que o transpõe
a um mundo particular, dominado pela grandeza ilusória, atividade que oferece prazer,
está relacionada com a cultura e ajuda não só a conhecer as tendências da criança bem
como a revelar sua estrutura mental, e isso possibilita compreender a importância do
lúdico na vida da criança. É uma brincadeira que possui como predicado o caráter de
seriedade, que abarca o ser humano em sua totalidade, sendo, por isso, expressão da
personalidade do sujeito, levando ao distanciamento, a um mundo onde ela, a criança,
tem todo poder e pode criar um mundo onde as regras têm um valor que não tem no
mundo dos adultos. (CHÂTEAU, 1987).
À luz do que nos ensina o autor, a infância é um período que pode aprimorar,
por meio do jogo, as funções psicológicas, ou seja, as crianças brincam porque na
infância, graças aos jogos, fazem o treinamento das funções psíquicas e psicológicas.
Entretanto, o mais importante é que elas brincam porque isso faz parte da natureza
humana.
Em outros termos, integra a estrutura psíquica com necessidades e
características de desenvolvimento próprias da idade. Para a criança, quase toda a
atividade é jogo e é por ele que ela adivinha e antecipa as condutas superiores, a
brincadeira faz parte de sua natureza, ela se realiza no seu mundo lúdico, possibilitando
o desenvolvimento de seu jeito de ser e envolvendo-a em sua totalidade.
Outro aspecto interessante apontado é o caráter do papel pedagógico do jogo,
pois a ideia de que este pudesse conduzir ao trabalho ficou, por muito tempo, um tanto
confusa. Entretanto, os pedagogos da Escola Nova, possuidora de uma tendência
pedagógica romântica atinente à pré-escola como jardim de infância, acreditam que a
atividade espontânea pode ser coordenada na busca de um objetivo que se concretiza em
um dos fundamentos da escola ativa que, consequentemente, vai abrir espaços para uso
dos jogos na educação.
Do ponto de vista do autor, é preciso ter cuidado para que o uso de jogos não
seja compreendido como encaminhamento para o trabalho, pois esta postura desprezaria
a grandeza humana que dá seu caráter próprio ao jogo humano. Quanto a esse aspecto, é
preciso definir as relações entre jogo e trabalho, pois é notório que o jogo não exercita
apenas os músculos, mas a inteligência; dá flexibilidade e vigor, mas, igualmente,
proporciona domínio de si, sem o qual o ser humano deixa de ser homem, pois os jogos
87
educa os sentimentos, que consistem em imitar os grandes fatos da vida humana, a
exemplo das brincadeiras de casinha.
Conforme Château (1987, p. 42): “O jogo é, sob certos aspectos, uma atividade
de significação moral”, isso traduz que o jogo proporciona um aprendizado. A
moralidade está ligada aos modelos aprendidos, à internalização de normas, a regras
sociais e à elaboração de condutas que podem melhorar o jeito de ser.
Consequentemente, a personalidade do sujeito. Em outras palavras, existe no jogo um
aprendizado, porque a criança que constrói algo com uso de material aprende a concluir
uma tarefa em que estão implícitas normas e, por acréscimo, é um aprendizado moral.
Enfatiza que o jogo desenvolve a autoafirmação, uma vez que pode
representar, para a criança, o papel que o trabalho representa para o adulto. Como o
adulto se sente forte por suas realizações, a criança sente desenvolver-se com suas
atividades e proezas lúdicas.
Portanto, um aspecto importante que Château destaca é que para conhecer os
jogos não é necessário nenhum conhecimento inconsciente profundo, basta se colocar
no lugar da criança, pois ela é um ser que brinca e nada mais.
2.4. Walter Benjamin: A brincadeira da criança determina conteúdo imaginário
Walter Benjamin (1892-1940), alemão de origem judaica, nasceu em Berlim,
filósofo de inspiração marxista, reúne em sua obra vários temas, incluindo jogos,
brinquedos e brincadeiras. Ele concebe a criança como sujeito cultural, dado que todas
as suas atitudes se enraízam nos contextos coletivos e histórico-sociais. Igualmente, o
comportamento da criança faz parte de sua história, e os brinquedos possuem uma raiz
social atrelada aos artefatos/fatores culturais econômicos.
No tocante aos brinquedos, “[...] documentam como o adulto se coloca com
relação ao mundo da criança”. (BENJAMIN, 1984, p. 14). No entanto, conforme o
autor, existem brinquedos muito antigos como a bola, o papagaio e outros que, talvez,
tenham se originado de objetos de culto cujo caráter sagrado foi abandonado,
permitindo à criança desenvolver a sua imaginação. Dessa forma, existem brinquedos
impostos pelos adultos que se referem a saudades que eles possuem da infância; que
revelam um diálogo simbólico com íntima relação com o povo e sua cultura e outros
criados na falta de diálogo com as crianças, revelando, assim, que o brinquedo é
88
condicionado pela cultura, mais especificamente, a econômica, sendo, até hoje, criação
para a criança quando deveria ser da criança.
Sobre esta questão, não importa qual seja a forma e a referência com que foi
engendrado, pois é a criança que escolhe seus brinquedos entre os objetos que são
criados pelos adultos e atribui a eles os mais variados significados e funções.
Igualmente, o conteúdo do brinquedo não determina a brincadeira da criança, ao
contrário, o ato de brincar é que revela o conteúdo do brinquedo, ou seja, a brincadeira
determina o conteúdo imaginário.
Para Benjamin (1984), a brincadeira é coisa séria. Ele menciona que brincar
proporciona libertação da realidade, estimula imaginação e faz com que, num piscar de
olhos, a criança se envolva em batalhas e cenas variadas que são diferentes de sua
realidade. Assinala que o brinquedo possui uma especificidade na vida mental e
emocional da criança, pois é um instrumento de libertação da realidade, algo que a
transpõe a um mundo particular, dominado pela fantasia. Da mesma forma, o adulto
que se vê acuado por uma realidade ameaçadora, sem perspectivas de solução, pode
encontrar nos jogos e brinquedos um refúgio, sobretudo porque, ao narrar suas
experiências, alivia seu coração, liberta-se dos problemas e conquista a alegria
novamente.
Outro aspecto realçado pelo autor é a lei fundamental que rege a totalidade do
mundo do brinquedo, a lei da repetição visto que para a criança repetir é uma atividade
essencial. A criança gosta de repetir. Nessa linha, o brincar não é fazer como se fosse, e
sim o fato de fazer novamente, passar da experiência para o hábito. Sabemos que, para a
criança, a repetição é a alma do jogo e nada a alegra mais do que o fazer mais uma vez.
Toda e qualquer experiência mais profunda deseja insaciavelmente ir até o fim de todas
as coisas. Repetição e retorno, nisso reside a essência do brincar. Não é um fazer como
se, mas um fazer sempre de novo é a transformação da experiência mais comovente em
hábito e, consequentemente, todo hábito entra na vida como brincadeira e, mesmo
assim, em suas formas mais enrijecidas sobrevive um restinho de jogo até o final.
(BENJAMIN, 1984, p. 74-75).
Para o autor, a repetição é uma atividade que assume caráter pedagógico, de
aprendizagem de forma agradável. Como já mencionado, tudo que é bom e agradável
aspira à repetição e, assim, as ações e atividades são internalizadas como brincadeira.
Huizinga (2012) aborda também a repetição, mas como qualidade fundamental
do jogo, com uma significação diferente, o jogo é atemporal e se repete no tempo e no
89
espaço. Nesse sentido, o jogo é a-histórico, em outra perspectiva, quando assume que o
jogo é cultural, precisa ser considerada a dimensão histórica. O autor, em seu aporte
teórico, não demonstra preocupação pedagógica no seu trabalho, embora revele que a
repetição faz parte do jogo porque é fenômeno cultural.
No entanto, parece que ambos possuem um olhar na perspectiva histórica por
razões diferentes. Huizinga, por entender que o jogo é um fenômeno biológico e cultural
e, como tal, precisa ser estudado em uma perspectiva histórica. Benjamin, por sua
inspiração marxista, apresenta rastros históricos em sua análise, aprofundando as
reflexões a respeito da raiz social do brinquedo, entendendo-o como expressão da
cultura econômica em dado momento histórico.
2.5. Gilles Brougère: A brincadeira é uma forma de interpretação dos significados
contidos nos brinquedos
Brougère é francês, estuda as questões relativas ao jogo e à brincadeira infantil
em uma perspectiva sociológica, envolvendo as relações que esta atividade mantém com
a cultura do mundo adulto e com a cultura escolar, mais especificamente, da Educação
Infantil. Brougère (1995) afirma que o brinquedo é produto da cultura, possui dimensão
e função social, inserido em um sistema que lhe confere razão de ser. Transmite um
sistema de significados que permite compreender determinada sociedade e seus
costumes. Seu valor simbólico se torna preponderante à sua função, e a criança o
manipula livremente, sem estar condicionada às regras ou a princípios de utilização de
outra natureza.
O brinquedo também é fonte de apropriação de imagens e de representação,
utilizado e interpretado no interior da cultura de referência da criança, e nunca como
algo separado, sendo sua função primordial a brincadeira.
A brincadeira, por sua vez, escapa a qualquer função precisa e é, sem dúvida,
esse fato que a definiu, tradicionalmente, em torno das ideias de gratuidade e até de
futilidade. E na verdade, o que a caracteriza como brincadeira é que ela pode fabricar
seus objetos, em especial, desviando de seu uso habitual os objetos que cercam a
criança. (BROUGÈRE, 1995, p. 15).
Ainda no dizer do autor, a brincadeira é livre, não delimitada e desencadeada
pelo brinquedo. Este possui funções sociais, podendo ser suporte de relações afetivas,
de brincadeiras e de aprendizagem. Na brincadeira, a criança se relaciona com
90
conteúdos culturais que ela reproduz e transmite, dos quais ela se apropria e aos quais
dá uma significação. É a entrada na cultura tal como ela existe em dado momento, mas
com todo seu peso histórico.
Assim, reforçando o já dito, a brincadeira humana supõe a existência de contexto
social e cultural, rompendo com o mito da brincadeira como fenômeno natural. Trata-se,
no entanto, de um processo impregnado da cultura que exige aprendizagem social, ou
seja, aprende-se a brincar conforme a vivência e as experiências nas relações
estabelecidas.
Mas uma coisa essencial é que precisa ser livre. É o sujeito que decide sua
adesão à brincadeira e durante sua existência as regras são definidas pelos brincantes.
Importa dizer que a regra não é uma lei, pois uma regra de brincadeira só tem valor se
for aceita por aqueles que brincam e durante o brincar, podendo assim ser mudada em
outro momento e contexto.
É preciso considerar que a brincadeira é confrontação com uma cultura, que não
se possui certeza quanto ao valor final de sua contribuição, porém certas aprendizagens
essenciais parecem ganhar com o seu desenvolvimento. Finalmente, outro aspecto
relevante consiste em suas características de invenção e de curiosidade, que
correspondem ao mundo da imprevisibilidade de um futuro aberto.
2.6. Roger Caillois: Brincadeira é uma atividade fictícia
Caillois, sociólogo e antropólogo francês (1913-1978). Nesse campo
socioantropológico sua obra: “Os Jogos e os Homens” (1990) é uma referência, talvez
não seria demais enunciar a ideia de que é a mais importante sobre o assunto, com
explicações sobre as corrupções do jogo, pondera que o termo jogo combina em si, as
ideias de limites, liberdade e invenção. Para ele, “todo jogo é um sistema de regras que
definem o que é e o que não é do jogo, ou seja, o que é permitido e o proibido”
(CAILLOS, p. 11). Nesse aspecto, demonstra corresponder às mesmas ideias de
Huizinga a respeito das regras do jogo. Este é uma atividade que significa a liberdade
que deve permanecer no seio do próprio rigor, para que esse rigor conserve sua eficácia.
Apresenta em seus estudos a importância de considerar o jogo como uma atividade que
apresente algumas qualidades:
91
Ser livre: porque somente se joga se o jogador quiser, quando
quiser e o tempo que quiser, pois ao contrário, perderia sua
natureza de diversão atraente e alegre.
Delimitada: o domínio do jogo é um universo reservado,
fechado, protegido, ou seja, um autêntico espaço delimitado,
porque se dá dentro de espaço e tempo estabelecidos.
Incerta: por conta do fato de não se prever nem seu desenrolar
nem seu resultado. Aliás, o elemento da dúvida acerca do
resultado deve permanecer até o final. Igualmente, pelo fato de
deixar ao jogador a iniciativa de inventar.
Improdutiva: porque se opõe ao trabalho e não produz nem
bens, nem riquezas, exceto alteração de propriedade dentro do
círculo dos jogadores.
Regulamentada: o jogo é uma atividade regulamentada, sujeita
às convenções que suspendem as leis normais e que instauram
momentaneamente uma legislação nova.
Fictícia: atividade fictícia, ato de fingimento, viver na
imaginação, outra realidade como se fosse a verdadeira, uma
franca irrealidade em relação à vida normal.
Caillois (1990) retoma a obra de Huizinga ao frisar que o estudo é valioso por ter
analisado magistralmente várias características fundamentais do jogo e em ter
demonstrado a importância e sua função no desenvolvimento da civilização.
Comenta, ainda, que a obra não é um estudo sobre o jogo, mas, sim, uma
investigação sobre a origem do jogo na cultura, sendo mais apropriada aos jogos de
competição regulamentados. Difere de Huizinga, no tocante a algumas ideias,
principalmente em relação aos jogos de azar, por entender que o autor excluíra estes em
sua definição de jogo, estabelecendo características próprias, como uma atividade livre,
separada da vida cotidiana, incerta, regulamentada e fictícia, conforme apresentamos no
discorrer seu pensamento.
Caillois propõe uma divisão, e o faz depois de considerar dificuldades e
possibilidades do jogo, recorrendo a expressões estrangeiras, a partir das sensações e
92
experiências, assentadas em quatro rubricas principais. Chama-as de Agôn, Alea,
Mimicry e Ilinx.
Agôn, para o autor, está presente nos jogos de competição como o
combate, em que a igualdade de oportunidades se torna artificial,
para que os competidores se enfrentem em condições ideais.
Existe rivalidade baseada em qualidades, tais como rapidez,
resistência, vigor, memória, habilidade, de tal forma que o
vencedor apareça como o melhor, em determinada categoria de
façanhas. Encontra-se, nesses jogos, o desejo da vitória, pois a
prática do Agôn supõe por ele uma atenção sustentada, um treino
apropriado, esforços assíduos e uma vontade de vencer. Esta
categoria se encontra presente também em outros fenômenos,
visto que, fora dos limites do jogo, se encontra o espírito do Agôn
em fenômenos culturais que obedecem às mesmas leis, tais como
o duelo e o torneio. Pertencem, a Agôn, o futebol e outros jogos
de bola, toda espécie de corrida, de luta, de provas de alvo, todos
considerados agôn de tipo muscular, e as partidas de damas,
xadrez, bilhar, agôn de caráter cerebral.
Alea é característica de jogos em que a decisão não depende do
jogador, e o elemento principal compreende o acaso, nos quais a
habilidade não tem poder e o jogador se lança ao destino.
Exemplos puros dessa categoria de jogo são os dados, a roleta,
cara ou cruz, jogos de cartas, loteria, palitos, bingo e todos os
tipos de sorteio. Esses jogos não têm a função de fazer os mais
inteligentes ganharem dinheiro, mas de anular as superioridades
naturais e adquiridas, a fim de possibilitar condições iguais antes
que o veredicto da sorte seja dado. São jogos de natureza oposta a
agôn, uma vez que a decisão ou a vitória não depende do jogador
ou do seu adversário, mas da própria sorte. Sendo, portanto, o
jogador passivo, ele não faz uso de sua habilidade, inteligência ou
força. É um espectador. Diferente também de agôn, porque se
opõe ao trabalho e ao treino. É, no dizer de Caillois (1990) uma
93
insolente e soberana zombaria do mérito. O autor aponta para a
possível combinação de alea + agôn em jogos como o dominó e
a maioria dos jogos de cartas, que juntam o acaso, que preside a
feitura da mão de cada jogador, com a experiência e o raciocínio,
que são a defesa de um jogador permitindo-lhe tirar o melhor
partido do que tem na dita mão.
Mimicry compõem uma variada série de jogos que tem como
característica comum se basear no brincar de acreditar, de fazer
acreditar a si mesmo ou de fazer os outros acreditarem que se é
outra pessoa, jogos em que se faz presente a ilusão, a
interpretação e a mímica, permeado pelo uso de máscaras,
representação com a construção de diversos personagens.
Incluem-se, por exemplo, nesta rubrica as interpretações teatrais e
dramáticas, todos os jogos em que o jogador encarna um
personagem ilusório, deste adotando o comportamento, “[...] a
Mimicry é a invenção incessante [...]”. (CAILLOIS, 1990, p. 58).
O autor chama estas manifestações pelo termo inglês mimicry,
com o significado de mimetismo, para apontar a natureza
fundamental e radical, quase orgânica, do impulso incerto que
suscita essas manifestações. Máscara, mímica, disfarce, imitação,
são aspectos dessa classe de jogos. Todos os jogos infantis, com
acessórios que reproduzem ferramentas, utensílios, armas e
máquinas de adultos são exemplo. Muito evidente o prazer de ser
outro ou de se fazer passar por outro, imitam o real, ou melhor,
transformam o real em função dos desejos e necessidades,
momentos em que no faz-de-conta possibilita à criança a
realização de sonhos e fantasias, revela conflitos, medos e
angústias, aliviando tensões e frustrações. Durante a brincadeira
pressupõe-se que a criança demonstre muito do que vai em seu
mundo interior, uma vez que as brincadeiras escolhidas, os temas
dramatizados reproduzem suas experiências, relações com os
adultos e referências a suas carências e necessidades afetivas, que
é o caso das brincadeiras de casinha, representando personagens
vividos e compartilhados entre as crianças.
94
A rubrica Ilinx se refere à busca da vertigem e do êxtase, como
componentes, consistindo em romper, por algum instante, a
estabilidade da percepção e da consciência em um pânico
voluptuoso: “[...] em qualquer caso, trata-se de alcançar uma
espécie de espasmo, de transe ou de perturbação dos sentidos que
provoca a anulação da realidade por algo brusco que se torna
superior” (CAILLOIS, 1990, p. 58). Enuncio melhor: há neles o
intento de desestabilizar a percepção, o equilíbrio, e provocar, por
momentos, uma espécie de volúpia do pânico, um medo
estonteante. Essa perturbação prazerosa é conseguida nas
agitações do rodopio, da gangorra, do balanço, do escorregador e,
sobretudo, nos aparelhos instalados em feiras e parques de
diversão como o tobogã, a roda-gigante, a montanha-russa.
Ao propor essas quatro categorias de jogos, Caillois não se detém no pendor
apenas da criança para os jogos, na visão do autor é preciso considerar o fato de que a
atividade lúdica se estende aos adultos: a competição desportiva, a loteria, o disfarce do
carnaval, a embriaguez dos saltos e da velocidade são transformações, além dos jogos
queridos pelas crianças.
A importância da classificação reside no fato de que ela é uma ferramenta
heurística, algo parecido com uma escada em que se sobe para chegar-se a uma visão da
paisagem.
Enfim, a relação da manifestação das brincadeiras infantis relacionada de
alguma forma com a cultura e o contexto social é um caminho que vem ao encontro das
análises de dados encartados nesse trabalho.
2.7. Johan Huizinga: Brincadeira é uma atividade voluntária, sujeita a ordens
deixa de ser jogo
O livro “Homo Ludens”, do historiador holandês Johan Huizinga (1872-1945),
é um clássico essencial no que tange ao estudo de jogos. Ele se tornou leitura
obrigatória para todos que se interessam pelo fenômeno jogo. Sua contribuição,
95
aparentemente, é a mais eficiente definição estrutural e funcional de jogo realizada até o
momento, pois destaca com clareza a função e as características do jogo.
Na visão de Huizinga (2012), o jogo é elemento necessário para explicar o
homem dos tempos modernos. É no jogo e pelo jogo que a civilização surge e se
desenvolve. Assim, destaca a importância fundamental do fator lúdico para a
civilização. Ele analisa a temática da ludicidade num tom filosófico, considerando o
caráter lúdico do jogo. De acordo com o autor: “[...] o jogo é fato mais antigo que a
cultura [...] é mais do que um fenômeno fisiológico [...], pois ultrapassa os limites da
atividade física ou biológica [...]”. (HUIZINGA, 2012, p. 5). O jogo é um fenômeno
biológico e cultural e deve ser estudado em uma perspectiva histórica.
Ao discutir a dificuldade da biologia e da psicologia nas tentativas de explicar o
jogo, afirma Huizinga (2012, p. 7).
[...] ao tratar o problema do jogo diretamente como função da cultura,
e não tal como aparece na vida do animal ou da criança, estamos
iniciando a partir do momento em que as abordagens da biologia e da
psicologia chegam ao seu termo. Encontramos o jogo na cultura,
acompanhando-a e marcando-a desde as mais distantes origens até a
fase de civilização em que agora nos encontramos.
Analisar o jogo como função da cultura é processo que se inicia a partir do
momento em que abordagens psicológicas e biológicas chegaram a seu limite. Esses
enfoques não conseguem explicar a intensidade do jogo e seu poder de fascinação. Em
outros termos, as atividades lúdicas resistem a qualquer análise. Isso importa dizer que a
clarificação de concepções inatas e naturais é difícil, uma vez que se afastam da
preocupação de saber o que há de divertido, de conhecer o arrebatamento e a alegria que
o jogo produz. Para Huizinga (2012, p. 10) “[...] as crianças e os animais brincam
porque gostam de brincar, e é precisamente em tal fato que reside sua liberdade”.
A definição de jogo não é tarefa fácil. Conforme Huizinga (2012, p. 10): “[...] o
jogo é uma função da vida, mas não é passível de definição exata em termos lógicos,
biológicos ou estéticos”. As características e função do jogo são mais importantes do
que a própria definição. Recorrendo ainda ao autor, o jogo possui elementos de beleza, à
medida que a vivacidade e graça estão presentes nas formas primitivas de jogo e se
expressam no ritmo e na harmonia.
96
Para o autor “[...] o jogo é uma atividade voluntária que, sujeito a ordens, deixa
de ser jogo, podendo, no máximo, ser uma imitação forçada” (HUIZINGA, 2012, p. 9).
Assim, pressupõe a liberdade como uma de suas características fundamentais.
Diferentemente dos animais e das crianças que são levados a brincar pela própria
natureza e necessidade de desenvolvimento, para os homens é possível, em qualquer
momento, adiar ou suspender o jogo, conforme resume Huizinga (2012, p. 16).
[...] uma atividade livre, conscientemente tomada como “não-séria” e
exterior à vida habitual, mas ao mesmo tempo capaz de absorver o
jogador de maneira intensa e total. É uma atividade desligada de todo
e qualquer interesse material, com a qual não se pode obter lucro,
praticada dentro de limites espaciais e temporais próprios, segundo
uma certa ordem e certas regras.
É interessante notar que a partir do entendimento do autor de que, embora o jogo
seja visto como atividade não séria, ao mesmo tempo é tomada de profunda seriedade,
uma vez que é capaz de absorver por inteiro com fascínio, arrebatamento e prazer o
jogador, pois certas formas de jogo podem ser extraordinariamente sérias.
Em relação às regras do jogo, o autor menciona que, sujeito a ordens, deixa de
ser jogo. Entretanto, as regras do jogo possuem valor e estão presentes no momento e
espaço do jogo. De acordo com o autor, uma das características mais importantes do
jogo é sua separação espacial em relação à vida quotidiana. É lhe reservado quer
material ou idealmente, um espaço fechado, isolado do ambiente quotidiano, e é dentro
desse espaço que o jogo se processa e suas regras têm validade. (HUIZINGA, 1996, p.
23).
Não há dúvida de que a desobediência às regras implica a ruína do mundo do
jogo. Este corresponde a uma atividade voluntária que possui suas características.
Assim, sua primeira característica é o fato de ser livre, a se concretizar na segunda
característica, a evasão da vida real, o faz-de-conta com orientação própria. Essa
segunda característica, intimamente ligada à primeira, demonstra a não-seriedade que
parece ser fundamental e concomitante à seriedade, pois “o jogo não impede de modo
algum que ele se processe com a maior seriedade, com enlevo e um entusiasmo que
chegam ao arrebatamento [...] todo jogo é capaz, a qualquer momento, de absorver por
inteiramente o jogador .(HUIZINGA, 2012, p. 11).
97
É desinteressado porque não pertence ao campo da satisfação das necessidades e
desejos imediatos. Portanto, como função cultural, é essencial para o indivíduo e para a
sociedade.
Huizinga discute que a terceira característica do jogo é o isolamento, a limitação.
Ele ocorre dentro de limites de tempo e de espaço, criando a ordem mediante a uma
perfeição temporária e limitada. Possui um caminho e um sentido próprios, diferentes
da vida comum, e é ligado à sua limitação no tempo. Por ser aspecto interessante do
jogo o fato de se fixar como fenômeno cultural, e mesmo depois do jogo ter chegado ao
fim, é possível ser lembrado e repetido quantas vezes o jogador quiser, a qualquer
momento, e essa capacidade de repetição é uma de suas qualidades fundamentais.
O jogo “[...] introduz na confusão da vida e na imperfeição do mundo uma
perfeição temporária e limitada, exige uma ordem suprema e absoluta, e a menor
desobediência a esta estraga o jogo, privando-o de seu caráter próprio e de todo e
qualquer valor”. (HUIZINGA, 2012, p. 13)
“O jogador que não respeita ou ignora as regras é um desmancha-prazeres”
(Huizinga p. 14). Para ele, o jogo é dotado de ritmo e harmonia que são as qualidades
mais nobres que somos capazes de ver nas coisas, e são as regras que todo jogo possui,
que determinam aquilo que significa dentro do mundo temporário por ele circunscrito.
Finalmente, outro elemento que o autor não evidencia como característica, mas
cuja importância enfatiza, é a tensão expressa pela incerteza e pelo acaso: em um jogo,
jamais se deve saber o final ou o desfecho antes que este acabe a exemplo do que ocorre
nos jogos de azar e nas competições esportivas.
2.8. Vygotsky: a brincadeira impulsiona desenvolvimento
Psicólogo, bielo-russo Lev Vygotsky (1896-1934)20
. O texto de base desta seção
será A brincadeira e o seu papel no desenvolvimento psíquico da criança, substituindo
20
Optei por utilizar o texto traduzido diretamente do russo, pela educadora Zoia Prestes, estudiosa
brasileira que tem se dedicado a “corrigir” as distorções da obra de Vygotsky, uma tradução que
considero magistral. Dispensei o uso do texto VYGOTSKY, L.S. A Formação Social da Mente. São
Paulo: Martins Fontes, 1999. A autora, tradutora, explica que não sabe se foi equívoco dos tradutores ou
dos organizadores do volume, mas o texto com o título O papel do brinquedo no desenvolvimento,
apresentado no Brasil corresponde, no original de Vigotski, A brincadeira e o seu papel no
desenvolvimento psíquico da criança, logo, o texto do livro, desde o início, revela distorções, sendo que o
de Prestes utilizado nesta tese em português é inédito. Segundo ela, foi traduzido do original, publicado
no livro Psikhologia Razvitia Rebionka (2004).
98
o conhecido papel do brinquedo no desenvolvimento da criança. Deste modo, fica
explícito que será utilizado a palavra brincadeira e não brinquedo. Prestes explica que,
em russo, a palavra igra é empregada tanto para referir-se à brincadeira quanto ao jogo,
sendo também este o entendimento dos franceses, o jogo como algo que você faz
quando está livre para fazer o que desejar. Jogo se liga à fantasia, à criatividade e,
sobretudo, à liberdade e ocorre quando o organismo está livre para brincar, tem sentido
de brinquedo-brincadeira.
A brincadeira, do ponto de vista do desenvolvimento, não é uma forma
predominante de atividade, mas, em certo sentido, é a linha principal do
desenvolvimento. A brincadeira não é predominante, porém fundamental para estimular
o desenvolvimento.
O prazer não pode ser critério para instituir uma brincadeira por dois motivos:
primeiro, porque existe uma série de atividades que podem proporcionar à criança
vivências de satisfação mais intensa do que a brincadeira, seja exemplo, a criança
quando chupa uma chupeta e mama. Quanta satisfação presente nesse ato de sução! Em
segundo, existem brincadeiras que não apresentam satisfação no processo, como por
exemplo, jogos de competição. No término, aquele que não venceu, que foi
desfavorável o resultado, sente uma enorme insatisfação, não raro as crianças pré-
escolares21
choram, mediante esses argumentos, frente a esses motivos a definição da
brincadeira pelo princípio de satisfação parece não fazer parte da discussão desse autor.
Na visão de Vygotsky, deve-se atender às necessidades das crianças porque o
fato de não considerar o prazer como critério de definição não invalida levar em conta a
necessidade, já que, na brincadeira, as necessidades da criança se realizam, como
também os impulsos para a sua atividade, isto é, seus impulsos afetivos. É necessário
entender a brincadeira tendo em conta as necessidades, as inclinações, os impulsos e o
motivo da atividade, pois a brincadeira favorece a satisfação destes aspectos na criança,
qualquer deslocamento, qualquer passagem de um estágio etário para outro se relaciona
à mudança brusca dos motivos e dos impulsos para a atividade.
As crianças pequenas, em sua primeira infância, são imediatistas, se ela quer
pegar um objeto precisa ser naquele momento, por isso não se vê crianças pequenas
fazer plano para o dia seguinte, nesta fase não possui presente a imaginação, atividade
essencialmente humana da consciência.
21
Vigotski refere-se no texto a diversas idades: primeira infância, até 3 anos, e a idade pré-escolar,
criança acima de 3 e até 6/7 anos.
99
Na idade pré-escolar, surgem os desejos não satisfeitos e as tendências não
realizáveis imediatamente, concomitante, conserva-se a tendência da primeira infância
para a realização imediata dos desejos, é disso que surge a brincadeira, que deve ser
sempre entendida como uma realização imaginária e ilusória de desejos irrealizáveis.
A imaginação é o novo que está ausente na consciência da criança, na primeira
infância, absolutamente ausente nos animais, e, como todas as funções da consciência,
forma-se originalmente na ação. A velha fórmula, segundo a qual a brincadeira de
criança é imaginação em ação, pode ser invertida, afirmando-se que a imaginação é a
brincadeira sem ação.
Importante considerar que o impulso que leva a criança a brincar não é um
simples impulso afetivo do mesmo gênero que ocorre no bebê ao chupar a chupeta. A
brincadeira não surge de desejo isolado não satisfeito, mas possui tendências afetivas
generalizadas externas aos objetos, logo, a essência da brincadeira é que ela é a
realização de afetos generalizados.
De acordo com Vygotsky, na idade pré-escolar, a criança tem consciência de
suas relações com os adultos, reage a eles com afeto, porém, diferente, do que acontece
na primeira infância, generaliza essas reações afetivas, por exemplo, a autoridade dos
adultos impõe-lhe respeito; entretanto, a presença de tais afetos generalizados na
brincadeira não significa que a criança entenda por si mesma os motivos pelos quais a
brincadeira é inventada e também não quer dizer que ela o faça conscientemente, ela
brinca sem ter a consciência dos motivos da atividade da brincadeira, isso distingue a
brincadeira de outros tipos de atividade. A brincadeira não possui um motivo claro,
consciente, igual ao trabalho, desenvolve-se a partir do momento em que a criança cria
uma situação imaginária.
A situação imaginária contém regras de comportamento que emanam do
contexto social. Quando brinca de motorista, as regras surgem da situação cotidiana,
comporta-se na brincadeira como motorista, uma situação real que envolve
conhecimento de relações sociais, e também, as brincadeiras com regras possuem
situações imaginárias, por exemplo, jogo de xadrez que contém imaginação implícita.
Qualquer situação imaginária contém regras ocultas, qualquer brincadeira com regras
contém em si uma situação imaginária oculta.
A brincadeira com situação imaginaria é algo novo, impossível para a criança
até os três anos que é um novo tipo de comportamento, cuja essência encontra-se no fato
de que a atividade, na situação imaginária, liberta a criança das amarras situacionais.
100
Na brincadeira, a criança aprende a agir em função do que tem em mente, do
que está pensando, mas não está visível, apoia-se nas tendências e nos motivos internos
e não nos motivos provenientes de coisas, diferente da primeira infância em que a
motivação provém dos objetos, possui uma relação direta com a percepção e determina
o comportamento.
A situação imaginária emancipa das amarras situacionais, e nesse processo as
características do objeto se conservam, entretanto o significado muda, a criança opera
com objetos como sendo coisas que possuem sentido, opera com os significados das
palavras, que substituem os objetos; por isso, na brincadeira, ocorre a emancipação das
palavras em relação aos objetos.
Na brincadeira acontecem duas questões paradoxais, a criança opera com o
significado, separadamente, mas numa situação real, a criança age na brincadeira pela
linha da menor resistência, ou seja, ela faz o que mais deseja, pois a brincadeira está
ligada à satisfação. Ao mesmo tempo, aprende a agir pela linha de maior resistência:
submetendo-se às regras, as crianças recusam aquilo que desejam, pois a submissão às
regras e a recusa à ação impulsiva imediata, na brincadeira, é o caminho para a
satisfação máxima.
Para Vygotsky,, a essência das regras internas está na necessidade da criança ter
que agir não por impulso imediato, a brincadeira requer da criança agir contra o impulso
imediato, agir pela linha de maior resistência, por exemplo, numa brincadeira de correr
o desejo é correr, mas as regras da brincadeira ordenam que fique parada até a largada,
assim não faz o que deseja naquele momento, logo, atividade de correr torna-se mais
prazerosa.
A brincadeira contém os impulsos imediatos, estimula o autocontrole, auxilia
cumprir regras que é fonte de satisfação, sendo que a regra vence o impulso. Na
brincadeira, são possíveis as maiores realizações da criança, pois promove alterações
das necessidades e de caráter mais geral da consciência, ela é fonte do desenvolvimento
e cria a zona de desenvolvimento iminente, pois a ação num campo imaginário, numa
situação imaginária, a criação de uma intenção voluntária, a formação de um plano de
vida, de motivos volitivos coloca-a num nível superior de desenvolvimento.
A criança é movida por meio da atividade de brincar, e somente nesse sentido a
brincadeira pode ser denominada de atividade principal, ou seja, a que determina o
desenvolvimento da criança.
101
A brincadeira lembra mais uma recordação do que uma imaginação, ela parece
ser mais a recordação na ação do que uma nova situação imaginária. À medida que a
brincadeira se desenvolve, temos o movimento para o lado no qual se toma consciência
do objetivo da brincadeira. Nisso, é incorreto imaginar que a brincadeira é uma
atividade sem objetivo, é, ao contrário, uma atividade da criança com objetivo porque
submete suas ações a um determinado sentido. A criança age, partindo do significado do
objeto, logo a brincadeira não é livre, pois qualquer brincadeira com situação imaginária
é, ao mesmo tempo, brincadeira com regras e qualquer brincadeira com regras é
brincadeira com situação imaginária.
Retomando o exposto sobre outros autores, pode-se dizer sumariamente, que
conforme Huizinga (2012) o jogo não é passível de definição exata, pois as
características e função do jogo são mais importantes que a própria definição, porém,
Caillos (1990) define que todo jogo é um sistema de regras que definem o que é e o que
não é do jogo, nesse aspecto, demonstra corresponder às mesmas ideias de Huizinga a
respeito das regras, atividade que significa a liberdade que deve permanecer no seio do
próprio rigor, para que esse rigor conserve sua eficácia.
Vygotsky, considera importante na definição da brincadeira o aspecto da
situação imaginária, toda brincadeira possui imaginação e a questão da liberdade é
ilusória, porque toda brincadeira possui referência de regras internas, oriunda da própria
brincadeira. Para Brougère (1995, p, 101) Vygotsky, mostrou que o imaginário da
brincadeira era produzido por regra.
Não existe jogo sem regra. Contudo, é preciso ver que a regra não é a lei,
nem mesmo a regra social que é imposta de fora. Uma regra de brincadeira só
tem valor se for aceita por aqueles que brincam e só vale durante a
brincadeira. Ela pode ser transformada por um acordo entre os que brincam.
Isto mostra bem a especificidade de uma situação que se constrói pela
decisão de brincar, e que é, de fato, desfeita quando essa decisão é
questionada. A regra permite, assim, criar uma outra situação que libera os
limites do real. (BROUGERE, 1995, p. 101).
A brincadeira é um espaço social, uma vez que não é criada espontaneamente,
mas em consequência de uma aprendizagem social e supõe uma significação conferida
por todos que dela participam. Espaço social com regras, dotado de escolhas e decisões
da criança.
102
Huizinga, Benjamin, Château, Brougère, Caillois e Vygotsky,, carregam, entre
si, algumas divergências teóricas a respeito do jogo. No entanto, as convergências são
muito significativas, por exemplo, neste trabalho, levou-se em conta o rastro histórico e
cultural, uma perspectiva histórica a respeito dos jogos presentes nos autores.
Huizinga enfatiza que o jogo é um fenômeno cultural, a repetição e alternância
são pontuados nos jogos e se repete de geração em geração, o que, consequentemente,
pode ser investigado numa perspectiva histórica. Benjamin ensina que o brinquedo está
atrelado aos artefatos culturais econômicos, portanto possui uma raiz social, assim como
o comportamento da criança faz parte de sua história. Ela é um sujeito cultural. Château
discute que o jogo possibilita conhecer as tendências da criança e está relacionado com
a cultura em que vive. Brougère, por sua vez, é enfático em dizer que o brinquedo é
produto da cultura, possui função social e permite conhecer determinada sociedade e
seus costumes. Caillois considera o jogo parte importante, primordial da civilização,
consequentemente, atividade inserida no contexto cultural, histórico e social.
O arrebatamento é outro aspecto significativo citado pelos autores como
característica inerente ao jogo e à brincadeira. O termo arrebatamento, em consonância
com o dicionário Aurélio (FERREIRA, 1986, p. 170), pode abarcar estes sentidos:
excitação, exaltação, êxtase, enlevação e encanto. Para Huizinga, o jogo é uma atividade
que leva ao arrebatamento, pois todo jogador é passível de ser absorvido inteiramente
enquanto joga. No entendimento de Benjamin, o brincar proporciona libertação da
realidade, isto é criança e adulto são capazes de se transpor para um mundo imaginário;
ser arrebatado dessa realidade ameaçadora e vivenciar na fantasia, na imaginação, um
mundo mais tranquilo. Para Château, o jogo é uma atividade em que o faz de conta e o
arrebatamento, que proporciona a fuga do real, têm importância fundamental no
desenvolvimento da criança e mesmo do adulto, uma vez que tentam realizar-se no
mundo lúdico. Brougère remete ao valor simbólico, pois na brincadeira as crianças
atribuem significados variados aos seus brinquedos, o que pressupõe o uso de
imaginação, fantasia que, de alguma forma, a eleva, tangenciando o arrebatamento. Para
Caillois, o jogo é uma atividade fictícia, é uma franca irrealidade em relação à vida
normal, o que leva a sair dessa realidade e ser arrebatado pela fantasia e imaginação.
A seriedade, como parte integrante dos jogos e das brincadeiras, é outro aspecto
percebido nos teóricos. Mesmo que façam caminhos diferentes nos fundamentos da
explicação da seriedade, ambos deixam implícito o fato de essa atividade ser
compreendida com a consideração que merece, realizada por crianças ou adultos.
103
Assim, para Huizinga, o jogo é uma atividade de extrema seriedade, porque é capaz de
absorver o jogador e, de fato, existem jogos que requerem muita seriedade no ato de
serem empreendidos. Caillois, por sua vez, afina com as mesmas ideias de Huizinga, ao
dizer que jogo é um sistema de regras, portanto, existe seriedade implícita. Para
Benjamin, o jogo é coisa séria, pois seu uso pode ter uma reparação na vida afetiva da
criança, bem como a repetição assumir caráter de aprendizagem. Para Château, o fato de
o jogo ajudar a conhecer as tendências da criança, a ser parte integrante de sua natureza
e a possuir um papel pedagógico, pois existe no jogo um aprendizado, transforma-o
numa atividade de caráter muito séria.
A liberdade, discutida como característica dos jogos é outro aspecto importante
na relação estabelecida com esses autores. Huizinga e Caillois vão considerar que uma
de suas características é o fato de ser livre. Caillois enfatiza que o jogador participa
somente quando quer, porque se for à força e obrigado, perde a natureza do jogo de
diversão, fascínio e alegria, tão própria dessa atividade, ressalta ainda que a brincadeira
é uma ação livre, e que o sujeito é quem decide sua adesão ou não, igualmente, para eles
o jogo ocorre dentro de limites de tempo e de espaço próprios, seguidos de normas, em
que se faz presente a sensação de prazer e o divertimento.
Benjamin e Huizinga consideram a repetição como fundamento para brincar, na
medida em que reviver a experiência brincante pode ressignificar e elaborar
sentimentos, emoções, por meio da imitação e criação da vida cotidiana.
Vygotsky, além de outras questões, considera que a brincadeira liberta das
amarras situacionais, que tangencia ao arrebatamento, libertação da realidade, fuga do
real, imaginação, fantasia enfim, uma atividade fictícia, conforme afirmam Huizinga,
Benjamin, Château, Brougère e Caillois.
Esta pesquisa se apropria das convergências entre estes autores, que discutem as
brincadeiras não como uma dinâmica interna do individuo, mas uma atividade dotada de
significação social, perspectiva sociocultural.
104
CAPITULO 03
CRIANÇAS, INSTITUCIONALIZAÇÃO E BRINCADEIRAS
Ou Isto ou Aquilo
Ou se tem chuva e não se tem sol
ou se tem sol e não se tem chuva!
Ou se calça luva e não se põe o anel,
ou se põe o anel e não se calça a luva!
Quem sobe nos ares não fica no chão,
quem fica no chão não sobe nos ares.
É uma grande pena que não se possa
estar ao mesmo tempo nos dois lugares!
Ou guardo o dinheiro e não compro o doce,
ou compro o doce e gasto o dinheiro.
Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo...
e vivo escolhendo o dia inteiro!
Não sei se brinco, não sei se estudo,
se saio correndo ou fico tranquilo.
Mas não consegui entender ainda
qual é melhor: se é isto ou aquilo.
Cecilia Meirelles
105
As diferentes formas de educar, acolher e tratar as crianças possui estreita
ligação com o processo histórico, que imprime mudanças e transformações de acordo
com a experiência de cada sociedade. O Brasil, por exemplo, possui na sua trajetória,
transformações e avanços conquistados com a promulgação da Constituição Federal de
1988, no artigo 227. Igualmente, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de
1990 ratifica essas garantias: é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à
criança, ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao
respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo
de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e
opressão.
Esses princípios legais deixam evidentes a responsabilidade com a prioridade
absoluta e proteção integral de todas as crianças e adolescentes. Trata-se de
reconhecimento e legitimação do cuidado, amparo e formação desses sujeitos,
reafirmados no artigo 5 em que: nenhuma criança ou adolescente será objeto de
qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e
opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus
direitos fundamentais.
Para Nascimento, Lacaz e Filho (2010), historicamente, dois momentos são
importantes antes da promulgação do ECA.
Primeiro, o decreto nº 17.943-A, de 1927, conhecido como Código Mello
Mattos, que vigorou no país durante 52 anos, passou por algumas alterações, porém sem
ser modificado em seu caráter higienista e repressor, sendo característica importante à
higienização da sociedade.
Entre seus preceitos, o código tratava do menor, de um ou de outro sexo,
abandonado ou delinquente, que com menos de 18 anos de idade, poderia ser submetido
pela autoridade competente às medidas de assistência e proteção, era uma norma
específica a uma parcela da sociedade, para os pobres. Mesmo assim, esse código foi
pioneiro em alguns assuntos, como o tratamento diferenciado para menores infratores,
proibindo o seu internamento em prisão comum; por outro lado, o código deixava
implícito o interesse do Estado em tirar das vistas da sociedade os menores.
O segundo momento histórico ocorre em 1979 quando o Código Mello Mattos
foi substituído pela lei nº 6.697 com a justificativa de que não mais condizia com o
período político e social do país. Deste modo, o novo Código de Menores dispunha
106
sobre a assistência, proteção e vigilância dos menores de 18 anos e entre 18 e 21. A
partir desse novo código, os menores deixariam de ser titulados de acordo com a sua
situação de carente, delinquente, abandonado, e outras caracterizações, passando a
enquadrar o grupo dos menores em situação irregular.
De acordo com o Código, estava em situação irregular o menor privado de
condições essenciais à sua subsistência, tais como: omissão dos pais ou responsáveis,
saúde, instrução obrigatória ainda que eventualmente, vítima de maus tratos ou castigos
moderados impostos pelos pais ou responsável, em perigo moral em lugares contrário
aos bons costumes, privado de representação ou assistência legal, com desvio de
conduta e em virtude de grave inadaptação familiar ou comunitária, autor de infração
penal. Bombarda (2010, p. 4) afirma que:
[...] essa legislação tem por base a lei 4.513/64, que estabelecia a Política do
Bem Estar do Menor, que tinha como principal objetivo a substituição do
enfoque correcional-repressivo, até então sendo empregado pelo Serviço de
Assistência ao Menor (SAM), pelo enfoque assistencialista, que seria dado
através da Fundação Nacional para o Bem Estar do Menor (FUNABEM).
Busca-se, com isso, que o menor não seja mais visto como uma ameaça
social, mas sim como uma pessoa carente. Assim, conseguimos entender a
ideia da marginalização da pobreza e o forte enfoque dado pelo Código de
Menores (lei 6.697/79) a falta de capacidade das famílias em manterem seus
filhos, estava aí, delineada a Doutrina da Situação Irregular do Menor [...]
Frente às inúmeras críticas, a queda do regime ditatorial e a promulgação da
Constituição de 1988, eram urgentes as mudanças na lei de infância. O Código de
Menores foi suprimido e substituído pelo ECA (lei nº 8.069/1990). Isso imprime uma
mudança no panorama nacional e internacional dos direitos das crianças e dos
adolescentes, fortalece a ideia de respeito à especificidade e contexto social que as
crianças e os adolescentes estavam inseridos.
Ocorre uma importante mudança na compreensão de guarda e proteção de
crianças e adolescentes [...] antes com base no antigo Código de menor, que,
por diferentes critérios de verdade, diferentes situações entendidas como
inapropriadas não podiam viver com seus familiares. Antes [...] a internação
acontecia nas chamadas instituições totais, locais onde as crianças e jovens,
frequentemente, permaneciam por muitos anos, chegando mesmo a completar
a maioridade dentro do estabelecimento. O Estatuto propôs o rompimento
com essa lógica, pensando a política de abrigamento sob o viés da proteção
integral, que prioriza a preservação dos vínculos familiares, o
atendimento personalizado e em pequenos grupos, o não
desmembramento de grupos de irmãos e a necessidade de integração com
107
a comunidade local. (NASCIMENTO, LACAZ; FILHO, 2010, p.51 grifo
meu)
Entretanto, essa intenção inovadora proposta do Estatuto, passados mais de
duas décadas, o Estado não conseguiu competentes mudanças, a proposta não adentrou
plenamente os muros de muitos abrigos de acolhimento, dos quais convivem com
práticas e ações similares aos orfanatos/instituições de atendimento em grande escala,
ou seja, não conseguiram ultrapassar as velhas práticas e implantar novas formas de
relacionamento, acolhimento e cuidado no cotidiano da infância.
Com o advento do ECA, crianças e adolescentes passam a ser considerados
como sujeitos de direitos, não sendo mais consideradas objetos de proteção, ou seja, não
mais como menores à disposição da ação do poder público, em casos de abandono e/ou
delinquência, passível de medidas assistencialistas, segregadoras e repressivas como
previa nos Códigos de Menores de 1927 e 1979. Atualmente, propõe que as crianças e
adolescentes antes vistas como portadores de carências, sejam cidadãos, sujeitos de
direitos.
O modelo de prioridade absoluta, proteção e sujeito de direito previsto no
ECA, implica superar o discurso construído em especial no Direito, da visão menorista
e da situação irregular, imprime uma prática opressiva que afetou, em especial, a
infância pobre, filho das classes populares, que merecia ser disciplinado e controlado.
Superar esse olhar opressivo, disciplinador e controlador ainda está longe da realidade
de alguma das instituições de acolhimento. A visão atual de cidadania sobre a infância
requer respeito à identidade, atendimento personalizado, olhar atento as suas
necessidades e particularidades, isso implica escuta e ações singulares com respeito às
diferenças.
É dever do Estado fazer planejamentos e destinar recursos financeiros e
propostas que garantam os direitos da infância em situação de vulnerabilidade e risco
sociais, agora reconhecidos como sujeitos de direito. Isso implica uma reformulação no
atendimento:
As principais diretrizes dessa doutrina salientam o valor intrínseco da
criança como ser humano; a necessidade de especial respeito à sua condição
de pessoa em desenvolvimento; o reconhecimento de sua vulnerabilidade,
tornando a criança e o adolescente merecedores de proteção integral por parte
da família, da sociedade e do Estado. (MORÉ; SPERANCETTA, 2010, p.
519).
108
Estas diretrizes que propõem cidadania, educação ao invés de punição, traz em
seus princípios o reconhecimento do direito à convivência familiar e comunitária e que
vai de encontro à medida de acolhimento, faz força contrária ao isolamento presente nos
sistemas de institucionalização, tão comum na sociedade brasileira em décadas
anteriores. Com a promulgação do ECA, iniciou-se um processo de
desinstitucionalização no atendimento já que o papel da família, as ações locais e as
parcerias no desenvolvimento de atividades de atenção passaram a ser valorizados por
força de lei.
Surge com base no ECA (1990) a figura de instituições de abrigo de caráter
provisório e excepcional para crianças que se encontram em situação de grave risco à
sua integridade física e psicológica. Nestes termos, o abrigo é uma medida de proteção
social, funciona como instrumento de política social ao oferecer assistência à criança e
ao adolescente que se encontram sem os meios necessários à sobrevivência, moradia,
alimentação, proteção, saúde e educação. (MORÉ; SPERANCETTA, 2010; DIAS;
SILVA, 2012).
De acordo com as Orientações Técnicas: Serviços de Acolhimento para
Crianças e Adolescentes proposta pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do
Adolescente –CONANDA - o termo Abrigo Institucional define-se como Serviço que
oferece acolhimento provisório para crianças e adolescentes afastados do convívio
familiar por meio de medida protetiva de abrigo (ECA, Art. 101).
