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  • 8/12/2019 Sonia Kramer ANPEd

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    Revista Brasileira de Educao 19

    Leitura e escrita de professores

    Leitura e escrita de professoresDa prtica de pesquisa prtica de formao 1

    Sonia Kramer Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro

    Texto apresentado na XX Reunio Anual da ANPEd, Caxambu, setembro de 1997.

    Tudo o que era guardado a chave, permanecianovo por mais tempo... Mas meu propsito no era

    conservar o novo e sim renovar o velho.

    Walter Benjamin

    Introduo

    O objetivo deste artigo apresentar algumasquestes que temos buscado aprofundar na prtica

    da pesquisa em educao.2 Procurando compreen-der o presente com o olhar iluminado pelo passado ou pelas experincias passadas relatadas por pro-fessores , tendo em vista especialmente a prticade profissionais envolvidos em formao, a pesquisatem como propsito: 1. ampliar o conhecimento dis-ponvel sobre leitura/escrita; 2. fornecer subsdiospara polticas pblicas, para polticas de leitura ede escrita e de formao de professores; e 3. sugeriralternativas para a leitura/escrita de professores,entendidas como parte de uma necessria polticade distribuio dos bens culturais, uma das condi-es essenciais para a construo da democracia.

    1 Texto redigido no mbito dos trabalhos do GT Alfa-

    betizao, Leitura e Escrita da ANPEd, produzido a partirda pesquisa Cultura, modernidade e linguagem: leitura eescrita de professores em suas histrias de vida e formao,desenvolvida como Projeto Integrado de Pesquisa com oapoio do CNPq. Participam da equipe de pesquisa: Ana Bea-triz Lopes de Lima, Aparecida Rodrigues da Silva, Clara deAlmeida e Silva, Rachel Ignez R. Pereira (bolsistas de ini-ciao cientfica); Maria Cristina Pereira de Carvalho, Ritade Cssia P. Frangella, Vnia Christina Menezes (bolsistasde aperfeioamento); Maria Helena Guerra (bolsista de apoiotcnico pesquisa); Eliane Fazolo Spalding (ps-graduada);

    Ilka Schapper Santos (mestranda); Maria Isabel Ferraz P.Leite (doutoranda).

    2 Trata-se da pesquisa Cultura, modernidade e lin-guagem, realizada como Projeto Integrado de Pesquisa comapoio do CNPq, que se voltou, no primeiro momento, parao que narram, lem e escrevem os professores (Krameret al., 1993, 1994, 1995a) e, em seguida, para o estudo daleitura e escrita de professores em suas histrias de vida eformao (Kramer et al., 1996, 1997).

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    Sonia Kramer

    Como pressuposto bsico da investigao estnossa convico de que, para tornar seus alunos ealunas leitores e pessoas que gostem/queiram escre-ver, os prprios professores precisam estabelecerrelaes estreitas com a linguagem, experimentan-

    do a leitura e a escrita como prtica social e cultu-ral. Indagamos:

    como possvel a um professor ou a uma pro-fessora que no gosta de ler e de escrever, que nosente prazer em desvendar os mltiplos sentidos pos-sveis de um texto, trabalhar para que seus alunos en-trem na corrente da linguagem, na leitura e na escrita?Inversamente, se o professor ou professora gosta deler e de escrever, se contador de casos e de histrias,

    o que (na sua trajetria de vida) favoreceu esse gos-tar, essa prtica? Que relao professoras e professo-res tm com a linguagem no seu cotidiano? O que con-tam, lem, escrevem? Como ocorreu essa relao coma escrita ao longo de suas histrias de vida constru-das na coletividade? De que maneira esta experinciaacumulada influencia a relao desses professores comseu trabalho? (Kramer & Jobim e Souza, 1996, p. 18).

    Estas questes constituem a indagao centraldo estudo e vm sendo aprofundadas ou redefinidastendo em vista particularmente professoras e pro-fessores em processo de formao.

    Pensar a formao implica conhecer, no pre-sente, aquilo que se anuncia para o futuro. Isso nos valioso em especial porque estivemos envolvidas,nos dois ltimos anos, em entrevistar inicialmenteprofessores que atuaram na escola pblica nas d-cadas de 20, 30 e 40 (Menezes, 1996) e mais tar-de, professores que atuaram nos anos 40, 50 e 60,tambm na escola pblica. Nesse percurso, orien-ta-nos a filosofia de Walter Benjamin, que, ao tra-tar do conceito de histria, compara-o a um qua-dro de Klee o Angelus Novus :

    Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estoescancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. Oanjo da histria deve ter esse aspecto. Seu rosto estdirigido para o passado. Onde ns vemos uma cadeia

    de acontecimentos, ele v uma catstrofe nica, queacumula incansavelmente runa sobre runa e as dis-persa a nossos ps. Ele gostaria de deter-se para acor-dar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tem-pestade sopra do paraso e prende-as em suas asas com

    tanta fora que ele no pode mais fech-las. Essa tem-pestade o impele irresistivelmente para o futuro, aoqual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ru-nas cresce at o cu. Essa tempestade o que chama-mos progresso (Benjamin, 1987a, p. 226).

    Repensar o passado, ressignific-lo, pensar eressignificar o futuro so aes que supem indagaro presente, no presente, superando mitos e iluses,colocando em questo solues que se tm apresen-

    tado como imediatas e rpidas. Temos aprendido nesse processo que, como diz o poeta Brecht:

    As novas pocas no comeam de repente.Meu av j vivia num tempo novo,meu neto com certeza ainda vai viver no antigo.A carne nova comida com os velhos garfos(apud Konder, 1996, p. 70)

    Por outro lado, procurar conhecer as expe-rincias de professores inclusive as de formao

    tarefa importante hoje no Brasil, e particular-mente no Rio de Janeiro, se se considera o nvelsalarial e a situao de evaso de professores: em1995-1996, no municpio do Rio de Janeiro, segun-do o Sindicato Estadual de Profissionais da Educa-o, uma mdia de oito professores por dia til dei-xou a rede pblica de ensino. Em maro/abril de1996, a mdia foi de seis professores.3

    Vale ressaltar a importncia que atribumos escrita. Compreender como se escreve a histria, co-

    mo se escreve o texto, relaciona-se compreensodaquilo que se escreve em ns, daquilo que a nossa

    3 De acordo com a Secretaria Municipal de Educaodo Rio de Janeiro e o SEPE, em 1996 o vencimento-base doprofessor I (que atua nas quatro primeiras sries do 1 grau)era de R$ 133,00, a que se somavam R$ 242,00 de gratifi-cao de regncia (perdida na aposentadoria) e R$ 25,00 deauxlio-transporte, perfazendo um salrio de R$ 400,00.

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    Leitura e escrita de professores

    trajetria de aluno ou de professor inscreveu na pr-tica cotidiana de cada qual. Reler essa prtica, re-ver autobiograficamente a experincia passada, asituao presente e as perspectivas futuras significa ou implica reescrever essa histria; dar-lhe ou-

    tro sentido; ressignific-la, mudar o futuro que se a-presenta(va) com um inevitvel tremor diante de umafolha em branco ou com uma incompreensvel aver-so a livros. A necessidade de formar professores quegostem de ler e que no tenham medo ou vergonhade escrever tem sido, portanto, o eixo da pesquisa.

    Este texto, no entanto, mais do que tematizara leitura/escrita, os resultados do trabalho de campoou as sugestes para polticas de leitura/escrita, as-pectos j abordados em outros momentos (Kramer,

    1995; 1996; Kramer & Jobim e Souza, 1996), tra-ta, primordialmente, de pensar a prtica da pesqui-sa e as possveis contribuies que essa prtica trazpara pensar a formao. Mais do que abordar o pro-duto da pesquisa, detemo-nos ento no seu proces-so de produo, numa espcie (nos arriscamos a de-nominar) de metapesquisa. Com essa direo, o textose estrutura em duas partes. Em primeiro lugar, apre-sentamos a abordagem terico-metodolgica que nostem orientado: cincias humanas e sociais e pesquisa;histria, narrativa e rememorao; leitura, escrita epesquisa (algumas reflexes sobre a formao doleitor so temas privilegiados). Em seguida, tratamosde narrativas de trajetrias, constituio do sujeitoe formao. Aqui so ressaltadas a dimenso forma-dora da entrevista e a dimenso formadora da escrita.A narrativa e a escrita so destacadas, assim, comoaspectos cruciais a serem levados em conta nos pro-cessos de formao de professores.