Atualmente, os termos abrigo e instituição de acolhimento são usados como
sinônimos na literatura. Contudo, é interessante pensar que abrigo seria um nome
genérico para designar instituições que acolhem crianças e adolescentes em situação de
risco pessoal ou em situação de rua, que surge na década de 1980 com o início das
discussões e formulações do Estatuto da Criança e do Adolescente. Antes, o termo mais
utilizado era simplesmente instituição para crianças abandonadas, carentes, enfim, em
situação de risco pessoal ou social, sendo o processo de abrigamento chamado de
institucionalização. (PRADA; WILLIAMS; WEBER, 2007).
Neste trabalho, utilizo algumas vezes os termos abrigo e instituição, bem como
abrigamento e institucionalização de forma indiscriminada, por conta de trabalhos,
leituras, pesquisas que são relatadas de diversas épocas nas quais o termo abrigo/abri-
gamento não era utilizado.
Na visão de Maricondi (1997), a mudança do termo não deve ser apenas
estética, mas efetivar no cotidiano uma nova postura de atendimento à criança e ao
109
adolescente, pois a expressão “abrigo” não é apenas uma nova palavra a denominar um
tipo de atendimento, mas precisa representar uma ruptura com as antigas práticas do
internato, um desafio precisa ser alcançado nos abrigos atuais, que, muitas vezes,
mudaram de nome, mas reproduz velhas práticas.
De acordo com Leite (2010) a medida de acolhimento se caracteriza pela
permanência da criança em uma entidade de atendimento, governamental ou não
governamental, e a mudança de abrigamento para acolhimento institucional é
importante porque a medida é gênero, sendo espécies: Abrigo, Casa de Passagem, Casa
Lar e República, todas oferecidas e monitoradas na rede de atendimento municipal.
Conforme o dicionário Aurélio, o significado de abrigo é: a) lugar onde se fica
protegido da chuva, do perigo, etc. b) refúgio, proteção; c) casa de caridade onde se
recolhem os desamparados; d) ambiente protegido natural ou artificialmente contra os
efeitos de um bombardeio; e) asilo, refúgio, retiro. “Nesses significados, se faz presente
a noção de recolhimento, confinamento e isolamento social” (DIAS; SILVA, 2012,
p.180). Neste contexto, as autoras reafirmam que o termo abrigo nasce com a discussão
do ECA, na década de 80, e é a sétima medida de proteção prevista no estatuto, aplicada
quando os direitos da criança e do adolescente estão ameaçados ou violados, sendo
transitória e acionada quando estes são afastados do seu meio familiar.
Conforme já citado, essa medida de proteção colabora para o afastamento e
isolamento de crianças, o que vai de encontro aos princípios legais do ECA, pois viola o
direito à convivência familiar e comunitária.
A ideia construída no antigo Código de Menores, de abandonado, delinquente,
irregulares e, por isso, deveriam ser recolhidos, traz uma longa história de
institucionalização que influenciou a formulação de políticas de proteção aos pobres,
órfãos e abandonados e colaborou para conservar a ideia de que o acolhimento de
crianças em instituições é a medida social mais ajustada em situações de risco.
As instituições de acolhimento atual são as antigas instituições totais e orfanatos
com novas definições, diretrizes de funcionamento e formas de lidar com a infância,
porém, muitas coisas antigas se amoldam perfeitamente à realidade atual, porque ainda
persiste a luta para eliminar a distância entre os direitos garantidos na CF e no ECA e o
cotidiano das instituições que violam os direitos das crianças.
As crianças continuam sendo encaminhadas para as instituições pelas mesmas
razões antigas, ou seja, somente as crianças pobres de famílias das quais estão sendo
110
violados seus direitos básicos de saúde, educação, lazer, empregabilidade têm seus
filhos tomados e enviados para institucionalização.
De acordo com Silva (2004) que cita a pesquisa feita pelo IPEA, estudo que
examina a situação de instituições com ênfase na garantia do direito à convivência
familiar e comunitária, traz à luz que os motivos de abrigamento são: carência de
recursos materiais da família, abandono pelos pais ou responsáveis, doença dos pais,
dependência química ou prisão dos genitores, abuso sexual, orfandade, mendicância e
violência doméstica.
Segundo Cavalcante, Magalhães, Pontes (2007), quase metade das crianças
foram encaminhadas à instituição por uma série de crises e dificuldades experimentadas
pelo grupo familiar, seja exemplo, a existência de crianças que apresentaram entre dois
e quatro ou mais problemas sócio familiar como justificativa para a sua permanência no
abrigo e os casos que apresentaram um único motivo como justificativa para
acolhimento, no entanto, em mais de 50% a negligência familiar figura como decisiva
para abrigamento. Quando comparadas as questões relacionadas à negligência familiar
os motivos são os mesmos da pesquisa de Silva (2004), isso implica pensar que as
questões econômicas e famílias desestruturadas são requisitos decisivos no
encaminhamento.
O termo família desestruturada carrega em si uma conotação subjetiva, similar
à premissa de que é preciso garantir à criança afastar-se de qualquer forma de
negligência. Este termo carrega as noções de menosprezo, falta de atenção, preguiça,
desleixo, zelo, cuidado. É preciso salientar que os significados dessas expressões são
diferentes para cada família.
A realidade das famílias brasileiras é diferente em cada região e de uma classe
social para outra, sendo os seus hábitos influenciados pela realidade local,
comportamentos, visão e cuidados com a infância, são práticas atreladas ao contexto
social da experiência familiar.
As razões do abrigamento passam por questões complexas, para o Estado a
política mais fácil é “retirar” a criança da família ao invés de, efetivamente, enfrentar as
mazelas sociais, políticas e econômicas que atravessam a infância e as famílias, que
perdem seus filhos para a institucionalização, vista como solução para retirar a criança
da situação considerada de risco. Historicamente, “o Código de Menores tornou-se uma
arma de discriminação social das crianças e dos adolescentes pobres, geralmente
oriundos de uma família que foge dos padrões da família tradicional e,
111
consequentemente, vive em situação de abandono e segregação” (SILVA, 2004, p. 370).
De acordo com a autora, durante muitos anos, a Doutrina da Situação Irregular
constituiu-se no princípio norteador do ordenamento jurídico nacional referente aos
chamados menores pela Lei no 6.697 de 10 de outubro de 1979, antigo Código de
Menores.
A situação irregular caracteriza-se por termos, tais como abandono, negação de
direitos fundamentais de crianças e adolescentes. O resultado apontava que os menores
eram retirados do convívio social e protegidos pelo aparato estatal; esse sistema
impulsionou o binômio proteção–punição, em que, ao mesmo tempo em que se tem
piedade das crianças em situação irregular, cobra-se como solução o confinamento para
abrigos destinados a carentes, abandonados e infratores. Frente às mudanças sociais,
políticas e jurídicas, o ECA surge para implantar mudanças na forma de atendimento,
visão de criança com direitos e instituições com respeito ao processo de
desenvolvimento.
O abrigo proposto no ECA leva em conta crianças e adolescentes em
desenvolvimento, sujeitos de direitos, uma proposta de proteção integral. Isso implica
ofertar atendimento personalizado e em pequenos grupos e favorecer o convívio
familiar e comunitário das crianças e adolescentes atendidos, bem como a utilização dos
equipamentos e serviços disponíveis na comunidade local. Entretanto, entre a proposta
legal prevista e o cotidiano dos abrigos, existe uma lacuna grande a ser preenchida para
garantir convivência com respeito e ausência de violações de direitos fundamentais.
A legislação atual prevê que as crianças sejam postas em instituições de
acolhimento de forma provisória e excepcional, somente quando se encontram em
situação de grave risco à sua integridade física, psicológica e sexual.
A situação provisória tem sido apontada na literatura como enorme desafio.
Crianças que, em princípio, deveriam ter abrigo temporário nessas instituições, acabam
sendo a sua moradia permanente, à espera do retorno ao meio familiar ou da adoção,
vivendo mais de dois anos na instituição. (CAVALCANTE et al. 2007).
A revisão de literatura de Siqueira e Dell’Aglio (2006, p. 78), sobre as
instituições de abrigo, aponta que houve uma melhora na qualidade do atendimento por
conta da implantação do ECA “a visão exclusivamente prejudicial dos abrigos, como
lugares insalubres e precários, onde um grande número de crianças e adolescentes
convivia sob um sistema coletivizado, vem perdendo força.
112
Na literatura, sobre o impacto da institucionalização, encontram-se muitas
pesquisas que discutem as repercussões e os efeitos no processo de desenvolvimento
por conta do tempo de permanência afastado da família.
Nogueira (2005), Rizzini e Rizzini (2004), Silva (1997), Siqueira e Dell’Aglio
(2006) e Weber e Kossobudzki (1996), citados por Cavalcante, Magalhães, Pontes
(2007), discutem que, entre os efeitos nocivos da institucionalização precoce e
prolongada, tem-se o fato da ameaça real de ruptura dos vínculos com a família de
origem, aliado às dificuldades para a formação de novos laços afetivos, inclusive no
abrigo.
As pesquisas apontam que existe hoje melhor fiscalização, controle e formas
mais eficazes de acompanhamento em relação aos mecanismos de controle da sociedade
sobre os ambientes coletivos de cuidado destinados à primeira infância. E, quando a
criança permanece sob a guarda do abrigo, recebe cuidados físicos, alimentação, higiene
e o trato de doenças comuns, porém, emocionalmente indiferentes com atendimento
impessoal, massificado, burocratizado o contato entre adultos e crianças que tende a ser
pouco afetuoso, aspecto importante para o seu desenvolvimento. O abrigamento pode se
constituir ou não em risco para o desenvolvimento da criança desde que exista ambiente
próximo de um lar e atendimento com respeito à individualidade, um desafio não
superado na maior parte dos abrigos.
As crianças, por exemplo, podem relacionar-se de forma afetuosa, com cuidados
umas com as outras e auxílio nas interações entre elas, conforme aponta a pesquisa de
Martins e Szymanski (2004) com crianças em situações de brincadeiras livres.
As brincadeiras são atividades de grande valia em ambientes institucionais para
o desenvolvimento social, afetivo e cognitivo, a brincadeira proporciona o exercício das
relações de apego entre as crianças.
O estudo de Oliveira e Gomes (2013) aponta que na brincadeira ficam evidentes
experiências da rotina da instituição e da vivência da família de origem. São momentos
de diálogos, trocas, cooperação e distanciamento das angústias de separações e
rompimentos da situação vivida.
As brincadeiras são atividades que podem proporcionar experiências valiosas.
Fazem parte da natureza humana e favorecem o desenvolvimento, podendo transpor a
criança num universo único com realização e entrega, num mundo inteiramente novo.
(CHÂTEAU, 1987).
113
A pesquisa de Oliveira e Gomes (2010) que investigou brincadeiras de
adolescentes internos em cumprimento de medida socioeducativa de internação, aponta
que estas são elementos essenciais na rotina, mesmo sendo considerada uma idade que
supostamente não brincam, os resultados revelam a vida brincante dos adolescentes no
interior dos quartos (vulgarmente denominado cela, tranca) no lócus da pesquisa.
Os adolescentes brincam todo o tempo na instituição, na sala de aula, no pátio e
no quarto, mesmo que essa brincadeira seja pela via da transgressão, por exemplo,
quando fazem das folhas do caderno aviãozinho, durante as aulas. E nos quartos
destroem papel higiênico e sabão para transformar em recursos para jogar dama.
Na brincadeira, o adolescente pode ser ele mesmo, fingir e divertir-se de fato.
Igualmente, é possível constatar, nesses momentos lúdicos, comportamentos de
cooperação, experiências em grupo, o que denuncia a possibilidade de resgate desse
adolescente.
A brincadeira da criança institucionalizada é um recurso valioso nas interações
sociais conforme pesquisas de Oliveira e Gomes (2013) e Martins e Szymanki (2004),
pois possibilita experiências cognitivas, afetivas e sociais à medida que lhe é estimulada
e permitida essa atividade no cotidiano das instituições de acolhimento.
114
CAPÍTULO 4
METODOLOGIA: A PESQUISA, OS PARTICIPANTES E O LOCAL
Há escolas que são gaiolas, há escolas que são asas.
(Rubem Alves)
115
Este capítulo registra questões metodológicas e acrescenta olhares reflexivos a
respeito do local da pesquisa e o espaço de convivência das crianças eleitas no estudo.
Foge um pouco da sequência natural que se encontra nos trabalhos científicos, porém,
usado em pesquisas etnográficas. Assim, constrói o caminho percorrido da investigação
com fundamentos em autores que balizaram a trajetória e registra as angústias e
dificuldades da pesquisadora. Não é fácil assumir essas questões para os pesquisadores
e são poucos os que se propõem a falar sobre as inquietações e dúvidas que ocorreram
ao longo da investigação, que seguramente, não são poucas.
Em especial, nessa arte da pesquisa com crianças, ainda há muito por
descobrir, por conta dos inúmeros desafios que se colocam, acredito que precisa ser um
processo criativo e inventivo. Concordo com pesquisadores como Corsaro (2009) que
considera investigar a criança como um processo desafiador e complexo, sendo um
aspecto questionado a distância que existe entre adultos e crianças, e nesta tarefa, não se
encontra uma receita pronta para comprar como num passe de mágica. Logo, o caminho
se faz dia a dia, na trajetória.
Principio pelas questões éticas que envolvem pesquisa com crianças, sem
desconsiderar algumas particularidades delas como questões de qualquer outra pesquisa,
tais como, respeito, compromisso e sensibilidade. Corsaro (2011, p. 57) afirma que:
Os pesquisadores não desenvolveram novos métodos para o estudo de
crianças que difiram dos métodos tradicionais utilizados para estudar os
adultos, em vez disso, defendem métodos para estudar qualquer grupo, com
especial atenção às necessidades específicas e particularidades.
No caso das crianças, é importante romper com o mito de que elas não são
hábeis para falar de si ou sobre qualquer tema que lhe seja afeto.
Na sequência, abordo a proposta da SI que pensa nas crianças como agentes
sociais, que participam coletivamente na sociedade e são dela sujeitos ativos e não
meramente passivos. Portanto, devem ser estudadas pelos seus próprios méritos, e
romper com a relação de poder do adulto sobre elas.
A criança como ator social adquire voz e forma própria de assimilar e interpretar
o mundo. Decorrentes desta proposta, surgem muitas questões sobre a participação das
crianças em pesquisas.
Em função disso, serão discorridos métodos etnográficos no estudo com
crianças, suas possibilidades e limites. Pertinente a essa proposta, será feita a descrição
116
do espaço físico, entendido como lócus da pesquisa; na mesma ordem de importância,
os critérios da escolha da amostra e as aproximações com o grupo, que envolve entrada
no campo, aceitação, aproximação como parte do contexto de rotinas de brincadeiras e
atividades.
As estratégias de pesquisa envolvem observações, anotações de campo, vídeos
audiovisuais, procedimentos e critérios de compressão dos dados obtidos na instituição
e com as crianças. A partir dessas considerações, ficam explícitos os participantes, local,
instrumentos e procedimentos de análise.
4.1. Ética, compromisso e responsabilidade na pesquisa com crianças
Conforme Corsaro (2011), a pesquisa do cotidiano de crianças possui regras de
comissões de ética que variam de instituição para instituição, e também o consentimento
dos responsáveis legais com uso de formulários que contêm garantias de privacidade, às
vezes, com usos de nomes fictícios e restrições sobre exibição de dados audiovisuais e
outras questões que possam comprometer o sigilo da identificação das crianças, mas
como qualquer outra pesquisa, pode surgir imprevistos mesmo depois de todos os
requisitos acordados.
Nesta mesma linha, Bogdan e Biklen (1994) apontam que ética é uma palavra
com uma forte carga emocional e cheia de significados ocultos, e no caso da pesquisa,
consiste nas normas relativas aos procedimentos considerados certo e errado por
determinado grupo. De acordo com os autores, no caso da ética relativa à pesquisa com
sujeitos humanos, duas questões são essenciais: o consentimento informado e a proteção
dos sujeitos contra qualquer espécie de danos. Logo, isso envolve adesão voluntária
ciente de tudo que envolve o estudo e não expor a riscos os participantes envolvidos.
Na visão desses autores, a ética fica permeada de reflexões tais como proteção,
consentimento, privacidade, anonimato, autorização, sigilo e questões de como priorizar
a visibilidade dos resultados, conforme discute Kramer (2002) em seus apontamentos
sobre questões éticas.
Em relação à pesquisa com crianças Kramer (2002) afirma que as questões da
pesquisa estão imbricadas com a visão de infância, presente nas investigações e propõe
três aspectos essenciais nos estudos com crianças.
117
O primeiro aspecto envolve os nomes (verdadeiros ou fictícios) de crianças
envolvidas em pesquisas. Esta questão ainda é uma dificuldade não resolvida e cada
pesquisador avalia de acordo com seu referencial adotado, o contexto e seus sujeitos
para assim estabelecer os critérios e tomar uma decisão.
O referencial teórico-metodológico que orienta os trabalhos das crianças como
atores sociais, sujeito da cultura, da história e do conhecimento, ainda não consegue, de
fato, que a criança seja sujeito da pesquisa como almejam os estudos da infância nessa
área. Embora transcrevam seus relatos, as crianças permanecem ausentes em muitos
estudos, portanto não podem se reconhecer no texto que é escrito sobre elas e suas
histórias, igualmente, não podem ler a escrita feita com base e a partir de suas falas. E
assim, terminam não sendo autoras.
Com respeito à pesquisa feita com crianças, outra questão pertinente é a
investigação delas em situação de risco, institucionalizadas sob guarda/tutela22
do
Estado por questões de abandono, violência, negligência e maus tratos. São experiências
em que continuam no anonimato nas pesquisas, por razões ética e legal.
No presente estudo, em relação às crianças, a primeira inquietação e reflexão
que fiz, mesmo optando por um referencial de autoria e voz, foi o fato de: será que no
futuro essas crianças gostariam de ler sua história de um momento singular de sua vida
publicada? Até que ponto, nessa idade, possui uma visão prospectiva para pensar no
impacto da produção feita com base nas suas falas? Não tenho essa resposta. Uma coisa
é certa, a criança dessa pesquisa, além da dimensão ética debatida na academia e nos
Conselhos de Ética, existe o aspecto jurídico, todas estão protegidas por lei, em uma
instituição pública, local que aguardam o desfecho de sua vida, retorno à família ou
destituição do poder familiar, logo, disponibilizadas para adoção.
Em função disso, iniciei minha pesquisa com uma solicitação no Juizado da
Infância, cujo documento previa cumprimento de aspectos éticos, sigilo e anonimato das
crianças, porém, com aquiescência para ampla divulgação dos resultados como
contribuição social e compromisso. Com esta questão, fica evidente que o estudo já
22
Existem três formas de colocação em família substituta 1) Tutela: está disposta no código civil e traz
uma série de encargos para o tutor, como por exemplo, prestar contas. É aplicada quando os pais da
criança perdem o poder familiar pela morte, ausência, ou até por sentença, mas não desvincula a criança
da família anterior e pode ser entregue para parentes. 2) Guarda: serve como procedimento preparatório
para que a criança seja posta em tutela ou encaminhada para a adoção quando os pais perdem poder
familiar, é mais preventiva. 3) Adoção: é medida excepcional e irrevogável, atribui a condição de filho
para todos os efeitos, desligando-o de qualquer vínculo com pais biológicos, corta laços com a família e
adquire laços com outra família.
118
previa manter as crianças no anonimato desde a solicitação judicial, isso vai de encontro
com a proposta da SI que articula a visibilidade, voz e autoria delas, nas pesquisas.
De acordo, com Kramer, isso pode vislumbrar questões importantes, uma delas
a proteção; a segunda, eximir-se da visibilidade de denúncias que emergem em suas
falas. O anonimato impede que crianças privadas de afeto da família, carinho, bens
materiais e culturais, tenham uma identidade na pesquisa, de modo antagônico, os
pesquisadores que os considerou como sujeitos e, supostamente, pretendeu ouvir sua
voz e ao mesmo tempo teve que silenciar, deixando seus relatos no anonimato.
Neste estudo, as crianças brincaram comigo, partilharam sua história, riram,
revelaram segredos, fizeram denúncias e demonstraram a rotina da instituição com suas
brincadeiras de faz de conta, gestos e formas de se relacionar, me fizeram entender que
são capazes de falar sobre tudo, mesmo brincando. Entretanto, contrariando o marco
referencial da Sociologia da Infância que incentiva a autoria delas, tive que manter
negada, sendo mais um estudo em que a autoria foi mantida no anonimato por questão
de “proteção”.
O estudo de Martins (1998) investiga crianças de uma instituição sob
responsabilidade do Estado, e embora não tenha o mesmo referencial utilizado nesta
pesquisa, optou pelo anonimato. Segundo a autora, para garantir a segurança, os nomes
foram trocados por outros fictícios; é o caso desta pesquisa. Nesta mesma linha, o
estudo de Ferreira (1998 apud KRAMER, 2002), realizada com crianças de 8 a 13 anos,
de uma favela no município do Rio de Janeiro, mostrou as contradições e a diversidade
presentes entre as crianças e suas relações com o trabalho, a brincadeira, o ser menino,
menina, criança ou adulto. Por outro lado, mostrou também relatos sobre violência, e no
último relato fez com que seus nomes verdadeiros não fossem revelados.
Parece ser mais fácil dar visibilidade à voz e à autoria das crianças quando a
pesquisa é realizada no contexto educacional do que em instituições de crianças
institucionalizadas sob custódia do Estado. Entretanto, o estudo de Lucas e Rausch
(2009, p. 8657) sobre as formas de participação das crianças nos trabalhos de conclusão
do Curso da Pedagogia, concluem que nesse universo:
Apenas uma pesquisa nos deu maiores indicativos de perceber as crianças
como atores sociais, o estudo partiu das próprias crianças para investigação, e
a criança neste estudo ficou entendida como alguém que pode dar
informações fundamentais sobre as suas próprias vivências, as crianças como
participantes pesquisadoras, não foram encontradas nesses trabalhos, mesmo
119
que alguns estivessem amparados em referenciais que defendem a sua
participação.
As autoras admitem que existem muitos avanços sobre os estudos na área da
Educação Infantil, e que muitas pesquisas utilizam vários instrumentos para a coleta de
dados, o que é importante no estudo com as crianças. E outras investigações estão
imbuídas na tarefa de como pesquisar as relações e o cotidiano das crianças, valorizando
sua voz, autoria e participação.
Penso que o compromisso e responsabilidade na pesquisa com a infância estão
na base dessas questões, entretanto, estou de acordo com Corsaro (2011) ao nos ensinar
a importância dos pesquisadores etnográficos e dos que investigam crianças de
documentarem cuidadosamente todo o processo de experiência da pesquisa e
compartilharem situações exitosas ou não, pois se aprende também com os equívocos e
impasses.
Outra questão abordada por Kramer refere-se à autorização do uso de imagens.
Trata-se da fotografia como metodologia de pesquisa qualitativa, neste caso,
especificamente, da utilização de imagens de crianças e seus rostos. A fotografia é um
instrumento importante nas pesquisas, em especial, de orientação etnográfica.
Magni (1995), para conhecer o modo de vida dos habitantes das ruas, elegeu a
foto para captar ações não possíveis de serem descritas, no diário de campo, por
exemplo, gestos, atos e, em especial, a relação que os habitantes das ruas estabelecem
com os espaços, os bens materiais e os seus corpos. Não poderia se restringir ao diário
de campo, mas deveria contar também com uma documentação visual detalhada.
As fotografias e o diário, além da vivência impregnada no pesquisador, são
como fragmentos que tentamos recompor na busca de entender o outro. Logo, a foto
isolada é um fragmento que capta uma situação do momento, por outro lado, ela faz
parte de um contexto histórico e social. A fotografia é levada a funcionar como
testemunho, atesta a existência e não o sentido de uma realidade. (DUBOIS, 1990).
A fotografia, por sua importância, pode ser considerada um instrumento
relevante de pesquisa, entretanto, para essa finalidade, possui questões éticas quanto à
identidade e exposição do participante. Na pesquisa de orientação etnográfica de
Oliveira e Gomes (2010) com adolescentes que cumprem medida socioeducativa de
internação, várias fotos foram tiradas, o que muito desvela sobre as brincadeiras e
formas de se relacionar entre eles na unidade, entretanto, por questões de proteção e
120
sigilo quanto à identidade, foram delegadas em segundo plano e priorizou-se a
observação, diário de campo e entrevistas gravadas com roteiro para compreensão dos
dados.
E no caso de pesquisa com crianças, a dimensão ética parece ser ainda mais
complexa, pelos menos, para os profissionais de instituição que se preocupam com a
imagem da criança para que não seja, de algum modo usada sem o devido cuidado, uma
vez que são responsáveis pela sua guarda e proteção; segundo, existe um cuidado ético e
compromisso com o sigilo da identidade da criança que está interna; terceiro, deve-se
cumprir as determinações do Estatuto da Criança e do Adolescente, e, por fim, as
recomendações do Conselho de Ética de Pesquisa com seres humanos. Todas essas
questões trazem à luz reflexões e problemas com o uso de imagens, na pesquisa.
A orientação teórica deixa claro que as crianças são sujeitos da cultura, marcam
a história, mudam a natureza e agem sobre as coisas. Em outros termos, são constituídas
de nomes, rostos e ações, mesmo assim é preciso cautela com o uso de imagem e
identificação.
De acordo com Kramer (2002, p, 53), uma sugestão é pedir para que pessoas
adultas autorizem o uso da imagem, entretanto, nem sempre se exime de problemas,
pois uma vez de posse da imagem, o pesquisador pode fazer algum comentário, reflexão
em que a pessoa, posteriormente, tendo contato não concorde. “[...] as imagens falam e,
ainda que autorizadas, dizem coisas que soam diferentes das que foram ditas, aos
ouvidos de quem as pronunciou”. E no caso de crianças, é preciso se questionar quem
autoriza sua imagem, identificação e gravação. E sempre é um adulto que faz isso para
proteger as crianças e evitar que suas imagens sejam exploradas ou mal utilizadas.
Concordo com Kramer (2002 que o adulto precisa ter essa atribuição de
autorizar, entretanto, novamente surge a indagação: se a criança é sujeito e protagonista
da pesquisa como permitir que o adulto fizesse por ela a autorização? É uma questão
muito delicada de se resolver, passa por questões que envolvem cuidados e proteção.
Logo, autorizar e proteger se tornam ações opostas. Autoria se relaciona à autorização, à
autoridade, à autonomia enquanto que a proteção está ligada a uma visão de infância
incapaz, sem fala, sem voz e passiva.
Na presente pesquisa, também, não consegui resolver esse impasse, primeiro
porque são crianças e estão sob a guarda do Estado, sendo o primeiro passo, autorização
judicial. Na sequência, a instituição foi notificada pela Vara da Infância, conversei com
os dirigentes, depois em respeito à profissional de educação física, responsável pela
121
recreação do grupo eleito na pesquisa (2-5 anos), expliquei-lhe o projeto e fiz uma
solicitação de sua autorização por escrito, para eu permanecer e acompanhar suas
atividades de recreação. Mesmo tendo uma autorização judicial, que dispensa a
formalidade que fiz com a recreadora, entendi ser importante, em respeito ao seu
trabalho, dizer que eu iria acompanhar as atividades lúdicas propostas para as crianças.
As crianças saiam para brincar acompanhadas pela recreadora, sempre e na ausência
dela saiam com as cuidadoras para ficarem no pátio brincando.
Em função do referencial da Sociologia da Infância adotado, tive muita
inquietação, não me dei por satisfeita, sempre refletindo como as crianças poderiam
autorizar ou escolher conviver comigo e serem investigadas. Conforme já citado neste
trabalho, passava em minhas reflexões o desfecho da vida das crianças na instituição,
algumas iriam permanecer na instituição até serem reintegradas à família; outras, sem
haver a possibilidade de integrá-las a sua família, são entregues para a adoção. Como a
etnografia usa também de fotos, mesmo não sendo possível a publicação, foi utilizada
todo o tempo, o que me fez ter inquietações e leituras: será que os pais adotivos iriam se
sentir confortáveis ao saber que a imagem e identidade de seu filho (a) foram divulgadas
numa pesquisa acadêmica que possui alcance mundial, depois da divulgação nos sites
de pesquisa e publicação? Por outro lado, será que a criança que retorna para sua família
iria sentir-se confortável ao tomar conhecimento de que seu filho teve divulgada a
imagem e identidade enquanto ficou na instituição aos cuidados do Estado?
Depois de três semanas transcorridos de convivência no espaço com as
crianças, de ter participado de suas brincadeiras e rotinas, fiz uma reunião com elas e
perguntei-lhes se sabiam quem eu era, meu nome e o que eu fazia na instituição.
Algumas crianças mais velhas responderam: você é a tia que estuda as brincadeiras.
Outras ainda faziam confusão de meu papel, por isso apresentei-me, falei meu nome
(algumas crianças já tinham memorizado) e expliquei-lhes que eu era uma tia que iria
acompanhá-los nas brincadeiras, logo meu papel não era cuidar delas. Uma criança
gritou: nem dar castigo né? É assim que eles se expressam quando são advertidos pelos
cuidadores, afirmei que sim, não iria cuidar deles como, por exemplo, dar banho,
comida e levar aos espaços de atendimentos, seja exemplo, setor de saúde.
Na sequência, informei-lhes, mostrando a câmera, que já estava sendo usada por
mim há vários dias, que em alguns momentos estaria filmando e tirando fotos.
Perguntei-lhes se todos concordariam que eu tirasse fotos e usasse a câmera. Todos
responderam: pode tia, e acharam engraçado meu pedido. Enfatizei se todos
122
concordariam. Responderam em coro: sim. Pode-se pensar que, neste caso, a
pesquisadora já tinha a autorização da justiça, da instituição e da professora. Mas o que
tinha em mente era meu respeito e consideração com as crianças, em torná-las
participantes e ter a permissão delas no processo, mesmo de modo informal.
Soares (2006) com base no entendimento de Morrow (1996) discorre que o
conceito de consentimento nada tem a ver com permissão. Consentimento é um
processo por meio do qual alguém, normalmente, o adulto, partindo da presunção de
que as crianças não são competentes para dar consentimento informado, autoriza
voluntariamente à participação na investigação com base em análise de informação do
projeto de pesquisa pertinente enquanto que permissão tem a ver com um processo
paralelo, no qual o pai ou responsável permite que a criança participe no projeto de
investigação e a criança concorda em ser sujeito da investigação.
Consentimento possui relação com autorização, pois este implica a relação de
poder do adulto sobre a criança considerada incompetente para autorizar qualquer
decisão de sua vida. Enquanto a permissão perpassa a liberdade de escolha, de participar
ou não, mesmo depois da autorização. No caso de pesquisa com a infância, considero
importante não desvincular consentimento e permissão, sendo dois processos
complementares e importantes.
Outro cuidado que tive na pesquisa foi não tirar fotos de profissionais e espaços
da instituição que não possuem relação com os objetivos da pesquisa. É comum a
curiosidade quando se tem uma câmera em mãos. Kramer (2002, p. 53) sugere “talvez
um caminho que possa ajudar a encontrar alternativas de natureza ética, seja diferenciar
os tipos de imagens, se são de crianças, de profissionais e de instituições [...] a
tendência é lidar com esses três níveis indistintamente” Em minha pesquisa, seguir a
orientação de solicitar que os sujeitos tirem fotos de seu cotidiano e de suas brincadeiras
não foi possível, as crianças na instituição vivendo em grupo, é difícil estabelecer
critérios de quanto tempo cada uma pode ficar com a câmera, precisa considerar que
eles estão em uma instituição, sem acesso ao mundo digital e virtual, a câmera é uma
imensa novidade, que na mão de uma criança é motivo de choro, disputa e desavenças
entre eles e isso termina tendo implicação na rotina das normas de comportamento.
Seria importante as crianças tirarem suas próprias fotos, porque ajuda-as a
reconstruir o próprio olhar do observador, com fotos daquilo que elas consideraram
significativo, entretanto, não foi possível com meus sujeitos.
123
A experiência da pesquisa com a criança protagonista e sujeito é muito recente,
por isso, penso que de fato precisa de cuidados metodológicos para evitar o uso
indevido e ou indiscriminado de imagem e identificação das crianças. Por outro lado,
muitas denúncias são feitas pelas crianças da forma de como vivem e são tratadas na
instituição, isso é uma questão importante na elaboração de políticas públicas para a
infância.
A última questão fez parte de minha reflexão durante toda caminhada da
pesquisa, envolve os resultados - o impacto social de resultados de trabalhos científicos
e como devolver os achados e evitar que os participantes sejam constrangidos, que as
crianças sofram com as repercussões do retorno, no interior da instituição em que vive
temporariamente, mas, às vezes, durante muito tempo, por exemplo, constatei criança
que vive desde bebê, na instituição.
De acordo com Silva, Barbosa, Kramer (2008) e Corsaro (2011) uma questão
pertinente que precisa ser considerada na ética da pesquisa com crianças é a relação de
poder do adulto com elas. É fato que existe uma força adulta baseada no tamanho físico,
nas relações de poder e nas decisões muitas vezes arbitrárias em relação à infância.
Mesmo frente a essas considerações dos autores visitados, considerei
importante a permissão das crianças, negociar e falar com elas todas as etapas do
trabalho, entretanto, o consentimento ou não, conforme recomenda Alderson (2005) e
Kramer (2002) não foi uma ação possível na minha pesquisa, em função da condição
histórica.
Delgado e Müller (2005, p, 354) mencionam que entrar na vida das outras
pessoas é tornar-se um intruso, faz-se necessário obter permissão, que vai além da que é
dada sob formas de consentimento, e isso raramente é feito com as criança. Concordo
plenamente, e vi que na prática as coisas são bem diferentes e muito complexas, pois
solicitar a permissão das crianças como de fato o modelo teórico da Sociologia da
Infância propõe é ainda um grande desafio. No caso das crianças de minha pesquisa,
estão institucionalizadas e predomina a visão de infância de proteção, em detrimento de
direitos e cidadania. O desafio é como poderão ser autoras sem dar a autorização por
elas.
4.2 Crianças como atores sociais e infância como fenômeno social: participação em
pesquisas e questões metodológicas
124
A proposta da SI de que as crianças devem ser vistas como atores sociais
redimensionou o cotidiano da pesquisa porque mudou a concepção de infância e formas
de investigar. Como ator significa ativo, participante, protagonista e autor de suas ações,
isso implica conceber formas diferentes para a investigação, que antes trabalhava com
uma criança biológica, em desenvolvimento, passiva, precisava das instituições para
socialização. Nesta visão da SI, a criança é considerada inserida num contexto social,
cultural e relacional e, por conta disso, deve ser estudada pelos seus próprios méritos e
não indiretamente por meio de outras categorias da sociedade.
Entretanto, existem muitas discussões e dúvidas sobre a participação de crianças
em pesquisa, levando em conta sua voz e autoria, por isso discuti alguns aspectos na
secção deste trabalho, nas questões éticas. Nesta parte, ao mesmo tempo em que trago
algumas contribuições de pesquisadores, abordo e falo sobre a escolha adotada neste
trabalho. Soares (2006, p, 26, grifo meu) relata que:
A investigação com crianças tem registrado, nos últimos anos, significativos
investimentos, que decorrem de um movimento de reconceptualização da
infância que se iniciou na década de 80 com alguns sociólogos da infância,
Ambert (1986) Jenks (1992); James e Prout (1990); Qvortrup (1995), os
quais defendiam entre outros aspectos, a necessidade de considerar as
crianças como atores sociais e a infância como grupo social com direitos,
sublinhando também a indispensabilidade de considerar novas formas de
investigação com crianças.
Para Soares, considerar novas formas de pesquisa é resgatar a voz e ação das
crianças, que sempre foram vistas pelos estudos da escola ou da família considerados
importantes contextos de socialização da criança, logo, autorizados a falar em lugar das
crianças como no seu papel de aluna ou filha, desse modo, era desprezada enquanto
objeto de investigação por si só, com a justificativa de que eram incompetentes,
imaturas e em processo de crescimento.
Corsaro (2011) pontua que as mudanças no processo de pesquisa refletem a
preocupação em capturar as vozes infantis, suas perspectivas, seus interesses e direitos
como cidadãos e os pesquisadores não desenvolveram novos métodos para o estudo de
crianças que difiram dos métodos tradicionais utilizados para estudar adultos, o
importante é uma aplicação rigorosa das técnicas ao grupo pesquisado com atenção às
necessidades específicas e particulares.
125
Em vez de pesquisar o adulto como representante de crianças, estas devem ser
vistas como atores sociais em seu próprio direito, e os métodos adaptados e refinados
para as suas vidas, enfim, devem ser ativas e participantes, também, no processo de
pesquisa. (QVORTRUP, 2010; PROUT, 2010; CORSARO, 2005, 2007, 2011, PINTO
E SARMENTO, 1977).
Em especial, Corsaro (2011) pontua duas questões básicas para uma nova SI: as
crianças são agentes vivos que constroem suas próprias culturas e contribuem para a
produção do mundo adulto e a infância é uma forma estrutural ou parte da sociedade.
Borba (2005), Lucas e Rausch, (2009) e Soares (2006) mencionam quatro
formas a respeito da visibilidade da criança e a infância na investigação, identificadas
por Christensen e Prout (2002). São perspectivas que mencionam a participação das
crianças nas pesquisas, das quais são: a criança como objeto, a criança como sujeito, a
criança como participante/atores sociais e participante ativa e co-pesquisadora.
O estudo feito por Lucas e Rausch (2009) sobre a participação das crianças nas
pesquisas, concluíram que não identificaram efetiva participação delas, foram
observadas, entrevistadas, fotografadas, filmadas, mas em nenhum trabalho elas
atuaram como co-pesquisadoras, de fato.
A perspectiva da criança como objeto da pesquisa é a mais antiga e
predominante na história da investigação sobre a infância, representa uma herança
significativa na ciência social tradicional. As crianças são percebidas como
incompetentes, em desenvolvimento e imatura do ponto de vista do adulto, ao invés de
um sujeito atuante no mundo que influencia, é influenciado pela sociedade. Igualmente,
as pesquisas, buscam informações por meio dos adultos, sejam pais, professores ou
qualquer pessoa ou instituição responsável pelos cuidados. Logo, todo conhecimento é
obtido de forma indireta, sob as decisões tomadas pelos pesquisadores e adultos
responsáveis pela garantia dos direitos e proteção das crianças.
A perspectiva da criança como sujeito pretende ser um avanço, à medida que,
conforme Borba (2005, p, 82), “é uma abordagem centrada na criança que tem como
ponto de partida o seu reconhecimento como uma pessoa dotada de subjetividade”.
Entretanto, ainda carrega questões ligadas à visão anterior, pois a participação e
envolvimento da criança no estudo é uma decisão centrada no adulto com base em
critérios próprios que define quem será incluído ou excluído. Para Lucas e Rausch
(2009), os efeitos sociais de ver a criança como objeto das pesquisas é estendido
também às pesquisas que as trazem como sujeitos. Isso implica que, por vezes, a
126
pesquisa da opção da criança como sujeito se confunde e mistura com a perspectiva de
pesquisa da criança como objeto. Segundo Soares (2006, p, 26):
As duas primeiras perspectivas englobam grande parte da investigação social
tradicional, e caracterizam-se essencialmente por negligenciar a imagem da
criança como ator social de direito próprio, realçando essencialmente a sua
dependência e incompetência, sendo as suas vidas analisadas a partir do olhar
adulto com designs metodológicos que são essencialmente paternalistas de
forma a salvaguardar aquilo que estes investigadores consideram serem as
incompetências das crianças.
A autora considera que as duas últimas perspectivas, a seguir, realçam novas
formas de entendimento das crianças e da sua posição dentro das ciências sociais,
considerando-as como atores sociais, com voz e ação, integradas nos processos de
investigação onde participam em parceria, mais ou menos consolidada com os adultos.
Na penúltima perspectiva, as crianças são atores sociais, elas são vistas como
atores sociais com voz, ação e participantes das pesquisas com suas experiências e
interpretações do mundo. São concebidas e tratadas como pessoas que agem,
participam, transformam e são transformadas pelo mundo social e cultural em que
vivem, e assim, suas perspectivas, visões e sentimentos são aceitos e incluídos como
válidos para a pesquisa. As crianças ajudam os pesquisadores a melhor compreendê-las,
tendo voz nas decisões tomadas, nos procedimentos adotados e nas análises
empreendidas na pesquisa. (BORBA, 2005)
Na última perspectiva, as crianças como participantes e co-pesquisadoras: o
pesquisador precisa se organizar de tal modo que permita a elas a oportunidade de
serem atores no processo de investigação, na proposta em desenvolvimento, para que
sejam envolvidas, informadas e consultadas em relação aos propósitos e procedimentos
da investigação, e ainda, assumidas como informantes e co-produtoras do trabalho de
pesquisa.
Alderson (2005) discute alguns pontos que surgem para o adulto ao fazer
pesquisa com crianças participantes e co-pesquisadoras, dos quais são: considerar os
estágios do processo de investigação em que elas podem ser envolvidas como atores, os
níveis de participação das crianças, o uso de métodos que podem aumentar o
envolvimento informado das crianças em pesquisas, atentar-se para o respeito com os
direitos da infância, e por fim, considerá-las de fato como co-produtoras de dados
durante as pesquisas realizadas com elas; uma proposta cujo investigado é investigador
127
com possibilidade de uma relação interativa e aberta à mudança. Esta última
perspectiva, crianças participantes e co-pesquisadoras, não é corrente ainda nas
pesquisas, às vezes, estas duas últimas ainda se encontram um pouco confusa e
misturada.
Este enfoque emanado da SI, que privilegia um espaço social e científico para
o grupo social da infância, abre caminho para o desenvolvimento de novas formas de
desenvolver investigação com as crianças e para a construção de conhecimento efetivo
acerca das mesmas, fundamentando-se em novas bases de conceptualização da infância.
Esta forma peculiar de construir um novo olhar da infância possui bases em leituras de
vários autores da SI, exemplo Corsaro (2005, 2007, 2001) Sarmento (2005, 2009, 2012)
Pinto (1997) Prout (2010) Qvortrup (2010) Quinteiro (2002) e outros.
4.3 Reflexões sobre métodos etnográficos no estudo com crianças
A escolha de estudo de caso23
etnográfico possui relação com o objetivo da
pesquisa. Neste caso, é investigar o brincar no contexto de abrigo, saber de que maneira
são organizadas as brincadeiras, espaços e significados desvelados com o brincar, por
isso, considerei importante a perspectiva etnográfica, na medida do possível, sem
agregar juízo de valores.
Elegi, desse modo, a investigação de abordagem qualitativa, com estudo de
caso etnográfico24
que, de acordo com André (2004, p. 49), “demanda um trabalho de
23
De acordo com André (2004, p.31 grifo meu) Um estudo de caso precisa ser “bem delimitado, isto é,
uma unidade com limites bem definidos, tal como uma pessoa, um programa, uma instituição ou um
grupo social”. O estudo de caso pode ser definido como “o exame de um fenômeno específico, tal como
um programa, um acontecimento uma pessoa, um processo, uma instituição, ou um grupo social”
(MERRIAM, 1988, p.9 grifo meu) ou “uma investigação empírica que investiga um fenômeno
contemporâneo dentre do seu contexto real de vida, especialmente quando as fronteiras entre o fenômeno
e o contexto não são absolutamente evidentes” (YIN, 1994, p.13) apud (SARMENTO, 2011, p.137).
Ambas definições consideram que o que especifica o estudo de caso é a natureza singular do objeto de
incidência da investigação, e não o seu modo de fazer. 24
Sobre a etnografia, orientei-me com BOGDAN, R. & BIKLEN, S. Investigação qualitativa em
educação. Portugal: Porto Editora, 1994; ANDRÈ, Marli Eliza D. A. de. Etnografia da prática escolar. 11
ed.Campinas SP, Papirus, 2004; Lüdke, M. & ANDRE, M.A. Pesquisa em educação: abordagem
qualitativa. São Paulo, E.P.U. 1986; SARMENTO, Manuel Jacinto. O estudo de caso etnográfico em
educação. In ZAGO, Nadir; CARVALHO, Marília Pinto de; VILELA, Rita Amélia Teixeira (Org.)
Itinerários de pesquisa: perspectivas qualitativas em sociologia da educação. 2ed. Rio de Janeiro,
Lamparina, 2011. CORSARO, William. Entrada no campo, aceitação, e natureza da participação nos
estudos etnográficos com crianças pequenas. In: Educação e Sociedade. Sociologia da infância: Pesquisas
com crianças. Revista de Ciência da Educação. Campinas. 91. Vol. 26 – Mai/ago, 2005; Métodos
etnográficos no estudo da cultura de pares e das transições inicias na vida das crianças. In MÜLLER,
128
campo intenso e prolongado, o que requer tempo e recursos por parte do investigador”.
Exige igualmente, “base teórica, preparo e disposição pessoal do pesquisador para
enfrentar o desconhecido, para se movimentar sem regras fixas nem critério muitos
definidos”. Sobre a etnografia, Oliveira e Gomes (2010, p, 65) pontuam que:
A descrição de um trabalho de pesquisa com enfoque etnográfico é, de certo
modo, um relato de nossas experiências de vida, ou seja, sempre um processo
muito difícil a requerer reflexão, habilidade na descrição e clareza, de tal
forma que permita expressar em palavras os acontecimentos,
comportamentos, processos sociais e contextos com vivências e experiências
dos sujeitos.
E as metodologias qualitativas têm garantido espaço e legitimidade em
pesquisas que procuram captar a complexidade da realidade, ou seja, interesse em
apreender o lado subjetivo dos fenômenos, à medida que abrange um conjunto de
diferentes técnicas interpretativas que visam fazer a descrição e tradução em linguagem
possíveis de um sistema complexo de significados, isso envolve interpretar e expressar
o sentido dos fenômenos sociais.
Bogdan e Biklen (1994) definem algumas características da investigação
qualitativa: a) ambiente natural como fonte direta dos dados, sendo o investigador o
instrumento essencial; b) caráter descritivo; c) o significado que as pessoas dão às
coisas e à sua vida, que deve ser uma preocupação do investigador; d) os dados são
analisados de forma indutiva, logo, o significado é de importância vital.
Neste trabalho, a fonte direta dos dados é o ambiente natural em que brincam
as crianças, no caso, as brincadeiras desenvolvidas espontaneamente ou propostas pela
recreadora por um grupo de crianças de 2 a 5 anos, em uma instituição de acolhimento,
no Estado de Mato Grosso.
É impossível discutir esta seção sem deixar explícita a experiência apaixonante
de Corsaro sobre pesquisas com crianças. Seu trabalho foi a motivação e inspiração
inicial de minhas constantes reflexões sobre a visão de infância cunhada nas discussões
dos sociólogos da infância, a partir da década de 1990 e, posteriormente, todas as
leituras feitas na SI que possuem como fio condutor e convergente o discurso das
crianças, atores sociais em intensa interação com as pessoas e as instituições,
igualmente, implicou a escolha da pesquisa e seus aspectos metodológicos.
Fernanda; CARVALHO, Ana Maria Almeida (orgs). Teoria e Prática na Pesquisa com crianças: diálogos
com William Corsaro. São Paulo, Cortez, 2009.
129
Autores da SI tais como Sarmento e Corsaro consideram relevante a
abordagem etnográfica para estudos com a infância; por exemplo, para Corsaro (2011),
a etnografia é um método eficaz para estudar crianças porque muitas questões não são
possíveis investigar por meio de entrevistas reflexivas ou questionários. Concordando
com André (2004) Corsaro (2011, p. 63) também diz que:
[...] a etnografia geralmente envolve um trabalho de campo demorado no
qual o pesquisador obtém acesso a um grupo e realiza observação intensiva
durante meses ou anos. O valor da observação prolongada está em o
etnógrafo descobrir como é a vida cotidiana para os membros do grupo –
suas configurações físicas e a linguagem e outros sistemas que medeiam
essas atividades e contextos.
A etnografia possibilita usar diversas estratégias ou procedimentos de pesquisa
para constatar a vida cotidiana e os significados que os sujeitos atribuem. Corsaro
(2009) se apropria das ideias de Glauser e Strauss (1967) e relaciona as seguintes
estratégias: entrada no campo e aceitação no grupo social; coleta e escrita consistente de
notas de campo; entrevistas formais e informais; descrição de artefatos; coleta de
gravações audiovisuais de eventos e acontecimentos espontaneamente; coleta e análise
de dados comparativos – incluindo casos negativos; construção de uma descrição
detalhada da cultura do grupo estudado e da história do processo de pesquisa;
interpretação da descrição densa e geração de uma teoria interpretativa construída a
partir dos dados, o que possibilita buscar padrões nos dados indutivamente em vez de
considerar hipóteses especificas preestabelecidas.
A etnografia possibilita uma base de dados empíricos, que se obtém por meio
da imersão do pesquisador em campo, anota e vivencia as formas de vida do grupo,
logo, resultam algumas vantagens das quais são o poder descritivo, sua capacidade de
incorporar a forma, a função e o contexto do comportamento de grupos sociais
específicos aos dados; sua captura de dados com notas de campo, gravação e vídeo para
a análise (CORSARO, 2009).
Para o autor, existem três características-chave da pesquisa etnográfica:
sustentável e comprometida; microscópica e holística; e flexível e autocorretiva. A
questão sustentável e comprometida envolve que o pesquisador, além de observar,
participe como um membro do grupo. A segunda questão, microscópica e holística,
indica que o pesquisador deve contextualizar todas as ações examinadas no ambiente
microscópico, porque simplesmente descrever o que é visto e ouvido não é suficiente,
130
pois precisa fazer um trabalho de interpretação que Geertz (1989) denomina de
descrição densa25
, pois nunca se pode atingir a compreensão por meio de análise isolada
e superficial. A terceira característica, flexível e autocorretiva, aponta que é impossível
para o pesquisador saber de antemão como formular perguntas de entrevistas que serão
aplicadas a participantes cujas normas de comunicação diferem das suas. Por isso, não
se planeja tudo antes, inclusive além das questões e da coleta de dados, também, a
análise dos dados surge depois que estão em campo os critérios. Para Corsaro (2009,
p,87) “a análise interpretativa é geradora de teoria [...] as categorias descritivas não são
predeterminadas [...] são derivadas de um processo de divisão, classificação e avaliação
interativas”. Essas categorias consideradas importantes são essenciais em minha
pesquisa.
Esta investigação tem muita importância, mais do que a quantificação, a
interpretação26
, a qual não corresponde a uma última fase de pesquisa, mas a uma tarefa
contínua, desde a obtenção dos primeiros dados, passando pelo exame das primeiras
anotações, até chegar à derradeira descrição e à elaboração do relatório final. Nessa
interpretação, levei em conta bem mais o “como” do que o “porquê” dos fatos
enfocados, uma vez que a proposta é uma pesquisa descritiva e interpretativa.
Na análise descritiva, sem separar a intuição e a imaginação de uma pretendida
objetividade científica, o trabalho propôs mostrar muito mais como as coisas são do que
deveria ser para desvelar uma realidade social, uma interpretação dos fatos procurando
entendê-los como os atores os entendem, pois a descrição etnográfica pretende ser um
relato daquilo que “é”, não daquilo que “deve ser”.
Na seção, “envolvimento com o grupo”, irei destacar minha entrada em campo
e como fui parte integrante nas brincadeiras, à medida que as crianças foram incluindo-
me em suas atividades e como fui construindo e reconstruindo pontos para questões,
categorias e outros aspectos importantes da pesquisa.
4.4. Lócus da pesquisa: participantes, descrição, espaço, apontamentos e reflexões
25
Explicado seção 1.2.2. Reprodução interpretativa: cultura de pares e cultura. 26
SARMENTO, Manuel Jacinto. O estudo de caso etnográfico em educação. In ZAGO, Nadir;
CARVALHO, Marília Pinto de; VILELA, Rita Amélia Teixeira (Org.) Itinerários de pesquisa:
perspectivas qualitativas em sociologia da educação. 2ed. Rio de Janeiro, Lamparina, 2011.
131
Participaram da pesquisa uma amostra de crianças27
do sexo masculino e
feminino com idade entre 2 a 5 anos, institucionalizadas, sob custódia do estado, ou
seja, sob medida protetiva, enviadas para a instituição pelo Juizado da Infância e da
Juventude porque foram vítimas de algum tipo de negligência/violência familiar, por
isso são encaminhadas por serem abandonadas ou sofreram maus tratos. Algumas
permanecem até serem reintegradas à família, outras, sem possibilidade de integrá-las as
suas famílias, são entregues para a adoção.
Durante a coleta de dados existiam algumas crianças de 6 anos completos
juntas no grupo de 2 a 5 anos, que fizeram parte das entrevistas. Enquanto ocorria a
pesquisa, o grupo se manteve mais ou menos estável, entretanto, em função da
rotatividade, novas crianças chegaram, enquanto que outras que foram observadas e
entrevistadas ao final da pesquisa já tinham sido reintegradas.
O local da pesquisa foi numa instituição de acolhimento em Cuiabá/MT que
abriga e protege crianças de até 12 anos. A escolha da instituição possui relação com os
objetivos da pesquisa e do público e com o interesse de qualificação profissional e
divulgação de conhecimento sobre a infância. A pesquisadora é funcionária pública,
profissional do Sistema Socioeducativo, cargo de psicóloga para atender à infância em
situação de vulnerabilidade, por isso, a instituição foi a opção mais apropriada, uma vez
que acolhe as crianças com medidas protetivas.
A etnografia permite chegar ao lócus sem categorias e roteiros rígidos e não
foram diferentes com a observação do espaço da pesquisa. Decorridas várias visitas,
com anotações e convivência no espaço, iniciei um processo de descrever o ambiente e
fazer algumas ponderações sobre o local, que serão inseridas nesta seção de
metodologia, neste item do local da pesquisa.
Para registrar, descrever e fazer comparações utilizei os critérios de
atendimento, e orientações do CNAS Conselho Nacional de Assistência Social e
CONANDA – Conselho Nacional dos Direitos da criança e do Adolescente com base
no documento com o título: Orientações Técnicas: Serviços de Acolhimento para
Crianças e Adolescentes (2009).28
Este documento que tem como finalidade regulamentar, no território nacional,
a organização e oferta de Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes, no
27
O grupo de crianças oscilou entre 30 a 40 durante as observações e coleta de dados 28
Disponível
http://www.mds.gov.br/cnas/Entidades%20Certificadas/deliberacoes/Entidades%20Certificadas/deliberac
oes/arquivos/2009/resolucoes-2009
132
âmbito da Política de Assistência Social, entre outras coisas, assinala que a proposta é
reordenar os serviços de acolhimento institucional (abrigo, casa lar) partindo do
princípio de que toda situação de afastamento familiar deve ser tratada como
excepcional e provisória, sendo imprescindível investir no retorno ao convívio com a
família de origem e se for esgotada essa possibilidade, deverá conduzido para a família
substituta.
O documento reconhece que a família é o melhor lugar para o desenvolvimento
e crescimento da infância, entretanto, quando isso não for possível e necessitar por um
tempo ser afastado desse convívio, é muito importante ofertar um serviço de qualidade
no acolhimento institucional. O afastamento do convívio familiar em si é um processo
doloroso para a criança, e se presume que pode ter repercussões mais negativas quando
não for adequadamente acolhida no convívio da instituição.
Quando este afastamento for necessário, tanto o acolhimento quanto a
retomada do convívio familiar ― reintegração à família de origem ou,
excepcionalmente, colocação em família substituta ― devem ser realizados segundo
parâmetros que assegurem condições favoráveis ao desenvolvimento.
Pressupõe-se que, à medida que o serviço for de qualidade, o impacto do
abandono ou do afastamento do convívio familiar pode ser minimizado. Logo, é
importante assegurar atendimento que propicie experiências reparadoras e a retomada
do convívio familiar.
De acordo com as recomendações do CONANDA, os serviços não devem ser
vistos como nocivos ou prejudiciais ao desenvolvimento da criança, devendo-se
reconhecer a sua importância de forma a evitar, inclusive, a construção ou reforço de
uma autoimagem negativa ou de piedade por estarem sob medidas protetivas;
igualmente, reforça que as orientações e parâmetros apresentados possuem como
objetivo estabelecer orientações metodológicas e diretrizes nacionais que possam
contribuir para que o atendimento seja excepcional no serviço de acolhimento
transitório, porém reparador.
O documento sustenta parâmetros de funcionamento das diferentes
modalidades de serviços de acolhimento, entre eles, Abrigo Institucional. Do mesmo
modo, define o que cada serviço é, o público ao qual se destina, os aspectos físicos
mínimos sugeridos para seu funcionamento e os recursos humanos que minimamente
devem possuir para assegurar um atendimento de qualidade para a infância.
133
O que fica muito explícito é a reestruturação do serviço de acolhimento, com
ênfase ao abandono dos modelos de cultura de institucionalização presente na sociedade
e nos governos, ou seja, o modelo tradicional representado por grandes instituições,
atendimento massificado, entidades de longa permanência, desqualificação das famílias
pobres, não respeito à individualidade e à história da criança, não preservação dos laços
familiares e comunitários. E ainda, revitimiza ao invés de reparar, viola direitos, ao
invés de proteger em ambientes denominados de orfanatos, internatos, e outros em que
as crianças são recebidas e ficam por muito tempo, sem respeito à construção da
identidade e do atendimento individualizado.
Atualmente, é preciso estruturar instituições para que os serviços de
acolhimento possam cumprir sua função protetiva e de restabelecimento de direitos,
favoreça o fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários, o desenvolvimento de
potencialidades das crianças atendidas e o empoderamento de suas famílias, ou seja,
potencializar a família nos aspectos afetivos, social, político e econômico para enfrentar
e superar as condições adversas, tais como situações de vulnerabilidade e violação de
direitos.
O espaço físico das crianças envolvidas, nesta pesquisa, pode-se minimamente
ser descrito assim: No interior da instituição, existia um cercado29
que é um dormitório
coletivo, todas as crianças dormiam juntas neste espaço, uma média sempre de 35
crianças, onde, às vezes, não existia cama para todos; alguns dormiam em colchão no
chão, por falta de espaço para acomodar camas suficientes, um guarda roupa grande
comum para guardar as roupas usadas por todos; um banheiro; um ar condicionado e
um cômodo que servia de depósito para os brinquedos, a maioria quebrados, e também
para guardar colchões. As crianças acordavam, saiam do “quarto” iam para fora num
espaço cercado com grades para que os pequenos ficassem separados e “protegidos” dos
maiores.
No cercado, o portão fica do lado esquerdo para quem vai entrar, em seguida,
se depara com três bancos de madeira à frente da televisão que fica na parede sob um
suporte. Ao lado da entrada do banheiro, fica o dormitório e na porta deste banheiro, do
lado de fora, uma mesa e duas cadeiras e sobre a mesa uma garrafa de água ou coisas
das crianças quando estão tomando banho ou sendo arrumadas. Esta mesa e cadeiras são
29
Usei esta expressão com sentido de cômodos em que muitos dormem em comum/coletivamente.
134
de uso dos orientadores e sempre que uma criança sentava, alguém dizia: aí não é seu
lugar. Na parede, acima da mesa está fixada uma lousa de recados da instituição.
O espaço possui três ventiladores antigos de teto, mas apenas dois
funcionavam, sendo um deles fixado ao lado da parede da televisão. O banheiro é usado
pelas meninas e meninos, com uma pia grande (não possui a altura de pia de banheiro
para crianças), um vaso infantil, barra de ferro na parede para se segurar durante o
banho, armários e um recipiente grande de plástico para roupas sujas.
O espaço físico é coberto de telhas marca Eternit, material que absorve
extremo calor e esquenta muito o ambiente. O banheiro encontrava-se em condições
desfavoráveis à época da coleta de dados. As crianças são atendidas de um modo
massificado, exemplo, o uso de uma mesma caneca para todas tomarem água quando
acordavam, roupas comuns a todos, ou seja, não existe a roupa de cada um ou armário
individual. Tudo é misturado e nada é de ninguém. Frente às ponderações apresentadas,
pressupõe-se serem impróprias essas péssimas condições no espaço de acolhimento para
as crianças, o que se denota a ausência de cuidados com a individualidade e com as
questões de higiene quando usam o mesmo objeto e as mesmas roupas.
O espaço físico e mobiliário não oferece um atendimento personalizado e
individualizado, já que não existe guarda-roupa/cômodas/armários para os pertences
pessoais de cada criança de forma individualizada e, além disso, não tinham banheiros
separados. O atendimento que deveria ser oferecido para um pequeno grupo, com
garantia de espaços privados e objetos pessoais se torna comprometido.
Neste espaço, raramente havia brinquedos, as crianças acordavam e ficavam
andando à toa de um lado para outro, ávidas por brincadeiras. Como não existiam
brinquedos, na maioria das vezes, inventavam brincadeiras com o corpo, tais como:
provocação, empurra-empurra, pega-pega, brincar com chinelos, empurrar colega
cadeirante, subir na grade, fazer algazarras na grade, mexendo com que está fora, se
jogar no chão e chorar fazendo birra. Estes comportamentos resultavam em brigas e
conflitos, entre eles e os cuidadores.
4.5. Envolvimento com o grupo: aproximação, escolha, entrada no campo e
inclusão nas brincadeiras observadas
135
Nesta seção, principio com questões da instituição, rotina das crianças e
proposta do estudo. Observo e descrevo aspectos do cotidiano vivido com as crianças,
aspectos do funcionamento da instituição, questões a respeito do espaço de convivência,
atividades e formas de aproximação com o grupo.
Quando apresentei este projeto no Seminário de Educação Pesquisa II,
disciplina obrigatória do doutorado, fui questionada porque estudar sobre brincadeiras
de crianças, já que este tema é muito recorrente em pesquisa educacional. Expliquei que
o lócus da investigação não era uma escola regular, era uma instituição que acolhe
crianças que, por alguma razão, a família não pôde cuidar e acolher. Pois trata-se de:
Uma instituição que funciona em regime de abrigo que atende crianças na
faixa etária de 0 a 12 anos incompletos, de ambos os sexos tendo por
finalidade acolher e assegurar proteção integral em caráter provisório e
excepcional às crianças, em situação de risco iminente e ou vulnerabilidade
social e circunstancial e afastadas de seus lares por decisão judicial, em
decorrência de maus-tratos, exposição à violência, abandono ou abuso sexual,
[...]cujo objetivo principal é coordenar trabalhos de equipe
multidisciplinar composta por profissionais capacitados em oferecer
apoio à criança fragilizada em virtude de negligência familiar, violência
ou em completo abandono. O trabalho multidisciplinar de equipe visa o
acolhimento da criança, possibilitando-lhe segurança, bem-estar e apoio
integral, até ocorrer a possível reintegração familiar, mediante a execução de
atividades com propostas educativas, estabelecendo uma rede de apoio para a
criança em vulnerabilidade familiar [...] possui, por missão, assegurar a
proteção integral em caráter provisório e excepcional da criança em situação
de risco social, familiar ou pessoal, que se encontra afastada de seu lar em
decorrência da verificação de maus-tratos, opressão ou abuso sexual impostos
pelos pais ou responsáveis [...] O trabalho institucional é ininterrupto para
alguns setores, ocorrendo em sistema de plantão de 12x36 horas e em regime
diário de 8 horas por dia, para o bom desenvolvimento das atividades, conta
com o seguinte quadro de servidores: Superintendência, Coordenadoria,
Gerência, Serviço Social, Psicologia, Apoio Administrativo, Recursos
Humanos, Fonoaudiologia, Fisioterapia, Pedagogia, Instrutores, Odontologia,
Nutrição, Almoxarife, Medicina, Enfermagem, Técnico em Enfermagem,
Orientadores, Educadores Desportivos, Cozinheiros e Auxiliares de Cozinha
[...] metodologia: acolhimento, entrevista, visita domiciliar, relatórios,
investigação social, acompanhamento em audiência, acompanhamento de
casos, atividades pedagógicas, desportivas e recreativas voltadas para o
desenvolvimento infantil e promoção do bem-estar da criança em situação de
vulnerabilidade familiar. (RELATÓRIO DE ATIVIDADES, CUIABÁ, 2012,
GRIFO MEU)
Durante minhas visitas constatei que as crianças são recebidas e permanecem
no recinto por decisão judicial. Logo, são adaptadas à rotina pelos técnicos e educadores
com cuidados diários de higiene, alimentação, saúde e escola na rede pública para quem
está com idade para matrícula.
136
As crianças que vivem com sua família possuem uma dinâmica de vida muito
diferente. Quando ingressam na escola têm uma rotina de ir e vir e, aos poucos,
aprendem a percorrer entre normas e valores da família e regras institucionais
assimiladas na escola, mas as crianças deste estudo não têm a oportunidade, enquanto
estão na instituição, de vivenciarem papéis de filho e aluno, concomitantemente.
Percebi que no contexto de minha pesquisa, as crianças buscam
excessivamente contato, carinho, colo, apego e acolhimento, comportamento este
muitas vezes de encontro com a rotina, que possui regras, buscando padronizar condutas
nas atividades e nas relações sociais, demarcando o que, onde, quando, como e com
quem se podem fazer coisas, na tentativa de prever e regularizar as ações sociais das
crianças. Por esta razão, institui formas de reprodução desses padrões no espaço.
Esta questão que percebi sobre a busca de afeto é um fenômeno recorrente em
pesquisas sobre institucionalização da infância. Por exemplo, Vectore e Carvalho (2008,
p.446 negrito meu) fizeram uma investigação, buscando compreender o universo da
criança institucionalizada. Entre algumas questões desveladas, o autor mostra que:
[...] as maiores dificuldades apresentadas pelos abrigados são: carência
afetiva; comportamentos agressivos, rebeldes com os pares e com as mães
sociais, dificultando o estabelecimento de limites; dificuldades escolares e
problemas como a enurese noturna e experiências sexuais precoces.
Em função das questões de limites e outras experiências consideradas errôneas,
a padronização dos comportamentos ganham notoriedade, em detrimento do afeto,
dialogo e acolhimento.
Neste trabalho, as crianças, em idade escolar acolhidas, estudam na rede
pública, ficam ausente um período, e aquelas que não estão na escola permanecem o dia
todo na instituição sendo incluídas em atividades ofertadas.
As crianças desta pesquisa por ocasião da coleta de dados estavam todos sem
estudar, o que implicava ficar o dia inteiro na instituição o que possibilitou a
convivência e as visitas, exceto os portadores de cuidados especiais que são três
cadeirantes e um menino com deficiência auditiva que frequentavam a escola no
período vespertino, horários de minhas visitas, logo, não estão presentes nas
brincadeiras e rotinas observadas.
Para aproximar, conhecer e dialogar com o grupo eleito, frequentei a
instituição 2 a 3 vezes por semana, no período vespertino com entrada entre 13h30min
137
e14h30min e saía sempre às 17h, momento em que as crianças iam tomar banho.
Permaneci na instituição durante 6 meses, de Junho a dezembro de 201230
, num total de
57 visitas e 70 episódios descritos. Serão explicados o que são episódios e como foram
feitos os registros, posteriormente.
Quando eu chegava, as crianças estavam dormindo, às vezes, uma ou duas
acordadas. Aos poucos, todas eram despertas naturalmente ou com a ajuda dos
orientadores, em seguida, quase todos os dias era solicitado para que se sentassem nos
bancos de madeira, frente à televisão, que era ligada e sempre passava um desenho ou
música gospel repetidos. Na terceira visita, em 12/06/2012, anotei o relato observado,
assim como outras tantas vezes, no meu diário:
As crianças não prestaram atenção ao filme, a televisão fica no alto, num
salão aberto e difícil de ouvir. Muito rápido começam a se dispersarem,
mesmo com as broncas/insistência dos adultos para que permanecessem
sentadas, assistindo.
Em seguida, às 15 h, serviam o lanche, no refeitório, alguns orientadores
rezavam com as crianças, sentadas no banco, outras não. Esta era uma atividade
intrigante, algumas crianças rezavam muito inquietas, outras não faziam direito, mas
isso poderia resultar numa bronca ou ter que fazer novamente, logo, a reza virava
punição. A primeira vez que observei esta ocorrência, fiz a seguinte anotação:
As crianças estavam com alguns brinquedos no cercado, chegou a hora do
lanche; o orientador em silêncio começou “arrancar” os brinquedos da mão
das crianças e num gesto de ordem apontava para sentar nos bancos que
ficam em frente da televisão, como não estava tendo sucesso começou
argumentar com as crianças; especificamente, com algumas, dizia a
recomendação no ouvido, até sentarem todos, uniu as mãos com gesto para
rezar, esperou as crianças imitar e começou uma oração que as crianças
sabiam de memória, algumas repetiam, outras falavam as frases antes dele e
ao terminar, uma criança levantou rápido, mas ele ordenou que se sentasse
novamente porque ainda não era para se levantar [...] (visita 14 em 03/07/12).
Depois do lanche, as crianças tinham a opção do parque/pátio, brinquedoteca,
campo futebol ou ficavam no cercado. Quando não iam para alguma atividade, ficavam
30
Elaborei solicitação pra o Juizado de Infância com uma exposição detalhada sobre a pesquisa e intenção
de resultados. Em 18 de maio de 2012 recebi autorização para fazer a pesquisa e frequentar a instituição,
de posse desse documento judicial, fiz o primeiro contato telefônico com a instituição, agendei minha
visita para dia vinte e dois de maio de 2012 ás 15h 30min
138
todos muito agitados e inquietos, no cercado. Sobre este espaço de convivência, na
entrevista, uma orientadora relatou:
Deveria ter um espaço maior, com parquinho, brinquedos, mudaria tudo aqui,
isso aqui é uma cadeia dentro de outra [...] fica aqui praticamente o tempo
todo, parecendo um robô, não pode isso, não pode aquilo, por isso precisa
brincar, eu mesma me sinto presa, de ficar só nesse pedaço, por isso eu acho
que as brincadeiras são muito importantes para as crianças. (orientadora 01)31
Durante as visitas, não existia um cronograma/planejamento prévio das
atividades de recreação, por isso, algumas vezes, a atividade de recreação não era feita
da forma que pretendia a recreadora ou como as crianças queriam, o maior desejo delas
era sair do cercado e brincar fora em qualquer espaço que fosse.
Para as brincadeiras no parque, de vez em quando, eram disponibilizados
brinquedos, entretanto, algumas vezes não, o parque no momento da pesquisa tinha
muitos brinquedos quebrados como afirma também um trecho de entrevista com uma
orientadora “gostam muito do parquinho, por mais que esteja tudo quebrado”.
Os parques são lugares de muita interação, corrida, escolhas de brinquedos e
movimentação de crianças, momentos em que podem exercer autonomia quanto à
escolha de brinquedos, locais, colegas e brincadeiras.
Observei que eram feitas as recomendações habituais para não se machucarem,
não subirem, por exemplo, na gangorra muitos de uma vez, apenas um de cada lado,
brincarem juntos, partilharem brinquedos e não se misturarem com o grupo de 6 a 12
anos.
Notei que o espaço tinha poucas opções para as crianças. Durante o período da
pesquisa, parte dos brinquedos do parquinho estavam quebrados, o chão é de cimento,
disso decorre as recomendações para as crianças não caírem, o receio da criança se
machucar, uma situação que não deve ocorrer porque poderá ser interpretada como
descuido e o orientador ficar numa situação embaraçosa quanto a sua atribuição de
cuidador.
O parquinho não tinha areia para brincar, esta brincadeira propicia construir
formas, desenvolver o tato, a coordenação motora e estimular a criatividade, muito
rápido desponta a alegria da construção, imaginação, invenção e compartilham uns com
os outros seus feitos. Realizam sonhos e fantasias, sozinhos e em grupo, sem
31
Para não identificar as orientadoras que são cuidadoras enumerei de acordo com as entrevistas.
139
necessidade da ajuda dos adultos. Neste estudo, essa experiência só era possível no
campo de futebol, local não apreciado pelos cuidadores por conta da sujeira e cuidados
com a poeira, uma vez que isso envolve questões de saúde, exemplo, saber se a criança
não possui nenhuma reação alérgica nesta atividade.
Conforme entrevistas com as orientadoras, ao perguntar qual espaço em que as
crianças mais brincam, responderam:
Elas gostam muito do parquinho, por mais que esteja tudo quebrado.
(cuidadora 01)
[...] no parquinho, que eles gostam mais, na hora em que a gente abre o
portão eles descem embalados e depois do parquinho [...] (cuidadora 02)
Pra elas é o parquinho [...] apesar de aqui eles não terem tanta escolha né,
eles tem o parquinho [...] as meninas gostam mais do parquinho
[.,,] (cuidadora 03)
[...] eu acho que é aqui no pátio porque eles convivem e conseguem mais
ficar juntos e entender, nesse pedaço aqui, (aponta para o pátio que tem o
parque) entendem mais a brincadeira. (cuidadora 04)
Conheci a brinquedoteca na segunda visita, pequena, organizada e com muitos
brinquedos, entre estes, duas casinhas, uma considerada das meninas com muitos
utensílios de cozinha e vazilhinha, tais como pratos, panelinhas etc., e a outra casinha,
considerada dos meninos com bichos e muitos instrumentos musicais. O recreador que
me apresentou este espaço explicou que era usado para as crianças maiores, uma vez
que o grupo alvo de minha investigação de 2 a 5 anos quebrava os brinquedos.
A recreadora do grupo de 2 a 5 anos era uma funcionária nova e quando a
conheci na primeira visita, informou-me que tinha menos de 2 meses de trabalho, estava
conhecendo o grupo, a casa e a rotina, isso foi uma coisa favorável porque fomos juntas
construindo uma relação de trabalho com as crianças. Aos poucos, ela foi conquistando
espaço na brinquedoteca para levar as crianças, entretanto, assimilando a lógica da
instituição de separação entre meninos e meninas, a maior parte das visitas na
brinquedoteca era separada dos meninos e das meninas.
Esse era um espaço pautado de muitas restrições que também, em parte. era
cumprido pela recreadora com pouco tempo de vínculo empregatício, tinha pouca
autonomia no seu trabalho, no qual presenciei muitas vezes ser atravessado pela
instituição e pelos próprios colegas de trabalho mais antigos, igualmente por alguns
orientadores que queriam tomar a decisão sobre como deveria ser a recreação,
140
momentos em que gerava angústia e expectativa nas crianças que viam seu momento
tão esperado, o brincar, ser prejudicado, adiado ou até mesmo, suspenso quando
surgiam esses conflitos.
Ainda sobre as restrições na brinquedoteca, aponto uma situação registrada:
Um grupo de meninas, entre 4 e 6 anos, foram para a brinquedoteca, a
recreadora explicou algumas regras do uso delimitado do espaço físico e
quais brinquedos que poderiam brincar; estava, neste dia, um grupo de
meninas entre 6 e 12, por isso foi delimitado o espaço físico de cada grupo,
deixando claro a “proibição” de contato com as outras meninas maiores que
estavam na brinquedoteca. (visita 07/19/06/2012)
O campo de futebol é um espaço grande com terra, pedaços de brinquedos
velhos abandonados, mato e palhas que caía de um coqueiro, observei ser o espaço de
maior interação, circulação e movimentação física das crianças com liberdade e menos
restrições. Em entrevista, Letycia com 5 anos, disse: gosto mais de brincar na
Brinquedoteca e no campo porque lá é legal, [...] eu gosto de brincar de casinha só lá
no campo.
Os episódios narrados no campo, analisados neste estudo, são os mais ricos,
com muitos papeis, criatividade, invenção, liberdade e muito entusiasmo por parte das
crianças. A primeira vez que acompanhei as crianças no campo fiz o seguinte registro
“[...] presenciei as crianças brincarem verdadeiramente com imaginação, fuga do real,
criatividade e invenção” (visita 15 em 06/07/2012) pensei em Huizinga (2012) e
Caillois (1990) ao considerarem que uma das características da brincadeira é o fato de
ser livre. Será que é porque estavam livres? Neste dia, as crianças brincaram livres das
restrições tão marcantes da brinquedoteca, por exemplo.
O espaço do cinema é uma sala com ar condicionado, aparelho de televisão,
DVD e caixa de som. No início da pesquisa, havia poucas cadeiras, inclusive, algumas
quebradas, mas ao final da pesquisa, não tinha mais cadeira neste espaço, as crianças
sentavam-se no chão. Este local é o espaço em que observei poucas atividades, não é
um espaço apreciado pelas crianças. Uma orientadora entrevistada me disse “cinema
eles não interessam muito”.
Com base nas observações, suponho três razões porque as crianças não
apreciam muito essa sala. A primeira, porque os filmes não são adequados à idade das
crianças, são longos e com histórias que não despertam o interesse de sua faixa etária,
mesmo quando são temas infantis, muito demorados e as crianças se dispersam. A
141
segunda razão é que as crianças ficam num cercado, privadas de liberdade, já que sair
de um espaço restrito e ir para uma sala fechada não é algo prazeroso. Terceiro, porque,
no cercado, os orientadores já passam filmes, talvez, por isso, pouquíssimas crianças
prestavam atenção.
Esta sala funcionava mais como uma forma de conter as crianças do que
propiciar lazer, às vezes, os orientadores diziam: está muito calor, vamos para o
cinema, ao chegar à sala não tinha uma proposta lúdica ou qualquer atividade, criança
não quer ficar fechada numa sala apenas por conta de ar condicionado quando se tem o
mundo para correr e brincar. Dois registros do cinema me chamaram atenção:
As crianças foram para a sala de cinema, ao chegar uma tia levou 7 minutos
(15h 47 min às 15h 55 min) para aumentar o volume do som da televisão,
enquanto a outra tia estava com uma criança no colo e pedia silêncio para as
outras, não conseguiu aumentar o volume e disse: vamos ficar quietos e
assistir assim mesmo, não se ouvia nada. Logo, uma criança desobedeceu à
ordem de sentar-se no chão abaixo da televisão e foi sentar numa poltrona no
fundo da sala [...] durante o tempo que a tia tentava arrumar o aparelho de
televisão, uma menina chorou todo tempo. 10 min após início do filme
ocorreu um tumulto, as crianças queriam sair, foram contidas [...] várias
crianças foram indiferentes ao desenho [...] outras, às vezes, olhavam para a
TV, como o volume estava baixo, não dava para entender [...] não
conseguiram manter todas as crianças e liberaram os maiores para sair da sala
e irem para o pátio [...] a atividade que deveria ser lúdica tornou-se uma
“agonia” para as crianças. (visita 08/ em 20/06/2012)
Uma coisa importante desta visita, neste episódio, era o número insuficiente de
cuidadores, duas para 30 crianças, vejamos o relato da segunda atividade do cinema:
[...] quando entrei na sala o filme já tinha dado início, apenas uns 5 minutos.
Observei um menino jogando bola no final da sala e os orientadores pedindo
para sentar, várias crianças não estavam prestando atenção, igualmente, não
sabiam qual filme estava sendo rodado quando indaguei, com o passar dos
minutos, começou uma verdadeira inquietação, a maioria das crianças não
queria mais assistir ao filme, com a exigência para que eles sentassem e
assistissem, virou uma atividade obrigatória que seria lúdica. Uma menina de
5 anos sentou uma colega menor, três anos em seu colo aconchegou brincava
de cavalinho balançando as pernas e assim a pequena se divertia com ela,
porque não estavam conectadas no filme. Depois de um tempo, dois meninos
inventaram uma brincadeira de bater palmas um de frente para o outro, dois
meninos brincaram de correr, todas essas iniciativas lúdicas paralelas ao
filme eram acompanhadas de apelos dos adultos para sentarem [...] às 16h
40min, as meninas foram retiradas antes de acabar o filme para tomar banho,
ficaram os meninos [...] quase todos não mais se interessaram pelo filme,
ficaram brincando de luta, correr, um menino inventou uma brincadeira
comigo da seguinte forma, chegava perto me abraçava e saia correndo
dizendo, tá cheirosa, tá cheirosa e ria, fez isso várias vezes [...] outros
142
perambulavam pela sala procurando o que e como brincar, foram levados
para tomar banho as 17h. (visita 08/ em 20/06/2012)
Anotei no meu diário a seguinte reflexão: “Esta atividade seria mais
interessante, se fosse programada com tempo para ter início e fim, as pouquíssimas
crianças que prestaram atenção não tiveram a oportunidade de saber o desfecho do
filme, por outro lado, muitas crianças saíram do cinema sem saber o que assistiu e do
que se tratava a história”.
O filme era da personagem Rapunzel, gênero feminino com idade
recomendada a partir de 3 anos, adequada à idade do grupo, porém com mais de 60 min
de duração, período este que eles não suportam ficar quietos. Outra questão marcante do
grupo é que são muitos desatentos e não têm o hábito de assistir televisão, filmes que
crianças dessa idade em uma situação familiar assistem. Essas crianças não conseguem
manter a atenção focada.
O cercado é um espaço privilegiado de minhas observações, será reservado um
momento para descrever e compreender as brincadeiras, neste local, em que as crianças
passavam a maior parte do tempo. Assim, aos poucos, as crianças se aproximaram, me
deram atenção, contaram histórias e me incluíram nas brincadeiras, eu sentava no banco
e devagar elas se aconchegavam, pediam colo, disputavam afeto, eu conversava e fazia
afagos e, aos poucos, passaram a me convidar para brincar e fazer parte da rotina.
Na sequência, faço descrição de algumas visitas, que foram escolhidas para
trazer à tona o caminho percorrido de aproximação, escolha da amostra e outras
particularidades que emergem do envolvimento.
VISITA 132
Conforme agenda, cheguei no horário, deparei-me com um portão de ferro, um
carro (Modelo van) estacionado e dois senhores descarregando legumes, apresentei-me
para uma funcionária que estava no portão que, na sequência, depois da identificação,
levou-me até a uma sala de recepção, aguardei alguns minutos (muito rápido) e tive uma
breve conversa com alguns funcionários responsáveis pela gestão. Fiz minha
32
As descrições das visitas, neste trabalho, não seguem uma sequência rígida, algumas não serão
relatadas, aquelas em que fiquei conversando com funcionários de modo informal para conhecer melhor a
rotina, criar vínculos e explicar sobre meu trabalho e, consequentemente, minha presença na instituição.
143
apresentação, falei um pouco de minha trajetória como pesquisadora, funcionária
pública e docente do Ensino Superior, por fim, expliquei-lhe a proposta do projeto de
pesquisa com as crianças.
Fui informada que existiam horários fixos de recreação, momento em que eu
poderia acompanhar as atividades lúdicas, uma rotina com horário para tudo que ocorre
na instituição, como por exemplo, as meninas faziam atividades separadas dos meninos.
Neste primeiro dia, não adentrei nas instalações das crianças, fiquei somente no espaço
da direção e técnicos; por isso não vi nem percebi nenhuma criança. Combinei na
semana seguinte iniciar as visitas, entretanto, houve mudança no calendário do
doutorado, fiz uma disciplina presencial concentrada. Este fato me fez iniciar as visitas
em 11 de junho de 2012.
VISITA 2
Cheguei às 14h e fui recepcionada pela funcionária que perguntou se eu queria
assinar o livro de presença, procedimento de registro de entrada de visitantes, informei-
lhe que preferia cumprir o protocolo da casa e assinei o livro e entrei. Todos os dias
foram exatamente a mesma rotina de entrada e acesso, sempre recepcionada por uma
funcionária (o) e um policial militar, responsável pela segurança externa, que com o
passar dos dias sempre me dirigia algumas conversas educadas e amáveis enquanto eu
assinava o livro. Na terceira visita, já tinha sistematizado este protocolo de entrada que
foi seguido em todas as visitas, ao longo da pesquisa.
Na sequência, fui acolhida pela gestora que me apresentou às pessoas, tais
como os professores de educação física, denominados recreadores, tias/tios
denominados orientadores que cuidam da rotina das crianças, para o chefe de plantão
(líder de equipe), depois fiquei no pátio conversando. Fui informada, pelos recreadores
de que a casa possuía um grupo de 6 a 12 anos entre meninos e meninas com
aproximadamente 74, sendo 30 meninas e 44 meninos, este grupo estuda em escolas
públicas fora da instituição nos dois períodos, matutino e vespertino, no período escolar
durante o dia diminui o número de crianças enquanto algumas estão na escola. Percebi
também crianças especiais (cadeirantes) que precisavam de cuidados mais
individualizados, enfim, de acordo com o chefe de plantão, existia um média de 140
crianças porque ele não sabia o número exato do berçário.
144
Um recreador apresentou- me a brinquedoteca, pequena para a quantidade de
crianças, porém, organizada com muitos jogos; salientou que somente o grupo de 6 a 12
anos podia usar o espaço, entretanto, com o passar dos dias percebi que essa regra fora
“quebrada” pois a recreadora, recém contratada para o grupo de 2-5 anos, passou a levar
as crianças para a brinquedoteca em pequenos grupos. Conheci a quadra, o parquinho, o
campo de futebol, profissionais do Serviço Social, Psicologia, Pedagogia, Setor
Jurídico. Neste último, expliquei o projeto e como seria o procedimento de coleta de
dados, inclusive com uso de fotos, filmagens e gravações das atividades lúdicas.
Existiam três grupos que viviam juntos na mesma casa, mas separados em
espaços diferentes, se encontravam em alguns momentos, no parque, na recreação e em
episódios de comemorações. O berçário contém crianças de 0 a 2 anos, neste grupo,
alguns maiores usavam o refeitório do grupo de 2 a 5 anos; os outros (bebês) se
alimentavam/mamavam no berçário; outro grupo formado de crianças entre 2 a 5 anos,
que, na prática, existiam crianças com 6 anos juntas, não frequentavam a escola e nem
usavam o refeitório do grupo de 6 a 12 anos, faziam a refeição, tomavam banho e
dormiam num espaço separado para eles.
Enquanto conhecia as crianças, os funcionários e os espaços físicos pensava no
grupo que seria eleito para investigação, que fosse ao encontro dos objetivos da
pesquisa. Na primeira visita, percebi que deveria fazer uma escolha por questões de
variáveis de idade, experiência de vida e oportunidade de estar junto.
No grupo de 6 a 12 anos inclui-se a presença de adolescentes, alguns são
vítimas de violência/abuso sexual, frequentavam a escola fora do lar; os bebês ficavam
no berçário; por fim, no grupo de 2 a 5 anos percebi que era o mais viável, por conta da
homogeneidade entre eles em relação à idade, brincadeiras, permaneciam na instituição,
e não frequentavam a escola. Inclusive, quando indaguei sobre eles um funcionário
falou: “eles ficam ali na gaiola em cima” e apontou para o espaço de convivência
separado dos bebês e dos maiores. De fato, eles ficam num cercado separados.
A casa funcionava em regime de plantão, exceto para alguns funcionários,
entre eles, a equipe técnica e a gestão, por isso, deparei-me, no início, com equipes
diferentes até a terceira visita, e isoladamente, alguns funcionários até completar uma
semana por conta das folgas. Em cada plantão, sempre tinha um funcionário no rodízio
de folga, isso fez com que fosse conhecendo os funcionários durante uma semana. Era
comum, na primeira semana, alguns funcionários não saberem quem eu era, sempre me
apresentava e explicava meu trabalho na casa. A instituição não fez comunicação para
145
todos os funcionários da entrada da pesquisadora, nem da finalidade de seu trabalho, por
este fato, diariamente, durante um tempo, era explicado o objetivo e ao mesmo tempo,
feitas as devidas apresentações a cada funcionário que eu conhecia.
A líder do plantão, gentilmente, explicou-me algumas coisas do funcionamento
da casa, estávamos na entrada de um espaço que possui uma televisão. Um grupo de
crianças entre 6 a 12 anos assistia televisão e uma cuidadora junto, todos quietos e
quando alguém queria sair, a orientadora pedia para sentar. Nesta visita, na sequência,
fui para o cercado do grupo 2-5 anos, existiam três orientadores, sendo duas mulheres,
um homem e um fisioterapeuta, no momento, atendendo uma criança.
Fiquei um tempo, as crianças estavam assistindo televisão que fica fixada na
parede, passava um desenho cujo áudio não era possível ouvir bem e as crianças não
estavam prestando atenção, quando perceberam minha presença, alguns vieram até mim
procurar atenção.
A recreadora sentou-se no chão e algumas crianças ficaram jogando-se em
cima dela (brincando) ela sempre dizendo: cuidado! Depois levantou- se e algumas
crianças vieram a mim e queriam saber o que eu tinha na mão, estava com uma
prancheta e uma folha de papel A4 para apontamentos, e também eu tinha um crachá,
desses que ganhamos em congressos, que é parecido com o formato de uma bolsinha
com um cordão. Eu estava com esse objeto no pescoço e, dentro, meu celular, chave do
carro e uma caneta. Todos queriam saber o que era, expliquei-lhes, mas não entreguei
na mão deles, logo minha folha de papel virou aviãozinho. Percebi três meninos que
foram brincar perto da parede, arrastando uma faixa de pano que, aparentemente, virou
um carro, mas quando me aproximei, a brincadeira acabou, já que neste espaço não
existiam brinquedos disponibilizados.
Neste dia, anotei em meu diário33
:
Estou confusa, parece que meu foco da pesquisa sumiu, não consigo
organizar-me para ver as brincadeiras, muitos funcionários sem saber ainda
quem sou eu, por conta do regime de troca de plantão, que não me permitiu
fazer uma reunião e falar com todos, mas para minimizar, passei a apresentar-
me sempre que fosse necessário; percebi que as crianças ficavam agitadas
com minha presença, inclusive, demonstravam ciúmes, exemplo de um
menino que se aninhou ao meu lado e o colega brigou.
33
Durante a pesquisa, fiz uso de diário de campo, desde a primeira visita para anotar o que via e minhas
percepções, fotos e uso da câmera vieram depois de um tempo de adaptação e proximidade com os
sujeitos. A pesquisa envolve episódios filmados e transcritos, anotações transformadas em textos do
diário de campo, uso de fotos e gravações de falas.
146
VISITA 3
Fui para a sala de televisão do grupo de 6 a12 anos, fiquei sentada no fundo,
num banco de madeira; existia um grupo de 6 crianças assistindo e uns 6 jogando uno34
e uns 4 jogando bozó35
, em companhia de orientadores e dos recreadores, então, um
menino de 7 anos aproximou-se e fez-me um carinho, perguntei o seu nome e ele me
respondeu. Fiquei mais um tempo e o grupo que estava jogando uno (jogo de cartas)
sentado no chão, fez-me um sinal para eu jogar com eles, aproximei-me e sentei-me no
chão, logo uns abandonaram o jogo e tudo terminou. Enquanto eu estava sentada no
chão com este grupo, um menino do grupo de 2 a 5 anos, que estava no cercado, ficou
me chamando e eu fiz um sinal que depois iria.
Na verdade, fui para o parque e fiquei apoiada na grade de ferro olhando umas
meninas balançarem, uma convidou-me para entrar no espaço de brinquedos, entrei,
sentei no balanço onde estava também a cuidadora que foi logo acolhendo-me,
apresentei-me e disse-lhe de minha proposta na casa. Depois, começou a movimentação
para o lanche, logo a seguir, fiquei no pátio, local e momento em que estava também o
grupo de 2 a 5 anos brincando junto com a recreadora e ajudada por uma cuidadora.
As crianças dividiam-se em pequenos grupos, observei grupos de meninas
brincando de casinha, um grupo se arrumou; cada menina pegou uma boneca e
disseram: vamos passear no shopping e foram saindo, a recreadora interviu, solicitando
para não se ausentar e apontou um lugar: vão passear até ali, disse ela.
Os meninos brincavam com bola e carrinhos. A recreadora sempre fazia menção
de quais brincadeiras eram de meninos e quais de meninas. Uma menina de 5 anos não
quis brincar com ninguém, possuía uma irmã mais velha e queria ficar com a irmã, que
brincava em outro espaço por pertencer ao grupo de 6 a 12 anos, mas a recreadora não
lhe permitiu brincar com a irmã porque são equipes de idade diferentes.
Ela relatou que era recém-contratada, conhecendo e adaptando- se, igual a mim.
Este grupo estava sem recreadora antes de sua chegada, porém seu trabalho era somente
no período vespertino, mas no período matutino não tinha profissional. As crianças
acordavam, faziam a rotina de higiene e alimentação e ficavam no cercado ou eram
levadas para o pátio/campo/parquinho pelos orientadores e algumas vezes por recreador
34
É um jogo de cartas criado em 1971 e muito comercializado. 35 Denominado de General, é um jogo de dados para dois ou mais jogadores.
147
de 6 a 12 anos. Todo esse processo fez-me recordar e reler a experiência de Corsaro
(2005, p. 447) ao falar sobre sua entrada, em campo:
Nos meus primeiros dias de observação, eu fiquei aturdido pelo número,
leque e pela complexidade de acontecimentos interativos que ocorriam diante
de meus olhos. No primeiro dia, como não tinha uma ideia clara do que
escrever nas minhas notas de campo, apenas olhei e tentei dar um sentido
geral às coisas. Nos dias seguintes, comecei a focalizar o que ocorria, quando
e onde na escola, e descobri uma rotina geral. Também comecei a fazer um
inventário das várias atividades de que as crianças participavam, tanto as
dirigidas pelos professores como as que elas próprias criavam. Também
aprendi aos poucos todos os nomes das crianças e, até um certo ponto,
conheci suas várias personalidades.
Vi-me no lugar desse pesquisador, fiquei muito angustiada com tanta
heterogeneidade de idades, experiências e padrões de atendimento, pois as formas de
lidar, afeto e acolhimentos saltavam diferenças de um plantão para o outro.
VISITA 07
Na sétima visita, informei aos funcionários que minha pesquisa seria com o
grupo de 2 a 5 anos, dirigi-me até o espaço dos pequenos, conversei com os cuidadores
e expliquei-lhes novamente quem eu era e o que ia fazer no lar por um período de uns 6
a 8 meses, e que minha pesquisa seria com o grupo deles.
Estava definido a escolha de meus participantes e dois critérios foram
fundamentais: a oportunidade de estar junto, porque eles não frequentam a escola
(embora tivesse crianças de 6 anos) e a idade mais homogênea. É importante incluir a
empatia e o acolhimento da recreadora, já que nos tornamos ao longo da pesquisa,
parceiras, conversávamos muito e pensávamos soluções para alguns impasses
institucionais e proposta para as crianças.
Com base nas definições de Marly Oliveira (2010) sobre universo e amostra de
pesquisa, a autora afirma que o universo significa a totalidade de pessoas que habita
uma determinada área. Nesse estudo, todas as crianças do lar e cada pesquisador, a
partir do universo, define sua amostra, que é uma representação do universo da
pesquisa, entretanto, precisa estabelecer critérios no processo de escolha.
Neste universo, a amostra probabilística pode ser por acaso ou aleatória, todos
possuem probabilidade de serem selecionados, é por meio de sorteio ou outro critério ou
148
técnica que achar viável e confiável. E amostra não probalística em que o pesquisador
define, pode ser classificada em: amostra acidental inicia-se o processo de forma
assistemática e toma-se a decisão no percurso; amostra por quotas deve ser de fato uma
réplica da população e amostras intencionais, que não tem a preocupação de
generalização em relação ao universo, decide, por exemplo, apenas duas pessoas.
Na pesquisa em questão, o processo iniciou sem ter nada claro sobre escolha de
grupo e quais sujeitos fariam parte da amostra, o processo deu início de forma
assistemática e a decisão foi tomada depois de conhecer a instituição e as crianças,
assim como seus respectivos grupos, logo, não probalística, tipo acidental.
O roteiro foi reconstruído na caminhada, repensado por várias vezes,
literalmente, achei o caminho depois que estava no campo. Na primeira visita, em início
de junho/2012 tinha um “rascunho” com base nos objetivos da pesquisa, que foi
repensado até finalmente as categorias “saltar” e emergir do cotidiano.
É importante ressaltar que houve um longo caminho de reflexão, leituras e
escolhas pessoais até chegar neste processo de “ver” categorias, rotinas e organização
da brincadeira. Contei com o apoio de leituras, minha experiência de pesquisadora,
mulher e mãe para lidar e conquistar as crianças. Outro fator importante foi minha
“paixão” desde o primeiro contato com as crianças, o desejo de estar junto e a
curiosidade de pesquisadora em compreender o universo das brincadeiras. Acredito que
a brincadeira é uma atividade em que as crianças contam sobre elas mesmas.
Sobre o papel do pesquisador, envolvimento e aproximação, estudiosos têm
buscado debater este tema nos estudos etnográficos com crianças e várias questões se
inserem neste cenário, entretanto, a tendência é consolidar a construção de uma relação
de proximidade e recusa da posição do adulto autoritário e observador distante. Por
outro lado, a dúvida persiste quanto ao menor ou maior grau de participação e
envolvimento no grupo de crianças. Na pesquisa de Borba (2005), ela aponta as
proposições de Mandel (2003), James, Jenks e Prout (1998), Fine e Sandstrom (1988) e
Corsaro (1985, 2001, 2003).
De acordo com a autora, Mandel discute o envolvimento total do pesquisador,
que adote o papel de adulto mínimo, que se torne membro do grupo e suspenda todas as
características típicas do adulto. James, Jenks e Prout questionam não o fato de ser ou
não possível para tornar-se um adulto mínimo, mas até onde isso é desejável e viável.
Existe um valor metodológico em não se tentar apagar as diferenças entre pesquisadores
149
e crianças, uma vez que enfrentando-as é possível desenvolver ferramentas e técnicas
para promover a maior participação das crianças e a simetria ética na pesquisa.
A estratégia de total envolvimento, se por um lado promove a proximidade
do pesquisador com o grupo, corre o risco, [...] de dificultar o distanciamento
necessário que o investigador deve ter para apreender as práticas sociais
produzidas pelas crianças. Impede também que o pesquisador assuma a
postura de quem deseja conhecer o que a criança pensa aprendendo com elas,
o que só é possível se ele não se colocar no lugar da criança, mas de alguém
que, em certa medida, e estrangeiro frente às formas próprias infantis de
pensar e de agir. [...] é artificial para o adulto adotar a postura de criança,
impedindo a construção de uma relação aberta e de confiança [...] refletir
sobre as diferenças [...] trazem para as relações de investigação [...] mais
informações e possibilidades do que tentar nos tribalizar” (BORBA, 2005, p.
97).
Sobre este fato de o pesquisador tribalizar, Borba explica o que Fine e
Sandstrom acrescentam: que é inviável tornar-se nativo, pois não há como os adultos se
passarem despercebidos pelas crianças, dado que a idade, o tamanho e a autoridade são
elementos que inevitavelmente intervém na relação, sobretudo quando a concepção
dominante de infância se constrói com base na distinção da criança face ao adulto;
propõem que o investigador reflita continuamente sobre essas diferenças e busque
identificar quando elas são importantes e quando são irrelevantes. Pode-se ainda, o
observador participante, assumir o papel de amigo na relação com as crianças da
pesquisa, entretanto, precisa transcender os limites da idade e da autoridade (sem negá-
los) e desenvolver uma relação de confiança e intimidade com as crianças. A chave para
ser identificado pelo grupo como amigo é expressar afeto positivo na relação com as
crianças, à ausência de autoridade e de atitudes de sanção relativamente aos seus
comportamentos. Adotar o papel de amigo implica o investigador tratar os seus
informantes com respeito e deixar claro o seu desejo de adquirir competência nos seus
mundos sociais.
Corsaro (2009, p.88) em sua experiência de pesquisador e entrada no campo,
optou pela espera das crianças interessarem-se conforme nos relata.
[...] fui até a área onde as crianças brincavam, sentei-me e esperei que elas
reagissem à minha presença. Não demorou muito. Elas começaram a me
fazer perguntas e a me chamar para suas brincadeiras e, com o passar do
tempo, me definiram como adulto atípico.
150
Corsaro usou a estratégia de chegar e sentar-se próximo das crianças e aguardar
a reação e proximidade delas, o que Borba (2005) denominou de observador periférico,
que consiste em se colocar na área de brincadeira das crianças, procurar estar sempre no
mesmo plano que elas, sentando-se no chão ou movimentando-se para acompanhar o
grupo e responder sempre que solicitado.
A opção adotada por Corsaro (2009), de se chegar devagarzinho, com atitude
de respeito ao espaço das crianças e suas brincadeiras, com paciência e aguardar ser
convidado e incluído a partir da procura das crianças, foi aos poucos consolidando
aproximação, amizade e legitimidade para estar junto com o grupo numa relação de
amigos.
Em minha opinião, o envolvimento do pesquisador com os participantes da
pesquisa envolve atributos pessoais de empatia, capacidade de interação, escuta e
sensibilidade, uma vez que os procedimentos adotados na pesquisa e a possibilidade de
sucesso possuem estreita relação com o pesquisador, sua capacidade em lidar com
crianças, saber administrar questões de apego e separação, pois a experiência denota que
é muito difícil conviver, partilhar e sonhar com um grupo num período de 6 a 8 meses
ou mais e não construir laços de afeto e amizade.
No presente estudo, as crianças tinham uma rotina em que todos os dias
dormiam após o almoço e como as visitas eram no período da tarde, muitas vezes, eu
chegava e estavam todas dormindo ou algumas. Cumprimentava os orientadores quando
eles estavam no cercado, às vezes, ficavam no dormitório, nesse horário, e saiam juntos
com as crianças quando acordavam.
Sentava-me no banco e, aos poucos, as crianças iam se aproximando, pedindo
colo, disputando afeto e eu, sempre conversando e fazendo afagos; aos poucos,
passaram a me convidar para brincar e fazer parte da rotina. A aproximação foi um
percurso pautado de abraços, afagos, disputa de atenção e diferente para cada criança
que, aos poucos, se achegavam e, às vezes, se afastavam até estabelecer uma relação de
confiança.