    Abordagem terico-metodolgica

    Cincias humanas/sociais e pesquisa:algumas questes no ponto de partida

    possvel explicar objetivamente o homem?Esta certamente a grande questo das cincias hu-manas e sociais. Se nas cincias naturais o objetode investigao sempre foi um produto acabado,

    separado, classificvel, serivel, neutro e por issomesmo passvel de objetivao, nas cincias huma-nas e sociais o objeto o prprio homem e suasrelaes, isto , um objeto em processo, inacabado,vivo, mltiplo e ideolgico. Se nas cincias naturais

    h uma relao de oposio entre sujeito e objetoe dessa oposio que surge o conhecimento, nascincias humanas impossvel fazer essa ciso su-jeito/objeto. No h um sujeito que olha para umobjeto. H um sujeito que objeto de si prprio,que reflete sobre si mesmo e suas relaes e, nessasrelaes, constri seus conhecimentos. , portanto,um conhecimento produzido socialmente, situadona histria e na cultura e no, como pretendiam ascincias naturais e ainda hoje as tendncias posi-

    tivistas um conhecimento inteiramente objetivo.A impossibilidade de explicar objetivamente o

    homem pelo modelo de investigao das cincias na-turais vem lanar s cincias humanas um grandedesafio: perceber e compreender o homem na suacondio inalienvel de ser ao mesmo tempo sujeitoe objeto, produto e processo, visto que o homem no objeto, ser humano, e pens-lo (pensar-se) requerultrapassar os limites da epistemologia, conjugan-do ao conhecimento tambm as dimenses tica eesttica, s possvel pela via da linguagem (Kramer,1992). No se trata, pois, de negar a cientificidadedas cincias humanas, mas de construir uma outraforma cientfica de conhecimento. Acusando de mo-nologismo as cincias naturais e humanas que to-mam por paradigma os postulados positivistas, nascincias humanas h um objeto que fala: o homems pode ser estudado como produtor de textos, co-mo sujeito que tem voz, nunca como coisa ou ob-jeto e, nesse sentido, o conhecimento s pode tercarter dialgico (Kramer, 1992, p. 106).

    Sustentando uma tradio que ope sujeito eobjeto, durante muito tempo as cincias naturais e tambm as humanas, ao copiarem seu modelo deinvestigao conceberam o sujeito como um serdesprendido de sua realidade social e histrica e,desse modo, instauraram o conceito de neutralidadecientfica. Sujeito e objeto foram condenados a pro-duto; despindo-se de sua humanidade, consagrou-

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    se o pesquisador como personagem quase fictcio,que em nome do rigor foi aprisionado nasmalhas da rigidez. Tal desumanidade das cinciashumanas deixou sem voz um objeto que fala e con-denou o sujeito a uma voz autoritria, monolgica

    e talvez vazia de histria e de significado. o ho-mem, para a cincia, um objeto morto? Ora, a teoriacrtica e a sociologia crtica do conhecimento vmcontribuir significativamente para o redimensiona-mento dessa relao sujeito/objeto. Dessa perspec-tiva, tanto o objeto quanto o sujeito das cinciashumanas e sociais no so dados, mas sim constru-dos, inseridos numa sociedade, numa cultura e nu-ma linguagem. So, portanto, fruto de seu momentohistrico e reconstrutores da realidade: s existe

    cincia que se pretende humana se esta, em seu ma-go, jamais prescindir da dialogicidade. Para enten-der o homem no mais como um produto estanque,objeto de explicao, mas como um ser histricoe social, em processo, que se interroga constante-mente, preciso tambm um olhar processual pa-ra esse homem, um olhar que o perceba inclusiveno incessante movimento e na multiplicidade que a sua vida.

    Para que se repensem as cincias humanas e apossibilidade de um conhecimento cientfico hu-manizado h que se romper com a relao hierr-quica entre teoria e metodologia. Pensar a questometodolgica das cincias humanas pensar o pr-prio conceito de cincia humana. Anloga rela-o entre contedo e forma, teoria e metodologiaso indissociveis. A teoria, que embasa o referen-cial metodolgico, no se cristaliza, mas se redi-mensiona e tambm objeto de investigao. Nes-se sentido, pesquisa , para ns, uma questo depesquisa.

    Walter Benjamin (1984) permite aprofundaressa reflexo ao postular que necessrio construirum referencial terico-metodolgico outro para ascincias humanas. Buscando um conhecimento quepense a si prprio, Benjamin delineia um modeloepistemolgico e, permeando a construo dessateoria do conhecimento, apresenta uma propostametodolgica. Sua questo central a verdade e o

    modo de trat-la. Dirigindo sua crtica tanto cin-cia quanto aos sistemas filosficos, considera queambos, na nsia de dar conta da verdade, tm-naaniquilado, encarcerando-a, homogeneizando-a,ignorando as suas diferenas. Sem pretender o des-

    nudamento que aniquila o segredo, mas a revela-o que lhe faz justia (idem, p. 53), sua preocupa-o a de no sacrificar a totalidade nem a singu-laridade. Mas como? Deixando que o particular falepara que revele as leis do todo, porque a verdadeno se encontra nem num suposto pseudo-univer-salismo totalizador, nem no particular isolado erechaado por ela pela cincia.4 A verdade est natenso entre o universal e o particular e a sua bus-ca se funda na leitura monadolgica do particular.

    Benjamin entende a mnada como fragmento, rea-lidade miniaturizada, constituindo um ponto de vis-ta sobre o mundo e, ao mesmo tempo, o mundo sobum ponto de vista. Contudo, embora contenha to-dos os elementos do mundo e das idias, cada frag-mento ou mnada diferente da outra; o caminhoque pretendemos trilhar foi o da leitura do parti-cular, trabalhando os fragmentos, os estilhaos, asrunas (Kramer, 1992; Kramer & Jobim e Souza,1996), buscando compreender a totalidade que ne-les se revela.

    Histria, narrativa e rememorao

    Tomando de emprstimo o desafio benjami-niano de fazer histria do lixo da histria, a huma-nizao das cincias humanas passaria pelo desafiode resgatar a humanidade do homem, isto , resga-tar os elementos que lhe foram arrancados para quese pudesse converter o homem em objeto. Nessesentido, a narrativa e as histrias de leitura/escrita,enquanto abordagem terico-metodolgica, fun-damentam-se no pensamento de Benjamin e no seu

    4 Este impasse vem sendo enfrentado em vrias reasdas cincias humanas e sociais, seja no campo da antropo-logia e da sociologia, no chamado debate macro/micro, sejana lingstica etc.

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    Leitura e escrita de professores

    objetivo de encontrar um referencial humano ques pode ser histrico e social para as investiga-es sobre o homem. Resgatar a histria das pes-soas significa v-las reconstiturem-se enquanto su-jeitos e reconstituir tambm sua cultura, seu tempo,

    sua histria, re-inventando a dialogicidade, a pala-vra. Tal resgate se apresenta como ponto crucialpara a construo de um conceito humanizado decincia: ouvir o que at ento no pde ser expressoou escutado, transformando as sobras, dobras, asfranjas em objeto de investigao significa levar emconta o que vem sendo tratado como lixo. Assim,a rememorao proposta como leitura monado-lgica do particular, pois tambm nas dobras docotidiano que a histria se realiza (Benjamin 1987a,

    1987b).Autores como Nvoa (1992a, b e c), Huber-

    man (1992), Goodson (1992), Bosi (1993), Demar-tini et al. (1993), Sousa et al. (1996) fornecem, nessesentido, importantes contribuies por buscaremnovas estratgias de pesquisa, tentando produzir umoutro conhecimento sobre as professoras e os pro-fessores, mais voltado a compreend-los como pes-soas e profissionais. As narrativas, entrevistas auto-biogrficas, tambm chamadas relatos de vida ouhistrias de vida, revelam a possibilidade de umnovo campo em pesquisa educacional. Entrevistasque enquanto espaos de produo de narrati-vas abrem-se, como textos que so, a mltiplasinterpretaes.

    Ora, ao entrevistar professores sobre suas pr-ticas docentes, Goodson (1992) menciona comoseus entrevistados falavam de suas histrias pes-soais, o que o fez supor que os professores consi-deravam as questes da vida significativamente re-levantes para uma compreenso do cotidiano e desua prtica docente. O autor alerta para a falta, naspesquisas em educao, daquilo que para ele deve-ria ser considerado o ingrediente principal: a voz doprofessor. Nesse sentido, o respeito pelo autobio-grfico, pela vida, apenas um dos aspectos dumarelao que permite fazer ouvir a voz do professor(idem, p. 71). Ouvindo o professor aprendemos queo autobiogfico importante tambm quando eles

    falam de seu trabalho. A histria compreendida,nessa abordagem, como memria coletiva do pas-sado, conscincia crtica do presente e premissa ope-ratria para o futuro (Ferrarroti, 1982). preciso,como diz Benjamin (1987), no se contentar com

    um historicismo que apenas estabelece um nexocausal entre os vrios momentos da histria; ne-nhum fato , s por ser causa, um fato histrico. Ohistoriador consciente disso renuncia a desfiar en-tre os dedos os acontecimentos, como as contas deum rosrio. Ele capta a configurao em que suaprpria poca entrou em contato com uma pocaanterior, perfeitamente determinada (p. 232).

    Lembrar , aqui, perfilar o tempo, assumir otempo como medida humana, como histria. Cada

    um dos passos dados modifica o futuro e, ao mes-mo tempo, re-interpreta o passado. Como diria Ben-jamin (1987), passado, presente e futuro se co-nectam e se redimensionam em sempre novas cons-telaes. Pela rememorao, na linguagem e na nar-rativa, resgata-se o poder de ser no presente, nopassado e no futuro, possibilitando tecer o sentidoda histria, no mais como um encadeamento cro-nolgico, mas como um processo de re-criao dosignificado. Assim, as histrias de vida e as hist-rias de leitura/escrita, no nosso caso, so um impor-tante suporte terico-metodolgico no qual o pro-fessor, ao lembrar da sua vida, vai dando a ela ou-tros sentidos, antevendo mudanas na sua prtica.Isso representa reunir a pessoa e o profissional quenele foram separados, no mais divorciando vidae trabalho.

    Por outro lado, lembrar, nesse sentido, no reviver mas refazer, reconstruir, repensar com ima-gens e idias de hoje as experincias do passado. Amemria da pessoa se liga memria do grupo, aoselos e laos de coletividade (Benjamin, 1987a), quese vincula prpria tradio. Segundo Benjamin,precisamos estabelecer uma outra relao com atradio e a cultura para no sermos aprisionadospela barbrie, o que acentua, mais uma vez, a ne-cessidade da rememorao. O sujeito constitui alinguagem e tambm constitudo por ela. Pela lin-guagem, revivemos e re-fazemos a experincia vi-

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    vida a autobiografia. A narrao da prpria vida,a autobiografia, a rememorao so parte do pro-cesso de fazer a histria.

    No caso especfico desta pesquisa, interessou-nos sobretudo ouvir, analisar, compartilhar hist-

    rias de leitura e escrita e de formao. Nossa meta, portanto, a de forjar uma prtica de pesquisa quese preocupe tambm com as coisas simples e peque-nas e nelas com toda a complexidade do mun-do, da vida, da histria. Com essa meta e nos apro-priando dos conhecimentos que o estudo da narra-tiva, leitura e da escrita de professores nos favore-ce adquirir, nosso compromisso como dissemosno incio o de trazer contribuies para polti-cas pblicas de acesso escrita, de formao de

    professores, de formao de leitores, entendendosempre a poltica educacional no bojo de uma po-ltica cultural e cientfica.

    Leitura, escrita e pesquisa algumasreflexes sobre a formao do leitor

    Leituras so prticas, so fenmenos socio-culturais, usos e disposies a partir de refernciassociais concretas. Por um lado, a leitura pode serpercebida como estando mais ligada oralidade,estando o ato de ler diretamente vinculado so-norizao das palavras. Ou pode-se entender queler no s transpor imagens grficas em imagenssonoras, mas sim signos visveis em sentido. A lei-tura, ento, no a soma do sentido das palavrasque compem um texto, pois o subtexto e seu con-texto que lhe daro o sentido. Ela requer um co-nhecimento prvio, lingstico e no-lingstico tanto a informao visual quanto a no-visual soimportantes na leitura do texto.

    Desde o surgimento da humanidade, o homeml o mundo que o cerca percebendo a necessidadede atribuir-lhe significado atravs das diferentes lin-guagens: gestual, pictrica, oral, escrita. Ser leitor ser, ento, produtor de significados. Ser leitor detextos praticar leituras em seu cotidiano com ca-pacidade de articul-las na formao desses signi-ficados. Numa sociedade elitista, configurada por

    seu carter excludente, ainda marcada por signifi-cativo ndice de analfabetismo, a idia genrica decrise de leitura parece preconceituosa. Gibis, fico-cientfica, policiais, cordel,best sellers a leiturae a conseqente concepo de leitor incluem mais

    do que apenas a grande literatura: agregam todasas categorias de material impresso, atravs de seusdiferentes acessos (feiras de livro, bibliotecas, livra-rias, sebos, bancas de jornais e revistas, internetetc.). Ser que a relao entre a alta literatura e asdemais de complementaridade e circularidade(Dauster, 1996) ou de contrariedade e divergncia?Vale lembrar que a literatura clssica atinge umpercentual mnimo da populao a maioria dosleitores se apropria de leituras diferenciais atravs

    de prticas diferenciais; a heterogeneidade huma-na marca a multiplicidade de sujeitos-leitores e sereflete na diversidade de prticas sociais de leitura.O leitor, portanto, se constri de forma complexa,nas prticas reais de leitura, com gestos, materiaisimpressos, desejo de ler, atravs do contato fsicoe ntimo com o livro. Diversos setores sociais, pormeio de teias de relaes, so responsveis pela for-mao da identidade social destes leitores. Vistadessa maneira, a entrada no mundo da leitura de-pende de relaes simblicas, sociais e econmicas;em outras palavras, refere-se cultura popular, eru-dita e de massa; famlia, escola e a outras insti-tuies. At que ponto alfabetizar implica formarsujeitos-leitores? A alfabetizao pode se restringirao domnio dos cdigos, capacitao para leitura,sem, necessariamente, formar o leitor?

    Pelos diferentes depoimentos das professorasentrevistadas, percebemos que o gosto pela leitura primordial na formao do sujeito-leitor; e essegosto construdo a partir de experincias positi-vas, de prticas concretas de ler e escrever, de iden-tificao de interesses, de liberdade (ou no) de es-colher. Entretanto, no devemos dicotomizar obri-gatoriedade e livre escolha; mais do que tudo, fun-damental haver prticas reais de leitura e escrita(Kramer, 1995). Como pesquisadoras interessadasnas prticas escolares, queremos compreender quepapel a escola e, mais especificamente, o pro-

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    Leitura e escrita de professores

    fessor tm na formao de leitores. Vrios de-poimentos apontaram que a escola teria um papelnegativo na formao do leitor imposio de lei-turas, provas, datas, argies, resumos, fichamen-tos, snteses, a leitura reduzida matria, o con-

    tedo escolar. Paralelamente, a escrita na escola acompanhada pela vergonha, pelo texto ridiculari-zado, jogado fora. Retratada desta forma, a escolaproduz leitores? Ou estes se formam apesar dela?Mesmo sendo indiscutvel o seu papel enquanto ins-tncia divulgadora/promotora de cultura, a escola com a obrigatoriedade, a no-liberdade de esco-lha, a dissecao de textos esterilizou as prticasde leitura e escrita.

    Entendemos que a leitura no escolarizvel

    (isto , no de propriedade da escola) e que a am-pliao de seu acesso crucial no processo de de-mocratizao. Um programa de leitura precisa le-var em conta tudo que a leitura envolve e aborda,pois, afinal, lendo que se aprende a ler; escre-vendo que algum se torna constitudo de escrita.