Por diversas vezes, anotei em meu diário “como de costume, as crianças
acordaram vieram me rodear, querer colo, mexer no meu cabelo, pegar em mim, fazer
gracejos, disputar atenção e cumprimentar-me com abraços e beijos [...]
Todas as crianças me chamavam de tia como eles se referem a todos os
funcionários na instituição, entretanto, decorridos duas semanas, percebi uns três
meninos me chamando pelo nome. Foi numa brincadeira no campo de futebol: quando
151
afastei um pouco, o garoto Toni gritou “Sonia você não vai ver a luta?” o convite era
para assistir a brincadeira de luta que este garoto estava liderando. Outras vezes, este
mesmo garoto, em vários momentos, quando eu chegava dizia “vamos brincar filha?”,
o convite era para eu ser filhinha, na casinha de boneca. Outras crianças faziam comida
para mim. na brincadeira de casinha. Exemplo, a Neia “agora vou fazer comida para
Sonia” e depois serviu para mim.
Ao estabelecer proximidade com as crianças de minha pesquisa, percebi ser
um processo diferente de outros grupos de escolas públicas ou particulares, elas são
vítimas de algum tipo de violência, abandono e negligência, vivem numa instituição
privada de ambiente familiar, na rotina, no final do dia, não tem uma casa para recebê-
los, não vislumbram um acolhimento quando dormem, acordam e vivem sob a tensão da
possibilidade de adoção ou retorno para família. Na verdade, vivem num “lar” – que é
uma instituição com normas rígidas e seus cuidadores têm vínculos profissionais. Isso
não impede, é claro, deles darem carinho, atenção e acolhimento, entretanto, não é um
processo igual para todas as crianças. Exemplo, algumas cuidadoras não ofereciam
água quando as crianças acordavam, conforme anotei diversas vezes no diário:
As crianças acordam e querem tomar água, mas neste plantão algumas
orientadoras não oferecem água, informa para as crianças que está perto da
hora do lanche e vão tomar suco, logo as crianças que estão com sede e
querem tomar água começam a chorar, vira aquele tumulto, surgem as
reclamações, e assim mandam todas se sentarem no banco.
Considerei a entrada em campo e aproximação incomuns. Conviver com
crianças que moram numa instituição, que no final da tarde não tem a esperança de
voltar para casa e serem acolhidas é muito diferente de uma escola que no final do dia
vão para seus familiares. A forma de estabelecer vínculos é diferente porque eles estão
sempre à procura de carinho e atenção, um contexto que parecia que eu nunca faria
parte da paisagem. Todos os dias quando eu chegava eles faziam uma festa, ficavam
eufóricos e inquietos, fatos este que incomodavam alguns dos cuidadores.
De acordo com uma técnica em conversa informal: “as crianças brigam muito
e ficam todo tempo pegando nas pessoas, são muito carentes”. De fato, todos os dias
quando eu chegava vinham se enroscar em mim, querer colo, mexer no meu cabelo,
fazer gracejos para disputar atenção; com o tempo surgiram abraços, beijos e convite
para brincar como filha, irmã e assim fui incluída nas brincadeiras.
152
Durante o tempo da pesquisa, existiu certa mudança na configuração do grupo
por conta de entrada de novas crianças e saída de outras para reintegração familiar. Isso
exigia conhecimento e aproximação em todas as visitas, uma relação que não é
estabelecida e pronta, que necessitou ser construída e cultivada durante todo o processo
da coleta de dados.
Corsaro (2005) relata que em uma de suas pesquisas, nos primeiros dias, os
resultados não foram encorajadores, além de alguns sorrisos e olhares perplexos, as
crianças o ignoravam. Ao contrário de meu grupo que estava constantemente disposto a
contatos e afagos, talvez decorrendo do fato de ficar num cercado preso e sempre tendo
a expectativa de que vão sair para recreação ou qualquer atividade fora do espaço
circunscrito para eles.
Nesta conquista diária de proximidade, a todo o momento ia delimitando minha
função, por duas razões: a chegada de crianças novas e os mais novos que, talvez, não
guardassem esta informação. Em várias ocasiões que eles me pediam água ou qualquer
outra necessidade eu sugeria pedir para os cuidadores.
Em relação à resolução de conflitos, procurava não ter voz sobre essas questões
e deixá-los sempre à vontade para não controlar seus comportamentos e assim não ser
confundida com o papel dos cuidadores.
As vezes que fiz intervenções foi por conta da integridade física, para que não
se machucassem numa brincadeira, sendo outra questão observada, agir com
tranquilidade frente às transgressões. O máximo que fazia era mediar um pouco para
evitar brigas, principalmente na ausência dos cuidadores.
4.6 Estratégias de pesquisa: observações, entrevistas, anotações de campo, vídeos
audiovisuais e apontamentos
A pesquisa teve início com observações no espaço físico e tudo que ocorre nos
entornos. Nos primeiros contatos, fiquei perplexa pelo número de crianças e a
complexidade da rotina que se descortinava diferente em cada dia e plantão. Aos poucos
fui-me focando no grupo eleito e na rotina existente, sempre com o diário, fazendo
anotações e/ou reflexões; com o passar dos dias levei minha câmera para tirar fotos e na
medida do possível, filmar brincadeiras, além de usar um gravador.
A pesquisa etnográfica investiga uma multiplicidade de coisas num mesmo
espaço, se consolida por meio do trabalho de campo, que se estrutura pelo uso de várias
153
técnicas e estratégias para a coleta de dados; neste caso, uso de observação participante,
filmagem, gravações, anotações e entrevistas semiestruturadas, enfim, nas brincadeiras
das crianças foram registradas as falas em gravação; anotações no diário; fotos de
algumas situações e brincadeiras; filmagens; expressões dos corpos capturados nos
registros fotográficos; entrevistas com crianças maiores e uma amostra dos cuidadores.
Para tanto, anotei 57 visitas e descrevi 70 episódios36
, sendo 21 no cercado, 13 na
brinquedoteca, 15 no campo de futebol, 15 no parquinho/pátio e 06 no cinema.
As crianças foram observadas em pequenos grupos, nunca era possível abarcar
o grupo inteiro, por conta da quantidade de crianças e enquanto acontecia, a observação
oscilou entre 30 a 40 crianças, no espaço reservado para elas, e também, existia a
tendência de separar os meninos das meninas na recreação. Por este motivo, várias
brincadeiras são descritas somente das meninas ou somente dos meninos e, algumas
vezes, juntos.
Referente a câmera, durante toda a pesquisa sempre foi um objeto de
curiosidade, desejo e disputa entre as crianças e pouquíssimas vezes deixei com alguma
criança. Era muito difícil negociar para que cada uma ficasse um tempo com a câmera.
Não existe nada de mídia ou tecnologia para as crianças, a televisão que fica no cercado
durante toda a pesquisa, nunca a vi ligada em programas infantis, somente passava
vídeos repetidos que as crianças não tinham muito interesse, talvez desta ausência de
brinquedos/lazer que envolve tecnologias decorra o interesse demasiado na câmera.
Outra questão do uso da câmera envolve a totalidade e abrangência do ambiente,
por exemplo, quando eu estava na casinha de boneca, enquanto filmava uma
brincadeira, perdia a oportunidade de ver, anotar e filmar outras, uma vez que as
crianças, naturalmente, se agrupam por afinidades e organizam grupos afins de
brincadeiras, eu sempre tinha que escolher qual brincadeira filmar, por isso optava por
aquela em que o local permitia melhor filmagens, tendo o cuidado, também, para não
criar escolhas e preferências e filmar continuamente as mesmas crianças.
O processo de usar a filmadora nas brincadeiras era muito difícil nas atividades
em que eu era convidada para participar, mas para suprir isso eu usava um gravador e
bloco de anotações. Muitas vezes, para eu descrever uma brincadeira, precisava desses
três recursos concomitantes, porém alguns arranjos foram surgindo, por exemplo, o
gravador, eu o deixava numa bolsinha com um cordão e pedia para uma criança pôr no
36
Não foram usados todos os episódios neste trabalho.
154
pescoço para gravar as falas na brincadeira de casinha, desse modo, com o tempo, eu
identificava a voz das crianças quando as ouvia.
As brincadeiras observadas eram atividades livres, proposta pela recreadora e,
algumas vezes, ela me pedia para ir à brinquedoteca, ao campo de futebol ou ao
parquinho com as crianças, momentos estes em que ficavam livres e eu aproveitava para
anotar as brincadeiras. A iniciação, organização e término das brincadeiras não eram
coordenadas por mim, seguia o estabelecido pela instituição, eu apenas me ajustava a
elas.
Eram feitas observações participantes com vídeo e gravações que foram
transcritas e analisadas, apontamentos diário de campo, buscando-se explorar toda a
complexidade, e respeitando-se, tanto quanto possível, a forma como originalmente se
desenvolveram as brincadeiras.
No estudo de caso etnográfico, o pesquisador está presente no tipo de
informação que recolhe e nas conclusões, igualmente, não há modo de realizar a
observação dos contextos de ação que não seja sempre participante, pois a técnica da
observação participante se realiza por meio do contato direto do pesquisador com o
fenômeno estudado, com a finalidade de obter informações sobre a realidade das
pessoas em seus próprios contextos.
Valladares (2007)37
discute os dez mandamentos da observação participante,
dos quais alguns incidem diretamente em minha experiência que são:
a) A observação participante exige processo longo, uma vez que, para se
compreender a evolução do comportamento de pessoas e de grupos, é necessário
observá-los por um longo período e não num único momento.
b) Supõe a interação pesquisador/pesquisado, entretanto, por mais que se
pense inserido, sobre ele paira sempre a curiosidade quando não a desconfiança.
c) O pesquisador deve mostrar-se diferente do grupo pesquisado, seu papel de
pessoa de fora terá que ser afirmado e reafirmado, não deve enganar os outros, nem a si
próprio, aprendi que as pessoas não esperavam que eu fosse igual a elas, abandonei,
portanto, meus esforços de imersão total.
d) É importante ter intermediário que abra as portas e dissipe as dúvidas junto
às pessoas da localidade e com o tempo possa colaborador com a pesquisa.
37
Com base no livro de William Foote WHYTE. Sociedade de esquina: a estrutura social de uma área
urbana pobre e degradada. Tradução de Maria Lucia de Oliveira. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2005.
155
e) O pesquisador é um observador que está sendo todo o tempo observado.
f) Implica saber ouvir, escutar, ver, fazer uso de todos os sentidos, aprender
quando perguntar e quando não perguntar, fazer perguntas na hora certa, as entrevistas
formais são muitas vezes desnecessárias e com o tempo os dados podem vir ao
pesquisador sem que ele faça qualquer esforço para obtê-los.
g) Desenvolver uma rotina de trabalho é fundamental.
h) O pesquisador deve aprender com os erros e deve tirar proveito deles,
refletir sobre o porquê de uma recusa, o porquê de um desacerto, o porquê de um
silêncio.
Alguns pontos destacados por Valladares (2007) estiveram presentes nesta
investigação e como a interação pesquisador/pesquisado e a confiança que se deve
conquistar foi uma questão muito difícil com os profissionais da instituição, minha
presença no cenário complexo das relações sociais marcadas de autoritarismo, pouco
diálogo e controle em suas interações com as crianças, foi fácil cultivar a interpretação
de que minhas anotações seriam uma avaliação das práticas de cuidados e tarefas
cotidianas com as crianças.
Somente com o tempo e a convivência pude dissipar esta ideia para alguns,
pois nem todos ao longo da pesquisa se sentiram tranquilos com minha presença,
principalmente os profissionais de vínculo empregatício de contrato temporário. Por
outro lado, alguns que possuíam estabilidade por intermédio de concurso público foram
com o tempo compreensivos, intermediários e colaboradores, os de contratos
temporários, pouco foram capazes de contribuir com a disponibilidade e sinceridade que
a proposta almejava, nos nossos contatos.
Frente a essas considerações, optei por entrevistar entre aqueles que cuidavam
diretamente das crianças: apenas os concursados, mas, no final, entrevistei o orientador
de contrato temporário pela sua própria vontade e disponibilidade em participar. No
total, fiz 4 (quatro) entrevistas, num universo de dois plantões que sempre tinham entre
4 e 5 orientadores 38
com o uso de um roteiro, mas que não foi seguido de modo rígido e
nem todos os quesitos respondidos, isso pelo fato de que a conversa foi bastante livre e
tranquila.
Outra questão fundamental em que o autor se refere é que não haverá imersão
total. O pesquisador sempre terá que ser afirmado e reafirmado seu papel para si e para
38
Existiam homens nas equipes.
156
os outros, sendo, portanto, alguém de fora. Percebi, em minha experiência, que as
crianças me viam como uma “tia” das brincadeiras e interagiam comigo com muita
satisfação, inclusive, iam apresentando-me para as crianças novas, quando eu chegava
elas diziam, tia chegou fulano na casa. Por outro lado, em relação à instituição eu
sempre me sentia observada todo o tempo, acredito que talvez decorra da forma que a
instituição se vê frente, por exemplo, ao seu papel de prestar contas para a Justiça de
tudo que ocorre na instituição em relação à rotina e as pessoas envolvidas.
Nascimento, Lacaz e Filho (2010) descrevem, na sua pesquisa, que os
entrevistados expressaram o quanto se sentiam ameaçados pelo Ministério Público
(MP), que age de forma bastante punitiva sobre os técnicos e educadores, em constante
vigilância de suas práticas, numa atuação punitiva e repressiva.
Em função disso, os profissionais de forma encadeada, incorporam esta lógica
da punição e ameaça em suas relações com as crianças e vão construindo um cotidiano
autoritário e ameaçador no interior da instituição. Infelizmente, aí reside a incoerência
dessas relações, ao mesmo tempo em que a própria justiça é ameaçadora e punitiva,
pretende punir aqueles que reproduzem o que ela mesma “ensina”. É por conta dessas
práticas que os profissionais têm dificuldade em se relacionar de forma autêntica com
quem se aproxima do grupo e a instituição está sempre na vigilância de que algo possa
sair do controle e serem também punidos.
Nas entrevistas com as crianças, concordando com Valladares (2007) percebi
que as formais são muitas vezes desnecessárias e com o tempo os dados podem vir ao
pesquisador sem que ele faça qualquer esforço para obtê-los, e foi assim que meu diário
de campo tornou-se meu companheiro inseparável, porque as respostas que eu queria de
meu roteiro de uma entrevista semiestruturada foram sendo desveladas no cotidiano,
conversando, brincando e perguntando de modo informal, sendo que, de forma
sistemática, fiz doze entrevistas com as crianças maiores porque apresentaram relato
verbal mais elaborado para construção de narrativas, percepção do cotidiano e de sua
experiência.
A entrevista com crianças é pouco utilizada em função da visão de criança
como incapaz de falar sobre suas preferências, concepções, seu cotidiano e experiência
de vida, e também por conta das pesquisas sobre elas. Hoje, conforme nos ensina a SI a
visão está se construindo em outras bases epistemológicas, um conhecimento mais
acurado, diferente, que questiona a ausência da voz e participação das crianças nas
investigações.
157
Somado essas limitações da visão de criança e pesquisa sobre elas, vamos
acrescentar ainda que, às vezes, elas considerem as perguntas elaboradas difíceis e
podem não gostar muito de respondê-las naquele momento em que estão sendo
perguntadas, ou mesmo comparar a entrevista como mais um trabalho escolar e assim
contar histórias fantásticas.
No meu trabalho, deparei com essa situação: não de mais um trabalho escolar,
mas das crianças confundirem minha entrevista com os atendimentos psicossociais. Este
fato ocorrido me fez pensar e refletir muito, chegando à conclusão de que as conversas
amáveis, pelas quais perpassa uma voz autônoma e livre, eram de muito mais valia.
4.7 Procedimentos e critérios para analisar e compreender os dados
A pesquisa não abarcou a análise total dos espaços no interior da instituição.
Levou-se em conta as brincadeiras, sempre no período vespertino, do espaço no cercado
(espaço de convivência das crianças), brincadeiras na brinquedoteca, na sala do cinema,
no pátio/parquinho e campo de futebol, este último menos vezes, em função do calor,
tempo quente e seco e que no período vespertino era pouco eleito para a recreação. Por
outro lado, constatei que era o local de maior fluência das brincadeiras, interação e
comunicação entre as crianças, talvez pelo fato de terem mais liberdade neste ambiente.
De acordo com Corsaro (2011, p. 59), as pesquisas com crianças devem ser
interpretadas com prudência, dadas as exigências especiais enfrentadas pelos
pesquisadores, na utilização dos métodos.
Para fazer a analise dos dados levei em conta as leituras Bardin39
, as
orientações de Bogdan, R. & Biklen e Sarmento40
sobre pesquisa qualitativa e minha
experiência de pesquisadora, mas no final fiz trabalho que não é uma analise de
conteúdo, uma tarefa única deste trabalho que servirão para outras pesquisas, no
primeiro momento, foi realizada uma organização prévia de todo o material, incluindo
muitas leituras nos apontamentos feitos das observações, a transcrição inicialmente na
39 BARDIN, L. Análise de Conteúdo. Lisboa, Portugal; Edições 70, LDA, 2009. 40 BOGDAN, R. & BIKLEN, S. Investigação qualitativa em educação. Portugal: Porto Editora, 1994;
SARMENTO, Manuel Jacinto. O estudo de caso etnográfico em educação. In ZAGO, Nadir;
CARVALHO, Marília Pinto de; VILELA, Rita Amélia Teixeira (Org.) Itinerários de pesquisa:
perspectivas qualitativas em sociologia da educação. 2ed. Rio de Janeiro, Lamparina, 2011.
158
íntegra das brincadeiras gravadas e filmadas, com muitas falas confirmadas pela escuta
no gravador.
As filmagens em vídeo foram transcritas e transformadas em episódios que
foram eleitos como a unidade principal de observação e de análise das situações, e
assim identificar padrões, rotinas de comportamentos das crianças, temas, conteúdo,
interações e aspectos de organização e participação nas brincadeiras.
A transcrição das entrevistas das crianças e dos orientadores envolveu várias
leituras no conjunto e também, separadamente, para que pudesse entender o conteúdo,
agrupando em temas e tendências e conotações dadas. Igualmente, organizadas fazendo
uma assepsia dos vícios de linguagem, típicos da oralidade, que dificultavam a leitura,
mas sem substituição dos termos nem dos sentidos “dados” pelos sujeitos e pelas
brincadeiras.
As quatro entrevistas com as orientadoras foram feitas individualmente e
gravadas. Após transcrição, levei as entrevistas para os orientadores lerem e ratificarem
as suas falas, embora, neste momento, de volta ao sujeito, corre-se o risco de fazer uma
limpeza no texto, e talvez isso seja negativo. Na hora da entrevista, tudo vai fluindo
naturalmente, mas ao lerem o que relataram oralmente, pode acontecer de
racionalizarem e tenderem-se a mudar algumas falas. Exemplo, uma orientadora disse
que observava muito as crianças brincarem com os castigos que alguns orientadores dão
para as crianças, quando leu sua entrevista pediu para trocar a palavra castigo por
disciplina, alegando que a palavra castigo era muito pesada, no entanto, o fenômeno, a
ação, era o mesmo.
As descrições das brincadeiras foram transformadas em episódios41
enumerados e organizados na sequência por data e número da visita, transcritos em
textos que buscam registrar a brincadeira. Na descrição dos episódios, as falas das
crianças foram transcritas em itálico para diferenciar da fala da pesquisadora
transcrevendo a situação.
Sobre os episódios, Corsaro sinaliza que eles encerram quando termina a
movimentação física dos participantes. No presente estudo, observei que um episódio
pode encerrar naquele momento como espaço físico e interativo, porém continuar na
41
[...] Episódios interativos são aquelas sequências de comportamentos que começam com o
reconhecimento da presença de dois ou mais participantes em uma área ecológica e englobam as suas
tentativas explicitas de chegarem a um significado partilhado de uma atividade emergente ou em curso.
Os episódios terminam com a movimentação física dos participantes para fora da área, resultando na
finalização da atividade originalmente iniciada. (CORSARO, 1985, p.24, apud BORBA, 2005, p. 106)
159
mente da criança e pronto para retomar. Presenciei e vivenciei isso numa brincadeira de
casinha, esta foi encerrada e fui embora. Quando cheguei na próxima visita, fui recebida
por um menino, líder da brincadeira, que representava o pai no episódio e eu, a filha.
Quando entrei no portão ele disse: oi filha e já me levando para dar continuidade à
brincadeira interrompida na visita anterior. Por isso, penso que a finalização da
atividade nem sempre ocorre com o fim da brincadeira, no mundo externo.
As anotações feitas no diário sobre as brincadeiras e fatos que tenham conexão
com a pesquisa, exemplo, as instalações físicas, que possuem estreita relação com o
planejamento da rotina de recreação foram levadas em conta em todo processo de
inferências e indução.
Existem citações literais das transcrições de filmagens e gravações,
transliterações do diário de campo de ações vistas e falas ouvidas na instituição, quando,
dadas as circunstâncias, não puderam ser filmadas e gravadas, sendo necessário fazer
anotações pontuais, transformadas em texto. De qualquer modo, existe um esforço e
compromisso de ser fiel na transmissão destas falas e situações exatamente como foram
ouvidas e observadas, porque este trabalho fez um esforço metodológico de trazer à luz
um contexto pouco privilegiado pelo campo da pesquisa, pois são crianças silenciadas à
espera de um desfecho de suas vidas.
160
CAPÍTULO 5
EU VI, BRINQUEI, CONHECI, PARTICIPEI E ANOTEI AS BRINCADEIRAS
E EXPERIÊNCIAS NO ESPAÇO INSTITUCIONAL
Ao brincar com a criança, o adulto está brincando
consigo mesmo.
Carlos Drummond de Andrade
161
5.1. As brincadeiras observadas que falam sobre e com as crianças e a instituição
Nesta seção, serão descritas as categorias “saltadas” no presente estudo
ancoradas na observação e todos os recursos utilizados na coleta de dados. Isso
possibilitou fazer inferências e interpretações, numa análise cuidadosa dos dados,
triangulando informações anotadas, gravadas, filmadas, perguntadas e observadas.
Procurei levar em conta as brincadeiras e o contexto das crianças, dando
atenção especial áqueles temas que foram sendo repetidos nas falas e encenações
corroborados com observações e perguntas, muitas vezes com as crianças e com a
amostra de orientadores entrevistados.
Penso que o inédito na pesquisa é quando consulto minhas experiências,
vivências e trago o meu olhar sobre o objeto. Este pensamento e os objetivos propostos
vão me sustentar para falar de coisas que vi, vivi, elaborei e construí minhas inferências
e significados, no presente estudo.
Nessa ciranda de ir e vir semanalmente, brinquei, anotei e me diverti com as
crianças. Algumas categorias e premissas foram desveladas na organização e
funcionamento das brincadeiras que serão discorridas, ao mesmo tempo, sobre e com as
crianças, igualmente da instituição: seu lidar, olhar e intervir com elas no espaço de
convivência.
Inicio com as brincadeiras que as crianças inventam no cercado para passar o
tempo; o espaço de moradia e convivência delas durante a investigação; que foi descrito
em detalhe e com reflexões no capítulo anterior.
As crianças acordavam e as vezes o cuidador solicitava que elas sentassem nos
bancos para aguardarem quietas o lanche das 15h, isso era uma rotina para alguns
plantões, outros deixam elas livres, ou seja, isso não era uma postura unânime dos
funcionários, alguns as deixavam à vontade. Entretanto, outros não serviam nem água
para as crianças com a explicação de que logo seria servido o lanche e tomaria suco.
Várias vezes presenciei conflitos por conta do desejo de tomar água ser negado.
As crianças acordavam e quando não ficavam sentadas nos bancos, andavam à
toa de um lado para outro, deitavam no chão frente à televisão se espreguiçavam,
algumas querendo aconchego. Ávidas por brincadeiras, como não existiam brinquedos,
na maioria das vezes, inventavam brincadeiras com o corpo. Logo, percebi que a rotina
da casa era muito diferente de um plantão para o outro, o processo de brincar
implicitamente ligado às regras da instituição é diferente em cada plantão.
162
Quando as crianças estão soltas no pátio/parquinho ficam muito eufóricas e
procuram brincar o tempo todo e somente participavam da brincadeira quem pedia e se
fosse aceito e autorizado pelos demais. Uma brincadeira muito recorrente no cercado
era a provocação, com o sentido de desafiar e incitar os colegas para brincar. A seguir
três episódios sobre provocação.
Episódio 45. A BOLACHA
Data: 12/09/2012
Visita: 36
Local: Cercado
A Bela acordou e trouxe na mão um pacote de bolacha com uma única bolacha e ficou fazendo
graça e provocando os outros. Uma orientadora a repreendeu e disse: se você não comer logo vou
jogar no lixo, ela comeu quando quis, depois de Arlindo chorar porque queria, ela abriu a
bolacha que era recheada fez “fita”, lambeu e depois comeu. Bela se divertiu muito com isso e
demonstrou enorme satisfação em incitar e ver os colegas desejarem sua única bolacha do
pacote.
Episódio 46. VOCÊ É FEIA
Data: 12/09/2012
Visita: 36
Local: Cercado
As crianças estavam no cercado e não tinha brinquedos, nenhuma atividade. Lala olhou para
Letycia e disse: feia, bruxa, você é feia. Letycia retrucou dizendo que feia era ela e ficou um
tempão nessa brincadeira de provocação, cada vez que dizia era um desafio, Letycia corria atrás
de Lala para bater, brincadeira de pega-pega, de longe pareciam que estavam brigando, mas na
verdade era uma forma lúdica de se provocarem e desafiarem para brincar.
Episódio 55. VOCÊ É FEIA!
Data: 17/10/2012
Visita: 47
Local: Cercado Lala II
42 virou para Lala I e disse: você é feia, provocando e desafiando a colega, esta correu logo
atrás e começou a perseguição em volta dos bancos correndo. Lala I alcançou a colega e não
conseguiu bater, nessa hora a colega sem querer bateu no olho dela, como forma de revanche
Lala I jogou o chinelo que ela supôs ser da colega, para fora do cercado e se deu por vingada,
mas a outra riu e disse: esse não era meu chinelo era de Bela. Logo após a brincadeira, indaguei
sobre a brincadeira para as duas: quem começou a brincadeira? A Lala II: eu chamei ela de feia
e puxei o cabelo dela e riu. Lala I : eu tava correndo atrás dela no banco [...] ela estava batendo
nos outros (em mim) , por isso eu joguei lá, joguei o chinelo dela lá, porque ela bateu no meu
olho, ela colocou o dedo no meu olho [...]
Sem brinquedos e atividades as crianças inventam e criam as provocações
desdobrando-se em corridas, pega-pega e perseguições que são muito atraentes para os
pequenos. É preciso levar em conta que na ausência dos brinquedos usam o corpo com
mais frequência.
42
As meninas tinham o mesmo nome, optei pelo mesmo codinome.
163
Neste espaço, as crianças reinventam-se para brincar, por exemplo, quando
acordavam, um “brinquedo” recorrente das crianças era usar os chinelos, que virava
caminhãozinho no chão, na parede e, até mesmo, atirar para o alto.
Outras invenções são: brincar de empurrar a cadeira de rodas com o colega
dentro, fazem a cadeira de carrinho, subir na grade, fazer algazarras na grade mexendo
com quem estava fora do cercado, se jogar no chão e fingir de chorar fazendo birra.
Esses comportamentos resultavam em brigas e conflitos entre eles e os orientadores.
5.1.1 A separação nas brincadeiras de meninos e meninas
No primeiro encontro de apresentação na instituição, entre as trocas de
informações, uma eu anotei em negrito porque se referia diretamente às crianças. A
funcionária explicou-me que em relação a elas existia uma rotina com horários
definidos para todas as atividades e quanto às brincadeiras, as meninas faziam
atividades separadas dos meninos.
Essa informação me fez pensar que as crianças crescem, libertam-se das fraldas
e aumenta a curiosidade pelos seus órgãos genitais que ficam mais expostos, podem
tocá-los e percebem que é bom acariciar certas partes do corpo. Neste processo, é
inevitável constatar que meninos e meninas são diferentes, aparece a curiosidade em ver
e, às vezes, tocar o corpo dos amigos e nessas experiências se descobre a si e os outros.
O resultado desse desenvolvimento e curiosidade infantil reforça a separação entre
meninos e meninas.
Os momentos em que observei e participei das brincadeiras na instituição, esta
separação ocorreu várias vezes, atravessadas com preocupações sobre a sexualidade das
crianças, sendo recorrente o tema na fala e atividades organizadas pelos profissionais e
orientadores das crianças. O exemplo abaixo mostra essa ocorrência, conforme
anotações no diário de campo, no pátio:
Algumas meninas brincavam de casinha, cada uma pegou uma boneca, e
disseram: vamos passear no shopping e foram saindo, a recreadora chamou
alto e disse: não saiam daqui e apontou um lugar que poderiam passear, os
meninos com bola e carrinhos e a recreadora sempre fazia menção de quais
brincadeiras eram de meninos e quais de meninas. (visita 04 em 13/06/2012)
Vejamos a descrição de episódios:
164
Episódio 22. Brincadeira de casinha: meninos separados de meninas
Data: 13/07/2012
Visita: 18
Local: Campo
Foram brincar as meninas e os meninos no campo [...] um orientador repetiu várias vezes:
meninos separados das meninas, imediatamente cinco meninas começaram a varrer [...] percebi
que para brincar de casinha transgrediram a norma e brincaram juntos alguns grupos.
Episódio 30. Mamãe e filhinha
Data: 06/08/2012
Visita: 26
Local: Cinema
As meninas brincavam de casinha [...] perguntei: de que vocês estão brincando? Vivi
respondeu: mamãe e filhinha, tem duas filhinhas com franjas e trancinhas (mostrou as duas
bonecas pra mim) existiam várias bonecas enfileiradas no chão por tamanho [...] todas
concentradas, com interação [...] um menino aproximou-se da brincadeira das meninas, veio a
orientadora e tirou-o, dizendo: as meninas estão brincando aí de boneca [...]
Episódio 34. Vamos brincar filha?
Data: 13/08/2012
Visita: 29
Local: Cercado
[...] Gerson disse pra mim: vamos brincar de filha? Levou-me para um canto para brincar [...] o
Toni tomou a liderança e disse: você é filha, deixa a bebê quieta, falou para os colegas que se
juntavam em volta, depois fomos passear [...] Letycia quis entrar na brincadeira, Toni disse: ela
não é ninguém, ela não tá brincando, e completou: ela quer brincar de casinha só pra brincar
de namorado [...] Toni se manteve ao meu lado e pediu para segurar nele [...] chegamos ele
ordenou: dorme!!! Depois de um tempo, disse: tia, hoje você não vai lanchar, você teimou
comigo, você não quer falar o que você fazeu (fez) o que você fazeu (fez)? hoje é refrigerante e
bolo [...] Eu disse: eu não vou comer? Ele disse: vai comer só se você falar, fala que você
bagunçou [....] falou coisa de namoro, tem mais uma coisa além do refri e bolo, tem skiny,
mas eu vou pensar se você vai comer, porque você falou um monte de coisa de bagunça pra
mim. E ficou me questionando sobre as bagunças, depois disse: então levanta e vem lanchar. [...]
Episódio 35 - Isso é brincadeira de menina
Data: 13/08/2012
Visita: 29
Local: Pátio
[...] Ilson, Arlindo e Noilson estavam brincando de casinha no pátio. Neste momento, chegaram
algumas meninas e eles mudaram de lugar porque elas estavam incomodando, depois passaram à
tarde nessa brincadeira, fugindo de quem queria fazer parte da brincadeira. Durante essa
brincadeira, logo no início, a Bela se aproximou dos meninos e disse: isso é coisa de menina, e
no final, enquanto faziam comida com uma vazilhinha de plástico cor de rosa, um recreador
passou e também disse: isso é brincadeira de menina, porque estavam brincando de casinha e
com brinquedos rosa, mas os meninos não deram atenção para o comentário e continuaram a
brincar.
A nota do diário de campo e os episódios apontam que todos da instituição
fazem menção a esta questão: a gestão quando reporta sobre a separação como algo
importante; os recreadores que reafirmam quando fazem menção quais brincadeiras são
de cada sexo e a interferência verbal; isso é brincadeira de menina na brincadeira dos
165
meninos. Igualmente, quando separam as crianças ou interferem solicitando que não
brinquem juntos. Quando percebi essa preocupação, incluí na entrevista com os
orientadores, conforme vamos retomar estes depoimentos, abaixo:
[...] Aqui sempre teve essa separação de meninos e meninas, eu acho
errado, eles ficam juntos tempo todo, dormem e comem juntos, porque na
hora de brincar tem que separar? Acho que a proibição existe porque
acreditam que eles vão ficar brincando de papai e mamãe (orientadora 01)
[...] e deixar os meninos mostrar o pipi para as meninas e a menina do
mesmo jeito, então pra gente procurar não deixar que ocorra esse tipo de
relacionamento de meninos com meninas, (a gente separa) apesar disso ser
um conhecimento pra eles, mas nós não podemos deixar, porque qualquer
coisa que aconteça nós somos responsáveis [...] dizem que à noite as
crianças entram debaixo da cama (trabalha de plantão do dia) depois
ouvimos fulano estava pegando no pipi de fulano, ou a menina pegando na
xereca da outra [...] temos que ficar cuidando para que não aconteça [...]
(orientadora 02)
[...] na brinquedoteca, quando levam os meninos não levam as meninas [...]
quanto separar os meninos das meninas é uma coisa também que eu não sei
o porquê, pra mim mais interessante é a alegria deles [...] isso não é uma
coisa aceitável na casa, na brinquedoteca, pois quando levam os meninos
não levam as meninas. (orientadora 03)
Uma coisa que me chamou atenção, é que existe uma proibição dos meninos
brincarem de casinha com as meninas, é tudo separado [...] eu acho que isso
já é um preconceito, porque não pode brincar com os meninos, nas
brincadeiras delas de casa, de mamãe e filhinha, não vai ter papai? Então no
caso, se eles fossem brincar e os meninos participassem seria o pai, mas o
pessoal acha que os guris não podem brincar, [...] as brincadeiras sempre
ficam somente mãe e filha, [...] quando comecei a trabalhar já tinha essa
orientação da separação, [...] eu acho que deveria brincar, por que não?
Eles deviam participar, faz parte de nossa vida real [..] agora tudo vai ser
separado? Os meninos não podem ficar com as meninas, hoje em dia não
tem futebol feminino? (orientadora 04)
As crianças assimilam as prescrições da instituição e vivem na brincadeira,
exemplo de Toni, que trouxe à tona que a colega queria brincar de namoro: ela quer
brincar de casinha só pra brincar de namorado, uma brincadeira proibida.
Na entrevista com a amostra de crianças, este tema flui sem ser questionado, o
que pressupõe ser preocupação não somente dos orientadores, mas igualmente das
crianças, que sentem receio de brincar e falar sobre isso; por outro lado, é uma
brincadeira recorrente entre crianças brincar de namoro e casamento, penso que não
seria diferente para este grupo. Conforme relato anterior é uma atividade proibida na
instituição por acreditar que as crianças podem ter envolvimentos afetivos, exemplo da
166
fala da orientadora: a gente procura não deixar que ocorra esse tipo de relacionamento
de meninos com meninas.
Essa forma de acreditar vai de encontro à idade de 2 a 5/6 anos, visto que nesta
fase da vida, eles querem saber sobre o corpo e as diferenças anatômicas, como
acontece o namoro entre adultos, como eles nascem, coerente com a faixa etária. Como
eles vivem numa instituição sem as referências de uma família que lhes possa
possibilitar esse conhecimento, eles buscam conhecer-se nas brincadeiras entre eles.
Na pesquisa de Borba (2005), brincar de casamento entre crianças é uma ação
recorrente nas brincadeiras, o que pode tornar diferente é a forma de intervir e lidar da
instituição. Neste estudo, as intervenções são carregadas de estereótipos e preconceitos
de nossa história cultural de que precisa separar as meninas dos meninos por questões
de cuidados com a sexualidade e “pureza das meninas”. Com base nessas crenças da
“importância” da separação, assisti muitas vezes as crianças serem impostas a brincarem
separadas.
Em entrevista com as crianças, perguntei-lhes sobre lugares preferidos para
brincar, três crianças mudaram o foco e responderam:
No mato não pode (Binho, 4 anos)
Casinha de boneca não pode brincar (Levi, 5 anos)
Brincadeiras que não pode é brincar de namorado, correr na piscina, nos
passeios, as meninas não podem brincar de namolado (Namorado). Meninos
não pode namorar igual as meninas. (Lia, 5anos)
A preocupação em separar por sexo é muito forte na rotina, até excluí algumas
crianças de brincar por conta disso, além disso, reforça no imaginário da criança sobre o
tema e desperta mais curiosidades sobre a sexualidade.
É necessário levar em conta de que essas prescrições não são exclusivas da
instituição deste estudo. A pesquisa de Finco (2003) sobre interações entre gênero de
um grupo de crianças, na educação infantil, destaca que na forma de organização
institucional, existe uma intencionalidade pedagógica que tem no sexo um importante
critério para a organização e para os usos dos tempos e dos espaços.
Este critério é muito evidente em várias atividades lúdicas, organizadas para as
crianças na instituição em tela, igualmente reforçado com intervenções nas brincadeiras.
Este outro episódio, descrito anteriormente, deixa isso muito evidente.
167
Episódio 48. Os meninos na brinquedoteca
Data: 14/09/2012
Visita: 37
Local: Brinquedoteca
Na brinquedoteca foram direto para uma casinha, considerada dos meninos, não existem
instrumentos de cozinha nessa casinha, somente musicais e outros brinquedos, cada um pegou
um instrumento, gaita, violão, flauta, etc; e aqueles que não sobrou diziam, tia e eu!! Oh tia! [...]
Karlos foi para a casinha de bonecas considerada das meninas, Arlindo e Alexandre foram
juntos. Alex, rindo, gritou: papa e pegou uma panelinha mostrou pra mim e disse, olha aqui
comida, ficou gritando, colher, colher, colher, procurando para fazer comida. Karlos tinha saído
da casinha voltou e foi logo dizendo para Arlindo, não bagunça, não bagunça Arlindo [...].
Depois que os meninos entraram na casinha considerada das meninas, o orientador ficou todo o
tempo, pedindo para saírem, reforçava quais eram os brinquedos dos meninos e quais das
meninas, e, também, algumas cores, exemplo, rosa; quando um menino pegava alguma coisa
rosa ele dizia: é de menina e como não conseguiu convencê-los, foi tirar os meninos da casinha
das meninas, os meninos resistiram e ele desistiu.
Percebi que, mesmo frente a essa forte orientação e tentativa de controle, as
crianças encontram formas para organizar grupos e brincar juntos meninos e meninas43
,
conforme outros episódios em que brincam de família com ambos os pais representados.
Na pesquisa de Finco (2010), ambos os sexos encontram brechas no
gerenciamento do dia a dia e criam estratégias inteligentes para alcançar seus desejos de
brincarem juntos.
Seria importante que essa resistência das crianças de terem de brincar separadas
aliadas ao desejo de estarem juntas fosse capaz de apontarem outras formas de atuação,
outros desafios na instituição. Este trabalho indica a necessidade de ações com olhar
mais atento e compreensão do processo lúdico ofertado às crianças.
No mundo atual, não existe, não deveria existir espaço para direcionar as
práticas sociais e educativas pautadas em verdades intocáveis e costumes arcaicos, que
se traduz em regras inflexíveis, a tendência é estabelecer diferentes formas de se
relacionar entre ambos os sexos.
É fundamental o respeito pelas escolhas e protagonismo da criança. Na
brincadeira, é claro que muitas vezes aquilo que é importante para a menina não é, em
alguns momentos, apreciado pelo menino, e vice-versa, logo essas questões podem ser
trabalhadas nas brincadeiras sem precisar imperar de modo unilateral o poder da
instituição e o desejo dos adultos.
43 Scott (1995) apud Finco (2010) mostra que gênero “é um elemento constitutivo das relações sociais
fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos, que fornece um meio de decodificar o significado
e de compreender as complexas conexões entre as várias formas de interação humana”. É a construção
social que uma dada cultura estabelece ou elege em relação a homens e mulheres, diz o autor. Gênero
pode ser entendido como a “organização social da diferença sexual”. Optei por não utilizar o termo
gênero e manter meninos e meninas.
168
No estudo de Sayão (2002) sobre as relações de gênero em crianças de quatro a
cinco anos de idade constatou-se que mesmo entre as crianças de pouca idade os papéis
de gênero estão muito próximos daqueles vividos pelos adultos que convivem no
mesmo contexto cultural, e as identidades de gênero são experimentadas em diversos
momentos de interação entre as crianças. E quando se trata de temas que envolvem a
sexualidade, a experiência com crianças ainda pequenas revela angústia dos
profissionais que têm de tomar decisões, muitas vezes imediatas, durante um episódio,
e, para tal, precisam considerar ao mesmo tempo as necessidades das crianças, a sua
própria formação e, no caso desta pesquisa, a reação da instituição.
Os profissionais que atuam nas instituições contribuem, de maneira inconsciente,
muitas vezes, na reprodução de preconceitos e hierarquias entre meninos e meninas,
influenciando na constituição de suas identidades. (FINCO, 2010). Logo, é importante
saber lidar, intervir e compreender a sexualidade infantil que faz parte da história dos
adultos e da convivência das crianças.
Nesta pesquisa existe as denúncias que envolvem sexualidade e abuso com
algumas crianças, o que reforça a importância de formação para os cuidadores, ao invés
da orientação de separação, embora não existe uma norma escrita mas está implícita na
rotina
5.1.2 A separação grupos de irmãos nas brincadeiras
No processo de brincar, observei que as crianças têm vontade e desejo de se
juntar com seus parentes, respectivamente, irmãos e, às vezes, primos, que estão na
instituição. Inclusive isso é uma recomendação, de acordo com Leite (2010) nos termos
do art. 100, do Estatuto da Criança e do Adolescente, na aplicação das medidas levar-se-
ão em conta as necessidades pedagógicas, preferindo-se aquelas que visem ao
fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários.
De acordo com o autor, na aplicação das medidas de proteção deve ser
observado alguns princípios, dentre os quais, destacam-se a proteção integral e
prioridade absoluta, igualmente, os princípios derivados da condição da criança como
sujeito de direitos. O princípio derivado da condição da criança e do adolescente como
sujeito de direitos está explícito que as pessoas em desenvolvimento são titulares dos
169
direitos previstos na Constituição e no próprio Estatuto, não sendo mais consideradas
objetos de proteção, mas sim, sujeitos de direitos.
Entre as medidas de proteção aplicadas nos casos de criança em situação de
risco, destaca-se o acolhimento institucional, medida provisória e excepcional, utilizada
como forma de transição para reintegração, que é o caso das crianças participantes deste
estudo.
Um dos princípios que deve ser contemplado, conforme Leite (2010) e
CONANDA (2009), nos serviços de acolhimento é a preservação e o fortalecimento dos
vínculos familiares, e uma ação simples na instituição seria os grupos de irmãos
brincarem juntos.
De acordo com as recomendações técnicas do CONANDA, é importante que
esse fortalecimento ocorra nas ações cotidianas dos serviços de acolhimento, visitas e
encontros com as famílias, enquanto que as crianças com vínculos de parentesco não
devam ser separadas ao serem encaminhadas para o serviço de acolhimento, salvo se
isso for contrário ao seu desejo ou interesses ou se houver claro risco de violência.
Nas observações feitas das brincadeiras, percebi que não existia uma proibição
formal sobre isso, mas na prática, as crianças morando no mesmo espaço nem sempre
podiam ou era permitido ficar e brincar com irmãos e primos; naturalmente, as crianças
buscam esse encontro.
No momento de uma observação no pátio quando o grupo de crianças de 2 a 5
anos brincava, uma menina de 5 anos não quis brincar com ninguém, ficou muito
emburrada, então fui saber a razão. Ela explicou-me que tinha uma irmã e queriam
brincar juntas, estavam separadas apenas por uma tela de arame pelo fato da irmã
pertencer ao grupo de 6 a 12 anos, não foi permitido. Segundo os orientadores, é porque
eram equipes diferentes e idades distintas.
Outro episódio que presenciei foi no parque onde as crianças estavam juntas.
Porém, mesmo estando no mesmo espaço, grupos de 2 a 5 anos e 6 a 12 anos, foram
separados em pequenos grupos. As maiores ganharam jogos de montar e foram sentadas
em mesinhas, as crianças pequenas nos balanços, gangorras e outros. Uma menina de 7
anos pegou sua irmãzinha de três e sentou-a no seu colo enquanto montava os
brinquedos; passados alguns minutos, uma orientadora viu e advertiu a menina, foi até a
mesa e retirou a criança de seu colo, levando-a para um balanço, longe dali.
Além dessas duas anotações do pátio e do parque, um episódio filmado no
cercado, também, destaca esse desejo de ficar perto dos familiares.
170
Episódio 57 - Brincadeiras de/com bonecas Data: 22/10/2012
Visita: 48
Local: Cercado
[...] enquanto as crianças brincavam no cercado, veio uma menina do espaço de 6 a 12 anos e
chamou a Neia, que foi até a grade e ficaram conversando, aproximei e perguntei: são
coleguinhas? Néia respondeu: é minha prima, a menina que estava fora disse: posso brincar aqui
com ela? A recreadora permitiu, entrou para o cercado e foram brincar [...] depois de um tempo a
Letycia veio com a irmã no colo e pediu: filma minha irmã [...] ela é bonitinha, né tia, ela vai
crescer igual a Aline Barros (personagem da música gospel) [...]
Anotei naquele dia, em meu diário, sobre as crianças que procuram os
familiares, grupo de irmãos e primos e são carinhosos, por exemplo, Letycia 5 anos,
referiu-se a irmã com muito carinho. Nascimento, Lacaz e Filho (2010, p, 51 grifo
meu) dizem o seguinte:
O Estatuto [...] prioriza a preservação dos vínculos familiares, o atendimento
personalizado e em pequenos grupos, o não desmembramento de grupos de
irmãos e a necessidade de integração com a comunidade local. No entanto,
apesar da inovadora proposta do Estatuto, percebe-se que essas mudanças
nem sempre se efetivam no cotidiano dos abrigos, permanecendo nesses
espaços práticas concernentes à lógica dos grandes complexos de
internação.
A partir das observações e vivencia na instituição, é possível inferir que não
seria difícil permitir que os irmãos brincassem juntos sempre, primeiro porque isso na
instituição, não implica risco, as crianças não são inimigas e as atividades têm a
presença dos cuidadores.
As observações indicam que é possível as atividades lúdicas serem usadas para
manter vínculos entre grupos de irmãos, durante a permanência na instituição, não
sendo necessário separá-los nas brincadeiras, isso envolve diálogo, planejamento das
atividades diárias e discussões técnicas sobre garantias dos direitos das crianças.
A orientação para que não se misturem os grupos de idades induz e promove
ações de exclusão da convivência entre irmãos.
Conforme legislação atual, é importante manter unidos grupos de irmãos. Na
pesquisa de Prestes (2011) constatou-se que era comum encontrar na instituição de
acolhimento pesquisada, irmãos separados que residem em casa e abrigos diferentes. O
que fica evidente, nesta pesquisa e da pesquisadora Prestes, é que as instituições
preferem contradizer as regras jurídicas para priorizar a logística, logo, deixam em
segundo plano as questões de afeto, vínculo e bem estar da criança.
171
5.1.3 A busca de autonomia na brincadeira por meio da transgressão
Inicio a discussão desta categoria que salta na brincadeira das crianças com o
movimento de compreensão do conceito de transgressão, um significado que caminha
atrelado ao proibido. Nos dicionários de Língua Portuguesa, Michaelis - UOL e
Priberam, o termo transgressão aparece associado à infração, violação, desobediência.
Um conceito que diz respeito em não cumprir o que foi estabelecido, em desrespeitar
uma ordem, uma lei, transgredir uma norma social.
Etimologicamente, a palavra transgressão vem do latim transgressione e
significa ultrapassar o limite de algo. Em geografia, transgredir a divisa de um estado é
uma ação que conduz atravessar uma fronteira para outro mundo, enfim, possui o
sentido de uma ação humana extrapolar noções que pressupõem a existência de uma
norma que estabelece e demarca limites. O exemplo a seguir, o relato de uma
brincadeira na brinquedoteca, mostrando essa transgressão:
As meninas foram para a brinquedoteca, na sequência chegou um recreador e
informou que também iria ficar com seu grupo de 6 a 12 anos na
brinquedoteca, imediatamente puxou uma mesa colocou no meio da sala e
mostrou para as meninas a divisão e disse: cada uma deve ficar no seu grupo.
De acordo com a separação de idade, deveriam manter-se no espaço
delimitado com uso da mesa. As meninas ficaram ali brincando, mas num
descuido, uma saltou para outro lado, virou pra mim e disse sorrindo:
consegui, consegui. (visita 40 em 21/09/2012)
Um episódio como este representa uma situação de transgressão da regra do
adulto, em que a criança cria estratégia para burlar a imposição posta. Neste caso,
precisou atravessar literalmente uma “fronteira”, a mesa. Quando ocorre prescrição em
demasia, surge a transgressão para brincar, uma disputa entre o desejo da criança de
exercer sua autonomia na brincadeira e a autoridade adulta.
A transgressão na brincadeira, neste estudo, envolve a criança não obedecer à
orientação, normas e separações, algumas vezes, impostas nas brincadeiras por grupo de
idade e sexo, pois transgredir associa-se a infringir, não cumprir e violar uma norma.
Nas brincadeiras observadas, no presente estudo, a transgressão é recorrente, as
crianças demonstram enorme satisfação em infringir uma norma e brincar conforme sua
imaginação, desejo e escolha.
É fácil perceber que existe uma lacuna entre o interesse da criança e aquilo que
lhe é proposto pelo adulto em algumas brincadeiras. Mas quando a criança percebe que
172
não lhe interessa ou não lhe condiz, ela não se conforma, não cumpre a regra, torna-se
desobediente e transgressora.
Precisa levar em conta as necessidades e desejos das crianças nas atividades
brincantes, no planejamento das ações, que são muito mais produzidas para elas do que
com o envolvimento delas.