    Formar leitores crticos central para a con-solidao da cidadania, pois a cidadania se cons-tri com poltica cultural ampla. Similarmente, aformao direito dos cidados e das cidads logo, direito dos professores. Mas a formao deleitores passa tambm pelo acesso a bibliotecas, ex-posies, feiras de livros, museus, teatros, cinemas,espetculos musicais ou de dana. Formular e im-plementar polticas pblicas de investimento emleitura e escrita e de investimento em cultura deforma geral deveria ser prioridade.

    Vale ressaltar, entretanto, que, embora a lei-tura no seja escolarizvel, papel da escola in-centiv-la, garantir a democratizao da leitura e daproduo da escrita. A leitura no pode ser, pois,reduzida s prticas extra ou intra-escolares, masencarada como fator importante no interior de umamplo projeto de poltica cultural que perceba aurgncia de formar/resgatar professores-leitoresque, narrando suas histrias, tecem uma experin-cia de formao. um processo de aprendizagemno somente da histria, mas, principalmente, coma histria ouvindo, falando, bordando suas rela-

    es, repensam a histria, dando ela um outro/ novo significado, num processo contnuo e dinmi-co de transformao. O estudo terico que temosaprofundado e as atividades que temos desenvolvi-do na pesquisa, tanto no que diz respeito s entrevis-

    tas quanto s atas, tm fornecido subsdios paracompreender sua dimenso formadora. Da mesmamaneira que para Walter Benjamin, tambm parans pensar e escrever so fundamentalmente ques-tes de resistncia (Sontag, 1986, p. 101). Nessesentido, nossa meta tem sido a de buscar conhecerexperincias de leitura e escrita de professores parapropor alternativas de formao que se constituamem espao de pensamento crtico, de escrita, deresistncia.

    Narrativas de trajetrias, constituiodo sujeito e formao: e a pesquisa

    se tornou uma questo de pesquisa...

    Em Escavando e recordando , Benjamin dizque:

    Quem pretende se aproximar do prprio passa-do soterrado deve agir como um homem que escava.

    Antes de tudo, no deve temer voltar sempre ao mes-mo fato, espalh-lo como se espalha a terra, revolv-lo como se revolve o solo. Pois fatos nada so almde camadas que apenas explorao mais cuidadosaentregam aquilo que recompensa a escavao. Ou seja,as imagens que, desprendidas de todas as conexesmais primitivas, ficam como preciosidades nos sbriosaposentos de nosso entendimento tardio, igual a torsosna galeria do colecionador. E certamente til avan-ar em escavaes segundo planos. Mas igualmente

    indispensvel a enxadada cautelosa e tateante na ter-ra escura. E se ilude, privando-se do melhor, quem sfaz o inventrio dos achados e no sabe assinalar noterreno de hoje o lugar no qual conservado o velho(1987b, p. 239).

    Da mesma forma, no campo terico aqui de-lineado, para penetrar no processo de construode conhecimento dos professores, de modo a quese torne possvel compreender as relaes que es-

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    tabelecem com a linguagem, em especial a escrita, preciso que se proceda tambm como quem esca-va. Mas por que memria e formao? Ora, desdea primeira etapa do projeto, notamos que profes-sores e professoras se surpreendem com o fato de

    serem convidados a falar sobre suas histrias e co-mo, por outro lado, apreciam cont-las. este opropsito da entrevista: recuperar a trajetria dosujeito e, ao mesmo tempo, inserir e abrir um novoespao ou um espao para o novo na prpria his-tria de cada um. Como demonstramos interesse emsaber o que os levou a serem professores, o que liame escreviam, eles rememoram fatos passados, re-descobrem a si prprios no relato de suas histriase um outro lado de sua trajetria se revela. Alm

    disso, eles se surpreendem ao ouvirem a prpria voze percebem, atravs do seu relato, o quanto a hist-ria de cada um, por mais simples que seja, plenade significado.

    Ouvindo depoimentos e narrativas de situa-es vividas, fomos percebendo tambm o carterformador das entrevistas e como fundamental acontribuio que, do ponto de vista terico-meto-dolgico, a pesquisa pode fornecer para a forma-o de professores-leitores e professores-escritores.Nas etapas anteriores da pesquisa (Kramer et al.,1995; Kramer & Jobim e Souza, 1996) havamospercebido uma ruptura entre a vida dos professorese a sua prtica pedaggica, tratadas como coisas se-paradas (ao falarem da experincia de vida, sua lin-guagem era totalmente diferente da que se apresen-tava quando se tratava de falar da prtica pedag-gica), o que consistiu num dos grandes aprendizadosda pesquisa. Agora, observamos o quanto a entre-vista se mostrava importante tambm para o entre-vistador. Assim, se na contemporaneidade vida etrabalho so dissociados, a narrativa das trajetriasno pode configurar um espao fecundo para a uni-dade? Ou estaremos fadados fragmentao?

    Esse processo tem propiciado certas reflexessobre a prtica pedaggica, sobre a leitura/escritade professores e, simultaneamente, tem trazido in-dagaes sobre a relao entre a universidade e aspolticas pblicas de educao. Hoje, mesmo con-

    siderando a diversidade (so tantas universidades,redes municipais e estaduais!), sabemos que estaainda uma parceria difcil: nem sempre h inte-rao institucional nem integrao entre diferentesgrupos de trabalho e de pesquisa existentes nas ins-

    tituies. H esforos isolados de profissionais queprocuram encontrar sadas novas, mas tm dificul-dade de fazer chegar o conhecimento produzido nasuniversidades e instituies de pesquisa, tornando-o acessvel para um pblico que est fora desse espa-o, que precisa encontrar caminhos que dem con-ta das dificuldades que enfrentam no mbito de suasprticas profissionais. Se grande parte da nossaproduo se mantm ainda encastelada, pois escre-vemos para ns mesmos (Jacoby, 1987; Kramer,

    1992), verdade que hoje j se pode perceber umacerta mudana nessa relao. Algumas universida-des e secretarias entendem que s possvel cons-truir conhecimento se h dilogo com quem est naprtica os prprios professores que esto nassalas de aula, mais prximos s crianas e se hreconhecimento das trajetrias desses professores,daquilo que conhecem e fazem. H maior integra-o entre trabalho terico e prtico, embora mui-tas lacunas precisem ser superadas.

    Correndo o risco de fazer uma apreciao in-justa em relao a diversas alternativas que tm pro-curado enfrentar essa questo, podemos dizer quemuitas secretarias e universidades so bastante au-toritrias nessa relao. Parece que tentam dizer aoprofessor esquea sua histria e comece tudo denovo, como se isso fosse possvel e, alm do mais,desejvel. Ora, uma secretaria no tem o direito dedizer para centenas de milhares de professores qualmtodo deve ser usado, enquanto pede aos profes-sores para que respeitem o saber das crianas. Deoutro lado, pode-se dizer que a universidade temapresentado alguma mudana e comea a perceberque precisa se abrir, se aproximar da vida concre-ta, se comprometer efetivamente com a sociedade;do contrrio, se continuar negando a palavra dosprofessores, esse conhecimento no ir se renovar.No que se refere ao tema da nossa pesquisa, orien-ta-nos a indagao: vlido determinar como se

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    Leitura e escrita de professores

    deve alfabetizar, sem que se conhea a leitura e aescrita reais de professores? A partir da pesquisa,propomos que cada vez mais sejam construdos di-logos, pois h muitas sadas possveis, situadas his-toricamente, o que fundamental para que no se

    apague a histria anterior nem das secretarias, nemdas universidades, nem dos professores.