Muitas vezes, as crianças não se reconhecem como protagonistas, conforme
mostra Paula (2010, p.85): “A transgressão passa a ser para a criança um meio de ela
viver ao revés da ordem ditada pelos adultos, e que, paradoxalmente, é assim que elas
fazem valer seus direitos de pensar por si e tomar decisões”. Transgredir é um meio de
agir de acordo com seu interesse, conforme esses episódios:
Episódio 60. Filme a Rapunzel
Data: 30/10/2012
Visita: 52
Local: Sala do cinema Estava passando um filme [...] João jogando bola no final da sala e os orientadores pedindo para
sentar [...] várias crianças não estavam prestando atenção [...] uns quinze minutos após início
teve alvoroço, a maior parte não queriam assistir ao filme. Com a exigência para que eles se
sentassem e assistissem, virou uma atividade obrigatória que deveria ser lúdica, mas uma menina
de 5 anos (Lala) sentada numa cadeirinha para crianças, [...] brincava de cavalinho, balançando
as pernas para embalar no colo uma menina pequena que se divertia com isso [...] dois meninos
inventaram uma brincadeira de bater palmas um de frente para o outro, outros dois brincaram de
correr. Todas essas iniciativas lúdicas paralelas ao filme eram acompanhadas de apelos dos
adultos para se sentarem [...]as meninas foram retiradas antes de acabar o filme para tomar
banho, ficaram os meninos, mas nenhum deles se interessou mais pelo filme.
Este episódio mostra que, mesmo tendo uma proposta considerada boa pelo
mundo adulto, já que é um filme infantil, as crianças brincaram com o que lhes pareceu
prazeroso. O filme não foi atrativo para algumas crianças que ainda, frente aos apelos
para sentarem e assistirem, escolheram brincar de jogar bola, correr e outras
brincadeiras.
Outra questão fundamental é a idade das crianças, as mais novas não prestam
atenção a filmes longos, por isso, se dispersaram. Logo, uma atividade que era para ser
lúdica e prazerosa tornou-se obrigatória e desinteressante para algumas crianças, que no
final, para se divertirem, tiveram que transgredir, inventar e brincar de outra coisa,
dentro do espaço delimitado.
Acredito que a transgressão [...] resultado de sua maneira de ver o mundo,
das experiências vividas no seu entorno, das imposições hierárquicas e das
relações compartilhadas com aqueles que se tornam cúmplices de suas
173
criações, as outras crianças. Tudo isso se torna conteúdo para o repertório
imaginativo das crianças, fazendo-as construir novas maneiras de agir sobre o
real do qual elas fazem parte e alcançar, assim, seus intentos [...] . (PAULA,
2010, p.88).
As crianças não queriam se opor a regra de assistir ao filme, desejavam brincar,
de acordo com a manifestação de seus desejos, sentimentos e criatividade inerentes à
brincadeira infantil. Por exemplo, a menina que embalava a colega menor fazendo-a de
bebê, ambas demonstravam imensa alegria com sorrisos e afagos, indiferentes ao filme.
Experiências como essas ensinam que as crianças são ativas e capazes de
reinventar as experiências e atividades que lhe são propostas. Para Paula (2010, p.88)
“as regras existentes funcionam como limitantes das ações das crianças, mas que nem
por isso as crianças as aceitam pacificamente”.
A transgressão das crianças está ligada a sua condição de sujeito capaz de
mudar e transformar ao seu entorno, de não aceitar sem crítica tudo que lhe é ofertado,
por isso de seu jeito, criam mecanismos para viver e protagonizar a sua brincadeira de
acordo com intentos. Elas não apenas fazem o que lhes é imposto, mas também, por
meio de sua imaginação e transgressão, descortinam novos horizontes para aquelas
atividades estabelecidas para elas.
As crianças desse estudo que vivem numa instituição com muitas crianças
numa dinâmica de saída para reintegração e recolha de outras, as quais são
encaminhadas pela justiça, vivem um movimento de extrapolar regras sempre, uma vez
que lhe são muitas por conta da quantidade de crianças acolhidas. Neste processo
constatei que quanto mais crianças mais prescrições nas brincadeiras.
A transgressão faz parte do universo infantil, em especial. Com isso, podemos
compreender como as crianças procuram pela autonomia, independência e liberdade à
medida que se vê frente a um real proposto pelo adulto que vai de encontro com os seus
desejos e anseios. Quando ocorre prescrição em demasia, explode a transgressão
exercida na brincadeira.
As crianças dessa amostra passaram por muitas perdas, conflitos e impasses na
sua história, obrigando-as lidarem com situações incomuns no processo de
desenvolvimento, tal como a retirada da família, a institucionalização, que na sequência,
desencadeia intervenção de equipe técnica (social, psicológica, médica, pedagógica)
para avaliar as possiblidades de encaminhamentos, somados à rotina da instituição,
audiências cujos procedimentos definem a história prospectiva. Infelizmente, as
174
decisões ainda encontra-se carregada de escolhas, quase que exclusivamente de modo
unilateral, onde somente uma das partes tem culpa e responsabilidade, seja exemplo, as
famílias pobres que sofrem, além da privação econômica, fruto da desigualdade social e
falta de oportunidade para todos, são responsabilizadas sozinhas pelo acolhimento, uma
vez que o Estado não dá conta da complexidade do acompanhamento e apoio a essas
famílias.
Durante o processo de tramitação, a criança convive na instituição com as
restrições relativas à institucionalização, que a expõe numa rotina de muitas mudanças,
troca de cuidadores, várias crianças juntas; logo, ela percebe que para garantir-se num
ambiente desse e lidar com todas essas adversidades, precisa desenvolver recursos
sociais diferentes dos habituais, afetivos e psíquicos. E para isso, em alguns momentos,
deve lançar mão de estratégias transgressoras das ordens instituídas pelos adultos para
preservar autonomia e individualidade, mas, no espaço desta pesquisa, a transgressão
não é compreendida como algo inerente do comportamento infantil.
Corsaro (2011, p. 169) observou em suas pesquisas que uma questão
importante nas relações das crianças era o “desejo de conquistar autonomia em relação
às regras e autoridade dos adultos e obter o controle sobre suas vidas”.
As observações deste estudo constatam que as crianças possuem pouco espaço
para exercerem sua autonomia, que é negada no cotidiano das instituições. O trabalho
de pesquisa de Vectore e Carvalho (2008, p 447, grifos das autoras) apontam que:
Além das experiências dolorosas vivenciadas antes da institucionalização, a
criança abrigada parece dispor de um espaço restrito para manifestar os seus
desejos e necessidades, de se fazer ouvida e compreendida, sujeitando-se
continuamente às rotinas rígidas da instituição, às normas do judiciário,
enfim, constituindo-se dia-a-dia num “sujeito sujeitado”.
A transgressão surge como alternativa para ser protagonista de sua história,
pelo menos nas brincadeiras, pois na experiência institucional existe pouco espaço para
ser ator, conforme episódio abaixo:
Episódio 22. Casinhas de meninos e meninas
Data: 13/07/2012
Visita: 18
Local: Campo Foram para o campo de futebol brincar os meninos e as meninas. O orientador disse que os
meninos eram para ficarem separados das meninas, mas assim que ficaram à vontade formaram
175
uma brincadeira de casinha - transgrediram a ordem de ficarem separados por sexo, a casinha
tinha pai, mãe e bebê, e todos estavam investidos no papel, por exemplo, a bebê chamava a
colega de mãe. Para brincar foi necessário abandonar a regra. As crianças transgridem para
brincar.
Episódios dessa natureza em que as crianças burlam as regras para brincar são
frequentes. Oliveira (2013, p 63) aponta que:
A realidade em algumas instituições de acolhimento ainda prima por
espaços com elevado número de crianças, rotinas que não respeitam a
individualidade, seja exemplo, as crianças não possuir objetos pessoais, tais
como gavetas para seus pertences, roupas, calçados, produtos de higiene,
copo para tomar agua (todas usam o mesmo copo, muitas vezes, em fila) sem
deferência a questões de higiene e construção de autonomia. Estas e outras
formas de atendimento caracteriza ausência de cumprimento da lógica
prevista no ECA para abrigo de proteção e acolhimento, igualmente,
desrespeito a dignidade das crianças.
A institucionalização ainda é um desafio em nossa sociedade com tantas famílias
brasileiras pobres, deixando seus filhos, muitas vezes, em situação de vulnerabilidade e
expostas a riscos sociais porque não têm condições econômicas, sociais e afetivas para
cuidar e acolhê-los.
Os abrigos que acolhem não dão conta desse trabalho complexo, almejam dar
um lar para as crianças que na verdade está longe dessa proposta familiar. Abrigos têm
rotinas, normas, vivem em função de fiscalização e prescrições explícitas e implícitas,
logo, não pode mesmo estabelecer uma relação similar de uma família com poucos
habitantes e convivência com o mesmo grupo de pessoas, diariamente.
Existem abrigos com uma quantidade de crianças acolhidas maiores do que a
capacidade prevê, igualmente, falta de cuidadores e ausência de formação condizentes
com a atividade e estes impasses fazem com que se desrespeitem princípios básicos da
infância, como a individualidade no atendimento, respeito à autonomia e, no cotidiano,
falta proximidade afetiva com todas as crianças. Conforme esta informação, apura-se
que a instituição possui um número muito acima da capacidade prevista, um fato
constatado durante a minha permanência na instituição desta pesquisa:
O número de crianças atendidas [...] está três vezes acima da capacidade
[...] Atualmente, são atendidas 180 crianças, entre meninos e meninas de 0 a
176
12 anos que se encontra em situação de risco. O ideal, segundo o Juizado da
Infância e Juventude, seria cuidar de apenas 60 crianças44
Na pesquisa sobre o significado da figura materna Nogueira e Costa (2005, p.03
grifo meu) investigaram a função da mãe social que trabalhava numa instituição de
abrigo para crianças pequenas e observaram o seguinte:
Grande número de crianças para apenas uma mãe social, associado a uma
rotina marcada por horários a serem cumpridos, dificulta os momentos
de interação entre adulto e criança, tornando-os praticamente inviáveis em
função da brevidade do contato, que acaba ocorrendo de forma
mecânica, sem tempo para trocas afetivas ou diálogos. Foi possível
observar que, na tentativa de manter o controle e a organização, acabava
limitando os movimentos das crianças, que precisam ficar a maior parte do
tempo sentadas no sofá, assistindo televisão, enquanto aguardam a atividade
seguinte.
Ainda com base nas discussões do resultado das pesquisadoras, o respeito ao
ritmo e necessidades individuais implica um olhar atento por parte do cuidador, o qual
só pode ser garantido com reflexão e formação.
Conforme as reflexões emanadas da pesquisa, a rotina institucional contribui
para dificultar o cuidado individualizado, que funciona com elevado número de crianças
sob os cuidados de poucos, associada a um ritmo de atividades que visa atender as
necessidades da própria instituição, dificultando a possibilidade de se considerar cada
criança individualmente.
Em outros termos, não levam em conta as diferenças individuais das crianças
acolhidas, não interagem fisicamente nem verbalmente como se deve, assim impõe uma
rotina de hábitos não respeitando as necessidades de cada criança. Logo, isso impede a
autonomia que sempre é exercida com a conotação de transgressão pelos adultos.
No presente estudo, observei que toda esta complexidade não é diferente,
várias situações de transgressão como tentativa de autonomia e preservação da
individualidade foram anotadas tanto em atividades lúdicas e ações de rotina. Constatei
que coisas banais do cotidiano, como possuir objetos pessoais e garantir os presentes
ganhados não era possível, além de algumas ações sem nenhum diálogo com as
crianças. Momentos esses que poderiam ser ações ricas para incentivar a iniciativa,
organização e autonomia das crianças, conforme esta anotação que fiz, no cercado:
44
http://g1.globo.com/mato-grosso/noticia/2012/11/abrigo-em-cuiaba-tem-3-vezes-mais-criancas-do-que-
capacidade.html
177
Cheguei no cercado, o espaço de 2 a 5 anos sujeitos da pesquisa, todas as
crianças estavam acordadas, como de costume, vieram rodear-me e ficaram
querendo colo, mexendo no meu cabelo, pegando e fazendo gracejos
disputando atenção. Nesta tarde, havia brinquedos disponibilizados e
brincavam com eles, de repente, o orientador em silêncio começou “arrancar”
os brinquedos das mãos das crianças, e ao mesmo tempo, apontava com o
dedo para todos sentarem-se nos bancos que ficam em frente da televisão,
como as crianças não estavam obedecendo começou a argumentar, dizer
algumas coisas no ouvido de outras, até que sentaram todas as crianças. Fez
algo que eu nunca tinha visto na rotina, cruzou as mãos em forma de oração e
as crianças repetiram uma oração de memória. Ao terminar, uma criança
levantou rápido, ele sentou-a no banco de novo, depois convidou as meninas
para ir ao refeitório, a rotina é assim em todos os plantões. Na hora do
lanche: primeiro as meninas pequenas/mais novas e, na sequência, os
maiores. (Visita 14 em 03/07/2012)
Este apontamento me fez analisar tantas situações que ocorrem com as
crianças sem diálogo, igual à constatação da pesquisa de Nogueira e Costa (2005) que
perceberam, no abrigo, uma rotina marcada por horários a serem cumpridos, que
dificulta os momentos de interação entre adultos e criança.
No episódio de minha pesquisa, as crianças estavam sendo organizadas para o
lanche, creio que seria mais rico anunciar o lanche, despertar a curiosidade para as
guloseimas que aguardavam no refeitório e, ao mesmo tempo, todos ajudassem na
guarda dos brinquedos. Assim como fazer a oração no próprio refeitório, que seria mais
contextualizada e com maior significado social e afetivo para as crianças.
Este espaço do lanche é outra atividade com muitas prescrições e ausência de
autonomia, um momento que acaba ocorrendo de forma mecânica, sem tempo ou
diálogos. Eis as prescrições: todos os dias, as meninas entram primeiro no refeitório,
sendo as mais novas na frente, sentam-se em bancos separados dos meninos, uma norma
já assimilada por elas; por último, entram no refeitório os meninos. Às vezes, não
cabiam mesmo todos de uma vez, tinham que lanchar um grupo primeiro e, na
sequência, os demais.
Depois que as crianças estavam sentadas, o lanche era posto na mesa na frente
de cada uma, e quando diziam que não desejavam o alimento era advertido que devia
comer, por isso, presenciei muitas vezes pedaços de bolo virar brincadeira escondidos,
virava de um lado para outro, empurrava na mesa, até ser visto e ouvir a orientação para
comer direito e não derrubar. O fato de a criança querer escolher o alimento era sempre
acolhido de forma negativa por alguns cuidadores.
É interessante perceber que as crianças buscam ser ativas, dominam algumas
situações próprias de sua rotina; por outro lado, quanto mais exercitam a autonomia nas
178
proibições mais aumenta o controle dos adultos sobre elas, até mesmo as brincadeiras,
também aparecem como atividades para contê-las e passar o tempo.
Nesse desafio das crianças de autonomia nas brincadeiras, consequentemente
de si mesma, surge também o que pode ser discutido por desafio à autoridade adulta que
se materializa na transgressão. Corsaro (2011) aponta que as crianças desafiam e até
zombam da autoridade adulta em suas brincadeiras e sugerem que esse comportamento
pode ser um recurso universal das culturas infantis.
Neste estudo, observei algumas ações das crianças, repetidas sempre que
necessário para conquistar o desejo de brincar, por exemplo, quando após o lanche era
anunciado que não iriam sair do cercado para brincar no pátio, no campo, brinquedoteca
ou qualquer outro espaço, as crianças maiores começavam a chorar, que na sequência,
eram imitadas pelas pequenas e em poucos minutos, todas choravam indo para perto da
grade, até serem atendidas.
Percebi, muitas vezes, o choro ser usado nesse movimento de desafio e forçar a
autoridade dos adultos para atrair a atenção; igualmente, para conseguir autorização dos
orientadores para brincar livres, fora do cercado. Ao chorar todas de uma vez, os adultos
cediam a solicitação das crianças e isso era visto como uma desobediência, reforçado
com expressões “essas crianças estão terríveis, não obedecem”.
5.1.4 As brincadeiras das crianças x cuidadores sentinelas
A criança protagonista, participante e autora de suas ações no contexto social,
cultural e proposta na SI está longe do espaço dos abrigos, igualmente, considerá-la
como sujeitos de direitos, implica descartar a lógica de objeto de proteção do estado e
instaurar uma prática que leve em conta as conquistas da infância legitimadas em leis no
processo histórico, entretanto, é precária a efetivação nas propostas de educação e
acolhimento.
Os serviços não conseguem garantir os direitos, ofertar práticas sociais que
visem à autonomia, o respeito e a individualidade, isso ficou muito claro na voz de um
cuidador numa conversa informal antes do lanche, no cercado, sobre desobediência das
crianças, a transgressão discutida neste estudo: “essas crianças precisam entender que
elas só têm isso aqui”. Para este cuidador, as crianças devem aceitar tudo e pronto,
logo, não há outra opção, no momento.
179
Esse olhar segue impregnado nas brincadeiras observadas, as ações brincantes,
muitas vezes, apenas tinham a função de cercear e conter as crianças pequenas. Seja
exemplo, o uso do aparelho de televisão, já citado neste estudo que em muitas ocasiões
era ligado para sentar as crianças no banco e aguardar o lanche. O filme foi apresentado
(não assistiam televisão) repetidas vezes e as crianças não tinham interesse.
Episódio 01: Os heróis da bíblia
Data: 19/06/2012
Visita: 07
Local: Cercado
Sentei no banco de frente à televisão, que foi ligada para as crianças. Uma orientadora ligou o
aparelho e pôs um filme sobre “os heróis da bíblia” [...] sentei no chão para ver o filme, fiquei
rodeada de crianças, que ficaram mexendo no meu cabelo e disputando quem sentaria no meu
colo. Observei que não prestaram atenção ao filme. A televisão fica no alto, num salão aberto e
difícil de ouvir. Logo, começaram a se dispersarem, mesmo com as broncas/insistência das “tias”
para que permanecessem sentadas assistindo. Afinal, assistindo o quê?
A instituição não considera a criança a partir do que ela é, como presença,
protagonista, sujeito de desejo e de direitos, mas sempre olha pelo viés do que lhe falta,
como incapaz. Isso ocorre em razão das ideias construídas há séculos da criança
passiva, sem fala, imatura, vir-a-ser, merecedoras de socialização, receptáculo da
educação dos adultos.
Essas ideias estão presentes, talvez, de forma inconscientes, na brincadeira,
percebi que os orientadores, a maior parte deles, não se envolvem com as crianças nas
brincadeiras, fazem um papel apenas de sentinela, cuidam das brincadeiras ao invés de
interagir e torná-las mais atrativas e prazerosas. Fazem disso apenas um momento para
vigiar, que seria na prática evitar brigas e assegurar a integridade física das crianças,
exemplo, cair e se machucar.
A brincadeira é uma atividade que requer liberdade, brincar é uma das
características essenciais das crianças, é uma forma de expressão fundamental. Segundo
Caillois (1990), o jogo (brincadeira para nós) possui qualidades de ser livre, delimitada,
incerta, improdutiva, fictícia, por isso, combina em si, as ideias de limites, liberdade e
invenção. Para ele, jogo é uma atividade que significa liberdade, qualidade esta que
muitas vezes vai de encontro com o ambiente de abrigo, local em que impera a relação
de sujeição ao adulto, vigilância e excesso de interferência nas brincadeiras.
Neste papel de sentinela, fazem muitas interferências desnecessárias nas
brincadeiras, das quais, ao longo do estudo, fui apontando, tais como: cuidado para não
180
quebrar isso ou aquilo, não brincar na terra, meninos não brincam com meninas, ficar
quietos, sentados, não usar água para fazer bolo, não se sujar muito, o que torna as
brincadeiras muitas vezes desagradáveis e desinteressantes, conforme estas anotações:
As crianças estavam brincando no campo, um orientador pediu para os
meninos ficarem separados das meninas, imediatamente cinco meninas
começaram a varrer, ficaram ali varrendo (organizando a casa) chegou outra
orientadora que não estava no campo, não conversou com as meninas e foi
logo dizendo: Por que vocês estão na terra fazendo essa poeira? Saiam já
daí! E vão brincar na grama! As meninas responderam: brincando de
casinha, tia. Ela pediu para irem para o centro do campo que tinha grama.
(visita 18 em 13/07/2012).
Observei que essa interferência acabou com essa brincadeira de casinha, as
meninas perderam o interesse. O processo de impor regras e dar bronca nas crianças é
uma necessidade dos adultos, mesmo quando não existe motivo, as regras surgem com
interferências na brincadeira da criança que, às vezes, abandona, depois da interferência.
Em outro momento, as crianças estavam brincando na brinquedoteca.
Arrumaram mesa, cadeiras, fizeram comidinhas; pude perceber o quanto as
crianças são capazes de se comunicar por gestos, olhares e movimentos. Não
foi preciso dizer uma palavra entre elas em quase toda a interação,
cooperação e cumplicidade estabelecida na brincadeira. Entretanto, notei que
havia o impulso natural da tia de ficar dizendo: senta aí, cuidado! Mesmo
sem existir nada de confusão, havia uma preocupação demasiada com a
contenção das crianças até nas brincadeiras. (visita 28 em 10/08/2012 )
Em outro momento, os meninos na brinquedoteca, muito eufóricos, corriam e
cada hora pegavam um brinquedo para explorá-lo, mais isoladamente do que
em grupos; depois chegou um tio e ficava todo o tempo dizendo que alguns
brinquedos eram de meninas e também algumas cores, exemplo, o de cor
rosa, quando um menino pegava alguma coisa rosa, ele dizia: é de menina e
depois quis tirar os meninos que estavam dentro de uma casinha dizendo que
era das meninas. Neste episódio, de modo claro, queria proibir os menininhos
de alguns brinquedos e brincadeiras com a explicação que era de meninas.
(visita 37 em 14/09/2012 )
Percebi ser uma intervenção na brincadeira porque o estereótipo de questão de
gênero é muito impregnado na instituição e, talvez, inconscientemente, o orientador
reforça e possui certa dificuldade em lidar com as questões da sexualidade das crianças,
sendo muitas vezes reforçador de preconceitos e inadequado no trato, inclusive resulta
em exclusão desnecessária de algumas atividades.
181
Quando há a interferência do adulto, querendo mudar as regras da atividade de
modo demasiado, as crianças perdem a motivação, uma vez que há, por eleição, um
afastamento das crianças, pela presença dos adultos quando estão a brincar.
Nessa categoria, é muito importante inferir sobre a formação e preparação dos
orientadores, conforme afirma um trecho desta entrevista. Quando indaguei sobre
sugestões para as brincadeiras das crianças, uma das orientadoras alegou:
Essas crianças não têm nada, aumentaria o número de recreadores, mudaria
papel do educador, que não pode ficar só no cuidar, precisa educar, ter [...]
mais relação com as crianças [...] o educador precisa brincar, cuidar e educar,
faria isso, aumentaria o número de recreadores e a capacitação dos
recreadores (orientadora 3)
Nas recomendações técnicas para serviços de acolhimento para crianças em
abrigos, CONANDA, entre outras coisas, refere que o orientador precisa, além dos
cuidados básicos com alimentação, higiene e proteção, organização do ambiente,
devendo auxiliar a criança a lidar com a sua história de vida, fortalecimento da
autoestima e construção da identidade, apoio na preparação da criança para o
desligamento, sendo para tanto, orientado e supervisionado por um profissional de nível
superior.
Frente a essas recomendações, a visão da orientadora é muito adequada, pois
para trabalhar desta forma precisa-se no mínimo de capacitação, orientação e grupos de
discussão sobre as dificuldades das crianças, o que é muito difícil, caso não se tenha
afinidade entre equipe técnica e cuidadores. Para dar o “salto” e sair da função de
cuidadores passivos e sentinelas nas brincadeiras, precisam de formação, apoio,
interação, diálogo e confiança entre equipe técnica e orientadores.
Seria de muito valia o abrigo instituir-se de fato como espaço de acolhimento,
preocupar-se com a individualidade, a história e angústia das crianças, portanto, seria
necessário organizar espaços educativos e capacitação contínua dos envolvidos.
5.1.5 Brincadeiras tradicionais e personagens da televisão
Os jogos tradicionais praticados por todas as classes sociais há muito tempo,
aos poucos, cedem espaços para jogos eletrônicos, televisão e isso envolve mudanças
significativas do ambiente urbano e rural, que também passam por mudanças: grande
182
parte possui energia elétrica acesso à internet, celular, televisão e jogos iguais às
crianças da cidade.
As crianças deste estudo não têm acesso a jogos eletrônicos, televisão e
internet, são ávidas por qualquer objeto eletrônico, por isso, minha máquina filmadora e
celular durante a pesquisa nunca foram objetos que passaram despercebidos, sempre
queriam pegar, olhar e aprender a usá-los. Igualmente, me chamaram atenção a ausência
de brincadeiras tradicionais, embora grande parte dessa ausência esteja de acordo com a
idade do grupo, momento em que as brincadeiras predominantes, conforme divisão
proposta por Caillois (1990) é a rubrica Mimicry.
Os jogos tradicionais assumem a mentalidade popular e são transmitidos pela
oralidade, expressam a produção espiritual de um povo em uma determinada época
histórica e sempre estão em transformação, incorporando as criações anônimas de
geração para geração. Segundo a autora:
Não se conhece a origem desses jogos. Seus criadores são anônimos. Sabe-se,
que são provenientes de práticas abandonadas por adultos, de fragmentos de
romances, poesias, mitos e rituais religiosos. A tradicionalidade e
universalidade dos jogos assentam-se no fato de que povos distintos e antigos
como os da Grécia e do Oriente brincaram de amarelinha, empinar papagaios,
jogar pedrinhas e até hoje as crianças o fazem quase da mesma forma. Tais
jogos foram transmitidos de geração em geração através de conhecimentos
empíricos e permanecem na memória infantil. (KISHIMOTO, 2003,
p.25).
Com respeito a essas brincadeiras tradicionais, na experiência dessa pesquisa
jogar bola e brincar de papagaio, denominado pipa, eram as brincadeiras presentes,
supõe-se que enquanto manifestações da cultura popular possam perpetuar a cultura
infantil e desenvolver a convivência social por meio dessas brincadeiras livres,
espontâneas, nas quais a criança brinca pelo prazer de fazê-lo.
Neste registrei alguns episódios sobre personagens, algumas crianças não
sabiam, por exemplo, o que era um dinossauro. Numa tarde, as crianças estavam
brincando na brinquedoteca e lhes perguntei do que elas estavam brincando. Vivi, de 5
anos, respondeu: Mamãe e filhinha, tem duas filhinhas com franjas e trancinhas,
mostrou as duas bonecas pra mim [...] Talita perguntou-me: Tia que bichinho é esse
daqui, que eu não sei. Era um dinossauro.
Anotei, em meus apontamentos que existem crianças que não conhecem
personagens comuns dos desenhos e da literatura infantil visto que a institucionalização
183
não oferta a experiência de assistir desenhos e contar histórias para as crianças o que,
desse modo, algumas informações básicas sobre personagens e igualmente, histórias
infantis compartilhadas na cultura infantil são desconhecidas. Os dinossauros deixaram
de existir, mas isso não impediu que eles tomassem conta da literatura infantil e
fizessem parte do imaginário das crianças.
Os meninos, somente duas vezes durante as observações, brincaram de imitar
Batman, coelho, pirata, e uma única vez ouvi, um menino dizer sobre o desenho infantil
Ben10 da televisão. Vale considerar que ele tinha pouco tempo na instituição.
No contexto desta pesquisa, estão ausentes elementos da cultura midiática
como referências nas brincadeiras, embora as crianças façam alusão sutil, não são
conhecimentos partilhados para organizar as ações lúdicas. Igualmente, as brincadeiras
tradicionais.
Seria de valia possibilitar às crianças que construam narrativas no contexto da
cultura institucional com contos, histórias infantis e brincadeiras tradicionais, de algum
modo são atividades que permitem elaborarem a história de suas vidas e auxiliá-las para
enfrentar o abandono e separação.
Para Brougère (1995, p.8) o brinquedo é dotado de um forte valor cultural,
ricos de significados, que permitem compreender determinada sociedade e cultura. As
brincadeiras tradicionais, contos e histórias infantis são importantes veículos da cultura
e dos significados atribuídos no contexto social.
5.1.6 A permissão para brincar numa brincadeira em andamento
Após verificar todos os episódios registrados, que quatro aspectos são
destaques recorrentes no funcionamento da brincadeira das crianças, que são: a
transgressão para brincar e brincadeiras de provocação já citados, ameaça de punição
que será discutido adiante e permissão para brincar. Esses temas serão uma preocupação
desta seção.
Brincadeira de criança não é algo que qualquer um pode chegar e fazer parte,
mesmo outras crianças. É necessário observar e saber como conquistar, na maioria das
vezes, precisa pedir para os colegas que já estão brincando se pode incluir-se no espaço
da brincadeira.
184
As crianças quando brincam partilham experiências e trocam afetos,
estabelecem limites, negociam papeis e demonstram enorme satisfação em estar juntas,
mesmo quando surgem os conflitos. Entretanto, para ser aceito depois de uma
brincadeira iniciada requer negociar e ter autorização do grupo.
Corsaro (2011, p.161) chama de proteção do espaço interativo em que “o
acesso aos grupos de brincadeiras é particularmente difícil e as crianças tendem a
proteger o espaço compartilhado, objeto e jogos em curso contra o ingresso de outras”.
O acesso das crianças às brincadeiras é uma categoria que o pesquisador
analisou num estudo etnográfico ao apontar que essa tendência está diretamente
relacionada à fragilidade da interação de pares, às várias possibilidades de interrupção
na maioria dos ambientes escolares e ao desejo infantil de preservar o controle sobre
atividades compartilhadas. Esta pesquisa forneceu a inspiração para observar situações
em que as crianças solicitavam permissão às outras para participar de uma brincadeira
iniciada. Conforme se depreende da sequência de trechos de sete episódios:
Episódio: 11. Você quer brincar?
Data: 29/06/2012
Visita: 12
Local: Cercado
Ana estava sentada no chão, brincando com Talita num cantinho do cercado rodeada de
brinquedos, Talita saiu para procurar outros [...] Binho, que estava com uma bola na mão,
chegou e sentou na brincadeira, Ana falou, saí daí, você não está brincando, mas o colega
insistiu e sentou com uma bola na mão, ela mudou de ideia e pergunta, você quer brincar?
Começam a interagir, conversar e organizar os brinquedos. A Talita chegou, Ana disse para ela
apontando para o Binho, ele quer brincar. A Talita então se virou e disse, quer brincar? [...]
Talita saiu de novo e voltou com outros brinquedos e Kati veio junto, a Talita disse para ela, não
mexe nos brinquedos, não mexe, Ana também ficou repetindo não mexe, não mexe, por várias
vezes, depois segurou no braço de Kati e deu um bichinho de pelúcia como consolo, Kati não
queria, Ana colocou embaixo do braço e forçou-a para ela segurar. Ficaram ali conversando e
arrumando os brinquedos quando chegou Vivi que ficou em pé, olhando e depois falou: deixa eu
brincar? Deixa Talita? Talita respondeu: é de todo mundo, e assim Vivi sentou, Kati aproveitou
e sentou de novo na brincadeira sem pedir, Talita olhou para ela e disse, você não. Mesmo assim
sentou, mas as três meninas não interagiram com ela, ficou um tempo e saiu levando alguns
brinquedos.
Episódio: 13. Brincadeira de filhinho
Data: 03/07/2012
Visita: 14
Local: Pátio As crianças estavam brincando num canto, no pátio ao lado da porta da brinquedoteca [...]
Constatei no início Vivi, Ana, Binho e Toni sentados no chão e no alto sentada numa mesa
balançando as pernas estavam Lala e Talita. [...] Ficaram interagindo na brincadeira, trocando
brinquedos e diálogos, Ana chegou deu uma volta e quis pegar um brinquedo de Talita, que
disse: oh! tia a Ana quer tomar de mim, entraram num impasse Ana dizendo é meu até que
enfim Talita tomou e Ana ficou chorando muito tempo e esperneando-se no chão. [...] depois de
um tempo chorando e ninguém deu atenção, parou. Ana aproximou-se novamente da brincadeira
185
e puxou um telefone para provocar Talita que disse: você para Ana [...] a Talita reclamou dos
meninos que estavam perto, Lala desceu da mesa e disse, vou bater nesses guri, aproximou uma
menina querendo brincar, conversou antes com Lala (que desistiu de bater) e Toni disse: é Talita
quem manda e a menina foi embora [...] depois, Toni retoma a conversa dos meninos que Lala
queria bater e disse: foi Talita que deixou, Talita vira e fala, eu deixei [...] Lala sobe na mesa
novamente [...] depois de um tempo um garoto chegou na brincadeira e pegou um brinquedo,
Toni tomou e disse não, não!!! O menino ficou bravo por não ser aceito e ameaçou dar um
murro, Toni reforçou: você não está brincando, mas o colega insistiu e ficou no grupo, passou
um tempo, Toni de novo tomou o brinquedo dele e disse: você não está brincando, olhou pra
mim e apontou, dizendo: tia olha esse guri aqui [...]
Episódio: 18. Casinha das meninas
Data: 09/07/2012
Visita: 16
Local: Campo
Brincavam numa casinha Lilia e Lia. [...] Bela se aproximou de Lilia que estava brincando de
comidinha e disse, vou comer [...] Lilia, não é para comer só de tarde. Bela insiste, eu quero me
deixa comer mamãe. Virou pra mim e disse é bolo tia. Lilia disse foi Lia quem fez. Nisso chegou
Lia que tinha ido pegar água e disse para Bela, você não está brincando comigo, você está
brincando com eles (apontou outra casinha). Emily gritou varrendo, eu tô brincando com Lia.
Então Lia mudou de ideia e disse para Bia, quer brincar comigo? [...] Ana veio juntar-se a Lia
que falou sai daqui Ana, sai da minha casa. Lilia também disse de longe varrendo, a casa é
minha e de Lia. E Lia ficou arrumando e fazendo uma cama [...] mudou de ideia frente à fala da
colega e disse para Bela você não está brincando com a gente. Bela reclamou tia Lia e não
deixa brincar com ela, ela está brincando só com Lilia [...] depois a Vivi passou perto com uma
vasilha de água e Lia disse: Olha Vivi, nossa cama, quer brincar com nós? Vivi não quis e
passou direto. Lia disse, Lilia deixa isso aí um pouco e vem aqui arrumar a casa, arrumar o
bolo. Neste momento, Lilia disse: Bela! mostrou a vassoura, num convite para brincar de novo,
Lia concordou e disse: vai lá, Bela, pegar a vassoura, que já estava chorando porque Lia tinha
excluído ela, parou de chorar e foi varrer de novo. Lia mandou Lilia tirar mato da casa que ela ia
catar flor [...] voltou e disse: aqui nossa flor [...] Bela foi aceita e foi limpar a casa [...].
Episódio: 19. Tô limpando casa
Data: 11/07/2012
Visita: 17
Local: Campo
Um grupo de meninas organizou-se para brincar, Lala disse: tia, tô limpando minha casa – está
limpinha. Tia, a casa tá limpinha, eu sou a mãe. Fizerem uma cama. Talita disse: eu sou bebê.
Lala (Mãe): ela é bebê, apontando para Talita. E eu comando a brincadeira, disse Lala no papel
de mãe, [...] cuida o bolo aí, [...] eu cuido […] Eu sou a tia [...] tô fazendo comidinha. [...]
Chegou um menino, elas retrucaram: você não está brincando. [...] Chegou outro menino na
brincadeira (Dino) a Talita disse: você quer brincar? Ele repetiu: deixa eu brincar?
Episódio 27. Ela não está brincando
Data: 30/07/2012
Visita: 24
Local: Brincadeiras no cinema
Lilia e Bela, cada uma, pegou um balde cheio de blocos e disseram: tia, vamos levar isso aqui
para minha casa [...] Ana acompanhou as duas e sentou-se ao lado, perguntei quem mora aqui
nesta casinha. Ana respondeu: é minha casa e de Bela. Bela retrucou e disse, ela não tá
brincando e apontou para Ana, que ficou ali sentada brincando, mas as duas não lhe deram
atenção. Bela fala brava: é pra todo mundo brincar.
Episódio 39 - Tia ela não quer me deixar brincar
Data: 18/08/2012
Visita: 31
Local: Campo
186
As crianças estavam sentadas no campo, no chão, brincando de comidinha, três meninas Lilia,
Lia e Laine envolvidas mexendo na terra. Lia e Laine juntas e Lilia ao lado, ambas fazendo bolo
[...] Lia virou pra mim, ergueu uma comida (mato seco) e ofereceu: experimenta! Amiga. [...]
Ficaram brincando e interagindo na terra [...] as meninas ficaram em silêncio, fazendo um bolo,
duas carregando terra e palha e uma mexendo todo o tempo na massa. [...] Lia disse que estava
fazendo bolo [...] a Lilia disse do outro lado: de chocolate, a Lia reforçou, meu, de morango,
chegou Nara e entrou no jogo, depois veio a Bela e disse: posso brincar aí? Laine disse: não,
não, não vai brincar e abanou a cabeça negativamente, e Lilia, reforçou: não deixa brincar tá?
e foi perto da Bela e deu um empurrão e disse: você não tá brincando e novamente disse: não
deixa ela brincar não, ela me bateu ontem. Bela reclamou dizendo que não, Lilia reafirmou bati
não, mas depois, disse: é porque você rabiscou minha perna. Lilia: é mentira [...] Bela ficou
sentada, sendo ignorada e as colegas fazendo bolo e conversando algumas coisas, baixinho.
Depois de um tempo, a Lia disse: você não vai brincar você bateu nela, apontando para Laine,
que também acusou Bela. Ficaram uma dizendo para a outra que Bela não brinca. Nisso, Lilia
convida Bela para brincar: Bela pode brincar comigo, tá Bela? e resolveu o conflito [...] Lia,
novamente disse: você não vai brincar, você bateu nela, né? e apontou para Laine que
respondeu: é. Bela fala brava: é pra todo mundo brincar. Lia repete: ela não vai brincar com
nós, ela me bateu ontem, bateu na minha mão. Laine fala: Bela, bateu nela apontando para Lia,
ela é minha amiguinha. [...]
Episódio 65. Brinca comigo?
Data: 23/11/2012
Visita: 56
Local: cercado As crianças brincavam no cercado, perguntei para Laine: você não tem nenhuma bebezinha?
Respondeu Lala por ela: a menina pegou tudo [...] Lala estava com uma boneca e lhe perguntei:
e esse bebezinho aí? Ela respondeu: Minha filha, ela tá com frio [...] Ela tem nome, Talita?
Rapunzel, respondeu Laine. [...] Letycia a empurrou e disse: não vou brincar com essa menina
não, vou brincar só com você e disse pra mim: ela é muito feia [...] Carol disse para Letycia:
brinca comigo? Virou pra mim e disse: ela não quer tia. Letycia ficou quieta e depois disse:
vou brincar com quem eu conheço e apontou para Luana. Depois, Carol disse: tia, eu conheço
ela, brinquei ontem com ela [...]
A permissão para brincar era uma categoria recorrente, nas brincadeiras. No
episódio 11, houve um convite: você quer brincar? Frente à insistência do colega em
permanecer sentado na brincadeira, a Vivi, depois de um tempo, em pé, observando,
pediu: deixa eu brincar? E foi aceita. Kati não foi aceita, ficou no grupo e foi ignorada.
No episódio 13, Toni decide aceitar os colegas e inclui a menina que era líder,
na brincadeira, para acatar sua decisão e, assim, os colegas foram aceitos, com a fala de
Talita, eu deixei eles brincar. Outro menino não foi aceito e não brincou.
No episódio 18, Bela também tenta entrar à força, indo direto comer bolo, usa
da estratégia de fingir que era filha para ser incluída, mas não deu certo e ouve: você
não está brincando comigo, você está brincando com eles. Depois, surge o convite
frente à persistência de Bela: quer brincar comigo? A colega Ana, que tentou ficar à
força, houve; sai daqui, Ana, sai da minha casa, mas no final, Lilia resolve o conflito
quando oferece a vassoura e tem aval da colega.
187
No episódio 19, a colega que tenta incluir-se ouve: você não está brincando.
Na sequência, chega Dino e a Talita disse: você quer brincar? Ele repetiu: deixa eu
brincar? E foi aceito.
No episódio 27, Ana tentou incluir-se quando refere que faz parte da casa e foi
repreendida por Bela que disse: ela não tá brincando. Ela insistiu e ficou ali sentada
brincando, mas foi ignorada pelas colegas.
No episódio 39, Bela pergunta: posso brincar aí? E as colegas não permitem
porque Bela tinha supostamente batido nelas, no dia anterior. O conflito de
relacionamento impediu a permissão, mas somente no final, uma colega autorizou.
No episódio 65, Letycia alegou que não queria porque: não vou brincar com
essa menina não, ela é muito feia [...] a Carol indaga: brinca comigo? Letycia ficou
quieta e depois disse: vou brincar com quem eu conheço.
As crianças, nas brincadeiras, têm liderança, organização, resolvem conflitos,
delimitam territórios, escolhem seus colegas nas brincadeiras e estabelecem critérios de
aceitação, tais como de amizade e não ter conflitos, exemplo de Bela que não foi aceita,
inicialmente, porque segundo as colegas, tinha batido nelas. ,
Na pesquisa de Salgado e Silva (2010, p.63, grifos das autoras) é mostrada
como as crianças constituem os grupos para brincar e os requisitos que definem para
compô-los, elegendo quem deles participa, como e em que circunstâncias. A pesquisa
indica
Amizade como elemento de negociação, que se converte em passaporte
necessário para a inserção no grupo, espaço social em que as crianças, para
brincar, estabelecem regras, relações de poder, hierarquias e requisitos para
definir quem é ou não “amigo”, bem como aquele que pode ou não participar
das brincadeiras.
No presente estudo, conforme episódios relatados, a amizade também é um
requisito importante para brincar. No episódio 65, Carol era recente na casa e Letycia
usa isso para não brincar, explicando que gosta de brincar com quem ela conhece.
Perguntei, na entrevista com as crianças, como elas faziam para participar de uma
brincadeira em grupo e elas responderam o seguinte:
Quando quero brincar que não deixam eu brincar, quando não deixa falo
para a tia e ela toma o brinquedo [...] (Letycia, 5 anos)
188
Com licença, por favor, me deixa brincar!! Quero passar porque quero ver
minha filhinha [...] Então eu quero brincar, elas deixam. (Vivi, 5 anos)
Quando tem um brincando, eu falo: quem quer brincar de ? [...] (Lia, 5
anos)
Quando eu quero brincar com alguém eu falo: coleguinha eu quero brincar
[...] (Neia, 5 anos)
Na voz das crianças o que predomina de estratégias de acesso na brincadeira é a
solicitação verbal, fato este corroborado com as observações nos episódios em que o
convite você quer brincar? e as solicitações deixa eu brincar? são recorrentes nas
brincadeiras. E a resposta de aceitação positiva está diretamente ligada à afinidade ou
habilidade na abordagem, as crianças que se impõem raramente são aceitas, e quando
ficam no grupo são ignoradas.
Corsaro (2011) identificou que as crianças raramente usam estratégias diretas
para pedir sua inclusão na brincadeira, sendo uma razão é que essas estratégias
requerem uma resposta direta, e essa resposta muitas vezes é negativa.
Na pesquisa de Borba (2005, p.191) em que a autora analisou os diferentes tipos
de estratégias de entrada utilizadas pelas crianças, destaca-se que o uso da estratégia
direta é diferente entre as crianças, tendo relação entre a criança que a ela recorre e o
grupo ao qual se dirige:
O recurso a perguntas [...] diretas de participação como estratégia de entrada
foi utilizado por crianças que tinham expressivo conhecimento e intimidade
com o grupo ou parte do grupo ao qual queriam ter acesso. Em grande
medida, a entrada já facilitada pelo pertencimento ao grupo e a sua
participação não é sentida como ameaça de ruptura, uma vez que o grau de
conhecimento construído e partilhado entre as crianças no curso de um longo
período de experiências comuns de brincadeira parece assegurar uma
interação menos frágil.
A pesquisadora constata que um grupo de crianças que tinha mais tempo de
convivência usaram mais estratégias diretas com sucesso, talvez decorra do fato de
pertencimento, amizade e intimidade das crianças.
Esses apontamentos sugerem que é importante para a instituição, ou seja, os
adultos que lidam com as crianças, compreenderem a perspectiva infantil dessa questão,
conforme relato, quando quero brincar que não deixam eu brincar, falo para a tia e ela
toma o brinquedo, essa criança aprendeu que quando sua negociação com o grupo não
189
tem sucesso, ela pode recorrer aos adultos que resolvem para ela, tomam o brinquedo do
colega que não quis compartilhar, episódios esses que presenciei várias vezes.
A resistência às tentativas de acesso parece não cooperativa ou egoísta para os
adultos, pois não lhes ocorrem que as crianças não estão recusando-se a cooperar ou
resistindo à ideia de compartilhamento, em outros termos, as crianças querem continuar
partilhando aquilo que já estão compartilhando e encaram os outros como uma ameaça à
comunidade que criaram. (CORSARO, 2011).
De acordo ainda com o autor, existe mais uma questão nesse exercício de
proteção do espaço interativo, espaço da brincadeira: a criança exercita habilidades de
acesso utilizado em ambientes adultos de relacionamento interpessoal, afinal quando se
aproxima de um grupo que está em qualquer atividade não se impõe, precisa fazer
alguma coisa para ser aceito como um gesto, uma palavra, uma aproximação afetiva.
Na brincadeira, a criança desempenha diversos papéis, exercita diferentes
relações de poder, compartilha saberes, autonomia, afeto, requisitos fundamentais do
mundo adulto. “Constituem-se como autoras de suas próprias infâncias e de um mundo
social que, como um todo, está sujeito a conflitos e negociações”. (SALGADO; SILVA,
2010, p. 59).
Como resultado das negociações, de quem brinca e quem não brinca, quem está
no grupo e quem não está, as crianças começam a compreender suas identidades sociais
em desenvolvimento, igualmente de que a vida possui escolhas, afinidades,
individualidade, requisitos negados no interior das instituições.
As crianças escolhem com quem gostariam de brincar, igualmente para entrar
numa brincadeira organizada precisam de permissão, uma questão difícil de lidar numa
instituição onde tudo é de todos e os adultos acreditam que as crianças precisam aceitar
brincar com todo mundo. Entretanto, as crianças têm seus códigos e regras próprias nas
brincadeiras, mas quando o adulto impõe surge a transgressão e atritos.
Esse olhar em torno da permissão nas brincadeiras sugere que a instituição onde
as crianças são pesquisadas por meio das brincadeiras, pode ressignificar a compreensão
das atividades lúdicas considerando-as na perspectiva infantil e constatar a riqueza de
habilidades que as crianças podem construir nesse espaço interativo.
Neste estudo, não fiz uma descrição detalhada e tabulada das formas de entrada,
mas o que é muito recorrente é que para brincar precisa ser aceito, negociar e resolver
impasses emanados da convivência, isso é um exercício ímpar para as relações adultas,
190
entretanto, é preciso que a instituição compreenda a atividade lúdica comprometida com
os acontecimentos sociais e com a maturidade e o desenvolvimento das crianças.
Nas entrevistas, as crianças relatam sobre isso e dizem:
Quando quero brincar que não deixam eu brincar, quando não deixa
falo para a tia e ela tomam o brinquedo [...] (Letycia, 5anos)
Com licença, por favor, me deixa brincar!! Quero passar porque
quero ver minha filhinha [...] Então eu quero brincar, elas deixam.
(Vivi, 5 anos)
Quando tem um brincando eu falo: quem quer brincar de pega? [...]
(Lia, 5 anos)
Quando eu quero brincar com alguém eu falo: coleguinha, eu quero
brincar, então ela fala: vamos brincar de quê? Aí eu falo: de alguma
coisa [...] aí falo: vamos brincar sabe de quê? de pega-pega (Néia,
5anos)
Nestes fragmentos das falas fica claro na voz das crianças de que é preciso pedir
para brincar, por exemplo: por favor me deixa brincar, coleguinha eu quero brincar.
Somente uma criança sugere que solicite ajuda do adulto, as outras se resolvem com
pedido e diálogo, fato esse observado nos episódios, entre muitas questões presentes no
funcionamento da brincadeira, a permissão era muito forte. Isso demonstra que as
crianças, de fato, além de exercitar a proteção do espaço da brincadeira, criam seus
códigos de relacionamento, nem sempre compreendido pelos adultos.
5.1.7 Brincadeiras e punições brincadas
Segundo Ferreira (2012): “o brincar é um texto em que as crianças contam
sobre elas mesmas”. Levando-se em conta esta afirmação, os episódios das crianças que
participaram deste estudo revelam que a brincadeira, no ambiente institucional, está
impregnada de questões da rotina, do atendimento, igualmente da história de vida da
criança. Vejamos alguns episódios brincados em que as crianças brincam com a punição
ou pune a outra criança com/na brincadeira:
Episódio 62. Quem teve visita não brinca
Data: 14/11/2012
Visita: 54
Local: cercado
191
Neia e Luana brincavam sentadas no chão ao lado da grade do cercado. Neia: cadê o prato?
Luana: não sei. Neia: é esse daqui apontando para uma vasilha. Luana: é nada. [...] ficaram ali
brincando e várias crianças se aproximaram [...] Luana ofereceu comida pra mim. Neia também
falou: quer suco? tem de goiaba e Luana: e de morango, toma de morango e deu risada [...]
depois chegou Duda e Neia não a deixou brincar, explicou que ela não ia brincar porque foi na
visita e ela não. Duda retrucou e disse que não teve visita, olhou pra mim e falou: tia, ela não
quer dar uma panelinha pra mim. [...]
Episódio: 06. Tio leia a história!
Data: 20/06/2012
Visita: 08
Local: Brinquedoteca
Os meninos brincavam na brinquedoteca, Toni pegou um livro e disse para o recreador que
estava sentado no chão: leia esta história para nós alto e direito, senão você vai ficar de castigo,
depois pegou um martelo de plástico e disse, se você não ler vou bater em você e ameaçou bater
na cabeça. Saiu e foi dar uma volta na sala, depois novamente foi até o recreador e disse: você
vai ficar de castigo, novamente pegou o martelo de plástico e disse: se você não fizer vou bater
em você e assim ficou um tempo nesse papel, finalmente, achou que o recreador não tinha lido
direito e disse: agora vou te matar.
As crianças recebem visitas de familiares ou de pessoas pretendentes à adoção, e
quando uma criança sai do cercado para ir ao encontro de sua visita as outras ficam
curiosas, demonstram certa ansiedade e perguntam se ninguém vem vê-la. Por conta
disso, Neia não deixou Duda brincar, deveria ser punida porque teve visita e ela não.
As crianças, na brincadeira, desenvolvem a sua imaginação a partir do que
observam, experimentam, ouvem e interpreta da sua experiência,
concomitante, as situações que imaginam lhes permitem compreender o que
observam, interpretando situações e experiências de modo fantasista, até
incorporarem como experiência vivida e interpretada. (SARMENTO, 2012,
p.14).
No episódio 06, a criança com base em que as brincadeiras de faz de conta
partem de experiências e vivências somadas à subjetividade infantil, ao comportamento
autoritário e punitivo, faz alusão a algumas situações compartilhadas na instituição, com
a devida conotação e interpretação infantil. Por exemplo, as prescrições da brincadeira
em que o orientador lhe era imposto “leia esta história para nós alto e direito, senão
você vai ficar de castigo”, possui certa relação com outro episódio em que a prescrição
parte do adulto, o que nos possibilita inferir de que, em alguns momentos, brincam com
a realidade imitando-a literalmente.
Episódio: 05. Brincadeira de casinha dos meninos
Data: 20/06/2012
Visita: 08
192
Local: Brinquedoteca
O recreador reuniu os meninos, mas antes fez um monte de orientações, ou seja, muitas
“regras”, alguns meninos repetiam antes de o recreador falar, repetiam de memória [...]
Exemplo: o recreador disse: desobedeceu? As crianças respondiam: sai da sala. Recreador: não
cumpriu as normas? As crianças: castigo. Nesta hora, ele disse: hoje não tem castigo, será
tirado mesmo da brincadeira porque não temos tempo para castigo [...]
Enquanto a criança sugere castigar, bater e matar, o orientador sugere retirar da
brincadeira, uma punição. Este momento antecede ao episódio da criança, o que supõe
uma interpretação, mesmo que não seja consciente, do comportamento vivenciado
poucos minutos antes com o adulto.
Supõe-se que lidar com mais acuidade as relações construídas nas brincadeiras
pode ajudar a organizar práticas sociais que considerem, também, os desejos e as
necessidades das crianças e, dessa forma, favorecer o acolhimento que minimize o
excesso de regulação presente de forma hegemônica nas instituições que são traduzidas
em normas rígidas. Na prática, tornam-se instrumentos de punições brincadas pelas
crianças.
Não temos argumentos para dizer que a criança brinca de fato com as punições
porque elas lhe ocorram, mas envolve o sentimento da criança que elabora suas
brincadeiras de faz de conta sem se descolar da realidade. Exemplo de brincadeiras com
punição:
Episódio 47. O castigo
Data: 14/09/2012
Visita: 37
Local: Cercado
Lala e Bela foram brincar de casinha. Lala ficou emburrada porque a brincadeira não se
organizou como ela queria, voltou e disse que ia me por de castigo porque não quis brincar, me
mandou ajoelhar no chão de rosto virado para a parede e depois disse que ia chamar todas as
crianças para rir de mim. Entrei na brincadeira, chorei, lamentei e perguntei por que fazia isso
comigo, e ela me respondeu porque eu era teimosa. [..]
Evidente que não quero tratar aqui se esta brincadeira possui verdade ou não,
entretanto, com base de que a brincadeira faz parte do contexto social, é cabível inferir
que o sentimento dessa criança está posto nesta ação que possui referências internas de
sua subjetividade. Ninguém gosta de ser repreendido na frente dos outros, sente-se
humilhado pela atitude de zombaria dos colegas.
Corsaro (2011) apresenta como umas das causas para ocorrência de abuso e
negligência na infância a falta de experiência para cuidar de crianças. Embora o autor
193
esteja preocupado com o contexto familiar, igualmente, nos abrigos existem cuidadores
sem afinidade com a tarefa e sem capacitação. Esta é uma questão que está presente
neste estudo.
Fica evidente que as punições vivenciadas na instituição se refletem no brincar,
mas, vale ressaltar que, de modo geral, crianças põe umas às outras de castigo e, mesmo
as que não vivem em abrigos têm o hábito de punir no domínio da liderança, mas não
deixa de ser um legado herdado do mundo adulto.
Em especial, num abrigo de acolhimento de crianças com capacidade acima do
limite de vagas e profissionais a menos para atendê-los, as regras tornam-se mais
vincadas no cotidiano para controle do comportamento social e homogeneidade nas
práticas cotidianas, logo, na experiência lúdica brincam com os castigos, revivem e
compartilham a universalidade do atendimento ofertado na instituição
5.1.8. Família imaginada, pensada e brincada.
As brincadeiras de casinha, atividades com predomínio de situação imaginária,
com representação de família e atividades cotidianas, é uma categoria notável neste
estudo. No faz-de-conta, fica claro a presença da situação imaginária e o conteúdo desta
situação não é descolado da realidade social. Igualmente, para Vygotsky (2007, p. 28)
qualquer brincadeira com situação imaginária é, ao mesmo tempo, brincadeira com
regras e qualquer brincadeira com regras é brincadeira com situação imaginária.
O conteúdo imaginário da brincadeira é aquele que está baseado em regras,
mesmo que sejam regras de comportamento. O que no dia-a-dia passa
despercebido pela criança, no brinquedo, torna-se foco. Observa-se,
frequentemente, em brincadeiras de crianças, questões ligadas a assuntos
familiares, em que estão presentes a estrutura familiar e a de papéis (pai, mãe,
filhos). Nessas brincadeiras, as crianças copiam e criam regras de conduta
que norteiam a convivência nos diferentes grupos sociais dos quais elas
participam. (OLIVEIRA; FRANCISCHINI, 2003, p.44)
O conteúdo do imaginário provém de experiências partilhadas em muitos e
diferentes contextos, nas atividades brincantes, as crianças não apenas tomam posse de
habilidades ou conhecimentos novos, reconstroem a vida em sociedade e se apropriam
dela. O faz- de- conta das crianças são situações vinculadas à realidade social, afetiva e
relacional das crianças.
194
De acordo com Sarmento (2012) faz parte da construção pela criança da sua
visão do mundo e da atribuição do significado às coisas, neste sentido, para ele o termo
faz-de-conta é inapropriado para dar conta de explicar o modo como as crianças
transpõem situações reais e reconstroem criativamente pelo imaginário, situações e
personagens para seu cotidiano, igualmente interpretam a seu modo fantasioso eventos e
situações de seu dia a dia. O autor propõe o termo fantasia do real45
para abarcar a
complexidade que envolve essa imbricação entre real e fantasia.
Caillois (1990) discute a importância de considerar o jogo uma atividade que
apresenta algumas qualidades, sendo uma delas de ser fictícia, ato de fingimento, viver
na imaginação outra realidade como se fosse a verdadeira, é uma franca irrealidade em
relação à vida normal e, seguindo sua análise, refere-se Mimicry.
Mimicry possui como característica comum se basear no brincar de acreditar,
de fazer acreditar a si mesmo ou de fazer os outros acreditarem que se é outra pessoa, o
prazer é o de ser outro ou de se fazer passar por outro, verdadeiro simulacro. “tudo que
é [...] simulacro está perto do jogo [...] mas é preciso que o componente de ficção e de
divertimento prevaleça” (CAILLOIS, 1990, p.24).
As brincadeiras fazem parte de um contexto social, disso decorre a importância
de observar os significados que assumem em cada momento e situação. No caso deste
estudo, as brincadeiras de casinha possuem especial destaque no convívio das crianças
com temas sobre família e rotina da instituição.
Conforme alguns episódios que serão descritos nesta seção sobre o grupo
pesquisado, me permite dizer que nas brincadeiras as crianças maiores sempre
lideravam o grupo, discutiam regras e igualmente advertiam naturalmente os
transgressores; afinal, como diz Huizinga (2012) “o jogador que não respeita ou ignora
as regras é um desmancha-prazeres”.
Nas brincadeiras, as crianças privilegiam relações de proximidade, demonstram
amizades e preferências nas escolhas para brincar. A experiência do jogo concretiza um
aprendizado involuntário de ocupações sérias da vida adulta, nas brincadeiras antecipam
regras de relacionamento. Os adultos fazem escolhas com quais pessoas serão amigos,
essa dinâmica é evidente nas brincadeiras quando as crianças preferem brincar com os
quais têm mais afinidades.
45
Utilizo a expressão brincadeiras e faz-de-de conta para referir-me às brincadeiras de casinhas com
situações de famílias, ações de fingir, imaginar e imitar personagens, situações imaginárias que não é
deslocado da realidade social. Para resolver essa questão Sarmento usa o termo fantasia do real.
195
Episódio 25. Estou trocando a roupa do nenê
Data: 25/07/2012
Visita: 23
Local: Brinquedoteca
As meninas brincavam com as bonecas. Lala estava abaixada mexendo numa boneca, aproximei-
me e disse: você está brincando de quê? Estou trocando a roupa do nenê. Na sequência, veio
outra colega e ofereceu-me comidinha. Depois, veio Lilia, virou pra mim, mostrou seu carrinho
com a boneca e disse: cuida aí pra mim e foi saindo [...] voltou e pegou sua boneca no colo e
disse: olha o carrinho de meu nenê [...] a Edna me chamou na casinha de boneca e ofereceu café,
ficou dentro da casinha o tempo todo organizando e fazendo comidinha [...] Bela chamou-me
para mostrar um material de cabelo, pediu para passar creme no meu cabelo e pentear, ia dizendo
vou passar creme, vou passar chapinha [...] passou secador sempre muito concentrada na
atividade e afetuosa [...] em outro canto Lala brincava: olha o arquinho, disse, e colocou a tiara
da boneca na cabeça, veio até Bela e colocou um também na sua cabeça, pegou outro de coroa e
disse: este aqui na tia, aqui na tia, as duas ficaram ali na penteadeira, juntas, interagindo. Lala
pegou uma boneca para arrumar o cabelo, Bela pegou algumas panelinhas e começou a fazer
comidinha e disse pra mim: tia, comida para você. Peguei a comida e ela disse: aqui tem mais,
Lala disse : tô penteando cabelo, vou deixar lisinho, lisinho, vou deixar sua filha linda, referindo
que a boneca era minha filha, depois de um tempo, Bela e Lala resolveram guardar as tiaras que
estavam em suas cabeças. Lala disse: vamos guardar lá no fundo (fundo da gaveta) [...] Lala
chamou Bela para pintar o cabelo da boneca, voltaram e pegaram novamente as tiaras, sempre
com o devido cuidado de fechar a gaveta, Lala muito concentrada em arrumar o cabelo. Bela
oscilava entre arrumar o cabelo e fazer comidinha. Keila chegou perto e Lala disse: olha aí tia,
acabei de arrumar e ela quer derrubar, não gostou da presença da colega. Bela disse: ela vai
derrubar nossa casinha. Keila desistiu e saiu de perto [...] fui para outro lado e Lilia mostrou
uma boneca e disse: olha aqui sua irmã. [...] os meninos não se envolveram em brincadeiras de
bonecas, brincaram com homenzinho, carrinho e outros jogos.
Neste episódio, estavam juntos na brinquedoteca os meninos e as meninas,
embora não brincassem juntos. Nesse contexto, escolhi anotar e filmar o grupo das
meninas, que brincavam de ser mãe, cuidar de filho, arrumar casa, incluindo desde fazer
comidas, limpeza da casa até atividades no salão de beleza.
Elas interagiram, negociaram e escolheram as colegas, ou seja, elas definiram
com quem gostariam de brincar. Igualmente, para entrar numa brincadeira organizada
precisavam de permissão, conforme já discutido em seção anterior. Observei que
mesmo juntas não querem brincar com todo mundo, somente com as colegas com mais
proximidade, fato esse difícil de lidar numa instituição onde tudo é de todos e os adultos
acreditam que as crianças precisam aceitar brincar com todo mundo.
Conforme já explicitado, as crianças têm seus códigos e regras próprias na
brincadeira, quando o adulto impõe em demasia surge a transgressão, atritos e
desagrados nessa relação com os cuidadores. Nesse episódio, os temas, regras e
comportamentos possuem referências do mundo adulto, mais especificamente da rotina
de uma casa com presença de mãe, filhos e atividades corriqueiras.
Na brincadeira de casinha, a família tradicional (composta de pai e mãe) é
reiterada vezes brincadas, as crianças representam um cenário de família, da qual nem
196
sempre fazem parte de sua experiência de vida, mas é possível justificar a posição de
que mesmo a criança que não vive em sua família de origem pode estabelecer, a partir
da brincadeira, alguns padrões de interação que dão conta de representar aquilo que para
ela tem significado, deseja ou se realiza no imaginário, o modelo de família que ela
aspira ou rejeita. Afinal de contas, há no espectro de toda brincadeira uma força, para
não dizer uma “capacidadade de arrebatamento e a criança tenta se realizar no seu
mundo lúdico, mesmo que esse jogo proporciona a fuga do real, encantamento ou
evasão”. (CHÂTEAU, 1987, p. 23).
Episódio 29. Vamos a pé, o carro tá sem gasolina
Data: 01/08/2012
Visita: 26
Local: cercado
O garoto Toni tinha me colocado na brincadeira como filha. Na última visita, quando eu cheguei
veio me cumprimentar, investido no papel da brincadeira da visita anterior, como se não tivesse
acabado, disse quando me viu: oi filha! Respondi: oi pai. Ficou perto me fazendo carinho. Logo
surgiu a primeira brincadeira de casinha. Ele era o pai, a Letycia a mãe, eu a filha do casal.
Pegou-me pela mão e levou-me para casa, (um canto do cercado) e me fez tomar banho, passar
sabonete no corpo, esfregar e enxugar com uma toalha e, na sequência, vestir minha roupa, nisso
foi chegando outras crianças que ele ia incluindo na brincadeira, e mandava-as pegar as coisas
pra mim. A cada ordem que ele dava de uma ação, pedia para uma criança pegar o material
necessário. Exemplo, passar sabonete, pegar o sabão, e assim foi pegando as peças de roupas
para eu vestir; pedia que eu vestisse desde a calcinha, a calça, uma blusa e neste momento a
Letycia disse: sutiã primeiro, ele concordou: sutiã e blusa. Ele enfatizou neste momento: Talita
pega uma blusa bem nova porque vamos passear. Depois, mandou-me passar maquiagem. Disse
para pintar o olho, a boca e o rosto todo, depois, pegou na minha mão e a Letycia (mãe) do outro
lado e disseram: vamos passear. Logo, várias crianças pegaram também na mão uma das outras e
saímos numa grande roda andando pelo cercado, todos reivindicavam segurar minha mão.
Fizemos um passeio pelo cercado e voltamos no mesmo lugar. Fez-me sentar novamente no chão
e disse: você vai trabalhar comigo, vai pro meu serviço, levanta, e foi pegando de novo na
minha mão e, por diversas vezes, fingia no trajeto que íamos cruzar a rua, e dizia rápido, corre.
Certa altura da caminhada, disse: vamos a pé o carro está sem gasolina. [...]A brincadeira durou
até receber a ordem para sentar e rezar para servir o lanche no refeitório.
Existiam meninos e meninas, logo a brincadeira se compôs de pai, mãe e filha,
uma típica brincadeira de família tradicional com pai cuidadoso e preocupado com o
bem estar e a proteção da filha, que segura pela mão durante o passeio com palavras e
gestos afetuosos. Não teve nenhum brinquedo, a brincadeira desenrola no imaginário
com menção a algumas normas de rotina da instituição, isso representado na forma em
que dava ordens para os colegas, também com informações de experiência fora da
instituição, por exemplo, atravessar uma rua com cuidado.
Episódio 31. Vamos para nossa casa
Data: 08/08/2012
197
Visita: 27
Local: cercado
O Toni assim que acordou convidou-me para brincar, já tinha feito essa brincadeira na última
visita, como se fosse uma continuação, entrou no papel e disse pra mim: filha vamos brincar? Eu
disse: de quê? Respondeu: vamos para nossa casa, pegou na minha mão e me levou para o
mesmo local da última visita em que ele brincou de família comigo e outras crianças. Toni/Pai:
Vou te dar um dinheiro para depois passear [...] fomos para o canto, o Toni pediu que eu
sentasse no chão, ficou no papel de pai e eu de filha. E foi logo dizendo: você é uma filhinha
pequenininha, igual bebezinha. Deu-me brinquedo e disse: toma pra você brincar, e disse para
outras crianças que foram chegando e observando a brincadeira dele comigo: deixa ela brincar, a
bebezinha. A Letycia que assumiu o papel de minha mãe disse: não fala, reforçando que eu era
pequena e não falava, algumas crianças chegaram e queriam falar comigo. Por conta disso Toni
disse: ninguém pode mexer na filhinha, só o pai e a mãe. Virou pra mim e disse: filha ,pode
brincar. Passou um pouco cuidando de mim, e disse: sua mamãe vai pra trabalho, virou para a
mariana e disse: vai. Olhou pra mim e disse: ela vai, vai trabalhar pra lá, e apontou para a
Letyciaa que saiu e escondeu atrás de um pilar. Virou pra mim e disse: a mamãe mandou um
beijo pra você. Passou um minutinho, cuidando e disse: o papai não vai sair, não vou deixar
você sozinha, passou um tempo disse: a mamãe já vai vir. Nisso chegou um colega, ele apontou
pra mim e disse: ela é pequenininha. O Karlos deitou na minha perna e ele ficou bravo e disse:
não pode sentar na bebezinha. A mãe voltou e ficou perto de minha cabeça, fiz menção de falar
ela disse: filha, você não fala. Novamente alguém quis mexer comigo e o Toni/pai disse bravo:
quem mandou você mexer na bebê o!!! Não é para mexer na bebê. Virou pra mim e disse: vá
dormir, com uma entonação de voz de bravo, mandão e autoritário. E a mãe Letycia reforçou:
oh!! vá dormir, disse pra mim. Novamente a Letycia disse: não é pra falar. O Toni/pai disse: é
pra você dormir com seu bebê , me deu um brinquedo pegou na minha mão levou para outro
canto e disse: deita de verdade, deitei ele ficou me passando a mão para dormir. Depois disse,
vou dormir com você e deitou do meu lado (estávamos no chão). Chegou uma colega começou a
passar a mão na minha cabeça para fazer carinho imitando ele para eu dormir e ele disse: não
pode bater na cabeça dela, é bebê. Passou uns minutos e disse que quando eu quisesse algo lhe
pedisse: pede para o papai tá? A Letycia, com ciúmes porque ele deitou-se ao meu lado, disse:
não gosto mais de você. [...] o pai disse: deixa, eu gosto. Passou mais uns minutos, eu disse:
posso acordar? Ele concordou com a cabeça. Eu insisti e disse: posso me juntar as outras
crianças? Estávamos isolados do grupo, num canto e ele disse: não pode. Voltamos novamente
para casa. Juntou um monte de crianças perto, olhando nossa brincadeira, ele disse: não mexe
com a bebê, afasta um pouco. Saímos para passear, ele pegou na minha mão de um lado e
Letycia do outro. Letycia sugeriu eu andar agachada para ficar pequena logo que era bebê, fiz
que não ouvi e o passeio prosseguiu. O Karlos entrou na brincadeira e disse que sabia andar de
cavalo. Durante o passeio, a Mãe Letycia me ofereceu doce, iogurte de morango, depois várias
crianças mesmo não estando fazendo parte, ofereceram algo para eu comer tais como doces,
chocolates [...] os tios gritaram que todos teriam que sentar no banco para rezar e a brincadeira
acabou.
Neste episódio de família tradicional, com pai, mãe e filha bebezinha, é como
se fosse uma continuidade de uma brincadeira anterior porque as mesmas crianças
representam o casal que brinca de família. Repete o passeio, com pai cuidadoso, mas
autoritário, o papai não vai sair, não vou deixar você sozinha, passou um tempo disse: a
mamãe já vai vir. Mãe carinhosa, virou e falou, a mamãe mandou um beijo pra você.
A representação de uma mamãe amorosa (manda beijo), pai cuidadoso, (não
sai de perto), que manda na casa e, às vezes, autoritário para manter as coisas em ordem,
uma mãe que concorda com as decisões.
As crianças brincam com uma família que sonham ou revivem de modo
fantasioso suas experiências anteriores à instituição? De acordo com a história de vida
198
delas, não possuem uma família com essa configuração na experiência familiar, logo, se
realizam na imaginação o que na verdade não faz parte da realidade social. Entretanto, é
possível inferir o quanto é importante compreender esse desejo infantil, e talvez ajudá-
los a vencer e reparar a ausência de uma família desejada e suportar a dor da separação
do real que eles tinham antes do acolhimento.
As brincadeiras apontam o quanto é relevante conhecer o que as crianças
sentem, pensam e almejam, entretanto, isso só é possível quando existe espaço para as
crianças numa perspectiva teórica que as considerem como sujeitos sociais de direito
pleno. Do mesmo modo, competentes para dizer de si mesmos, e não simplesmente
imaturas, a imaturidade deve ser apenas do ponto de vista biológico, de outro modo
permite que elas sejam hábeis para brincar, exprimir seus desejos, pensamentos, e
desenvolver sua autonomia no dia-a-dia. Isso envolve considerar a alteridade como um
ponto essencial na construção de relações autônomas, ou seja, que respeitem as
diferenças.
Percebi que na brincadeira de casinha da família tradicional, festas de
aniversário e passeios foram os temas recorrentes nas brincadeiras e brincados com
muita seriedade.
Prestes (2011) na sua pesquisa, percebeu que as crianças nas redações e
desenhos retratam uma família feliz com irmãos pai e mãe, mesmo que na sua vida real
não tenham essa configuração composta pelos dois pais. O que parece é que as crianças
tendem a remeter, em suas idealizações, a uma família ideal que talvez não corresponda
a família biológica deixada, mas a uma abstração do que gostariam que ela fosse e do
que ouvem todo tempo sobre família.
5.2. Entrevistas com as crianças: conversando, brincando e ouvindo segredos
sonhos e revelações
A escuta com as crianças acontecia em todos os encontros, pois elas falavam
com gestos, brincadeiras e modos de se relacionar entre elas e com os adultos e com a
pesquisadora. Porém, na busca de ser um processo investigativo com elas, tive um
momento com algumas crianças mais velhas e mais próximas.
O grupo entrevistado toda vez que organizava uma brincadeira me convidava
para fazer parte e, nesse processo, as entrevistas foram feitas em dias diferentes
conforme oportunidade gerada, mas sempre que surgia este momento, a criança era
199
separada num local afastado por conta da gravação, entrevista gravada no refeitório, na
sala da fonoaudióloga e no cercado.
A entrevista tinha um roteiro que não foi seguido fielmente, as crianças falavam
sobre qualquer coisa e nessa conversa ia inserindo a preocupação do roteiro, inclusive
algumas questões não foram respondidas por todas.
As entrevistas foram gravadas, transcritas e transformadas em temas que serão
articulados intercalando descrição de episódios de brincadeiras, entrevistas com os
cuidadores, minhas observações, teóricos visitados e rotina institucional.
5.2.1 Brincadeiras preferidas das crianças
A amostra de crianças deste estudo, de acordo com a idade, predominam as
brincadeiras da rubrica Mimicry conforme Caillois (1990), pois tem como característica
brincar de acreditar, de fazer acreditar a si mesmo ou de fazer os outros acreditarem que
se é outra pessoa.
O desenvolvimento e as brincadeiras são construídos e influenciados por um
contexto histórico, social e cultural, por isso supõe-se que as brincadeiras têm relação
próxima com as regras sociais, morais e culturais existentes, a criança brinca daquilo
que conhece e vive, o que estimula a sua imaginação.
Pela frequência e influência do brincar no desenvolvimento infantil ele pode
ser considerado uma atividade principal da infância, pois a experiência do brincar pode
propiciar melhores condições emocionais para controlar suas atitudes e emoções, no
contexto social.
Indaguei-me, neste trabalho, quais as brincadeiras que as crianças mais gostam
e o significado, responderam seis meninas e quatro meninos idades entre 4,5 e 6 anos.
Bárbi, e brinco, presilha, calcinha, fio dental, bola, helicóptero, aviõezinhos,
cadeira de roda (empurrar colegas cadeirantes) carro de polícia, eu mais
gosto de brincar aqui de bicicleta, de motinha, gosto mais de brincar na
brinquedoteca e no campo porque lá é legal, lá embaixo também, eu gosto de
brincar de casinha só lá no campo (Letycia, 5 anos)
Nessa entrevista, a menina inicia dizendo que gosta de Barbi (barbie), na
sequência, inclui acessórios da boneca e a cadeira de rodas ela cita rindo com a
conotação de que não podia brincar. Existem crianças cadeirantes e, às vezes, eles
200
empurram fazendo de brinquedo, momentos em que são advertidos para não empurrar o
colega. Elege dois espaços para brincar: o campo e a brinquedoteca. Mas deixa claro o
campo como lugar mais legal, e arremata dizendo que a brincadeira de casinha só lá no
campo é bom. Uma questão valorizada nesta entrevista é o fator liberdade para brincar,
nestes momentos observei que brincam muito de faz-de-conta.
Avião, desenhar, jogar bola, fazer comidinha, brincar de boneca, balanço,
escorregador, piscina, boneca, panelinha, carinho é de guri, gosto de
motoca, na minha casa gostava de balanço de corrente, escorregador,
motoca, panelinha, brincava com meu irmão (Laine, 6 anos)
Gosto de brincar na casinha de rainha, de príncipe, mas não tem príncipe de
verdade, gosto muito de brincar de historinha, na minha casa gostava de dar
mama pra meu cachorrinho, [...] quando eu quiser brincar, brinco de castelo
[...] (Vivi, 5anos).
Laine e Vivi trazem à tona referências da família, na minha casa gostava de,
denota-se que estão ligadas às raízes familiares e junto o conteúdo de faz-de-conta.
As meninas gostam de pega-pega, eu brinco com elas, nós brinca de boneca,
carrinho, nós brinca com tudo que a tia traz , mais gosto de brincar de
boneca [....][...] gosto de brincar de casinha [...] gosto de pegar a panelinha
e fazer a comidinha e dar para as crianças, comer de mentirinha [...] depois
arrumar a casinha do jeito que estava. (Neia, 5anos)
Neia e Vivi brincam de faz-de-conta, mas Vivi faz questão de dizer que não é
real, não tem príncipe de verdade, e Neia: vou dar para as crianças comer de
mentirinha.
Gosto de brincar de Barbi, castelo, casinha e de cavalo [...] Gosto de fazer
comidinha na casinha [...] brinco de casinha. (Talita, 5 anos)
Gosto de brincar de pega-pega de tudo [...] lugar que eu mais gosto de
brincar é aqui na brinquedoteca, gosto de brincar de bonequinha, gosto de
brincar de fazer comidinha. (Lia, 5 anos)
As meninas todas gostam muito das brincadeiras de casinha, exemplo das falas,
gosto de brincar de bonequinha, gosto de brincar de fazer comidinha, gosto de brincar
na casinha, gosto de fazer comidinha na casinha, gosto de pegar a panelinha e fazer a
comidinha e dar para as crianças comer de mentirinha,
201
Barco, brinco com cobra no mato [...]. Gosto de brincar de boi, cavalo. [...]
gosto de brincar de barco, de mato, de helicóptero, ambulância, barco.
(Binho, 4anos)
Hominho, avião, cavalo (brinco na fazenda de meu tio), carrinho, cavalo,
boi, aqui no lar caminhão de boi [...] onça, cavalo, boi, bezerro, brinco
disso na casa de meu tio lá na fazenda. [...] carrinho, brinquedos, castelinho
de feijão e o lugar mais legal é a brinquedoteca porque é legal. E que
também gosto muito de pipa. (Karlos, 5 anos)
Karlos, à época da entrevista, estava num processo de passar o final de semana
com um tio para ser reintegrado à família. Estava totalmente focado e encantado com a
nova possibilidade, suas brincadeiras prediletas foram com referências aos finais de
semana na casa do tio e em relação ao lar, disse que o lugar mais legal é a
brinquedoteca.
Gosto de brincar de cavalo, aranha, carrinho de papel, papagaio (na minha
casa) barco, em casa tem caminhãozinho, boizinho, carrinho de brinquedo.
Gosto de brincar de carrinho de atirar. Na minha casa tem bicicleta,
caminhão, boizinho, carrinho de brinquedo, uma baleia, ela morde e vive no
mar. Eu moro lá no jardim e lá tem uma baleia com brinquedos de
homenzinho, gosto de pintar. [...] gosto mesmo de brincar na minha casa que
eu gosto de brincar, mas eu gosto mesmo é de brincar com meu pai de
lutinha e, no final da entrevista, ele repete: gosto de pintar, brincar de
boneca, gosto, muito. (Levi, 5 anos)
Este menino estava na instituição disponível para adoção. O que fica evidente
para este garoto é o desejo de uma família, um lar com pai e brinquedos que está na
imaginação dele quando fala brincar de papagaio na minha casa, em casa tem
caminhãozinho, boizinho, carrinho de brinquedo, tem bicicleta, caminhão, gosto mesmo
de brincar na minha casa que eu gosto de brincar, mas eu gosto mesmo é de brincar
com meu pai de lutinha. E como uma “confissão”, no final, ele fala que gosta de brincar
na instituição de boneca, brinquedos “proibidos” porque é coisa de menina.
Boi, vaca e boi, uma estrela, [...]gosto de brincar homem aranha, de lutinha
( foi na parede e fez gesto de murro).eu gosto de homem aranha, e gosto
também de helicóptero assim ta´, ta, ta, ta, (fazendo o barulho com a boca)
[...] minha mãe deixa eu trabalhar com ela, minha mãe deixa eu tomar
banho sozinho [...]gosto de ser o ben 10 [...]eu trabalho com meu pai.
(Gerson, 4 anos)
Gerson ficou eufórico para dizer sobre suas brincadeiras, muito rápido saiu do
foco e fez referências a seus pais.
202
Com relação às brincadeiras prediletas por parte das meninas, a casinha,
expresso em brincar de boneca e fazer comidinhas, teve preponderância para elas. E na
sequência, as brincadeiras no pátio como o balanço, escorregador, bola, helicóptero,
aviõezinhos, bicicleta, motinha, pega-pega e andar de cavalo que é uma brincadeira com
cabo de vassoura, por fim, citam a brinquedoteca e a boneca Barbie.
Quanto aos meninos, prevaleceu o tema de animais, sendo em primeiro lugar
cavalinho e caminhão de boi, e outros como brincar de cobra no mato, onça, boizinho,
vaca e homem aranha. Brincadeiras com referência ao pátio como bicicleta, lutinha,
pipa, helicóptero e carrinho, caminhão, barco e homenzinho. Brinca-se em qualquer
lugar.
É preciso considerar que a organização do ambiente e as orientações sobre as
brincadeiras influenciam na memória das crianças sobre essas respostas, por exemplo,
durante este estudo, conforme explicado neste trabalho, separação de meninas e
meninos para brincar é explicita e verbalizada pelos adultos, que culmina na assimilação
das crianças. Igualmente, não se pode esquecer que essa orientação faz parte da história
cultural, de separar brinquedos de meninas e meninos, é um comportamento esperado,
de formas diferentes para com os relacionamentos, sendo valorizados atos de bravura e
coragem para meninos e docilidade e submissão para meninas.
Na rotina das crianças, por exemplo, era comum a menina ganhar boneca para
brincar e o menino carrinho e muitos bichinhos de plástico, daí decorre a forte citação
de animais na brincadeira dos meninos.
As diferenças em brincar estão relacionadas a múltiplos fatores que interagem ao
longo do processo de desenvolvimento, dentre eles, o contexto no qual estão inseridos.
Para as crianças desta pesquisa existem a conotação por parte da instituição de que elas
podem envolver-se em atos “proibidos”. Vou retomar aqui depoimentos das
orientadoras:
Eles brincam de pai, mãe e filho, mas aqui sempre teve essa separação de
meninos e meninas, eu acho errado, eles ficam juntos tempo todo, dormem,
comem. Porque na hora de brincar tem que separar? Acho que a proibição
existe porque acreditam que eles vão ficar brincando de papai e mamãe
(orientadora 1)
Se deixar, os meninos mostram o pipi para as meninas e a menina do mesmo
jeito, então, para gente procurar não deixar que ocorra esse tipo de
relacionamento de meninos com meninas, apesar desse ser conhecimento
para eles, nós não podemos deixar, porque qualquer coisa que aconteça nós
somos responsáveis [...] (orientadora 2)
203
Existe uma proibição dos meninos brincarem de casinha com as meninas, é
tudo separado [...] eu acho que isso já é preconceito, porque não tem que
brincar com os meninos, nas brincadeiras de casinha, assim de mamãe e
filhinha, não vai ter papai? Então, no caso, se eles fossem brincar e os
meninos participassem seria o pai, mas o pessoal acha que os guris não
podem brincar, mas eu mesmo já brinquei de casinha com eles, quando
comecei a trabalhar aqui já tinha essa orientação da separação, [...] acho
que devia brincar sim, eles deviam participar, pois faz parte de nossa vida
real [...] (orientadora 4)
A voz desses funcionários deixa muito evidente porque os meninos quando
falam que gostam de brincar de casinha é com receio, exemplo, este menino que no
final da entrevista repetiu com alegria: brincar de boneca, gosto muito, enfatiza.
Neste contexto da pesquisa, conforme depoimento, existe uma regra clara de
proibição, entretanto, dois depoimentos de orientadores não concordam com essa
separação, e outro pensa na questão das crianças, que possuem entre 2 a 5 anos, ter um
relacionamento de conotação sexual entre eles, por isso, é importante a separação.
Sobre esta questão, merece destacar as orientadoras ao dizerem que não sabem o
porquê dessa proibição, o que vem ao encontro de quando relatam que não tiveram
curso e preparação para a atividade de cuidador de crianças, por isso demonstram, na
prática, que não compreendem aspectos importantes de desenvolvimento infantil. Dois
depoimentos afirmam que não tiveram uma preparação para a atividade:
Nunca fiz assim curso para crianças fiz esses cursos para subir na área, não
para trabalhar especificamente com crianças [...] eu não tenho perfil para
esta atividade. (orientadora 2)
Trabalho com minha experiência de babá e creche. (orientadora 3)
Nunca fiz curso desde que entrei aqui. (orientadora 4)
A fantasia ocupa lugar privilegiado onde as brincadeiras são repletas de
elementos de faz-de-conta, sonhos, referências de família, de fazer acreditar que fosse,
destaque especial para a rubrica Mimicry.
As crianças não citam aquele brinquedo predileto, mas se lembram de lugares
especiais tais como campo e brinquedoteca, e indiretamente, o pátio, quando elegem as
brincadeiras deste espaço. Um fato notável é a verbalização da separação entre os sexos,
mesmo que o foco de indagação não seja este, mas é um aspecto observado nos dados e
corroborado pelas orientadoras.
204
Em relação ao significado das brincadeiras para as crianças não é necessário
fazer perguntas, basta estar perto das crianças e presenciar a alegria que demonstram
quando estão juntas a brincar. As crianças se beneficiam muito simplesmente fazendo
coisas juntas, ou melhor, brincando juntas, interagem, aprimoram a linguagem,
exercitam suas habilidades interpessoais e aprendem a lidar com diferentes situações.
5.2.2 Lugares e momentos permitidos para brincar
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em seu artigo 16, estabelece o
direito de “brincar, praticar esportes e divertir-se” e no Artigo 4º: “É dever da família,
da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta
prioridade, a efetivação dos direitos à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao
esporte, ao lazer, [...]”. O brincar é a maneira pela qual as crianças estruturam o seu
tempo, mas, antes de tudo é um direito da infância, uma questão garantida por lei e
esquecido na prática em muitas propostas de atendimento à infância e políticas públicas.
A pesquisa de Navarro (2009) que discute a presença do brincar no contexto da
educação infantil, numa escola da rede municipal de ensino de São Paulo, aponta em
seus resultados o que percebemos, na escola, isto é, que o brincar está presente, existe
um tempo dedicado a ele, mas falta a preocupação com as formas em que ele acontece e
dos materiais disponíveis, pois simplesmente deixar as crianças brincarem por um
tempo diário determinado não é suficiente.
No espaço desta pesquisa, percebi que o brincar está presente, existe um tempo
dedicado e, de certa forma, preocupação com a organização, porém o que me chamou a
atenção foram os espaços e os momentos em que as crianças poderiam brincar, por isso
inseri essas interrogações nas entrevistas com as crianças.
A instituição pesquisada possui características e funcionamento diferente da
pesquisa de Navarros (2009). Trata-se de uma instituição de acolhimento, com
capacidade acima do limite de vagas e, neste contexto, em função do número elevado de
crianças surge para poder contê-las muitas restrições, inclusive, das brincadeiras. À
época da minha pesquisa, a mídia veiculou a seguinte informação:
O Lar [...] sediado em Cuiabá, está superlotado, com quase 100% de
acréscimo em relação a sua capacidade de abrigamento. Preparado para
atender 100, há quase dois anos mantém uma média superior a 160 crianças.
205
Esta semana, por exemplo, havia mais de 180 meninas e meninos vivendo na
única instituição pública estadual, criada para atender vítimas de maus-tratos,
abandono e situação de risco com idade entre zero e 12 anos. O número de
técnicos (psicólogos, assistentes sociais e outros profissionais) é insuficiente
para as visitas que têm como intuito avaliar se a criança pode ser recebida por
um familiar, pelos avós e tios, por exemplo.46
Mediante essa informação, é fácil supor que é necessário muitas “regras e
proibições” para manter a ordem num espaço lotado, já que as crianças recebem muitas
prescrições, inclusive, para brincar. Perguntei para as crianças quais espaços elas não
podiam brincar, uma vez que elas têm todas as “proibições” presentes na mente, mesmo
que não as cumpram.
Nesta categoria, apenas quatro crianças responderam, e é importante destacar
que o foco não recaiu em lugares, mas em situações e ações vistas como proibidas, logo,
o foco foi em transgressão e proibição, com destaque para a sexualidade com uma
resposta direta e duas indiretas, quando referem que no mato não pode e boneca não
pode brincar.
No mato não pode (Binho, 4 anos)
De boneca não pode brincar (Levi, 5 anos)
Brincadeiras que não podem é brincar de namorado, correr na piscina, nos
passeios, as meninas não podem, não pode brincar de
namolado”(namorado). Meninos não pode namorar igual às meninas (Lia, 5
anos)
Com referência a esta temática, as crianças corroboram o que observei no
cotidiano, que a instituição reforça e dá muita importância a questões ligadas a
sexualidade, o que talvez possa até estimular mais a curiosidade infantil.
Com relação aos momentos para brincar, somente duas crianças responderam,
mas destaco apenas uma, que de igual modo, relacionou momentos com a questão da
sexualidade e citou lugares, por exemplo:
Não pode brincar no cinema [...] não pode namorar [...] namorar é beijar na
boca, ficar coxando, [...] os meninos não pode mostrar pinto para as
meninas e as meninas não pode mostrar a xereca para os guris, [...] quando
acontece fica grávida e morre assim pequena [...] não pode brincar e nem
falar também (desse assunto) [...] (Vivi, 5 anos)
46
http://diariodecuiaba.com.br/detalhe.php?cod=420473. Diário de Cuiabá/02/11/12. Acesso em 25/03/13
206
O vocabulário me chamou atenção, muito forte. A fala dessa criança deixa claro
que a sexualidade é um assunto proibido, não pode falar e nem brincar. Nos lugares que
não podem brincar, um deles seria o cinema, este espaço parece que as crianças não
assimilam como algo prazeroso, é usado com muitas regras, conforme explicado, com
filmes longos que não condizem com a subjetividade infantil de 2 a 5 anos. Uma
questão que atravessa as representações das crianças é o brincar impregnado de valores:
não pode brincar no mato, nem com bonecas, nem no cinema e nem falar de temas sobre
sexualidade.
No transcorrer da história, percebemos que a brincadeira sempre está
autorizada ou monitoradora pela conveniência dos adultos, por exemplo, nos
fragmentos de registros neste trabalho sobre a história da infância e as brincadeiras,
notamos que no período da caça e pesca, as crianças tinham espaço para brincar,
inclusive, com os adultos, mas por outro lado, é possível pensar que estes cuidados com
os pequenos ajudavam os adultos no andamento do trabalho, pois de alguma forma,
levar crianças para a coleta prejudicava o resultado, as crianças brincavam, eram
poupadas do trabalho, mas os meninos brincavam já se preparando para a caça porque
muito cedo eram inseridos nesta atividade.
As brincadeiras sempre estiveram ligadas ao processo histórico. Caillois (1990)
destaca que uma das qualidades do jogo é justamente ser improdutivo, e nisso reside o
impasse numa sociedade de consumo de que tudo precisa resultar num produto e essa
ideia atravessa as instituições no sentido de que as brincadeiras devam ser sempre com
uma finalidade. Ao contrário, o brincar é considerado por alguns como pura perda de
tempo, isso envolve a discussão de que o trabalho é mais valorizado em detrimento do
ócio.
No espaço institucional, sobrepõe o brincar dirigido, talvez por isso, as crianças
assimilem tantas proibições de lugares, momentos e temas nas brincadeiras, fato este
observado nesta pesquisa. Brougère aponta que o brincar como tarefa imposta é
totalmente sem sentido, o que é reverberado por Huizinga quando afirma que o jogo só
é jogo se o jogador está ali para jogar, se entra na alma do jogo.
5.2.3 Aborrecimento quando está brincando
207
Durante as observações percebi que algumas coisas aborreciam as crianças nas
brincadeiras. Na atividade lúdica, elas demonstram sentimentos, fazem escolhas e são
críticas, aspectos estes que nem sempre são percebidos e levados em consideração pelos
adultos.
Uma questão importante, nessa categoria, é que as próprias crianças dão
respostas do quanto as brincadeiras podem emprestar um caráter educativo, mesmo
quando são livres, conforme Huizinga (2012) e Caillois (1990), que consideram uma
das características o fato de ser livre. Igualmente, Brougère (2004) indica que o brincar
é a criança que decide sua participação.
Para Brougère (2010) a primeira característica da brincadeira é o faz de conta,
pois começa com referência a algo que existe de verdade e depois, essa realidade é
transformada para ganhar outro significado. Neste universo, as crianças revelam o
quanto o brincar pode ajudá-las no aprendizado de normas sociais e outros aspectos de
desenvolvimento à medida que brincam, conectadas com a realidade social.
Interroguei as crianças sobre situações de aborrecimentos, nas brincadeiras. Sete
crianças responderam
Fico brava, quando os outros batem em mim. (Talita, 5anos)
Quando estou brincando não gosto que as crianças batam (Neia, 5anos)
Fico brava quando fica provocando eu, quando vem bater em mim [...] (Lia,
5 anos)
É bater e xingar minha mãe [...]aqui no lar o que deixa eu brava é quando
não deixam eu brincar, aqui no lar brinco na casinha com as meninas e não
com os guris [...] os guris não podem brincar de bonecas porque eles tiram a
roupa e vê a perereca dela [...] (Letycia, 5 anos)
Quando alguém fala para as tias que tô fazendo algo assim e não tô [...]
depois quando eu fico brava,bravona [...] (Vivi, 5 anos)
Quando não tem brinquedo. (Binho, 4 anos)
[...] quando bagunça a brincadeira [...] meu pai, porque ele não deixa eu
brincar ele fala pra mim dormir e não tá na hora de dormir. (Levi, 5 naos)
Elas falam que não gostam que os colegas batam nelas e nos outros, o que
denota sentimento de respeito, algo que impede de fazer ou dizer coisas desagradáveis a
alguém, igualmente, surgem respostas que não gosta da mentira, exemplo, não gosto
quando alguém fala para as tias que tô fazendo algo assim e não tô. As crianças
208
sugerem ainda que se aborrecem quando não deixam elas brincarem, não disponibilizam
brinquedos, brigas com elas e entre elas (bater), bagunçar a brincadeira, mentira e
provocação.
Nos depoimentos das crianças, elas deixam evidentes que a brincadeira
proporciona aprendizado e que elas podem naturalmente aprimorar-se com o simples
fato de brincarem juntas, pois as questões que as aborrecem estão ligadas em assuntos
administrativos quando citam a ausência de brinquedos, mas também passa pelo viés de
normas sociais quando não gostam de brigas e fofocas.
Observei que novamente surge o tema sobre a sexualidade e proibições, nas
brincadeiras, conforme relato: aqui no lar brinco na casinha com as meninas e não com
os guris, os guris não podem brincar de bonecas porque eles tiram a roupa e vê a
perereca dela.
O tema é retomado pelas crianças nessa categoria de aborrecimentos, isso sugere
pensar que as crianças se aborrecem com os adultos quando não sabem lidar com essa
situação natural e peculiar do desenvolvimento infantil, quando elas brincam não têm
conotação erótica da forma que os adultos atribuem, a interpretação e percepção dos
adultos são diferentes das crianças.
Na pesquisa de Martini (2009) um de seus objetivos é buscar compreender como
as educadoras reagem diante da manifestação da sexualidade por parte das crianças de
três a quatro anos, na educação infantil em sala de aula, e como trabalham com esta
questão.
Entre os achados da pesquisa, a autora afirma que todas as educadoras da
educação infantil haviam vivenciado alguma situação que envolvesse a sexualidade de
seus alunos e relatam que é normal e que faz parte do cotidiano escolar. Na entrevista,
as educadoras citam casos conforme relatos destacados na pesquisa: “[...] um menino
estava indo no banheiro e mostrando seu “pipi” para as outras crianças, e todo o dia as
crianças chegavam dizendo que essa criança estava mostrando o “pipi”. “O aluno ficava
mostrando seu “pipi” para as outras crianças, abaixava as calças”. (MARTINI, 2009,
p.19)
Retomo a situação da pesquisa deste estudo. A instituição lida com essas
situações de descoberta e curiosidade com uma conotação negativa entre os orientadores
que comentam, advertem as crianças e percebem, conforme este relato de uma
orientadora: só sabem fazer o que não presta. Este comentário foi em decorrência de um
209
garoto, que segundo ela, mostrou o pipi e, segundo a pesquisa de Martini, é uma
situação comum entre crianças que não seria diferente numa instituição de acolhimento.
A pesquisa de Martini (2009) aponta que apenas uma educadora da amostra
nunca fez nenhum curso/palestra sobre o assunto, considera que a formação e o
conhecimento sobre o assunto podem auxiliar na tomada de decisão quanto à
intervenção, diálogo e orientação com as crianças. O estudo indica que algumas
educadoras agem de modo assertivo frente às manifestações sobre sexualidade,
entretanto, nem todas conseguem agir adequadamente, ainda existe muito despreparo e
o primeiro impulso é o de gritar, ou brigar com as crianças. Este último comportamento
é muito comum, nesta pesquisa.
O contexto desta pesquisa é uma instituição que abriga crianças vítimas de
negligência e, inclusive, violência sexual, conforme fragmentos deste relato: as
brincadeiras que não pode aqui no lar é xingar e não pode fazer besteira, a mulher
namorar com homem, faz no chão, já vi lá longe no bairro [...] (Letycia, 5 anos) A
criança, autora dessa fala, possui uma história de abandono e negligência, talvez esta
história de vida e de outras crianças influencie na forma de lidar com mais controle e
desconfiança, por outro lado, deve ser indicativo de que a capacitação é um ponto
indispensável.
Os pequenos incluem a questão da sexualidade em tudo que se dialoga com eles,
e o fato dessa temática ser recorrente sinaliza a importância de trabalhar de outro modo,
com novos olhares, um fato que faz parte da vida das crianças e das pessoas adultas.
5.2.4. Brincadeira de casinha
A brincadeira de faz de conta imprime significados aos objetos, simula ser outro
personagem ou cria contextos imaginários é uma atividade que ocorre interações,
resolução de conflitos, assumem papéis e distintos significados.
Conforme Sarmento (2012, p.14)
As crianças desenvolvem a sua imaginação a partir do que observam,
experimentam, ouvem e interpreta da sua experiência, concomitante, as
situações que imaginam lhes permitem compreender o que observam,
interpretando situações e experiências de modo fantasista, até incorporarem
como experiência vivida e interpretada.
210
Brougère (2010) discute que a primeira característica da brincadeira é o faz de conta.
Neste estudo, a brincadeira de casinha, momento em que prevalecia os papéis de faz de
conta, era uma atividade em que as crianças demonstravam muita alegria, trocas,
diálogos, personagens e papéis encenados, na maioria das vezes, de família relacionada
a pai, mãe, irmãos e, algumas vezes, tios, primos e avós. Solicitei a quatro crianças para
falar sobre essa brincadeira, sendo dois meninos e duas meninas:
Na casinha gosto de fazer comidinha bolinho, lavar vasilha, lavar roupa, fazer
comida, trocar de roupa, trabalhar, [...] vou fazer uma casinha de florzinha
[...] (Letycia, 5 anos)
Gosto de arrumar, não brinco de boneca, a tia não deixa. (Binho, 4 anos)
Gosto, amo brincar casinha, de comidinha, de boneca não é de menina!! Muito
legal brincar de cachorrinho. E no final da entrevista ele repete: gosto de
brincar de boneca, gosto. (Levi, 5 anos)
Na casinha, gosto [...] eu gosto mais e mais de brinquedo, de brincar de
panelinha, de casinha de castelo, rainha. (Lia, 5anos)
Percebi, neste estudo, que os meninos são cerceados de brincarem com as
meninas de casinha, inclusive, organizou-se na brinquedoteca uma casinha de boneca
para as meninas e uma casinha com bichos e instrumentos musicais para os meninos.
A brincadeira de casinha é uma atividade que, diferente do que imagina a
logística dos adultos de que os meninos não gostam de brincarem com bonecas porque é
atividade de meninas, percebi que os meninos gostam muito. Ficou muito claro que eles
exercem papeis de meninos na brincadeira de casinha, o Binho argumenta que: não
brinco de boneca porque a tia não deixa. O Levi relata de forma marcante gosto, amo
brincar de casinha de comidinha. E arremata de boneca não, é de menina! Mas no final
da conversa retoma e confessa gosto de brincar de boneca, gosto, enfatiza.
Para eles brincarem plenamente da brincadeira de casinha era necessário usar
da transgressão, uma vez que eles gostavam bastante e não lhes era permitido, quando
estavam juntos alguns orientadores sempre sinalizavam a casinha dos meninos e a das
meninas pelas cores e por alguns brinquedos.
A definição de papéis, brinquedos e quais atividades são de meninos e meninas é
uma questão histórica e cultural, entretanto, esses dados sugerem que seria importante o
brincar juntos para potencializar papeis e comportamentos que são diferentes entre
meninas e meninos, e também, porque eles gostam.
211
Ao recorrer a Barbosa (2006), a dissimulação do mundo de faz de conta e de
jogos dramáticos pode emprestar às crianças a possibilidade de imitar o mundo dos
adultos, interpretando o meio em que vivem e reelaborando situações desconfortáveis,
condições que ampliam a sociabilização e o desenvolvimento da linguagem verbal, a
criatividade e os pré-requisitos para o conhecimento sistematizado. Portanto,
importantes para qualquer criança.
5.3. Entrevistas com as orientadoras47
: olhares e percepções da realidade
institucional sobre as crianças.