    E o que compreendemos por formao? Aidia de capacitar, ainda muito comum em inme-ras secretarias, parte do princpio de que algum incapaz, assim como a idia de reciclar parte doprincpio de que algum vai jogar fora o velho eabsorver o novo. Se a histria das prticas escola-res e das prticas de leitura e escrita no forem le-vadas em conta, no se correr o risco de instituir

    mais uma soluo aparentemente nova, mas queestar distante das necessidades reais de formaodos professores? Dar acesso produo tecnolgi-ca e cientfica fundamental, mas adianta equiparescolas com equipamentos eletrnicos se as expe-rincias dos professores e seus processos de aquisi-o e construo de conhecimento continuarem nosendo considerados? Sabemos que as propostas ba-seadas em concepes que negam a prtica e a his-tria acumulada dos professores geram reaes dedescrdito, de cansao, de averso. E, assim, teoriase alternativas prticas so desgastadas porque suaforma de implantao contraria o seu prprio con-tedo: fala-se muito sobre linguagem, mas no seconstri um espao de produo de linguagem.

    Alm disso, a mais sria crtica que precisa serfeita s estratgias de formao permanente ou emservio que elas se desvinculam de uma efetivapoltica que redunde em benefcios na carreira, noavano de escolaridade, e que reconhea o esforoobjetivo que significa para os professores investirna qualificao. Polticas de formao efetiva pre-cisam garantir tais benefcios concretos aos profes-sores, aliando formao com aumento de salrio eprogresso na carreira, pois a formao um direi-to, um direito do professor e no um favor conce-dido por uma secretaria de um determinado gover-no. Nenhum projeto gera transformao se no ga-rantir concretamente reconhecimento da condio

    de cidadania e de humanidade. Pois como o profes-sor pode tornar seus alunos cidados se seus pr-prios direitos de cidadania no tm sido respeita-dos? Como pode um professor que no gosta de lerou escrever tornar seus alunos leitores e escritores?

    Mais do que formar o hbito de ler, trata-se entode, junto com ele, criar o gosto de ler e de se con-cretizar, nas escolas e fora delas, prticas reais deleitura e escrita de crianas e de adultos. Isso signi-fica que as polticas de formao de professores pre-cisam ser concebidas, consideradas e implementadasno interior e como parte de uma efetiva polticacultural e como condio de efetivao de uma tam-bm urgente poltica cientfica.

    No contexto dessas idias que o papel da

    memria, das histrias de vida e das autobiografiasse torna fundamental como uma alternativa s po-lticas de formao que passam uma borracha nasprticas construdas ao longo da histria do pas eda educao brasileira e nas inmeras histrias deprofessores, professoras, escolas e projetos. A edu-cao aqui reconcebida de maneira que sua estrei-ta ligao com a memria social vem tona: a edu-cao passa a ser (re)vista como parte da histria,atribuindo ao mesmo tempo um importante papelno resgate da memria. Pensar e seguir um projetode formao em tal linha significa caminhar no sen-tido contrrio ao apagamento da memria. Paradimensionar a relevncia dessa questo, vale regis-trar a tendncia de cada reforma educacional nos brasileira mas, certamente, tambm brasileira de considerar o momento da sua implementaocomo o incio de tudo, atribuindo ao que veio antesa idia de tradicional, de atraso, de conservadoris-mo, resistncia ou reao que precisa ser superada.Essa prtica de certo modo coloca a educao emponto morto, do qual s seria alavancada por pro-postas pedaggicas inditas ou mirabolantes.

    As experincias que ouvimos, registramos eanalisamos de antigos professores e professoras queatuaram nos anos 20, 30, 40, principalmente, mastambm nos anos 50 e 60, permitiram compreen-der que o que vivem e o que falam no se encon-tram dicotomizados. Elas e eles valorizam suas me-

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    mrias; no trilharam um caminho de anonimatoe de apagamento. No so meras tias; so sujeitosda histria, construram uma carreira, instituram-se de educao e de educao foram instituidoras.Ouvi-las, como Xerazade, ensinou equipe mui-

    tas coisas sobre leitura/escrita, sobre educao esobre ser professor. Graas narrativa expe-rincia concreta que as constituiu e que, tornando-se experincias coletivas, constituram naquele tem-po seus alunos e hoje suas entrevistadoras , elase eles puderam e podem valorizar as histrias dooutro e suas prprias histrias, pessoais e profissio-nais. O significado de ser professor se encontra ex-plcito: os professores e as professoras continuamcontando histrias, criando histrias, querendo vi-

    ver a histria (Kramer et al., 1993).

    A dimenso formadora da entrevista

    ... a linguagem constitui o arame farpado mais

    poderoso para bloquear o acesso ao poder.

    Maurizzio Gnerre

    A pesquisa relatada mergulha no passado paracompreender as prticas atuais de leitura e escrita,as concepes subjacentes a essas prticas e, prin-cipalmente, as situaes singulares tendo delas re-velada a sua dimenso de totalidade. Mais do quememria oral, trata-se ento de memria e narra-tiva da experincia, vale dizer, trata-se de histrias.E esse recontar das histrias crucial na rea daeducao, como vimos, pois as mudanas polticas,as propostas pedaggicas, as inovaes curricula-res tentam anular as prticas escolares e zerar asexperincias concretas de professores, como se es-tivessem em ponto morto.

    Dito de outra forma, podemos perguntar: serque na modernidade no se instaura uma mudan-a no sentido de que antes as pessoas aprendiamcom a histria vivida, contada, compartilhada, co-letivizada e hoje na sociedade moderna , como definhamento da experincia e da arte de narrar(Benjamin, 1987b), trata-se de aprender histria?Se procede essa reflexo aqui iniciada, pode-se su-

    por ainda que essa perspectiva disciplinar da hist-ria moderna se d em dois sentidos: o de controlare enquadrar crianas, jovens e adultos, e tambmo de esvaziar a prpria historicidade da histria, quedeixa de ser algo vivido e feito pelos homens e pas-

    sa a ser matria ensinada/aprendida.Por outro lado e este foi um tema recorren-

    te nas entrevistas daqueles que foram professores nosanos 10, 20, 30, 40 , como pensar histria, me-mria e tradio no mbito de uma escola chamadade tradicional e de uma educao considerada novaou moderna? Cabe lembrar que a pedagogia costu-ma denominar ensino tradicional tudo aquilo queaos seus olhos se constitui em erro. Nesse sentido,costuma-se atribuir a origem de todas as dificulda-

    des atuais escola tradicional, por princpio toma-da como conservadora e avessa a mudanas. Masser que procede essa generalizao to comum nosmeios escolares e no iderio educacional? Ser que correto acusar a escola tradicional de insistir namemorizao, sem distinguir entre memorizar e termemria? Ao contrrio, diversos professores entre-vistados, ao falarem sobre os problemas da escolade hoje, acusam essa escola de s ensinar pela repe-tio sem sentido, pela decoreba, diferentemente dasde seu tempo. No lugar da decoreba e do treinamentoda escola atual, dizem, a escola antiga queria quecompreendessem e comentassem o que tinham lido,estudado, aprendido. H nesses depoimentos umaspecto importante, que ajuda a romper e questio-nar as dicotomias, e tambm por isso continuar aouvir as histrias de professores fundamental. As-sim, se antes se aprendia com a histria e de cor,que literalmente queria dizer do corao, passa-se a aprender histria atravs da decoreba, uma ta-garelice como diria Benjamin (1987a) , um pa-paguear repetitivo e vazio de sentido porque o saberperde a sua dimenso de experincia e o seu sentidode narrativa, a sua dimenso de sabedoria, pois.

    Contra uma postura de anular a narrao econtra o carter apenas disciplinar da histria, de-fendemos uma perspectiva para a formao na qualno seja perdida a dimenso de experincias recon-tadas e ressignificadas; onde a formao seja prati-

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    Leitura e escrita de professores

    cada de maneira no-mecnica, impessoal, a-histri-ca e linear, mas como experincia compreendida ecriticada, com possibilidade de transformao, co-mo criao de linguagem humana, como produode homens que se fazem sempre na histria e que

    fazem a histria.Nos relatrios e dirios de campo, inmeros

    trechos revelam a importncia dessa dimenso for-madora da entrevista.5 Vejamos alguns desses de-poimentos. No texto referente professora Adlia nome fictcio as entrevistadoras comentam:

    Trs vidas que se cruzam. Trs histrias que seentrelaam. Entrelaam com outras histrias e outrasvidas. Em outros lugares do Rio de Janeiro, diferentes

    pessoas esto, como ns, entrevistando professoresque estavam em sala de aula nas dcadas de vinte etrinta. Passado, presente e futuro conjugados num stempo. Tempo de (re)viver, tempo de (re)construir,tempo de (re)fazer, tempo de (re)memorar. Memria.Memria que traz possibilidade outra de encontro.Encontro que se refaz, encontro que resgata. Resgataa ns, resgata o outro, resgata o tempo, resgata o con-texto, resgata a histria, resgata a vida... Munidas depaixo, afeto, disposio e de corao nos encontra-

    mos com a professora Adlia. Mas ser que mesmodepois de tantos estudos, de tantas discusses em tornodas cincias humanas e sociais, de tantos mergulhosem livros e textos, nos esquecemos que nosso objetode investigao era tambm sujeito? E enquanto su-jeito, contraditrio e humano? E ns investigadoras,pesquisadoras, o que seramos? Sujeitos, tambm, e,portanto, contraditrios e humanos (Kramer et al.,1996, p. 70).