Embora este estudo busque privilegiar a voz das crianças, considerei necessário
ouvir os orientadores sobre o processo lúdico na instituição, já que essas informações
são de valia na triangulação dos dados, por outro lado, são eles que ficam todo o tempo
com as crianças e foram meus interlocutores em todas as visitas que fiz na instituição,
sendo que nossa relação de confiança foi construída aos poucos.
Não entrevistei todos, efetivamente tive contato e convivência com dois plantões
com a média de 5 cuidadores, num universo de aproximadamente dez pessoas. O
primeiro critério de eleição foi o vínculo empregatício porque isso me garantia a
presença deles no ano seguinte, uma vez que os contratos estavam no aguardo de
encerrar no final do ano, enfim, por conta de disponibilidade e voluntariedade foram
entrevistados quatro, sendo duas orientadoras efetivas e duas outras cujos contratos
ainda não estavam na iminência de encerrar.
5.3.1. Espaços em que as crianças mais brincam
O brincar da criança nas instituições carrega em si algumas questões
recorrentes, que ganham maior visibilidade e contornos de acordo com a finalidade da
instituição. Neste estudo, trata-se de um espaço que acolhe crianças retiradas de suas
famílias por conta de violência de qualquer natureza, por isso, possui normas diferentes
do espaço de educação infantil, porém as crianças são as mesmas, com muita
vivacidade, criatividade e disposição para brincar.
47
Os roteiros das entrevistas estão em anexo
212
Um trabalho sobre a etnografia do brincar, tanto na Educação Infantil quanto
numa instituição de acolhimento, é inevitável que algumas perguntas sejam pertinentes,
exemplo: como é o brincar das crianças na instituição? do que brincam? como se
organizam ao brincarem? quais são suas brincadeiras preferidas e os espaços
utilizados?.
A pesquisa de Silva (2012) realizada numa instituição de Educação Infantil
aponta questões observadas neste estudo, como por exemplo, a constatação de que as
crianças realizavam, em seu cotidiano, uma série de ações que poderiam passar
despercebidas pelos adultos, visto como algo episódico ou que não merecesse atenção,
mas que traduziam uma intensa produção cultural dos pequenos.
De acordo com a pesquisa, quando as crianças estavam no pátio muitas coisas
que elas inventavam ou produziam para brincar, por exemplo, saltar das rampas de
cimento ou escalar paredes; caçar grilos, aranhas, lagartixas e outros bichos nos
gramados da escola; dar cambalhotas na grama; explorar os espaços atrás dos prédios,
como as matinhas próximas ao portão de entrada.
Durante minhas anotações, no parquinho, percebi as crianças caçarem
formigas, brincarem com folhas secas, e balançarem em gangorras de forma diferente,
mesmo quando não tinham brinquedos, eram incansáveis na invenção, talvez decorra
daí o resultado dessa categoria. Quando indaguei às orientadoras sobre os espaços
preferidos das crianças, elas responderam:
Elas gostam muito do parquinho, por mais que esteja tudo quebrado
(orientadora 1)
[...] no parquinho que eles gostam mais, na hora em que a gente abre o
portão eles descem embalados, e depois do parquinho a brinquedoteca,
cinema eles não interessam muito (orientadora 2)
Pra elas é o parquinho [...] apesar de aqui eles não terem tanta escolha né,
eles têm o parquinho e o campo de futebol, os meninos gostam muito do
futebol e a pipa, as meninas gostam mias do parquinho, tem essa diferença
(orientadora 3)
[...] eu acho que é aqui no pátio, porque eles convivem e conseguem mais
ficar juntos e entender, nesse pedaço aqui, (aponta para o pátio) entendem
mais a brincadeira. (orientadora 4)
Apontam em primeiro lugar o pátio, na sequência, parquinho, campo de
futebol, brinquedoteca e, igual às crianças, também não citam o cinema. Lembram,
conforme observei, que o parque estava com vários brinquedos quebrados, e que não
213
possui variedades, um comentário que vem ao encontro do que este estudo percebeu, da
importância de estruturar as brincadeiras das crianças. Na verdade existe uma mistura
entre parquinho e parque, sendo em alguns momentos o pátio se sobressai.
A orientadora faz referência às crianças: na hora em que a gente abre o portão
eles descem embalados, isso indica que talvez decorra do fato de as crianças ficarem
muito segregadas, presas e quando têm a oportunidade de sair e brincar livres ficam
muito eufóricas, conforme observado em vários momentos.
No pátio, citado como local de maior preferência das crianças, percebi que as
brincadeiras eram estimuladas entre as crianças da mesma idade e grupo, mas, no estudo
de Silva (2012, p. 129) “as brincadeiras envolviam pequenos grupos de crianças de
várias idades”. Continua o autor:
Um aspecto que me chamou a atenção foi que quanto menor era a idade das
crianças maior era o controle dos adultos sobre elas, que, por sua vez, reduzia
a circulação das crianças pelos espaços da escola, limitando também a
possibilidade de troca com crianças de outras idades.
Percebi muito dessas questões no pátio, neste estudo, ligado a questões de
proteção e cuidados com a integridade física, as crianças eram muito controladas e
reduzido seu universo de exploração e possibilidades de trocas e encontros com crianças
de outras idades.
5.3.2. Percepção sobre as brincadeiras das crianças
Conversei com os orientadores sobre o que eles percebiam da brincadeira das
crianças, como elas se organizam, relacionam, enfim, tudo que fossem capazes de dizer
com as observações na convivência cotidiana, uma categoria importante, porque além
de falar sobre as brincadeiras, flui também sobre a visão de criança e o papel de
orientador, ou seja, falam sobre as brincadeiras, a instituição e sobre a função deles.
Sempre tem aquele grupinho formado, as meninas que se dão melhor com
uma e não com aquelas mais pequenas em relação a elas, elas batem, são
maiores, então elas não querem brincar, meio que exclui, eu vejo assim
quando tem aqueles meninos também que elas gostam de ficar mais juntinho,
já tem outros que elas afastam, eu noto que são aqueles mais feinho, meio
que exclui. Na brincadeira, tem de tudo. (orientadora 1)
214
Então, na verdade eles não pedem nada, nós determinamos, o que mais
gosta na verdade é brincar no parquinho, mas se você deixar à vontade, eles
vão empurrar um ao o outro, nunca tem aquele entendimento, precisa estar
orientando para não dar confusão, se deixar por conta deles é uma bagunça,
só, porque na verdade aqui não é tipo uma creche, é como se fosse a casa
deles, eles entendem que são donos de tudo, mas só que existem regras para
lanchar , para brincar, tomar banho, regra para dormir, essa regras que eles
têm que obedecer, mas dizer que eles pedem: vamos brincar, nunca pedem,
entendeu? (orientadora 2)
Sempre aquela que quer ser a cabeça da brincadeira, ela quer dirigir a
brincadeira, só que não podemos deixar, porque como que ficam as outras,
nós que somos orientadores temos que ter nossos sentido de brincadeiras
com eles, precisamos interagir com eles [...] apesar que temos a nossa
recreadora, mas quando ela leva assim as crianças para brincar nós nunca
deixamos ela sozinha porque é complicado, são muitos meninos e meninas,
nós temos que dar uma força para ela [...] mas se você deixar sempre tem um
que quer interagir e ser a cabeça da brincadeira, até então a gente deixa pra
você não deixar ela magoada, na brincadeira sempre um lidera: Wesley,
Kelvin, Larissa e Mariana, os maiores.( orientadora 3)
A brincadeira das meninas tem momentos que elas vivem na vida real como
se fossem na casa delas, assim mãe e filha [...] essa brincadeira que eu fico
observando, e os meninos é mais assim coisa de meninos, é futebol né, bola,
as meninas já tem mais uma carência de convivência como se tivesse na casa
delas, entende? Uma coisa que me chamou atenção é assim, existe uma
proibição dos meninos brincarem de casinha com as meninas é tudo
separado [...] eu acho que isso é preconceito, porque não brincar com os
meninos? Nas brincadeiras delas de casa, assim de mamãe e filhinha, não
vai ter papai? Então no caso se eles fossem brincar e os meninos
participassem seria o pai, mas o pessoal acha que os guris não podem
brincar, eu mesma já brinquei de casinha, o Wesley fazendo comidinha, me
dando suquinho, as brincadeiras sempre ficam somente mãe e filha,
[...]quando comecei a trabalhar já tinha essa orientação da separação,
[...]eles deviam participar, pois faz parte de nossa vida real , tudo vai ser
separado, os meninos não podem ficar com as meninas? hoje em dia não tem
futebol feminino? (orientadora 4)
Tudo que foi verbalizado pelas orientadoras está presente nos episódios e
também anotado no diário durante a pesquisa, o que denota que a percepção vem ao
encontro do contexto e corrobora as descrições que são elaboradas, neste estudo.
Ao recorrer as falas das entrevistas, percebi que existe percepção de que o tema
predominante na brincadeira das meninas é sobre família/casinha e que elas têm mais
vontade de brincar de casinha. Na análise dos episódios, constatei que o tema mais
recorrente é sobre família e por conta da idade do grupo, as brincadeiras possuem
predominância de fingir, representar e fazer de conta.
Algumas brincadeiras são passadas de geração para geração por meio da
tradição cultural, e dentre essas brincadeiras destacamos a do faz de conta, na
qual as crianças brincam de casinha, imitam pessoas, representam papéis,
215
fazem comida, consertam carros, dentre outras representações. Essa
possibilidade de experimentar através do lúdico várias situações do cotidiano
auxilia as crianças a compreenderem suas próprias vivências, bem como
a elaborar e reelaborar dificuldades e conflitos. (PAIVA; NUNES; DEUS,
2010, p. 90 grifo meu)
Na sequência, aparece o tema das brincadeiras e brinquedos por sexo e a
separação entre meninos e meninas para brincar, conforme a entrevista, “proibição dos
meninos brincarem de casinha com as meninas é tudo separado - o pessoal acha que os
guris não podem brincar”.
As crianças retomam esse tema em todos os momentos da entrevista, permeia
todas as questões ditas por elas, desperta extrema curiosidade, somado ao momento de
seu desenvolvimento infantil em que a busca por conhecimento sobre a sexualidade
humana é muito natural.
As orientadoras percebem que na brincadeira existe liderança, os maiores
lideram, exemplo, sempre tem aquele grupinho formado e sempre aquela que quer ser a
cabeça da brincadeira. Igualmente, existe escolha e preferência, conforme
depoimentos, as meninas que se dão melhor com uma e não com aquelas menores em
relação a elas, eu vejo assim quando tem aqueles meninos também que elas gostam de
ficar mais juntinho, já tem outros que elas afastam e essas questões são atributos
vividos na relação interpessoal do mundo adulto.
Elegem, de certo modo, o lugar predileto para brincar o parquinho, as crianças
também citam o parquinho com ênfase quando citam muitas brincadeiras feitas nesse
espaço.
Conforme discutido na construção teórica desse trabalho, optou-se pela criança
ator social porque interage com as pessoas, com as instituições, reage frente aos adultos
e desenvolve estratégias de luta para participar no mundo social. Sujeito ativo e não
meramente passivo, logo, é importante romper com a relação de poder do adulto sobre a
criança. É necessário saber ouvir. Entretanto, essa lógica ainda é muito difícil e não
adentrou plenamente os muros das instituições de diferente natureza que lidam com a
infância.
Conforme este depoimento, na verdade eles não pedem nada, nós
determinamos, significa pensar que as crianças não sabem nada do que querem e
desejam. Na verdade, elas pedem muito, o que precisa são de ouvidos e sensibilidade
para essas inquietações e solicitações.
216
Os depoimentos demonstram que as crianças não são capazes de brincar
sozinhas, mas se você deixar à vontade, eles vão empurrar um ao o outro, nunca tem
aquele entendimento, precisa estar orientando para não dar confusão, se deixar por
conta deles é uma bagunça só.
Este relato traz à tona a criança que há séculos se discute como tabula rasa,
pecaminosas, receptáculo da educação dos adultos e tantas outras conotações que
indicam uma imagem, diria, negativa da criança. De fato, crianças juntas fazem
confusão, às vezes, têm dificuldades de se organizarem e por isso precisam da
orientação dos adultos, mas isso não lhes tiram sua capacidade e competência para suas
atividades brincantes.
Os orientadores desejam que a instituição seja um lar para as crianças,
conforme orientações técnicas para esses espaços, entretanto, se perdem na prática entre
o que aspiram e a realidade, que são muitas crianças juntas, somado a muitas regras,
para comer, brincar, dormir e tomar banho, o que inviabiliza o acolhimento e olhar
atento às necessidades individuais.
Segundo a fala desse relato: porque na verdade aqui não é tipo uma creche é
como se fosse a casa deles, eles entendem que são donos de tudo, mas só que existem
regras para lanchar, para brincar, tomar banho, regra para dormir, essas regras que
eles têm que obedecer, mas dizer que eles pedem vamos brincar, nunca pedem,
entendeu?
Com respeito à atividade dos orientadores, os depoimentos elucidam que eles
deviam ter um papel mais atuante, como interagir e ajudar. Com base nesse relato,
precisamos interagir apesar que temos a nossa recreadora, mas quando ela leva as
crianças para brincar nós nunca deixamos ela sozinha porque é complicado, são
muitos meninos e meninas, nós temos que dar uma força para ela. Este relato vai ao
encontro do que denominei cuidadores sentinelas, porém, neste trabalho, eles sabem
que precisam ir além do que fazem, mesmo cerceados por um sistema que está a serviço
do estado e não da criança.
Coerente com o que é observado na dinâmica de trabalho institucional pela
falta de orientação, de proximidade e de diálogo com os orientadores sobre as práticas e
rotinas das crianças e da instituição, presenciei por diversas vezes esses profissionais
não saberem qual a razão de uma atividade, como, por exemplo, a separação por sexo
para brincar, conforme se constata nos relatos: quando comecei a trabalhar já tinha
essa orientação da separação, as brincadeiras sempre ficam somente mãe e filha.
217
A instituição não dá voz aos orientadores, entretanto, conforme um relato,
denota que são capazes de entender lances importantes para as práticas brincantes das
crianças. Em outros termos, percebem que as crianças precisam ter uma rotina similar
ao mundo real, de que as brincadeiras servem como uma experiência para a vida: eles
deviam participar, pois faz parte de nossa vida real, tudo vai ser separado? Os meninos
não podem ficar com as meninas? Este relato denuncia que existe um rastro de
entendimento de que as brincadeiras servem como desenvolvimento de habilidades para
o mundo adulto. Na brincadeira tem de tudo, diz a orientadora, ou seja, a brincadeira é
uma atividade importante e que dialoga com e sobre a criança.
Os orientadores, de modo indireto, pedem socorro por não saber lidar com
situações cotidianas, sempre um lidera, os maiores, sempre tem um que quer interagir e
ser a cabeça da brincadeira, até então a gente deixa pra não magoar. Existem conflitos
entre as crianças em que, na figura de orientadores, eles não sabem lidar.
5.3.3 Brincadeiras e relação com a experiência de vida das crianças
Elas fazem coisas também que acontecem aqui no lar, já vi crianças brincar
com situações do lar imitando orientadores, elas pegam uma criança e imita
um castigo dizendo: você vai ficar aqui, fica sentado aqui você está de
castigo eu já falei pra você ficar quieto e você está desobedecendo, imitando
assim um orientador, brincam de ser orientador, coloca a criança sentada.
(Orientadora 1)
Um pouco da violência, vejo mais pro lado da violência, porque olha só se
um está com um lápis de cor aqui na mão outro já vem e toma e já morde e
já puxa o cabelo, acho que tudo isso é reflexo da situação que eles vivem,
por mais que a gente tenta dizer que não pode, não sei também devido à
faixa etária deles, que estão aprendendo né, pois de 2 a 5 estão aprendendo
tudo [...] mas eu vejo que existe muita violência por parte deles, por
exemplo, o novinho que chegou hoje, os outros, já partem para agressão,
para morder, os que estão na casa parte para morder aquele que chegou, o
Lucas, por exemplo, ele está aqui, mas daqui a pouco já parte para morder
outro, qualquer um que chega que eles percebem que é novo na casa eles já
partem para agressão, não só eles, alguns que já passaram pela casa fizeram
o mesmo.(Orientadora 2)
Muito, porque criança precisa brincar, a brincadeira em primeiro lugar
para eles, aqui já é um ambiente fechado pra eles, ficam nessa parte,
enquanto para nós é bem diferente (Orientadora 3)
Sim, muito, observo como as meninas maiores que já entendem mais um
pouquinho do que as pequenininhas, neste caso, transforma em mãe que
cuida dos pequenininhos como se fosse filhas, é a hora que eu acho que tem
uma emoção grande. (Orientadora 4)
218
Notei, nesta categoria, que cada entrevistado abordou uma questão, sendo todas
percebidas nos episódios das crianças e nas entrevistas com elas. Enfatizam que as
crianças brincam de família/casinha com mães cuidadosas com seus filhos, brincam
com as prescrições da instituição, ou zombam da autoridade adulta em suas
brincadeiras, conforme sugere Corsaro (2011):
Um depoimento foca a violência como uma experiência pertinente do grupo de
crianças, mas avaliando os comportamentos enumerados com conotação de violência,
pode-se pensar em outras bases sobre esses conflitos.
As crianças imitam atitudes dos cuidadores, conforme depoimento anterior. Em
entrevista com as crianças, uma delas relatou que quando não consegue participar de
uma brincadeira recorre ao orientador que “toma” o brinquedo, como aparece neste
fragmento de entrevista com uma menina de cinco anos, dizendo: quando quero brincar
que não deixam [...] falo para a tia e ela toma o brinquedo.
Presenciei, numa tarde, enquanto observava as crianças no cercado, o orientador
“arrancar” sem nenhuma palavra os brinquedos da mão das crianças porque estava na
hora do lanche. Frente a essas observações, parece que a violência trazida na entrevista
está mais para aprendizado e reprodução de condutas que ocorrem na instituição e
fortalecida pelo comportamento infantil que deseja, em alguns momentos, não
compartilhar seu brinquedo do que para a violência. Da mesma forma que os adultos
agem em muitas situações, sem diálogo, as crianças agem com o corpo para manter e
prevalecer seu desejo: vem e toma e já morde e já puxa o cabelo, acho que tudo isso é
reflexo da situação que eles vivem.
Corsaro (2011) discute a proteção do espaço interativo que seria a tendência
natural da criança em proteger a sua brincadeira de invasores. Conforme depoimento da
orientadora: qualquer um que chega que eles percebem que é novo na casa eles partem
para agressão. Nesta pesquisa, este comportamento poderia ser denominado,
parafraseando Corsaro, de proteção do espaço de convivência.
As crianças desse estudo vivem em um espaço delimitado, dentro de uma
instituição, conforme depoimentos: Aqui já é um ambiente fechado pra eles e ficam
nessa parte, aqui é uma cadeia dentro de outra, as crianças ficam juntas e quando chega
um colega novo não é feita a apresentação, acolhimento e diálogo, sendo que o grande
número de crianças é um dos fatores que não possibilita fazer acolhimento, logo, a cena
mais recorrente é a criança chegar e ser imposta que deve se adaptar à rotina do grupo já
estabelecida e por outro lado, o grupo aceitar o novo.
219
O sofrimento torna-se duplo, primeiro, das crianças que desejam proteger seu
espaço de convivência; segundo, da outra que chega por não compreender as regras as
quais lhe são impostas e as razões de ficar ali.
Neste embate entre antigos e novatos, fica evidente que as particularidades das
crianças não são levadas em conta, não existe uma escuta técnica e qualificada das suas
angústias e necessidades, escuta que não é possível num ambiente superlotado, e fica
evidente o enfraquecimento das práticas e diretrizes de atendimento previstas nos
princípios do ECA. E neste caso, em especial, vista como violência.
Os depoimentos sugerem que o brincar das crianças está relacionado ao contexto
da instituição, envolvendo os adultos que cuidam e os profissionais responsáveis. Neste
contexto, seria mais viável fluir uma interação que pudesse favorecer e incentivar em
detrimento do proibir e restringir a manifestação de determinadas brincadeiras.
Os depoimentos dão conta de apontar que as crianças brincam com tudo que
remete a sua história e experiências na instituição.
5.3.4. Importância da brincadeira para as crianças
Nesta categoria, os sujeitos consideram a brincadeira uma forma de a criança
elaborar conflitos, liberta-se dos horrores da “prisão” institucional e de serem mais
felizes.
Com certeza!! [...] é saudável ajuda eles a distanciar a saudade da mãe.
(Orientadora 4)
Com certeza! Já vem de uma família desestruturada, fica aqui praticamente
preso o tempo todo, parecendo um robô, não pode isso, não pode aquilo, por
isso, precisa brincar, eu mesma me sinto presa de ficar só nesse pedaço, por
isso, eu acho que as brincadeiras são muito importantes para as crianças.
(Orientadora 1)
Importante sim, uma maneira de ficar sem stresse, a gente tenta deixar eles
mais livres, pelo fato de estar aqui já é tão difícil sem pai, mãe, sem a
família, se você deixar a criança na rédea como vai crescer essa criança, na
minha maneira de pensar? A liberdade para eles é melhor, mas por outro
lado, eles ficam um pouco desobedientes, por isso, tem que manter um pouco
de limites e liberdade[...] a brincadeira é importante. (Orientadora 2)
Conforme Caillois (1990), a brincadeira se constitui princípio de prazer. E, nesse
processo, envolvem espontaneidade e liberdade concomitantes, pode ser tão absorvente
220
e cansativo que abarca a criança por inteiro, na atividade brincante. As crianças passam
muitas horas envoltas sem demonstrarem cansaço numa brincadeira, parecem esquecer
de tudo a sua volta, talvez seja por isso que as orientadoras consideram tão importante
as crianças brincarem.
Tanto as brincadeiras para as crianças como os jogos para os adultos são
atividades lúdicas concernentes à formação e acompanham a humanidade em toda a sua
trajetória existencial. Eles fazem parte da vida infantil e do mundo adulto, pois qualquer
situação pode resultar numa brincadeira. É fato que, independentemente da idade, nos
realizamos plenamente, entregando-nos por inteiro ao jogo. (CHÂTEAU, 1987).
De acordo com o autor, a brincadeira é uma atividade séria, a criança brinca
porque faz parte de sua natureza, ela se realiza no seu mundo lúdico desenvolve seu
jeito de ser e se envolve como um todo, implica distanciamento do ambiente real, logo,
uma forma de evasão com a possibilidade de ser o que não é, quem sabe, ser feliz de
posse da família que brinca na sua atividade de casinha com pai cuidadoso e uma mãe
amorosa, na maior parte dos episódios deste estudo.
5.3.5. Brincadeiras livres ou as dirigidas pelos recreadores
Historicamente, estamos impregnados da visão de criança que não é competente
até mesmo para brincar, exemplo deste depoimento:
Olha, as livres não têm muito significado, tem que ser dirigida mesmo
porque aí você chama: vamos fazer isso, e eles vão procurar obedecer ao
que a gente está falando, espontânea eles não têm uma direção, a dirigida é
bem melhor do que a espontânea, se deixar à vontade não vira nada.
(Orientadora 2)
Esta orientadora pensa que as brincadeiras livres não têm significado, não têm
direção e não vira nada. Afinal, brincar precisa virar o quê? De acordo com
(REDIN,2009, p. 118):
Ainda é corrente essa postura nas intervenções dos adultos durante as
brincadeiras e nos momentos de interação das crianças. Educadores querem
que elas se socializem, e muitas vezes socializar-se significa evitar conflitos,
sentimentos ambíguos e comportamentos que possam sair da ordem.
221
Os profissionais querem evitar os conflitos e conduzir brincadeiras “corretas”,
com “direção” por isso, segundo a autora, seja qual for a forma de envolvimento do
adulto nas brincadeiras infantis “não deixa de ser marcada pela pedagogização”, parece
que as brincadeiras sempre devem atender a uma necessidade, neste caso, obedecer as
regras da instituição.
Este outro depoimento, fala de organização, participação de todos, objetivo,
desenvolvimento das crianças, mas deve existir certa flexibilidade. Na sequência, o
outro acredita que deve existir um equilíbrio, entre ambos:
As brincadeiras livres, muitas vezes não fica bem organizada, logo vira
bagunça, às vezes, só um quer brincar e como fica o restante? As dirigidas
são bem melhores, porque tem mesmo um objetivo, o desenvolvimento, eu
acho as dirigidas mais interessantes, mas desde que se tenha flexibilidade
para mudar, quando a criança pedir para brincar de outra coisa, vamos
brincar de outra coisa. As dirigidas pelo orientador, ela é bem melhor, ela é
organizada, mas deve fazer o gosto deles também, por exemplo: tia vamos
brincar de corre cotia, vamos brincar de corre cotia [...] assim brincamos ao
mesmo tempo as dirigidas e as escolhidas por eles. (Orientadora 3)
Acho que um pouco dos dois, acho que tem que dosar, não deixar
totalmente à vontade, é bom a gente dar aquela orientação para que todo
mundo participe e não ficar sempre aquela mesmice. (orientadora 1)
Huizinga (2012) enfatiza a função e características do jogo. Em sua pesquisa
sobre a essência do jogo, deixa claro a sua intensidade, fascinação e capacidade de
excitar, expressando-se através do ritmo e harmonia. No dizer deste autor, a vivacidade
e a graça estão originalmente ligadas às formas mais primitivas do jogo.
Assim sendo, pela pena deste autor, o jogo enquanto atividade sugerida, mais
do que pela sua pulsão inata é um ato voluntário, que se concretiza como evasão da vida
real, com orientação própria, ocorrendo dentro de limites de tempo e de espaço, criando
a ordem através de uma perfeição temporária e limitada. Isso nos faz pensar que tal
atividade não precisa de tanta vigilância e correção de ações.
Liberdade é uma das características das brincadeiras discutidas por Huizinga e
Caillois, em que os autores consideram que uma delas é o fato de ser livre. Huizinga
enfatiza que o jogador participa somente quando quer, porque se for à força e obrigado,
perde a natureza do jogo de diversão, fascínio e alegria, tão própria dessa atividade.
Caillois ressalta que a brincadeira é uma ação livre, e que o sujeito é quem
decide sua adesão ou não. Conforme este depoimento, pressupõe-se que as brincadeiras
222
livres são mais importantes para a criatividade, liberdade e aprender habilidades
interpessoais:
Livres!!! Porque tem mais liberdade aí eles podem ter a criatividade deles
mesmo [...] eles ali convivendo juntos surgem mais ideias, a criança fica
mais tranquila do que ficar naquela, assim você tem que fazer isso e isso,
sozinhos tem mais liberdade de brincar, fazer o que eles querem, assim pode
até surgir brincadeiras saudáveis, sem brigas. (Orientadora 4)
Uma questão considerada importante para os orientadores é o fato de o brincar
dirigido ser mais relevante como diz este relato: “As dirigidas são bem melhores,
porque tem mesmo um objetivo, o desenvolvimento, eu acho as dirigidas mais
interessantes”. Pressupõe-se que as pessoas estão inclinadas a concordar que toda
criança possui o direito de brincar, entretanto, o que parece motivar acirradas discussões
é se elas têm esse direito, se podem brincar em contextos institucionais de forma livre,
espontânea e criativa.
Conforme nos ensina Redin (2009), estamos sempre esperando um resultado, o
desenvolvimento de alguma habilidade ou competência das crianças, um benefício que
possa favorecer a cultura da escolarização com uso das brincadeiras, neste caso, da
institucionalização.
Existe predominância pelas brincadeiras dirigidas, inclusive, com ênfase à
obediência, tem que ser dirigida mesmo porque aí você chama: vamos fazer isso, e eles
vão procurar obedecer.
A brincadeira é uma atividade que traduz diversão/prazer e
alegria/divertimento, talvez o fato de optar mais por brincadeiras dirigidas está de
acordo com as restrições em ambientes institucionais em que as crianças precisam
brincar sempre “vigiadas” e com brincadeiras que possam ter algum benefício.
Retoma-se aqui a ideia construída ao longo dos tempos da infância, relacionada
à falta, à incompletude e com a necessidade de corrigir e modelar. Essas impregnações
obscurecem a ideia de que o brincar é, em si, um ato de criação.
A ideia de a brincadeira ser livre, sendo uma de suas características a liberdade,
vai de encontro ao ambiente de regras previstas na instituição, talvez daí decorra a
preferência por jogos dirigidos, alegando ser o conceito de brincadeira livre parecer
como algo perigoso, em contexto institucional. Existe apenas um depoimento que
concorda plenamente com as brincadeiras livres.
223
5.3.6. Conhecer as crianças pelas brincadeiras
Nesta categoria, indaguei se era possível saber e conhecer uma criança
observando as brincadeiras. Château (1987) explica que o jogo é atividade que oferece
prazer, que está relacionada com a cultura e que ajuda a conhecer as tendências da
criança, bem como a revelar sua estrutura mental; possui como característica o caráter
de seriedade e abarca o ser humano em sua totalidade e sendo, por isso, expressão da
personalidade do sujeito, é no jogo, e pelo jogo que a criança cresce e se desenvolve.
Então, conhecer o desenvolvimento da criança à luz dessa atividade é um ato educativo.
Têm crianças que dá sim, porque começa a brincar depois já para, já chora,
por qualquer coisa, brinca um pouco depois parece que lembra de algo, aí já
não queria mais brincar, parece que lembra de algo.
(Orientadora 1)
Não dá para perceber assim não (início) quando chegam, elas ficam um
pouco arredia, quando chegam à casa, mas depois que ela vai tomando esse
contato uma com a outra , ela passa para dois tipos de relacionamento: uma
que pode ser agressiva, porque se ela bate para se defender ela também tem
que fazer a mesma coisa , ela bate, ela morde e xinga, alguns xingam porque
recebem também influência de outra criança, o Alan, agora ele aprendeu
apontar o dedo, ele nem entende , mas ele sabe que aquele gesto está dizendo
alguma coisa entendeu? Quando ela chega na casa fica assim um pouco
arredia, ela também se afasta um pouquinho. O Lincon quando chegou aqui
na casa era muito quietinho, mas ele já começou a reagir, ele já começou a
bater começou também a se defender, o comportamento dele era excelente,
dizia: que menino bom, mas agora está mudando, é a convivência.
(Orientadora 2)
Sim, a partir das brincadeiras, você vai observando de longe, começa a
conhecer as crianças. Lembro-me de uma história da Bia com Ariele, elas
estavam brincando de boneca, aí veio a outra irmã dela, e começaram a
chorar lembrando da mãe, aí todo mundo ficou emocionado. (Orientadora 3)
Os dois primeiros depoimentos deixam claro que as brincadeiras denunciam
conteúdos internos sobre a família ou sobre qualquer lembrança desagradável de sua
história pessoal e o último foca nas questões de convivência na instituição de que nas
brincadeiras aprendem com os outros a serem mais ou menos atuantes nos conflitos
gerados entre eles, na instituição.
As crianças brincam coladas com seu contexto social, afetivo e cultural, e nisso
não existe apenas uma repetição, elas criam e combinam conhecimento novo e antigo,
mas a base da criação é a realidade social da qual retira elementos.
224
5.3.7. As pessoas que brincam com as crianças
O envolvimento com as brincadeiras ou não faz parte da formação, proposta de
atendimento e concepção de infância que permeia a instituição. Silva (2012), em seu
trabalho de investigação, sinaliza a importância de se compreender com qual infância
estamos lidando conceitualmente, faz se necessário uma revisão crítica do conceito.
A revisão crítica de seus conceitos dominantes torna-se exercício primordial,
mas não tão fácil. Significa, também, desnaturalizar a infância nas imagens e
concepções de criança que nela foram sendo impregnadas ao longo dos
tempos, muitas delas presentes no imaginário dos profissionais da educação:
puras ou bestiais, inocentes ou corruptas, cheias de potencial ou tábuas rasas
[...] (JENKS, 2002 apud SILVA, 2012, p.119).
Essas ideias sustentaram muitas práticas da Educação Infantil, e também, o
atendimento nas instituições de acolhimento que admite, da mesma forma, a concepções
de “ser carente, não autônomo, em devir, objeto de projetos e iniciativa dos adultos,
merecedora de proteção e educação”. (PINTO, 2002)
Indaguei às entrevistadas quem mais brinca com as crianças, nem todos
responderam a esta questão, enquanto que na categoria sobre a importância da
brincadeira para as crianças foram unânimes em considerar importante na medida que
serve para elaborar conflitos, libertar-se dos horrores da “prisão” institucional e serem
mais felizes.
Embora indiquem que as brincadeiras são importantes, os orientadores não têm o
hábito de envolver-se de fato e brincar com as crianças, conforme este depoimento:
Nem eu mesma preocupo de brincar com as crianças. (Cuidadora 1)
No depoimento a seguir, a orientadora menciona que quem mais brinca com as
crianças é uma recreadora, mas acredita que é importante os orientadores brincarem:
Quem mais brinca acho que é a recreadora fulana [...] acho que é
importante os orientadores brincarem com as crianças, é assim como eu falei
pra você, tem momentos que tem que deixar eles brincarem sozinhos, mas
tem brincadeiras que dá para você participar e eles gostam (Orientadora 4)
225
Uma questão fundamental, nesta categoria, é a relação com a formação, proposta
de trabalho e distribuição de atividades, na instituição. Constatei muitas vezes as
crianças ficarem no cercado sem ir para o pátio brincar porque não havia recreadora.
A brincadeira é parte inerente da infância e não precisa de um profissional para
brincar, por outro lado, compartilho da ideia de que o profissional pode potencializar as
brincadeiras com novidades, atividades atraentes e usar desses momentos para estimular
o desenvolvimento de habilidades próprias da infância.
A pesquisa de Silva (2012, p.135) realizada no espaço de Educação Infantil
possui algumas constatações observadas, neste estudo:
Identifiquei vários empecilhos em nossas práticas cotidianas que acabavam
minimizando os efeitos de uma proposta voltada para a valorização do
brincar das crianças. [...] a organização e a rigidez na forma como
enturmamos as crianças por idades, as divergências nas concepções de
trabalho entre os educadores, o pouco tempo dedicado ao brincar das
crianças, a pouca valorização das produções das crianças, principalmente as
bem pequenas
Durante minhas observações, percebi que poucos orientadores se dispunham de
tempo para brincar com as crianças, parece que a brincadeira era uma questão de
responsabilidade da recreadora que tinha dia e horários marcados para brincar. Neste
processo e entendimento de papeis, na instituição, sobrava pouco tempo para as
brincadeiras, pouca flexibilidade na organização de turmas heterogêneas, igualmente,
divergências por parte dos orientadores se deveriam ou não brincar com as crianças.
A instituição, em sua logística de organização de seu tempo e espaço, deixa
pouco espaço de encontro das crianças menores com as maiores, predominando o olhar
do adulto, mas na ótica da vigilância em detrimento da interação entre diferentes idades.
5.3.8. Importância das brincadeiras para a instituição
O jogo é uma atividade que permite conhecer as crianças, logo uma atividade
importante para elas e para os adultos, que nos momentos brincantes, pode esquecer-se
de seus problemas e serem arrebatados pelo êxtase e envolvimento do momento.
Em diferentes situações no cotidiano, tanto com crianças como com adultos,
seja em uma simples conversa com uma criança como também em jogar baralho
226
com os amigos, basta que estejam inseridos e contagiados por uma conduta
lúdica, escapando de tudo que os engessa, e ingressando em um ambiente de
fantasia. Assim, independentemente da idade, [...] nos realizamos plenamente,
entregando-nos por inteiro ao jogo” (CHÂTEAU, 1987 , p. 13)
As brincadeiras indiscutivelmente fazem parte do universo das crianças e elas
se realizam brincando. Conforme Brougère (1995), as brincadeiras possuem funções
sociais e podem ser suporte das relações afetivas num contexto que envolve questões
sociais e culturais.
A brincadeira do ponto de vista do desenvolvimento não é uma forma
predominante de atividade, mas em certo sentido, é a linha principal do
desenvolvimento, não é predominante, porém fundamental para estimular o
desenvolvimento. (VIGOTSTY, 2007)
Essas e outras discussões indicam que as brincadeiras são significativas no
cotidiano das crianças, isso me fez indagar se a rotina que o lar planeja leva em conta as
brincadeiras das crianças. Duas respostas foram categóricas em dizer que não, outras
duas também responderam não, mas, relativizaram suas respostas. Entretanto, o que de
fato apontaram é que a instituição não prioriza as atividades lúdicas das crianças. Eis os
depoimentos:
Nem sempre. (Orientadora 1)
Não leva a nada. Eles querem que mantêm as crianças quietas. Sem ter
barulho nenhum, mas isso não existe , são crianças principalmente de dois a
seis anos, são crianças que fazem barulho [...] eles agitam, gritam, para a
chefia, que isso incomoda, teve uma gestão que a criança não podia nem
andar no corredor, era fechada aqui, quando via crianças já dava uma
bronca, isso existe, a casa é deles, aqui tem que ter liberdade, até que agora
está mais liberal, mesmo assim, são muito presos [...] aqui o espaço é deles,
a prioridade aqui é eles, mas não tem, não existe prioridade aqui nesta casa
[...] (Cuidadora 2)
Pra mim não. (Orientadora 3)
Às vezes, porque eu acho muito assim uma rotina só, [...] eu achava que
deveria ter mais atividade, não ficar só naquela rotina, porque vai acabando
e as crianças ficam desinteressadas porque todo dia é a mesma coisa, e eles
querem novidade. (Orientadora 4)
Nesta categoria, os participantes explicam que a instituição não leva em conta
as atividades lúdicas das crianças, destacam que faltam atividades para sair da rotina e
227
entendimento de que crianças não se mantêm quietas sem barulho nenhum numa
instituição, conforme relato de uma orientadora.
Outra questão que traz à luz na fala das orientadoras é que a instituição não se
dá conta de que criança não foi feita para viver enclausurada: Teve uma gestão aqui que
a criança não podia nem andar no corredor, era fechada, quando via crianças já dava
uma bronca.
De acordo com este depoimento, não existe prioridade aqui nesta casa, talvez
decorra daí o desânimo e a ausência de brincadeiras com as crianças por parte dos
orientadores porque se a instituição não valoriza é muito difícil estender-se aos
profissionais, afinal, as práticas espelham as concepções da gestão institucional.
É evidente que a brincadeira é uma atividade que a criança começa desde o seu
nascimento, no contexto familiar e continua com seus colegas, porém deixar as crianças
livres para brincar ou não é uma discussão de espaços institucionais muito acirrada,
porque passa pela visão de criança e concepção de brincadeira, se ela deve ser livre ou
dirigida, deve brincar livre ou com objetivo educativo, enfim, na educação infantil
encontramos as mesmas dificuldades desta instituição de acolhimento, tais como
ausência de prioridades nas atividades brincantes e espaço para as brincadeiras.
5.3.9. Capacidade das crianças para brincarem sozinhas
A visão de criança devir, tabula rasa e que precisa de vigilância é o modelo
predominante ainda em muitas práticas, inclusive, neste estudo, em detrimento de uma
infância de direito e de ser a protagonista. Talvez decorra daí o fato de que as crianças
não sabem nem brincar, e por isso, precisa sempre de um adulto.
Indaguei se as crianças são capazes de brincar sozinhas sem a vigilância e
interferência do adulto. Esta categoria possui estreita relação com a de brincadeira livre
ou dirigida:
Tem momento que não, tem criança que é agitada e não consegue brincar
muito tempo sozinha, tem que ter um adulto do lado, um adulto ali e a
qualquer momento você tem que entrar no meio (Orientadora 4)
Não, está muito misturado as idades. Eles batem, brigam. Eles sabem sim.
Quando começa com muitos não. Na brinquedoteca não gosto porque tem
muitos não. (Orientadora 1)
228
Olha!! elas brincam assim, as maiorzinhas tipo assim nesta faixa etária de 4
a 5 anos sem morder uma a outra, mas os menores não conseguem, tem que
ser dirigido mesmo. Eles brincam, mas precisa ficar de olho. (Orientadora 2)
Algo que notei nesta categoria foi o depoimento de uma das orientadoras ao citar
que não gosta de ir para a brinquedoteca com as crianças porque têm muitos não, ou
seja, muitas proibições.
Constatei que a brinquedoteca é um espaço de preferência das crianças,
entretanto possui muitas restrições, casinha de meninos, casinha de meninas, brinquedos
que podem e que não podem.
Outro depoimento pressupõe que as crianças não podem ficar sozinhas, precisam
da presença do adulto para intervir quando for necessário, outro ainda verbaliza que as
crianças estão misturadas em várias faixas etárias e isso dificulta brincarem sozinhas.
Por fim, precisa ser dirigido mesmo, arremata o ultimo depoimento. O que fica
implícito, nesta categoria, é a importância de se conhecer o quanto as crianças se
beneficiam juntas com experiências e até mesmo com idades diferentes.
5.3.10. Brincadeira de casinha
O faz de conta vivido pela criança é fruto de sua participação num mundo
cultural repleto de ideias, de sentidos, de valores e significados e, ainda, ampliado pelas
suas características psicológicas como sujeito que cresce num determinado ambiente.
(MARTINS; SZYMANSKI, 2004, p.185).
O conteúdo do imaginário provém das várias experiências nos vários contextos
sociais como a brincadeira de casinha que é repleta de situação imaginária. Ao brincar
de construir casinha, as crianças trabalham com as mais diversas habilidades de
organização, escolhas, ordem acompanhada do imaginário. O sentido da ordem tem
caráter afetivo e cognitivo, pois criam de modo reflexivo a organização.
Conversei com as orientadoras sobre a brincadeira de casinha para compreender
melhor essa atividade predominante na rotina das meninas e desejada pelos meninos, às
vezes, podados de brincar.
Eles brincam de pai, mãe e filho. Aqui sempre teve essa separação de
meninos e meninas, eu acho errado, eles ficam juntos o tempo todo, dormem,
229
comem. Por que na hora de brincar tem que separar? Acho que a proibição
existe porque acreditam que eles vão ficar brincando de papai e mamãe.
(Orientadora 1)
Uma coisa que me chamou atenção é que existe uma proibição dos meninos
brincarem de casinha com as meninas, é tudo separado [...] eu acho que isso
é preconceito, porque não tem que brincar com os meninos? Nas
brincadeiras delas de casinha de mamãe e filhinha não vai ter papai? Então,
no caso se eles fossem brincar e os meninos participassem seria o pai, mas o
pessoal acha que os guris não podem brincar, mas eu mesmo já brinquei de
casinha, o Levi fazendo comidinha e me dando suquinho, as brincadeiras
sempre ficam somente mãe e filha, esses dias estávamos brincando e logo
entrou Karlos, Alexandre, aí então eles participaram da brincadeira, quando
comecei a trabalhar já tinha essa orientação da separação, os meninos
deviam participar, seja pouquinho mas devia, pois faz parte de nossa vida
real ou tudo vai ser separado? Os meninos não podem ficar com as
meninas? Hoje em dia tem futebol feminino. (Orientadora 4)
Algumas questões do primeiro depoimento já foram pensadas neste estudo, mas
quero retomar e abordar outras, por exemplo, este depoimento sobre a brincadeira de
casinha que é uma coisa marcante ao revelar a separação entre meninos e meninas na
brincadeira de casinha. A orientadora critica essa atitude e declara que não sabe o
porquê dessa separação. Afirma que o brincar juntos contribui na composição dos
papéis na casinha e, também, a convivência entre ambos os sexos que faz parte do
mundo real.
É interessante notar que durante minha pesquisa presenciei muitas vezes as
meninas e meninos no banho e terem a oportunidade de se verem nus porque usam o
mesmo banheiro, no mesmo espaço. No momento do banho, sempre separava primeiro,
um grupo, depois o outro, mas terminando o banho, o grupo saía para se vestir fora do
banheiro, na porta, enquanto o outro entrava. As orientadoras se organizavam em série,
uma ficava preparando as roupas, outra, no banheiro, dando banho nas crianças e outra
sentada na porta vestindo-as, mas, neste momento, enquanto se enxugavam e eram
vestidas, as crianças viam-se umas às outras.
Naqueles momentos, presenciava, às vezes, uma criança perto da outra nua, no
caso, um menino perto de uma menina, que levava uma bronca com expressões tais
como: sai daí, não seja curioso, para de olhar, momentos esses de extremo
constrangimento para a criança.
A ironia institucional reside no fato de que as crianças tomam banho juntas,
dormem juntas no cercado, comem juntas no refeitório e na hora de brincar são
separadas, constatação essa feita com muita lucidez no segundo depoimento:
230
E lá na brinquedoteca, e quando leva os meninos não levam as meninas. E
quanto separar os meninos das meninas é uma coisa também que eu não sei
o porquê. Pra mim, mais interessante é a alegria deles. Quando chego de
manhã todos me abraçam enquanto eu também abraço e beijo todo mundo,
vejo que não é uma coisa aceitável na casa. (Orientadora 3)
Este depoimento, além de citar novamente a separação entre as crianças por sexo
e não saber a razão disso, traz uma questão muito importante do ambiente institucional,
a afetividade. Esta mesma orientadora em conversa informal, disse: Vejo muita tristeza
nessas crianças, por isso, procuro ser um pouco diferente com elas. Entretanto, parece
que o afeto não pode ultrapassar o muro da instituição, conforme este depoimento: Beijo
todo mundo, vejo que não é uma coisa aceitável na casa.
Antigamente, aquela casinha que tá na brinquedoteca ficava aqui, só que
aqui é o seguinte: aqui não foi legal nesse ambiente, aqui eles chegavam e
ficavam meninos e meninas, lá brincando, aí um tirava a calcinha , outro
cueca, entendeu , mostrava pipi um com o outro, e lá não, como tem
brinquedos variados, parece que lá fica assim um ambiente que tem muito
brinquedo variados com fogãozinho, geladeira, então eles acham que é uma
casa de brinquedo mesmo, e aqui não tinha esse tipo de utilidade, lá na
brinquedoteca teve bem mais utilidade do que aqui. [...] se deixar, os
meninos mostram o pipi para as meninas e a menina do mesmo jeito, então
pra gente procurar não deixar que ocorra esse tipo de relacionamento de
meninos com meninas, apesar disso ser conhecimento, nós não podemos
deixar, porque qualquer coisa que aconteça nós somos responsáveis, temos
que ficar cuidando para que não aconteça isso, se deixar somos avaliados
como piores dos plantões [...] eu acho sempre melhor deixar as crianças um
pouco mais livre pelo fato de já estar longe do pai, da mãe, da família [...]
Cada um faz sua parte, não temos capacitação. (Orientadora 2)
Este último depoimento concorda com a separação por duas razões: primeiro,
porque não pode deixar que ocorra esse tipo de relacionamento de meninos com
meninas; segundo, por razões institucionais, porque nós não podemos deixar, porque
qualquer coisa que aconteça nós somos responsáveis temos que ficar cuidando para
que não aconteça isso, se deixar somos avaliados como piores dos plantões.
Uma questão que merece destaque desse depoimento é a declaração: cada um
faz sua parte, não temos capacitação, ficando evidente que os orientadores não têm o
apoio técnico necessário para lidar com questões de sexualidade e limites, já discutido
neste estudo e essa ausência de suporte fragiliza o atendimento, deixando brechas para
as práticas repressoras, inadequadas e sem o devido entendimento de coisas naturais do
desenvolvimento infantil, seja exemplo, conhecer a si e os outros.
231
As crianças desse grupo estão na idade áurea de brincadeiras de faz de conta e de
curiosidade sobre o corpo humano. A questão aqui não é a correção, pois em outros
ambientes tais como a escola e a família, as crianças são orientadas a cuidar e a
resguardar o corpo, mas o que precisa ser diferente é a forma de intervenção.
Favorecer a interação das crianças com idades diferentes e grupos heterogêneos,
principalmente por meio das brincadeiras, significa expandir as possibilidades na
educação e no cuidado com os pequenos.
Possibilitar momentos em que as crianças, juntamente com seus parceiros,
possam, de forma prazerosa, externalizar situações imaginárias, transformar
em ações lúdicas sentimentos e pensamentos, fazer a representação daquilo
que elas acham que existe e trocar essas mesmas experiências com seus
colegas, representa ampliar as possibilidades de se lidar com tantas crianças
carentes de afeto e de vínculos pessoais num local com tão poucos recursos
humanos. (MARTINS; SZYMANSKI, 2004, p.186).
Para a pesquisadora, explorar o imaginário infantil e as ações lúdicas de um
grupo de crianças constitui uma excelente forma de se lidar com os afetos e as emoções
das crianças, dando-lhes a oportunidade de se expressarem como sujeitos e de
construírem de forma conjunta e efetiva a sua personalidade.
Neste estudo, sugere-se que as crianças podem e devem representar seus papéis
familiares na brincadeira de casinha, tão recorrente, sem precisar a instituição
repreender ou inibir tais brincadeiras singulares do universo infantil.
5.3.11. Sugestões para as brincadeiras
No final da conversa com cada participante, indaguei sobre quais sugestões
teriam sobre as brincadeiras e ouvi o seguinte:
Deveria ter espaço maior, com parquinho, brinquedos, mudaria tudo. Aqui é
uma cadeia dentro de outra cadeia. (Orientadora1)
Antes a gente tinha mais espaços para levar essas crianças para brincar,
agora só fica aqui nesse espaço cimentado, quando a gente desce para o
campo que tem areia, verde, você vê que eles dormem à noite, mas quando
fica somente aqui nesse cimentado sem contato, fica todo mundo chorando
aquele agitamento total, essa rotina daqui da casa que não tem um ambiente
diferente para eles andarem, precisa ter inclusive brincadeiras de roda,
pega-pega, as tradicionais. (Orientadora 2)
232
Essas crianças não têm nada. Aumentaria recreadores. Mudaria papel do
educador, que não pode ficar só no cuidar. Precisa educar. E os educadores
terem mais relação com as crianças. O educador precisa brincar, cuidar e
educar. Além de mudar o número de recreadores a capacitação dos
recreadores. (Orientadora 3)
[...] se eu pudesse mudaria aqui o parquinho, seria a primeira coisa que eu
ia fazer, montar um parquinho bem colorido, ter mais opção, essa coisa ali é
tipo museu, coisa que não tem vida, é apagado, e isso aí acaba sendo a
cabeça deles [...] e também deveria ter mais brinquedos de montagem,
pedagógicos, devia ter mais esses brinquedos, eles ficam calmos e aprendem,
por isso, devia ter mais e aumenta a criatividade. (Orientadora 4)
Nesta categoria, caso desse voz e espaço para os orientadores, eles sabem
exatamente tudo o que as crianças necessitam e quais providências a instituição precisa
tomar, pois ao mesmo tempo em cerceiam as crianças, eles querem o bem-estar.
Primeiro, ter um parque revitalizado, atrativo e espaçoso para as
crianças, conforme depoimentos: mudaria aqui o parquinho, seria a
primeira coisa que eu ia fazer, montar um parquinho bem colorido, ter
mais opção, essa coisa ali é tipo museu, coisa que não tem vida, é
apagado.