    A oportunidade de entrevistar favorece, assim,no s o conhecimento do outro, mas o reconheci-mento de si mesmo. o que transparece tambmem muitos trechos que mencionam o fato de preci-sarem encarar estigmas:

    Aos nossos olhos, encontrar com esta senhorasignificava encontrar o idealizado. Uma pessoa comesta idade , em geral, algum doce, meigo, bondoso,caridoso, humilde, paciente, cordato... E de onde vemessa idealizao? Conceitos pr-estabelecidos por

    quem? Por ns. Nos deparamos com nossos prpriospreconceitos (Kramer et al., 1996, p. 72).

    Por outro lado, a escrita dos dirios e relat-rios evidencia que uma mesma experincia tem sig-nificados diferentes para os que dela participam. Adificuldade das entrevistadoras, explcita no comen-trio acima, se contrape ao depoimento da profes-sora Adlia quando diz: Eu estou me divertindomuito com vocs aqui, estou quebrando minha so-

    lido, lembrando... (Kramer et al., 1996, p. 77).A entrevista, especialmente com professorasmais velhas, pode tambm apresentar um forte con-tedo existencial, como aparece no relato a seguir:

    Ouvi a leitura forte da carta que escreveu e man-dou em 1994 para o Fernando Henrique Cardoso, emquem votou e contra quem se sente indignada hoje,carta que no foi publicada pelo JB nem recebeu res-posta do Presidente. A leitura emocionada da poesiaMeninos de Rua ummea culpa pela situao dascrianas, enviada para ela por uma ex-aluna e dasua resposta me fizeram lamentar a conversa no es-tar gravada. Por um segundo me lembrei que diantede sua negativa de gravar, a filha tinha dito para gra-var escondido, coisa que eu no faria. Tal sugestotomava agora a devida dimenso: fatos importantesforam contados e tiveram lugar naquela tarde. Ela medeu cpia das cartas... mas precisam ser lidas em vozalta, com tom de discurso, os olhos marejados de l-grima e com uma vontade de fazer, de mudar, no sde contestar, pois assim foram lidas naquele momentopor d. Lara. Quando me levantei para ir embora, trshoras depois de ter chegado, d. Lara me disse, firme,que no queria que seu nome aparecesse na pesquisa:quem me conhece vai saber que fui eu, quem no meconhece no precisa saber. Porque eu no fiz nadadisso pra aparecer. Pergunto o nome que quer queeu coloque e, marota, ela responde fulana de sicrana,qualquer um. E no vai botar que foi uma mulher de

    5 Cada entrevista foi realizada por uma dupla de in-tegrantes da equipe um graduando e um ps-graduandopara garantir a triangulao, enfrentar a questo da subje-tividade e favorecer a formao de pesquisadores.

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    95 anos que disse essas coisas no seno vo pensarque caduquice. Diante desses pedidos, retruquei, jna porta, indo em direo ao elevador: o nome euno vou dizer no, mas os 95 anos fao questo debotar. Tem muita gente nova que diz caduquice.

    Ela riu. No sei se me ouviu. Me apresentou a suasanta na entrada de casa, uma Nossa Senhora que iriame proteger. Marcamos nova conversa para dia 12 deabril, tambm uma tarde de sexta-feira (Kramer et al.,1996, p. 103).

    Aqui, a generosidade e mesmo o despojamentode vaidade so lies cruciais, inclusive por se re-portarem a valores to diferentes da conhecida leide Grson. Mas se dona Lara 95 anos trans-

    mitia o que significava para ela ter atravessado osculo, diante de duas entrevistadoras impactadaspor sua lucidez e postura combativa, Lena nasentrevistas que deu mobilizava pela conscinciacrtica e militncia. O longo trecho, transcrito aseguir, elucida o significado que teve a experinciade entrevistar para as pesquisadoras, que refletemsobre esse significado e dialogam com a teoria:

    Trs encontros tivemos com a professora apo-sentada que iniciou no magistrio na dcada de 40.Foram trs papos, que se iniciaram num clima de ex-pectativa, porque no dizer de tenso (de nossa par-te, pelo menos) e terminaram com o gostinho de que-ro mais, com a sensao de que aquela histria nocaberia no gravador, tal a quantidade e intensidade dasexperincias contadas. Claro nos ficou que Lena tema conscincia de ter vivido intensamente e que tem oimenso prazer e, quem sabe, dever de partilhar suasvivncias pessoais e profissionais. Dever, no sentidode que as histrias narradas por professores aposen-tados constituem fontes enriquecedoras com vista aum melhor conhecimento da natureza do processo deensino (Ben-Peretz, 1992, p. 213) [...] O eixo prin-cipal da nossa conversa com Lena foi o de buscar asua relao com a leitura e a escrita na sua histria devida e formao. Ora, foi muito fcil ouvir de Lenaas suas recordaes de acontecimentos ligados suavida e mesmo de sua prtica pedaggica. O que nofluiu, a princpio, foram as questes relacionadas lei-

    tura e escrita. Se consideramos que ler era um pro-cesso naturalizado na escola antiga (Geraldi, 1996),aceitamos que a leitura s se torna um objeto de re-flexo e preocupao, hoje, quando o ato de ler con-corre com outras solicitaes e exigncias da vida mo-

    derna. Shotter (apud Ben-Peretz, 1992, p. 112) de-fende que as pessoas fazem afirmaes neutras acer-ca das recordaes: Recordar a prtica quotidianano apenas uma questo de recordar fatos conscien-tes, mas uma questo de reviver certos acontecimen-tos, ser capaz de os reordenar, dando nova forma asentimentos, imaginando novas relaes entre as coi-sas bem conhecidas, ou mundo completamente novos(Kramer et al., 1996, p. 151, 152).

    Mas o inesperado e o diverso que mais ensi-na. As entrevistas com o professor Ciro, por exem-plo, diluem algumas cristalizaes:

    Confesso que esperava encontrar uma casa dediretor de escola privada, branco e at filho de advo-gado. Todavia, a simplicidade do lugar estava distanteda edificao que eu idealizara. Ele ento chegou, pe-diu desculpas pelo resfriado e... era negro. Fiquei umpouco aturdida, afinal j tivera uma varivel altera-da (gnero), outra abalada (classe social) e esta (etnia)desmoronava! Assim... na minha cara! (Kramer et al.,1996, p. 158).

    Por outro lado, se as entrevistadoras com-preendem o quanto aprendem e rompem pr-con-ceitos, percebem que tambm para o entrevistadoo processo de rememorar pode ter ganhos, embo-ra seja doloroso:

    o trmino da entrevista se reverteu para o pro-fessor Ciro em espao de reflexo; com os olhos ma-rejados, disse ter relatado a sua histria e constatadoque o que resta dela uma penso de cem reais6

    [...] Lamenta profundamente o fato de hoje sobrevi-ver s custas de favores de sobrinhos [...] Percebemoso quanto o momento da entrevista se tornou lugar dereflexo. Bosi (1993), aps ter feito pesquisa com ido-

    6 Referente a um salrio mnimo, maio de 1996.

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    Leitura e escrita de professores

    sos, observou que o resgate do passado, mais que umsimples contar fatos, se prestava para um redimen-sionar a existncia de quem narra [...] Na mesma di-reo, conclumos que esta entrevista trouxe benef-cios a todos que dela participaram. Para o professor

    Ciro, o espao funcionou como lugar de reflexo desua existncia [...] Ns colhemos tambm bons frutosdo momento compartilhado com o professor, cujoresultado no se traduz apenas no presente texto; maisque isso, se torna parte de nossas vidas, redimensio-nando-as em todos os aspectos (Kramer et al., 1996,p. 164).