Segundo, espaço apropriado para as crianças com garantia de liberdade,
veja a percepção do depoimento: deveria ter espaço maior, com
parquinho, brinquedos, mudaria tudo, aqui é uma cadeia dentro de
outra cadeia; só fica aqui nesse espaço cimentado e por fim: essa
rotina daqui da casa que não tem um ambiente diferente para eles
andar.
Terceiro, redefinir o papel dos orientadores, pois precisam ir além de
cuidar, exemplo: mudaria papel do educador (orientador) que não
pode ficar só no cuidar. Precisa educar. E os educadores terem mais
relação com as crianças. O educador precisa brincar, cuidar e educar.
Isso implica capacitação.
Quarto, aumento de recreadores, coerente com a capacidade de crianças
e sua formação, exemplo: além de mudar o número de recreadores, a
capacitação dos recreadores e, por último, resgate e inclusão de
brincadeiras tradicionais, exemplo, precisa ter inclusive brincadeiras
de roda, pega-pega, as tradicionais.
233
Ao ouvir esta amostra de cuidadores, foi possível perceber o quanto eles têm
uma visão real do que é ser ideal, no sentido de implementar práticas melhores e
coerentes com as necessidades das crianças, vivem as angústias dos pequenos e os
entraves da instituição. E quanto desejam uma prática diferente com as crianças, mas
não têm espaço e diálogo, muitas vezes, não são ouvidos e nem explicada a razão de
muitas atividades. Exemplo, a festa junina, realizada fora da instituição: quando faltava
um dia para o acontecimento, comentei com o plantão, mas eles não sabiam, foram
avisados sobre a festa somente o plantão do dia que deveria ir para cumprir a jornada de
trabalho e, ao mesmo tempo, cuidar das crianças.
Não são consideradas como as pessoas que de fato convivem, cuidam e passam
a maior parte do tempo, incluindo finais de semanas e feriados com as crianças. Eles
têm clareza de que muitas ações não são as mais assertivas, por outro lado, não se
percebem com espaço e preparo profissional para fazer de modo diferente.
A instituição precisa levar em conta os interesses, desejos, direitos e
necessidades das crianças, tanto quanto se considera dos adultos, no mundo atual. Essa
visão ajuda a reorientar práticas, capacitar os profissionais, assumir postura crítica em
relação às políticas e planejamentos que se criam na contra mão dos direitos das
crianças, sendo um deles o brincar.
Por fim, a discussão sobre a indissociabilidade entre o cuidar e o educar é uma
questão muito difícil. Na prática, herda o legado criado nas instituições de guarda das
crianças sem perspectiva educacional e na rotina, o que se reproduz é o velho princípio
de cuidados apenas, o que se coaduna ao fato de alguns cuidadores não terem formação
para atender às crianças na instituição de acolhimento.
234
CAPÍTULO 6
OLHARES, REFLEXÕES E PROPOSIÇÕES A RESPEITO DAS
BRINCADEIRAS, CRIANÇAS E INSTITUIÇÃO.
Que ideia faria de si essa criança que nunca ouvira
uma palavra de carinho? Pestinha, diabo, coruja,
barata descascada, [...] - não tinha conta o número
de apelidos com que a mimoseavam. (Monteiro
Lobato)
235
No decorrer de uma pesquisa, surgem muitas perguntas além daquelas que nos
inquietaram para a elaboração do projeto inicial, são importantes porque as perguntas e
as curiosidades movem a ciência e nos surpreendem ao nos fazer ver que as questões e
hipóteses que achávamos relevantes no início caem por terra em decorrência de outras
que se manifestam em contornos importantes e superiores àquelas.
O pesquisador, ao concluir uma pesquisa, espera que os resultados dialoguem
com os objetivos, neste caso, constatei que em uma pesquisa com crianças que envolve
tanta complexidade, encontros e desencontros entre as crianças, os adultos e a
instituição, não é fácil manter-se fiel à proposta delimitada, no entanto fiz um enorme
esforço para alcançar as metas previstas.
Este trabalho se propôs a fazer uma etnografia das brincadeiras no espaço
institucional com uma amostra de crianças. Principiei meu trabalho com um projeto
delineado para investigar o brincar no contexto de abrigo e saber de que maneira são
organizadas as brincadeiras, os espaços, o tempo dispensado, do que as crianças mais
gostam de brincar e os significados desvelados. Como ocorre muitas vezes em trabalhos
etnográficos, estas proposições passaram por um processo de amadurecimento.
Com a imersão no lócus da pesquisa, aos poucos, fui redefinindo as questões
sobre o funcionamento das brincadeiras: De que brincam as crianças? Como surgem as
brincadeiras? Como se estruturam, se organizam e vivenciam as experiências lúdicas?
Como trazem elementos do cotidiano nas brincadeiras? Que relação faz do brincar com
sua experiência? Em outras palavras, se toda criança brinca e quando brinca traz
conteúdo relacionado à sua experiência, como essa criança aprisionada organiza e
vivencia essa experiência lúdica? Se as brincadeiras têm determinações de aspectos
sociais e culturais, com quais referências usam o imaginário nas brincadeiras, uma vez
que são marcadas pelo abandono e violência? As brincadeiras são atividades que servem
no imaginário infantil como suporte de reparação?
Estas questões da pesquisa são aos poucos descortinadas quando faço a
descrição e análise, ficando desvelada e somada a muitas outras questões da instituição
que, por sua vez, estão permeadas no processo lúdico das crianças. Foi impossível falar
do brincar descolado do processo como um todo no espaço institucional, pois as
questões técnicas, gerenciais e de acolhimento atravessam as brincadeiras infantis, logo,
estarei nestas reflexões finais pontuando questões que a princípio parece distanciar-se
dos objetivos propostos, porém estão imbricadas no processo lúdico na instituição.
236
Muitas inquietações não foram respondidas, outras se desvelaram no percurso,
em razão de sua relevância e recorrência em outras pesquisas que suponho serem
fundamentais na elaboração de políticas públicas e cuidados com a infância
institucionalizada. Em função disso, a conclusão deste estudo traz à tona as questões a
que a tese se propôs, inicialmente, mas também registra muitas coisas do funcionamento
da instituição, questões dos parâmetros de atendimento com qualidade dos serviços
relacionado ao acolhimento, uma vez que todos esses aspectos estão imbricados no
fenômeno da brincadeira
Esforcei-me para finalizar a descrição dos fatos, registrando como foram
vivenciados, percebidos e relatados, sem me eximir das percepções baseadas em estudos
e experiência de trabalho, igualmente dar visibilidade à voz das crianças com seus
gestos e brincadeiras.
Nos capítulos 4 e 5, os resultados estão explícitos, porque ao mesmo tempo em
que os descrevo, faço as devidas reflexões e ponderações com uso de lentes teóricas ou
não, bem como algumas ilações e proposições. Por isso, neste último capítulo
conclusivo, porque as minhas considerações finais estarão expostas ao longo deste, não
retomo as falas já ditas, no entanto transformo-as em questões reflexivas, provocativas e
sugestões de outras formas de intervir, que possam interessar ao leitor, preocupado com
a infância, e, quem sabe, pensar, em outras bases, o modo de acolhimento nas
instituições. São reflexões para profissionais que acreditam na possibilidade de
atendimento, conforme preconizam as diretrizes e leis vigentes, igualmente, para
pessoas dispostas a acolher com respeito os direitos das crianças.
Diferentes estudos e pesquisas registram a história das crianças, no entanto,
todo o relato escrito manifesta o retrato do olhar adulto, mesmo com o surgimento da SI
ainda existem poucas pesquisas em que as crianças são protagonistas e sujeitos plenos
de seus direitos, comumente são consideradas sujeitos de ação protetiva, cuja liberdade
está aquém de sua própria vontade.
Nessa lógica, em se tratando do contexto de acolhimento, registra-se que as
crianças precisam de autorização até mesmo para brincar plenamente, como determina
uma norma implícita na rotina do local desta pesquisa, e não diretamente pronunciada.
Por exemplo, no espaço de convivência sem brinquedos, percebe-se a propensão de se
manterem sentadas em bancos à espera disso ou aquilo, deixando-se evidenciar que a
logística da instituição sobrepõe às necessidades e aos direitos das crianças, neste caso
sugere-se para garantir o controle.
237
É fato que a convivência em grupo precisa de acordos que envolvam respeito,
diálogo e negociações, porém, abrigo de acolhimento com crianças acima do limite de
vagas e poucos profissionais para atendê-los, as regras tornam-se mais vincadas no
cotidiano para controle do comportamento social e homogeneidade nas práticas
cotidianas.
A infância como parte da experiência humana agrega divergências e
convergências de uma sociedade à outra, por meio do processo educativo, por outro
lado, é sabido que, na época do período da caça e coleta, as crianças tinham muitas
oportunidades de brincarem com grupos de idades diferentes e com os adultos. Isso
requer reflexão frente à separação por sexo, idade e até mesmo de grupos de irmãos na
instituição. Esta última vai de encontro aos preceitos do ECA. Esta questão na
instituição de acolhimento pode ser repensada: as crianças de idades diferentes se
beneficiariam no processo de aprendizagem, convivendo e brincando juntas; o saber e a
experiência das crianças mais velhas impulsionariam no desenvolvimento e na
aprendizagem das mais novas.
Muitas vezes, nas brincadeiras no pátio, presenciei grupos de irmãos querendo
ficar juntos e eram advertidos pelo cuidador que cumpre a ordem e segue a lógica da
instituição para não se misturarem. Essa separação resulta na exclusão da convivência
entre irmãos, no momento das brincadeiras.
Outra situação recorrente era o cuidado com os brinquedos, atitudes que
tornavam o momento brincante, algumas vezes, desinteressante e apático. Um exemplo
disso foi durante o uso das bonecas, ocasião em que as crianças eram constantemente
lembradas com frases: “não tire a roupa”, “não usem este espaço”, “não quebra”,
revelando que o cuidado com os brinquedos teria mais importância que a alegria das
crianças ao brincar, reforçando-se a prática repreensiva do adulto sobre as crianças.
Neste espaço de investigação, os adultos fazem com que as brincadeiras
aconteçam com muitas prescrições, regras em demasia, supõe-se que ocorrem muitas
vezes apenas com a finalidade de conter os pequenos, o brincar se torna vigiado,
limitado, com separações desnecessárias e imposições de regras que tolhem a liberdade,
a afetividade e a interação entre as crianças.
Outra questão importante é o necessário entendimento do adulto em descartar a
ideia de que a brincadeira precisa sempre atender a objetivos, deve ser pedagogizada
todo o tempo. As brincadeiras por si contemplam o caráter pedagógico, logo, quanto
mais se permite a brincadeira mais se conhece da criança, visto que por meio do lúdico
238
antecipam condutas, expressam suas emoções, compartilham vivências, se relacionam e
interagem umas com as outras.
Atualmente, apesar de inúmeras estratégias lúdico-educativas, existem ainda
grandes discussões a respeito do brincar: deixar totalmente livres ou interferir muito,
sempre? Acredito que o adulto precisa mediar por conta dos conflitos naturais que
ocorrem entre as crianças, entretanto, é diferente da vigilância e imposição, afinal, tudo
que está sujeito a ordens deixa de ser jogo, pois o brincar imposto, aponta Brougère, é
totalmente sem sentido, o que é reverberado por Huizinga quando afirma que o jogo só
é jogo se o jogador está ali para jogar, se entra na alma do jogo.
Existem na brincadeira funções sociais, podendo ser suporte de relações
afetivas e de aprendizagem, sendo, também, uma fonte de apropriação de imagens e de
representações. Neste estudo, um dos aspectos que se apresenta nos dados é a interação
entre as crianças, o mundo do faz de conta, vivido pela criança, quando inserida num
espaço de brincadeiras ou mesmo envolvida com as regras de qualquer jogo infantil, o
que pode representar um fio condutor para o aprendizado, como também uma valiosa
experiência emocional, física e social para as crianças pequenas.
A história da infância, a exemplo, época dos caçadores-coletores, mesmo sendo
grupos pequenos, por conta do isolamento entre eles, propiciou o aparecimento de
diversas abordagens de educação, isso me fez pensar como uma instituição de
acolhimento pode apresentar diferentes formas de acolhimento. Existe uma distância na
forma de lidar e acolher as crianças de um plantão para outro, isso gera conflitos entre o
que pode e o que não pode para as crianças, que no jogo de força com os cuidadores
sobra o recurso da transgressão. Assim, para uma atitude acolhedora, um caminho
viável seria o diálogo, o planejamento participativo e maior interação entre os
profissionais.
Tive a oportunidade de constatar quando na convivência com as crianças, no
cercado, muitas vezes, sem brinquedos e atividades, era necessário inventar. Assim,
criavam constantemente as brincadeiras de provocações/perseguição que são muito
atraentes para os pequenos, usando o próprio corpo como brinquedo; por outro lado,
essas invenções resultavam em brigas e conflitos, entre eles e os cuidadores, que
interpretam como bagunça e mandavam as crianças se sentarem nos bancos e ficarem
quietas.
Todo esse processo me fez perceber que a ausência de brinquedos deixa as
crianças eufóricas e inquietas, elas reinventam-se para brincar, para o que se torna
239
necessário que a instituição transforme-se, de fato, num espaço acolhedor, envolvente,
prazeroso e livre, uma vez que toda criança brinca indiferente do local e regras, motivo
pelo qual seria mais valioso um espaço físico em que a convivência e as brincadeiras
fossem potencializadas, em detrimento das restrições e imposição de normas para não
brincarem.
Sobre as características e prescrições das brincadeiras descritas e analisadas
anteriormente estão voltadas para aspectos da rotina institucional e de questões de sua
experiência, entretanto, nas brincadeiras de casinha são os momentos em que fluem com
mais recorrência o tema de família e aspectos de acontecimentos da história de vida
anterior à instituição. É a brincadeira, trazendo a experiência e os conhecimentos
prévios da criança, um fator importante para os aspectos emocional, intelectual, afetivo
e social. Em alguns momentos, pude constatar o faz de conta nas brincadeiras de
casinha como legítimo instrumento de reparação, sendo tão instigante a ponto de
verbalizar situações dolorosas, a exemplo, de uma menina que enquanto brincava
relatava a situação de separação e abandono pela família.
No espaço recreativo, as crianças representam fatos quase reais de suas vidas,
bastante comuns nas brincadeiras de casinha, um cenário de famílias, das quais nem
sempre fazem parte de sua experiência de vida, mas é possível justificar a posição de
que mesmo a criança que não vive com sua família de origem pode estabelecer, a partir
da brincadeira, alguns padrões de interação que dão conta de representar aquilo que para
ela tem significado, deseja ou se realiza no imaginário, o modelo de família que ela
aspira ou rejeita. Afinal de contas, há no espectro de toda brincadeira uma força, um
prazer, uma emoção, uma lembrança, além de uma capacidadade de arrebatamento por
meio dos quais a criança tenta se realizar no seu mundo lúdico.
Neste cenário, as brincadeiras refletem muito da criança, de sua história e sobre
a instituição. O brincar expressa em relação a elas. Suponho que as crianças não
precisam brincar apenas com a presença de recreador, já que muitas vezes elas não
saíam do cercado porque não havia o profissional, além disso, é importante salientar que
neste processo de brincar mais vale a interação do que os objetivos da professora.
A brincadeira é uma ação da qual não controlamos o resultado. Sobrepondo-se
a esse objetivo, a natureza prazerosa da criança é o retrato fiel de seu crescimento como
sujeito no espaço em que está inserida. É importante que se permita às crianças
brincarem sempre, porque na brincadeira existe elaboração afetiva, construção de novos
vínculos. Elas se beneficiam simplesmente por estarem juntas, pois brincando
240
interagem, aprimoram a linguagem e se organizam afetivamente. As brincadeiras são
instrumentos importantes na expressão de experiências subjetivas, fazendo parte da
natureza humana o ato de brincar, com a vantagem de favorecer todo o processo de
desenvolvimento da criança.
Sem exageros, neste contexto, em particular, quanto mais as crianças brincam,
mais se evidencia a alegria em sua vida social, ao contrário, quando vigiadas, se sentem
reprimidas e tímidas. Percebi que, quando a brincadeira torna-se vigiada demais, as
crianças pouco se dedicam, perdem a graça e o interesse espontâneo, sentimentos
próprios do estado puro da brincadeira.
Mediante questões impeditivas e restrições, logo as crianças descobrem que
para brincar, de fato, é preciso transgredir, mas buscar a autonomia por meio da
transgressão gera mais controle, quanto maior o número de crianças mais controle e
menos brincadeiras permitidas. Nesse universo, o desafio à autoridade e a transgressão
são estratégias importantes envolvidas no funcionamento das brincadeiras, atividades
essenciais para desenvolver a autonomia das crianças.
As crianças escolhem com quem gostariam de brincar, mesmo quando lhes é
determinado, arranjam uma forma de fazer valer sua preferência. Isto no
desenvolvimento infantil é um prenúncio de aprendizagem, pois o mundo é sempre feito
de escolhas.
É possível inferir que a instituição possui extrema dificuldade em permitir o
desenvolvimento da autonomia das crianças, sendo que as questões de controle, número
de crianças e organização logística são determinantes para o não incentivo dessa
habilidade, mostrando um hiato no mecanismo estratégico de promover a brincadeira de
forma educativa e libertadora.
Na rotina das crianças, atividades simples como servir as refeições (pegar um
pedaço de bolo na hora do lanche) não são estimulados, as crianças sentam-se ao redor
da mesa e a alimentação é posta à frente, em quantidade quase sempre igual para todos.
Esta questão determina a existência de características do modelo intuições
totais, com atendimento massificado e invisibilidade das crianças, a universalidade
reflete, inclusive, nas brincadeiras, além de outras atividades. Algumas vezes ouvi na
refeição a seguinte fala: vem comer menino/menina, porque na verdade o cuidador não
sabia o nome da criança. Se para o adulto é gratificante ser chamado pelo nome,
também o é para a criança que espera aceitação e acolhimento.
241
Uma questão importante para evitar essas dificuldades, pressuponho que seja a
instituição atentar-se para o atendimento com grupos pequenos. Em pequenos grupos, é
possível a brincadeira deixar de ser instrumento de socialização, conforme visão
sociológica das teorias tradicionais e apostar na ideia de construção de vínculos,
reparação e simbolização, pois compartilhamento e escolha são determinantes na
construção do conhecimento por meio das brincadeiras.
Este estudo sugere o quanto é importante descartar a lógica de proteção e
instaurar uma prática de direitos, com atenção às práticas sociais que visem a
autonomia, o respeito e a individualidade das crianças, ações que levem em conta as
conquistas da infância legitimada em leis no processo histórico, entretanto, precária a
efetivação nas propostas de acolhimento.
Com base nos dados sobre este aspecto de superar velhas práticas, que
contradizem expectativa e necessidades dos novos tempos, um caminho apontado é a
capacitação dos orientadores que vivem o dia a dia a prática da proteção em detrimento
dos direitos. Penso que a formação pode reorientar a prática, inclusive, com maior
percepção da importância de se envolverem nas atividades brincantes das crianças,
assim. eximir-se do papel de cuidadores sentinela que vigiam. Por outro lado, o
comportamento e a prática destes refletem o papel filosófico exercido pela instituição
que, ao contrário, deveria acolher a criança, antecipando por meio de metodologias
lúdicas abertas o prazer, a curiosidade e o espírito criativo e puro que as crianças
deixam fluir por meio das brincadeiras.
Conforme recomendações técnicas do CONANDA para serviços de
acolhimento, entre outras coisas, o cuidador precisa auxiliar a criança a lidar com sua
história de vida, fortalecimento da autoestima e construção da identidade e apoio na
preparação da criança para o desligamento, sendo para tanto orientado e supervisionado
por um profissional de nível superior. Essas funções estão intimamente ligadas às
brincadeiras, afeto, acolhimento e conhecimento sobre as crianças, sobre a infância e
muito diálogo entre todos os envolvidos, pois relações lúdicas criam laços
significativos.
O que normalmente ocorre é que a equipe técnica e orientadores desenvolvem
suas atividades distantes uns dos outros, para o que gera certa disputa de poder sobre
quem decide sobre a criança. Observei e registrei, algumas vezes, o profissional da
equipe técnica levar uma criança do espaço denominado cercado sem saber o nome do
242
cuidador e sem avisar para onde iria levar a criança. Essa é uma atitude que não leva
em conta a criança como sujeito sensível e criativo, a qual é tratada como objeto.
Uma ação viável entre outras, seria a formação e capacitação continuada, mais
do que isso, para dar o salto e sair da função de cuidadores passivos e sentinelas nas
brincadeiras precisam de apoio, interação, diálogo e confiança entre equipe técnica e
eles, o que para isso, se torna importante instaurar processos de diálogos, trocas e
conhecimento técnico, este é um caminho para repensar as práticas e propor mudanças
contextualizadas com prática humana e acolhedoras.
Neste contexto, conhecer a realidade é uma ferramenta que, além de desvelar o
cotidiano, pode dar suporte e reorientar o dia a dia das crianças com propostas mais
viáveis com a realidade local, sobretudo respeitando-as como sujeitos de sua história.
A formação condizente com essa atividade no contexto de abrigo é uma
ferramenta que pode evitar questões de abuso desnecessárias, ameaças veladas e diretas
com as crianças. Muitas dessas situações ocorrem porque o cuidador não tem
experiência e conhecimento para exercer sua atribuição, conforme fragmentos deste
relato sobre curso de capacitação: não fiz para trabalhar com crianças, estou aqui, mas
nunca fiz assim para crianças, eu fiz esses cursos para subir na área, não para
trabalhar especificamente com crianças, eu não tenho perfil, eu quero sair daqui com
certeza.
O conhecimento estimula comportamentos assertivos e mais contato com o
universo infantil, pois a relação da criança com adulto é uma questão importante na
construção de referências, relacionamentos interpessoais e reparações de questões
emocionais. Importante despertar nas práticas lúdicas e na convivência um profundo e
real envolvimento com as crianças, que buscam nos cuidadores laços emocionais
familiares.
Existem crianças que chegam recém-nascidas na instituição e a relação com os
cuidadores é a primeira experiência de vínculos, disso decorre a importância relacional.
Não são apenas cuidadores, existe um papel e marcas nessa criança que estão
intimamente ligados à construção de amor e amizade com esses adultos.
As brincadeiras são situações em que as crianças criam, recriam, e repensam
sua história, logo, são momentos que podem funcionar como processo de profunda
elaboração afetiva, talvez decorra daí a necessidade de proteção do espaço brincante, da
permissão para adentrar numa brincadeira em andamento, que é o verdadeiro controle
243
da brincadeira exercida pelas crianças, e também se insere a importância da instituição
pensar o processo lúdico das crianças como uma atividade de profunda seriedade.
O lazer tem o princípio do lúdico, entretanto, nem todo lazer é lúdico, pois
existem atividades de lazer que trazem decepção, como no caso quando se perde uma
partida de futebol. Percebi que no grupo investigado, muitas vezes, a atividade lúdica,
como assistir a um filme era utilizada apenas para manter as crianças sentadas, o que
causava profunda inquietação e decepção no grupo, situação esta que pode ser resolvida
com formação e reorganização da logística da instituição. O brincar para essas crianças
possui capacidade transformadora e o momento de maior êxtase que vivenciei foi
quando brincavam no campo livres das amarras institucionais.
Um apontamento evidente é pensar que a liberdade é um requisito essencial da
brincadeira, pois combina em si as ideias de liberdade e invenção, uma atividade que
significa livre-arbítrio. Suponho que, por isso, quando há a interferência do adulto
querendo mudar as regras da atividade, as crianças perdem o interesse. Existe por
eleição um afastamento das crianças quando há presença de adultos quando estão a
brincar.
Ser criança é uma fase em trânsito para a vida adulta, essa concepção e outras
tantas, fizeram e fazem com que se invista pouco nesta etapa, isso desde a Idade Média.
O caso de as crianças em acolhimento, em trânsito, o desfecho de sua vida é motivo
pelo qual a legislação prevê que não fiquem mais do que um período de dois anos na
instituição, fato esse que na prática é muito diferente da realidade, nos abrigos
brasileiros.
Percebi que essa questão está implícita na questão institucional. A criança vai
ficar pouco tempo, o que não confere com muitas das histórias investigadas; por outro
lado, a instituição precisa compreender de que para uma criança pequena, um período,
por exemplo, de seis meses ou um ano possui um significado muito diferente do que
para um adulto. A criança está num processo de desenvolvimento e aquisição de
habilidades rápidas e possui urgência em tudo.
As crianças que vivem nos abrigos de acolhimento são sempre vítimas de
abandono, negligência, violência física e psicológica. Elas não cometeram violência –
foram violentadas. Os abrigos de regime de trabalho de plantão passam o dia com uma
equipe de profissionais e cuidadores e amanhecem com outros cuidadores. São crianças
que vão para a escola e ao final do dia não possuem um vínculo afetivo para receber e
levar para casa. Divididas entre tensão e expectativa, as crianças aguardam a
244
possibilidade de adoção ou retorno para família. Vivem num lar ― que na verdade é
uma instituição rígida, normatizada por regulamentos de controle em torno da
movimentação da criança, no espaço que deveria ser prazeroso.
O desejo das crianças pautado em sonhos, fantasia e imaginação vão de
encontro com a percepção que permeia a instituição de crianças rebeldes, desobedientes,
que não merecem isso e aquilo, um cotidiano marcado de muitos não e faltas.
Nas instituições, não há espaço para a fantasia, algo tão singular no universo
infantil. A instituição sempre interpreta e apresenta como mentira o que ela tenta
comunicar do universo subjetivo, por isso é muito recorrente as falas sobre as mentiras
das crianças, igualmente, muito difícil fazer escuta da subjetividade, logo o que fica
evidente é sua culpabilização.
A proposta do ECA encontra-se longe do cotidiano de muitos abrigos, estes
surgem para proteger, entretanto, violam os direitos da infância, ao mesmo tempo em
que protege da situação que motivou a separação da família, não cumpre a lei na
implementação de uma instituição que respeite aspectos importantes como manter
vínculos de irmãos, saber lidar com questões sobre sexualidade e transgressão.
Os castigos, punições físicas e maus tratos na prática não existem mais,
inclusive algumas instituições possuem câmeras. Igualmente, as prescrições trazidas no
ECA fizeram com que a proibição do castigo fosse mais rigoroso, havendo mais
vigilância e seriedade contra tais ações. Por outro lado, as punições tornaram-se mais
sofisticadas, criativas e sutis, o que não impede que elas ocorram em novas versões e
formatos, hoje são mais invisíveis. Os apelidos, exemplo, uma criança que não fala vira
o mudinho; ameaças verbais em detrimento do diálogo; preferências; contenção ao
invés da liberdade de expressão de sentimentos.
Outra questão que ainda atravessa as práticas nesse modelo massificado é com
relação à chegada das crianças na instituição. Percebi que a instituição funciona sempre
com um número de crianças além de sua capacidade de vagas, logo, a quantidade de
crianças dificulta o acolhimento. A cena mais recorrente é a criança chegar e ser
imposta que deve se adaptar à rotina do grupo, já estabelecida, assim, as
particularidades de cada criança, uma escuta mais qualificada das suas demandas, por
exemplo, não é favorecida no ambiente superlotado.
A superlotação em muitos abrigos demanda rotinas que não respeitam a
individualidade, por exemplo, no decorrer desta pesquisa constatei que as crianças não
possuíam objetos pessoais, tais como gavetas para seus pertences, roupas, calçados,
245
produtos de higiene, copo para tomar água (todas usam o mesmo copo, muitas vezes em
fila) sem deferência a questões de higiene e construção de autonomia. Estas e outras
formas de atendimento caracterizam ausência de cumprimento da lógica prevista no
ECA para as instituições de acolhimento e igualmente, total desrespeito à dignidade das
crianças48
.
Neste contexto, a brincadeira dá voz à criança, enriquecendo sua vida por meio
de atividades lúdicas, além de criar e construir ações com autonomia e autoria, por isso,
é louvável permitir a imaginação da criança já que livres aprendem ressignificar o
vivido numa sequência contínua de aprendizagem e experiência significativa. É
importante a instituição, além de incentivar a brincadeira, entendê-la com lentes
teóricas.
Rever questões iniciais desta pesquisa me fez entender que a criança desta
investigação brinca muito como qualquer outra, entretanto, fica evidente como organiza
e vivencia a experiência lúdica em torno das questões da instituição e lembranças de sua
família, mesmo aquelas que tiveram pouca experiência em seu lar. Logo, a fantasia e
desejo de retorno à família é algo recorrente na imaginação e construção dos diálogos
nas brincadeiras de casinha, momento em que as crianças trazem conteúdos da
subjetividade e brincam com modelo de família que nem sempre faz parte de sua
experiência.
As diretrizes apontam que a convivência em pequenos grupos, conforme
orienta a proposta para atendimento da infância, seja uma alternativa mais viável do que
o atendimento em instituições grandes. Com espaços pequenos, a escuta das crianças,
por meio das brincadeiras, pode ser uma alternativa importante para ajudá-las na
elaboração das perdas e separação da família, para tanto, precisa viver em abrigos
pequenos, onde o atendimento organizado permita a individualização das crianças e a
proximidade entre estas e os orientadores. Este comportamento traduz uma dimensão
importante na construção social da criança.
A convivência mais próxima e afetiva com as crianças, com possibilidade de
atender à particularidade de cada uma, inclusive acolhendo as brincadeiras que têm
determinações de aspectos sociais, culturais e institucional pode amparar essas crianças
que, algumas vezes, brincam com muita dor, exemplo, contar sobre a separação da
família enquanto brinca na casinha. Essas questões, em situações de brincadeiras, são 48
Levantamento Nacional de Crianças e Adolescentes em Acolhimento (2009-2010) diz que 52% dos
abrigos estão sem equipe técnica para a efetivação da garantia à convivência familiar e comunitária.
Consultar Oficina 23 do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.
246
atividades que servem para estimular o imaginário infantil, como instrumento de
reparação, como suporte afetivo, pois são atividades criativas e coladas com suas
experiências.
Este processo é fundamental no aspecto da construção do conhecimento.
Equivocadamente, percebeu-se que durante a pesquisa o funcionamento do brincar se
desvelou com muitas prescrições e regras por parte dos adultos, por outro lado, marcado
pelo impulso das crianças em transgredir para brincar, manifestando sua autonomia e
autoria em suas atividades.
Os pequenos criam estratégias para ficar com coisas pessoais no anseio de
individualização e busca de respeito pela identidade e, nesse cenário, é comum relato de
crianças esconderem objetos e comidas, fato este entendido como transgressão. Visto
ser a intervenção sempre punitiva, sem levar em conta o significado, a subjetividade e o
sentido deste ato, igualmente, desconsideram que essas ações podem constituir-se numa
brincadeira em si para aqueles que as pratica.
As crianças reinventam-se para brincar, as brincadeiras surgem independente
de poder ou não brincar. Várias vezes, registrei fazerem (crianças) os chinelos de
caminhão, manipulando-os pelo chão como forma de brincadeira, sendo também
explícito que na ausência de brinquedos, existem mais brincadeiras com o corpo, este se
torna objeto de desejo e disputa, correm, batem, beliscam, empurram e se provocam
entre si, num verdadeiro êxtase em busca de satisfação. Nestes momentos, às vezes,
surgem conflitos entre crianças e cuidadores, porque estes desejam a quietude enquanto
os pequenos, a euforia.
As crianças organizam suas atividades brincantes com escolhas de colegas.
Essa organização vai de encontro às regras que, na maioria das vezes, separa por sexo e
idade. Observei que, mesmo quando lhes são determinadas a separação, arranjam uma
forma de fazer valer sua escolha. Um exemplo típico são as brincadeiras de casinha, as
quais precisam de crianças de ambos os sexos para exercerem papel masculino e
feminino. Notei que na casinha as meninas não fingem ser pai e os meninos, mãe, eles
arranjam uma forma de burlar a norma para que possam se juntar e vivenciar os papéis
familiares.
Uma questão da brincadeira que pouco se leva em conta é que a brincadeira é
coisa séria e demanda esforço, precisa ter compromisso e cumprir regras. Percebi o
quanto de trabalho exige da criança que organiza, uma vez que precisa pensar e
estabelecer normas, enfrentar desafios e lidar com frustrações, são muitas habilidades ao
247
mesmo tempo. Registrei um episódio em que uma menina comandava uma brincadeira
de entrar e sair dentro de um saco grande de lixo, ela mandou fazer fila, pensou um
tempo e quantos poderiam entrar no saco e, por fim, começou a punir quem não lhe
obedecia, e não permitiu entrar no saco quem não fazia parte do grupo, reagia dizendo
que não estava na brincadeira, exemplo: você não, sai, sai quem manda na brincadeira
é eu. Falou isso muito brava para uma colega que queria entrar no saco e não fazia
parte da brincadeira.
A pesquisa por meio das brincadeiras das crianças me fez “ler” a instituição,
sendo uma questão notável que a logística sobrepõe às necessidades e aos direitos das
crianças. Em relação às crianças, ajudou-me a entender um pouco o seu universo
infantil e compreender que as brincadeiras ajudam a criar laços e as interações se
sobressaem quando estão brincando.
Existe uma concordância de que o melhor lugar das crianças é no convívio
familiar e que os abrigos sejam o último recurso para que não afaste a criança da
família, porém quando não tem alternativa busca-se o abrigamento, nestes casos a
separação é sempre dolorida e para que minimize a dor é importante que os abrigos
tenham serviços de qualidade. O ECA preconiza princípios para os abrigos, dos quais
são: preservação dos vínculos familiares, integração em família substituta, quando
esgotados os recursos de investimento na família de origem; atendimento personalizado
e em pequenos grupos; desenvolvimento de atividades em regime de coeducação; não-
desmembramento do grupo de irmãos; impedimento de transferência para outras
entidades; participação na vida da comunidade local; preparação gradativa para o
desligamento e participação de pessoas da comunidade no processo educativo.
Ainda que a finalidade maior desta pesquisa tenha sido a de compreender as
práticas lúdicas, foi impossível não registrar algumas ausências de parâmetros de
qualidade no atendimento, além do modo mais estreito de se pensar sobre as práticas
lúdicas, pois tudo isso se reflete na cultura lúdica.
A literatura e as pesquisas apontam que a lei vem sendo implementada
lentamente, mesmo passadas mais de duas décadas, no cotidiano dos abrigos impera a
tradição, os modelos ultrapassados, os valores arraigados e a complexidade da situação
social, estes são realmente os elementos que conduzem às práticas do abrigo.
Este estudo sugere que mesmo com as definições, princípios e critérios de
qualidades previstos por lei, é necessário efetivar e concretizar na rotina institucional,
isso envolve papel dos funcionários, projeto político, uma nova identidade para a
248
instituição que, inclusive, necessita de outra arquitetura diferente do modelo de
orfanato/instituições totais.
Com respeito a este estudo, ficou evidente algumas situações que não
convergem com a nova proposta de acolhimento, como alguns exemplos de situações
percebidas: a instituição de grande porte, elevado número de crianças, não preservação
dos vínculos familiares, ausência de atendimento personalizado para todos e em
pequenos grupos, desmembramento do grupo de irmãos, segregação e pouco contato
com o mundo externo, pouca participação na vida da comunidade local e não
preparação gradativa para o desligamento, inclusive, dos cuidadores com os quais as
crianças vivem diariamente, às vezes, não eram nem avisados da saída da criança e, em
alguns casos, tratado como um segredo.
Neste processo, uma questão importante é a formação e acompanhamento dos
cuidadores, integrantes da equipe técnica, funcionários de apoio, somado ao papel e
exercício de um gestor capacitado para o cargo, planejamento e diretrizes claras,
inclusive com definições de papéis.
Diversas vezes presenciei embates entre orientadores e técnicos com relação ao
papel e responsabilidade da criança relativa a algumas atividades. Por outro lado, isso
revela a qualidade do exercício da gestão institucional, que deveria ser desenvolvida na
prática, referendando o projeto político pedagógico, documento em movimento que
orienta a gestão, o qual era desconhecido pelos gestores da instituição, o que leva a
inferir que a instituição não dispunha desse documento.
Um trabalho dessa natureza não pode correr o risco de pensar de forma estreita
que a solução está na capacitação dos cuidadores, estes reproduzem como espelho as
diretrizes da instituição expressas na proposta ou impressas de modo oculto no dia a dia.
As observações e registros revelam que existem diferenças na forma de lidar
com as crianças de um plantão para outro, igualmente, de uma gestão para outra, o que
denuncia a ausência de elaboração e cumprimento de uma proposta, assim a existência e
finalidade da instituição exista com base num planejamento e não de acordo com a visão
de cada gestor, isso gera conflitos limites, possibilidades e competências, mas quem fica
prejudicado são as crianças, que no jogo de força sobra o recurso da transgressão.
Neste caso, supõe-se que seja fundamental o diálogo, planejamento
participativo e maior interação entre todos os envolvidos no processo de acolhimento,
envolve, na prática, a capacitação contínua, discussão e estudos de casos, do mesmo
modo, considerar a pesquisa nesse universo, uma ferramenta que pode, além de desvelar
249
o cotidiano, dar suporte para reorientar o dia a dia com propostas mais compatíveis com
a realidade local e social, sobretudo respeitando a criança como sujeito de história e de
direitos.
Nas entrevistas, os orientadores deixam evidente que a instituição não
privilegia as crianças, conforme este fragmento: “Teve uma gestão que a criança não
podia nem andar no corredor era fechada aqui, quando via crianças já dava uma
bronca [...] não existe prioridade”. (orientadora 02)
Sobre a discussão com relação aos prejuízos ou impacto da institucionalização,
existem aqueles que salientam os efeitos nocivos desse processo, outros relativizam,
propondo que o abrigamento pode ou não se constituir em risco para o
desenvolvimento, desde que haja ambiente próximo a um lar e atendimento com
respeito à individualidade. No entanto, este desafio não foi superado na maior parte dos
abrigos, pesquisas recentes apontam que mesmo a casa-lar, que procura aproximar-se de
um ambiente familiar, não consegue efetivar novas práticas, principalmente porque
grande parte dos profissionais estão arraigados a questões culturais do passado, ou seja,
novas propostas vivenciadas aos velhos hábitos. Atualmente, existe uma preocupação
com relação à questão de formação dos profissionais, os quais devem se capacitar para
atender à realidade atual, mitigando práticas e estruturas que tratam com certa
indiferença a legislação vigente.
Por todos esses questionamentos recorrentes e, ao mesmo tempo, evidentes,
pressuponho que as instituições/abrigos, seja qual for o nome, sempre deverá ser um
local provisório e de passagem, mesmo a casa-lar que busca dar referências compatíveis
a uma família, não deixará de ser um abrigo. Apesar de procurar atender às crianças
com menos desrespeito à sua individualidade e assegurar o mínimo de garantia dos
direitos, ela será sempre uma instituição e não uma família. Em função disso, penso que
mesmo a instituição, oferecendo um serviço de qualidade e padrão considerado de
referência não muda seu papel de acolhimento.
A família desenvolve e propicia vínculos diferentes de um abrigo/casa lar em
que as pessoas de convívio são funcionários, formam vínculos inicialmente por questões
da proposta de trabalho, embora aposto na ideia de que com o passar dos dias
estabeleçam vínculos sinceros de relacionamento e convivência, encarnando a cultura
do bom senso, permitindo a vontade da criança, valorizando seu conhecimento,
conversando, dialogando, perguntado, o que realmente a faz feliz. Para isso, é
importante quebrar práticas antigas, como a de quando os contratos de trabalho
250
encerram, os funcionários são trocados à revelia do sentimento das crianças. Esse
critério evidencia uma instituição, para o que não se espera que esta ocupe o lugar de
uma família.
Quanto às medidas de abrigamento, quando infelizmente ocorrer, não percam
seu foco de ser excepcional e provisória de verdade, uma vez que se articula a ideia de
que o melhor lugar para uma criança ficar é no seu grupo de parentesco, assim definido
e reconhecido, importa que os governantes articulem políticas que fortaleçam as
famílias, pois as pesquisas apontam que o maior índice de violência com as crianças
ocorrem no interior das famílias, estas precisam de ajuda e capacidade para cuidar e
acolher seus filhos, uma vez que o Estado não gera filhos, portanto, este não pode ser
literalmente pai de nenhuma criança. O Estado é responsável pela gestão de políticas
públicas que amparem a infância nas questões de família, educação, saúde e lazer.
É necessário compreender politicamente que a proteção integral às crianças
somente é possível com a proteção integral à família, para que esta possa cuidar dos
filhos e que, acima de tudo, a infância seja vista reparada e acolhida com olhar atento.
Para estes atendimentos, a prioridade e orientação é a existência de pequenos
grupos, conforme preconiza orientações para abrigamento, e na prática essas e outras
recomendações consideradas inovadoras previstas no ECA, mas passados mais de duas
décadas, o Estado não conseguiu competentes mudanças.
O trabalho de Prada, Williams, Weber (2007) que investigou a rotina e
funcionamento de casa lar e instituições grandes em duas cidades sob o olhar das
crianças e dos dirigentes, traz à luz de que a casa lar, uma proposta de abrigos aos
moldes de um núcleo familiar pequeno é possível preservar a individualidade das
crianças, enquanto na instituição, grande parte é o retrato do processo de massificação
institucional, no qual as crianças não existem como indivíduos e sim como uma
massa, com necessidades únicas para a instituição.
As instituições que atendem a um número elevado de crianças, reproduz, na
prática, um funcionamento do tipo total (GOFFMAN, 2010). Com inflexibilidade no
funcionamento e massificação do atendimento às crianças, há pouco contato no mundo
externo, o que fica claro a exclusão da criança com a sociedade.
A visão atual de cidadania sobre a infância requer respeito à identidade,
atendimento personalizado, olhar atento às suas necessidades e particularidades, isso
implica escuta e ações singulares com respeito às diferenças, no entanto, a realidade
251
ainda prima por espaços com muitas crianças e rotinas que não respeitam a
individualidade.
No cotidiano, vivem com cuidadores que têm vínculos profissionais, em
detrimento das crianças desejosas de serem amadas e acolhidas verdadeiramente, sentir
que é alguém único e importante.
Neste dilema, o desejo das crianças pautado em sonhos, fantasia e imaginação
vai de encontro com a percepção que permeia, muitas vezes na instituição, de crianças
rebeldes, desobedientes, que não merecem isso e aquilo, um cotidiano pautado de
muitos “nãos” e faltas. Conforme pesquisa de Nascimento; Lacaz; Filho (2010, p.61),
“construção subjetiva instituída, que torna os abrigos locais de tristeza, de desafeto, de
abandono, de vidas fracassadas”.
As crianças desta pesquisa não são diferentes, a instituição lotada tende a
efetivar práticas que muitas vezes confundem educação com punição e nas brincadeiras
elas refletem como espelho somado a sua subjetividade infantil os dilemas das punições,
que talvez, brincando, possa tornar-se menos sofrido. Na experiência lúdica, brincam
com os castigos, revivem e compartilham a universalidade do atendimento ofertado na
instituição.
Segundo Ferreira (2012) “o brincar é um texto em que as crianças contam
sobre elas mesmas”. Com base nesta afirmação, os episódios das crianças que
participaram deste estudo revelam que a brincadeira, no ambiente institucional, está
impregnada de questões da rotina, do atendimento, igualmente da história de vida da
criança.
A meu ver, esta pesquisa foi um desafio ao mesmo tempo em que me propus
conhecer e investigar as muitas situações em que desejei profundamente contribuir, mas
foi impossível me negar a fazer algumas provocações no sentido de propor reflexões ou
expor a realidade para que se possa pensar em, pelo menos, aproximar-se do ideal.
Penso que a descrição das situações reais possa suscitar algumas inquietações
para a instituição, entretanto, espero que se transforme num diálogo e propositura de
algumas mudanças, um convite para novos olhares a nossa infância.
Entre tantas reflexões apontadas, uma delas é o fato de a rotina institucional e o
atendimento implicar diretamente na organização, espontaneidade e autonomia para
brincar, o que seria de muito valia uma profunda reorganização na forma de
compreender e organizar as atividades lúdicas. Afinal, a brincadeira é um dos alicerces
da cultura infantil, verdadeiro palco de negociações e construção das práticas sociais e
252
culturais. A brincadeira pode não ser o mais importante para a criança pequena, mas é
fato que ocupa a maior parte de seu tempo.
À guisa de término deste trabalho, lembro o poeta Manoel de Barros: “As
coisas não querem mais ser vistas por pessoas razoáveis. Elas desejam ser olhadas de azul – Que
nem uma criança que você olha de ave”
No percurso do trabalho empírico e na elaboração deste, meu maior dilema foi
não perder o foco dos objetivos e proposta de minha pesquisa visto que desde o início
deparei-me com situações de extrema emoção ao perceber as crianças, ávidas por
carinho e atenção, desejosas de um olhar atento e cuidadoso com elas, Assim,
parafraseando o poeta, as crianças querem ser vistas com olhar de ave, um olhar de azul,
apenas um simples olhar, no entanto, com mais demora, um olhar de horizonte, que gera
perspectivas, que leva a reflexão, que faz pensar.
Conhecer e adentrar numa instituição em que o pesquisador vê, sente, envolve-
se, interage, brinca, separa e retorna com mais intensidade a cada novo encontro é um
processo que exige competências afetivas, além de todo o conhecimento teórico com o
qual se insere no campo, precisa lidar, ao mesmo tempo, com a investigação e com o
processo de separação das crianças em cada visita. Isto sugere que o pesquisador ouviu
e levou consigo experiências marcantes, como revela este trecho de uma entrevista:
[...] vou falar de outra coisa [...] eu vim para cá chorando [...] porque
minha mãe fumava e a polícia foi lá na minha casa, o meu tio, ele roubava
também, a polícia mandou ele ponhá a mão na cabeça, ele encostou lá na
parede, e outro guri também, aí levou o guri preso, falou pra ele ponha a
mão na cabeça [...] aí aconteceu uma coisa, minha mãe ficou presa, aí ela
saiu da cadeia, ela foi pra minha casa e ficou lá, como ela continuava
fumando a polícia não deixava eu ver ela [...] sabe uma coisa que eu quero,
ir para céu porque eu não aguento ficar aqui neste lar, e nem na minha casa,
lá na minha casa eu vivia comendo só porcaria [...]
Esta fala de uma entrevista com uma menina de 5 anos é o retrato de uma
história com marcas de abandono, separações, violência, sofrimento e muito desejo de
transformar sua realidade num “céu maravilhoso”.
A criança, sujeito desta história, representa a violação dos direitos da infância
que sofre e aspira por um olhar atento às suas necessidades, que perceba o descaso das
políticas públicas e as mazelas das famílias desprovidas social e afetivamente, do
suporte necessário ao pleno desenvolvimento infantil, sendo o desfecho a permanência
num abrigo de acolhimento.
253
Neste contexto institucional, as brincadeiras são experiências importantes pois
representam uma forma de manifestação da experiência interna, exteriorização de
desejo, por isso o ato de brincar consiste em realizar tendências que não podem ser
imediatamente satisfeitas.
No espaço circunscrito dessa pesquisa, por meio das brincadeiras, as crianças
lutam por autonomia na tentativa de conquistar o seu espaço, algumas exercitam este
protagonismo, na transgressão, como por exemplo, um garoto, que escondeu alguns
livros que ganhou na escola, num buraco de ar condicionado49
.
Para encerrar, faço das palavras de uma cuidadora o final deste trabalho, a qual
grita por socorro em sua fala: essas crianças não têm nada, eu aumentaria o número de
recreadores e a capacitação deles, mudaria papel do orientador, que não pode ficar só
no cuidar, precisa educar, educadores precisam ter mais relação (amizade) com as
crianças, precisam brincar e cuidar.
“Se podes olhar, vê. E se podes ver, repara.”
(José Saramago)
49
Relato de uma técnica sobre este episódio do garoto.
254
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265
ANEXOS
266
Anexo I
ROTEIRO DE OBSERVAÇÃO
Data:_____/____/_____ Entrada:________ saída _________
1. Quantos orientadores no plantão? _____mulher _____homem.
2. Existe brinquedo no espaço cercado para as crianças?
3. Quais brincadeiras surgem no cercado? ( ) livre ( )dirigido. Qual tipo? crianças
envolvidas, como inicia e termina o episódio e como as crianças interagem?
4. Quais são as regras nas brincadeiras dirigidas
5. Quais são às interferências feitas nas brincadeiras e por quem?
6. Quais estratégias usadas pelas crianças para burlar as regras impostas?
7. Em que momentos são permitidos as brincadeiras?
8. Quais as brincadeiras preferidas das crianças?
9. Espaços utilizados para as brincadeiras?
10. Tempo diário dispensado para brincar?
11. Existem “códigos” de permissão para brincar entre as crianças?
12. As crianças são separadas por sexo nas brincadeiras?
13. Local (s) que ocorrerem as brincadeiras?
14. Quando brincam sozinhos se divertem mais?
15. Longe dos adultos eles resolvem os impasses nas brincadeiras?
BRINCADEIRAS FAZ-DE-CONTA
Quais temas fazem parte
Quais os papéis vivenciados
Como as crianças interagem na brincadeira.
Quem coordena?
Como são negociadas as entradas e saídas nas brincadeiras?
Duração ou frequência da brincadeira:
267
Anexo II
ROTEIRO DE ENTREVISTA COM OS CUIDADORES
1. Na sua opinião, quais os espaços em que as crianças mais brincam?
2. Você poderia me falar um pouco sobre o que você percebe a respeito das brincadeiras?
(como organizam a brincadeira, de que elas mais gostam de brincar, como interagem
nas brincadeiras)
3. Na sua opinião, as brincadeiras possuem relação com a experiência de vida das
crianças?
4. No seu entender, as brincadeiras são importantes na rotina das crianças?
5. Na sua opinião, quais brincadeiras você considera mais legal para as crianças, as livres
ou as dirigidas pelos recreadores?
6. Na sua opinião, é possível saber como uma criança se encontra observando as
brincadeiras?
7. Quem mais brinca com as crianças e de que?
8. Na sua opinião, a rotina que o lar estabelece leva em conta as brincadeiras das crianças?
(como ocorre a rotina diária e qual relação possui com a brincadeira)
9. Na sua opinião, as crianças são capazes de brincar sozinhas sem a vigilância e
interferência do adulto? Fale sobre isso
10. Que sugestões você faz sobre as brincadeiras?
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Anexo III
ROTEIRO DE ENTREVISTA COM AS CRIANÇAS
1. De que você mais gosta de brincar?
2. Quais são os momentos que não pode brincar?
3. Existem lugares que não pode brincar?
4. O que deixa você bravo (a) quando está brincando?
5. Do que você gosta de brincar na casinha de bonecas?