    Inspiradas por esses depoimentos, aprofun-damos a anlise de questes relativas dimenso

    formadora da entrevista. Alm disso, a partir dareflexo crtica do trabalho de campo, realizamosuma atividade experimental: 35 estudantes de gra-duao do sexto perodo envolveram-se, durantetrs meses, em entrevistas exploratrias com pro-fessores alfabetizadores que haviam trabalhado nosanos 20 e 40; de 50 a 70; e a partir de 1980.7 Dostextos que escreveram e do debate sobre o signifi-cado dessa atividade aprendemos o seguinte.

    Quem faz a entrevista tambm aprende J tnhamos nos dado conta, antes, de que,quando uma professora d a entrevista, se apresentapara ela uma interessante possibilidade de ressig-nificao das histrias que conta. Agora, fica evi-denciado o significado que tem a entrevista para ooutro, aquele que entrevista: achei maravilhosa aoportunidade de entrevistar professoras; gosteimuito de fazer as entrevistas; gostei muito, masmuito mesmo de ter podido fazer este trabalho;

    depois que eu fiz essa entrevista, fui conversar com

    as meninas que freqentam a igreja da minha me,que so normalistas. E a senti muita diferena.

    importante destacar o fato de uma aluna (elaprpria professora) ter espontaneamente procura-do vrias professoras, alm das planejadas, para

    entrevistar. Duas alunas contam que tambm entre-vistaram outras professoras, alm da que haviamprevisto. Revela-se aqui o que chamamos de dimen-so formadora da entrevista, aspecto que permiteaprofundar a relao entre leitura e escrita, pesquisae formao. Vale destacar ainda a nfase que deram,nos seus relatos, ao fato de terem entrevistado pro-fessoras de pocas diferentes.

    Mais do que entrevistas, conversas,fios de dilogo, narrativas

    Ao longo do processo, as alunas contam queacabam fazendo outras perguntas no s sobre ler,escrever e alfabetizar, mas relativas prtica peda-ggica em geral da professora entrevistada. Apren-dem, pois, tambm com o contedo da entrevista eno apenas com o processo ou com o fato de fazera entrevista; isto , aprendem com as professorassobre como atuam e atuaram. Desse modo e esse um ponto a ser estudado pode-se verificar quetambm o contedo contribui para constituir essadimenso formadora, at mesmo aprofundando-a.Por outro lado, a partir do contedo substantivo dosdepoimentos, os alunos se indignam com as professo-ras que no gostam de ler, refletem sobre si mesmose sobre sua prtica de leitura/escrita e se questionam:eu perguntei tambm [...] ela me contou [...] eu per-guntei: qual a metodologia? [...] eu achei que elano tinha respondido a minha pergunta e pergunteide novo: qual a metodologia que voc usa na alfabe-tizao? [...] ela falou de paixo [...] eu perguntei:mas o que voc entende por paixo pela leitura?.

    Talvez por estarem menos preocupadas com aquesto da cientificidade e do rigor do processo depesquisa e por termos dado uma conotao de con-versa informal a esse tipo de atividade, os alunos-professores sentiram-se vontade para dialogar, tro-car, discordar at, mais vontade talvez (ou menospreocupados) do que os participantes da pesquisa.

    7 Atividade realizada no mbito da disciplina Alfabe-tizao II. O contato regular com essa turma teve incio emagosto de 1995, na disciplina Alfabetizao I, onde foramestudados fundamentos psicolingsticos e sociolingsti-cos da leitura/escrita. Alfa I e Alfa II so disciplinas regula-res do Curso de Pedagogia da Faculdade de Educao daUERJ, dada por uma de ns at 1996. Assim, a atividadefoi fruto de estudo, trabalho intenso e discusso coletiva.

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    Ouvir o ponto de vista do outro favorece a quebra de preconceitos

    Outro aspecto merece ateno: essa maneirade conduzir criticamente a entrevista e de ouvir ooutro sobre um tema e prtica que esto estudan-

    do pode interferir na quebra de preconceitos daspessoas que entrevistam. Muitos alunos se surpreen-dem quando a mais velha no se mostra to can-sada e desanimada como as mais jovens que nopegaram uma poca boa.

    Quebrar esteretipos e desfazer preconceitosparece ser, assim, mais uma conseqncia dessa ati-vidade. Seria fundamental se pudssemos generali-zar e introduzir no processo de formao de pro-fessores a prtica de ouvir o outro, o que exigiria

    que os prprios formadores aguassem seus ou-vidos, que as prprias secretarias e universidadesaprendessem a escutar e reconhecer as trajetriasvividas. Isso, alm de favorecer que levassem essashistrias em conta, as posicionaria num plano di-verso, exatamente contrrio, alis, idia e pr-tica to nefastas ainda freqentes de colocarprofessoras e professores em ponto morto, fora dequalquer marcha portanto...

    Os alunos se surpreendem igualmente com ofato de terem encontrado professores mais crticosentre os mais velhos e no entre os mais jovens, emque pese os discursos cheios de jarges desses ltimos.

    A possibilidade de conhecer outras alternativas e projetos se amplia

    Ainda que realizada de maneira no-sistem-tica, essa atividade revelou que os alunos queremconhecer as alternativas de ensino adotadas pelosprofessores entrevistados. Aqui, um aspecto quesurpreendeu muito: a recorrncia de alunos que en-trevistaram suas antigas professoras, dentre elaspessoas que tinham sido suas alfabetizadoras. Acon-teceu ainda de entrevistarem professoras a quemtinham e ainda tm muitas crticas, segundo disse-ram, pela sua postura conservadora ou pelo auto-ritarismo da sua maneira de agir. O fato de teremprocurado esses antigos professores pode ser talvezcompreendido como uma tentativa de ressignificar

    a sua prpria histria, revalorizar o outro, poden-do inclusive trans-formar-se nesse processo.

    Como comentrio final, necessrio alertarpara o fato de que a atividade de fazer as entrevis-tas, de conversar com professores e professoras pre-

    cisa ser antecedida por estudo terico, por funda-mentao consistente, e precisa ser sucedida poranlise crtica, reflexo conjunta e por estudo e novoaprofundamento. Resgatamos assim o conceito deprxis e de experincia. At que ponto a realizaode entrevistas, entendidas como espao de narrati-va, no acaba apresentando, pela ampliao desseespao de narrativa, uma alternativa de formao?Ouvindo os relatos, parece que sim. Enfim, a com-preenso deles e delas amadurece: o que eu senti

    que aquela professora no tem muitas condiesde fazer o que ela queria.

    Nesse sentido, uma relativizao do que novoou velho, certo ou errado, tradicional ou moderno,e uma aguda crtica do que significa hoje ser pro-fessor ou professora jovem revelou-se nessa prtica,e veio acompanhada sobre isso bem interessan-te pensar! de um questionamento sobre as pr-prias experincias de leitura e escrita, sobre o gos-to (ou no-gosto) e as condies de ler e escrever.E veio acompanhada tambm da surpresa de encon-trar professores muito jovens j desanimados e can-sados. No abrem-se aqui possibilidades outras depensar e materializar a formao de professores?

    Essa uma das atividades que pretendemosdesenvolver com a continuidade da pesquisa sobreo que lem e escrevem futuros professores e seusmestres, sistematizando alternativas de formao,construdas na e a partir da pesquisa.

    Escrita, tempo e histria idias ainda no tdio

    O sentido desse subttulo inspirado em Wal-ter Benjamin quando diz que

    o tdio ponto mais alto da distenso fsica. Otdio o pssaro de sonho que choca os ovos da ex-perincia. O menor sussurro das folhagens o assusta.

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    Leitura e escrita de professores

    Seus ninhos as atividades intimamente associadasao tdio j se extinguiram na cidade e esto em viasde extino no campo. Com isso, desaparece o domde ouvir e desaparece a comunidade de ouvintes. Con-tar histrias sempre foi a arte de cont-las de novo, e

    ela se perde quando as histrias no so mais conser-vadas. Ela se perde porque ningum mais fia ou teceenquanto ouve a histria (1987a, p. 204-205).

    Apresentamos aqui idias ainda no tdio, nochoco, em tempo de muda; para que benefician-do-se da experincia posterior, seja do estudo terico,seja do trabalho de campo, seja da crtica se tornepossvel, mais tarde, tomar outros rumos, romper,desenvolver uma anlise mais ampla e profunda.

    Partimos da idia de que a escrita inaugura umtempo: um tempo com histria. Assim, at a IdadeMdia no havia razo para o indivduo contar suaprpria histria. Diversos aspectos do cotidianotornavam a vida individual to ligada pblica queexcluam a intimidade, o segredo: a famlia extensa,o espao domstico comum, a vida orgnica expos-ta, a religio aberta, a leitura oralizada, a expressi-vidade do corpo. A vida pessoal se inscrevia na co-munidade e no havia necessidade social da auto-biografia. Ao contrrio, o aumento do espao pbli-co, o maior poder do Estado, as modificaes nasformas de organizao da sociedade, o surgimentodo mercado, mudanas nas relaes de trabalho euma industrializao crescente provocam a oposi-o entre privado e pblico. Essa privatizao dasvrias instncias da vida cotidiana, a transforma-o das concepes de infncia, famlia e comu-nidade, a mudana de muitas prticas sociais entre elas as de leitura e escrita vo trazer, emespecial a partir do sculo XVI, no s o exame deconscincia, a orao mental, a famlia nuclear e aespecializao dos espaos da casa, mas tambm anecessidade de registrar individualmente, nas auto-biografias e nos dirios, a intimidade (Goulemont,1991; Aris, 1991; Chartier, 1991).

    A tradio e o registro do vivido passaram en-to a ter fora, prestgio e poder de seduo, que,no entanto, com a mudana nas foras produtivas

    e o avano da tecnologia, comeou a definhar cadavez mais; aos poucos, o homem moderno deixou decultivar o velho; a tradio se tornou sinnimo deobstculo a ser superado (Benjamin, 1987a; Kra-mer, 1992). Assim, com a modernidade, o apaga-

    mento da memria tornou-se um valor. A veloci-dade dos fatos e as experincias que deixavam deser comunicveis escreviam uma histria de esque-cimento. Lembrar para qu? Lembrar o qu?

    Pensando a escrita, vale mencionar algumasquestes tericas subjacentes nossa anlise.8 Aque-les que, como ns, no tm formao no campo dalingstica e esto imersos em produes que se-guem diferentes e divergentes pressupostos tericos,podem deparar com indagaes cruciais e mesmo

    com equvocos no que se refere linguagem e escrita. Como se relacionam oralidade e escrita?Que papel desempenha a escolarizao? Anne-Ma-rie Chartier (1995) analisa essa questo apontan-do que: 1. a leitura supe a escrita e 2. a escrita in-troduz um novo modo de pensamento. Situa a ori-gem das dificuldades em escrever na escrita escolare aborda uma srie de problemas enfrentados emrelao leitura escolar e s aes de leitores, s pr-ticas de escrita e s interaes entre conhecimentoe informao no mundo contemporneo (p. 40-46).

    Por outro lado, particularmente diante da in-tensa difuso das obras de Emlia Ferreiro e de es-tudos de enfoque estruturalista, temos indagado: aescrita representa a fala? Como se relacionam ora-lidade e escrita do ponto de vista da sua constitui-o? Ora, a partir do pressuposto de que a lingua-gem a concretizao do pensamento e no a suaexpresso (Benjamin, 1987a) e com base no concei-to de que a linguagem material e instrumento desi mesma (Bakhtin, 1987), questionamos a idia deque a escrita representa a fala, base da obra e daspesquisas de Ferreiro, entendendo que ela a apre-

    8 Este item foi realizado com base em seminrios so-bre a escrita e na consultoria do prof. Joo Wanderley Ge-raldi (IEL/UNICAMP), a quem agradecemos as instigantesquestes levantadas e os esclarecimentos feitos.

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    senta ou presentifica. Mas outras indagaes foramlevantadas tambm: como a escrita se construiu his-toricamente? Como se descolou da oralidade? Co-mo este campo que agora se abre contribui pararesponder tais indagaes? (Herreschmidt, 1995, e

    Bottro & Morrison, 1995, por exemplo, analisamessa temtica). E como aprofundar a distino quefazemos entre oralidade e narrativa? Como encon-trar subsdios para dar consistncia anlise dessetema? Oralizar a escrita e ler em voz alta so dife-rentes; , pois, preciso distinguir entre a leitura e aescrita presentes em prticas sociais, em rituais (co-mo acontece em diversas manifestaes da culturapopular, em prticas religiosas ou polticas etc.) ea leitura na escola, onde se cr que a leitura em voz

    alta condio para aprender a ler corretamente.Nosso ponto de vista o de que muitas prticas hojechamadas de oralizao da escrita alguns con-tadores que recitam histrias de cor (embora node corao) no ultrapassam a repetio e nopodem ser consideradas prticas reais de narrativa,porque se encontram esvaziadas de sentido e de his-tria. Temos tambm convico de que no se podeconfundir atividades de declamar textos sem li-vros disponveis com experincias reais de leitura;da mesma maneira, no se deveria confundir pol-ticas de acesso escrita ou estratgias dirigidas apessoas que j so leitoras (Abdalla, 1995) com overdadeiro acesso ao mundo da escrita, favorecido,por exemplo, pela difuso de bibliotecas pblicas,de bairros ou escolares. Embora haja iniciativas vol-tadas para aqueles que j so leitores, faltam noBrasil alternativas pblicas de formao de leitorese escritores, de implementao de bibliotecas enten-dida como parte de polticas educacionais. Nessecaso so visveis a ausncia e a omisso.

    Consideramos que pela escrita que passa fun-damentalmente a reverso de uma situao de po-der institudo, em particular no que se refere for-mao de professores. Sabemos, tambm, que pre-ciso enfrentar essas e muitas outras questes, emparticular o processo histrico de constituio doalfabeto que supostamente permite representar aoralidade mas que, ao mesmo tempo, provoca a

    perda da oralidade. Sobretudo, temos clareza de quena linguagem em geral e na linguagem escrita emparticular (parte da linguagem), o crucial a signi-ficao. No contexto dessas reflexes, vale desta-car a relao entre escrita e poder. Ns apostamos

    no poder libertador da escrita, pois parece-nos queesta atua como fora libertadora. Se analisarmos,por exemplo, o efeito bloqueador da escola quan-do em nome de corrigir a palavra aprisiona aidia, paralisa a escrita e a torna repetitiva; se ob-servarmos o resultado de atividades escolares quecontrolam, determinam e definem o que, como,quando, onde e por que crianas e adultos devemescrever (Kramer, 1992), poderemos concluir que,nesse processo, no s a criana aprende a escrever

    (ou a ficar paralisada e amedrontada diante de umafolha em branco), mas tambm, e talvez principal-mente, algo nela escrito (Certeau, 1994). Escre-ve-se nos alunos crianas, jovens e adultos otrao da obedincia e da conformao, a necessi-dade de evitar os riscos, os riscos do papel e os ris-cos de se aventurar pelas trilhas do desconhecido.

    Por outro lado, se indagarmos por que se es-creve, observaremos que vrios so os motivos re-latados no s nas histrias dos professores entre-vistados, mas tambm em depoimentos de escrito-res to diferentes como Sartre, Joo Cabral, Mriode Andrade, Clarice Lispector, Jorge Semprun. E asprticas de escrita? Para que as pessoas escreviame para que escrevem? E as professoras e professo-res de ento e as/os de agora? Escrever serve paraqu? Para se comunicar, expressar os sentimentos,contar fatos, armazenar informaes, arquivar da-dos, registrar a histria, denunciar, criticar, trans-gredir? Escreve-se para sobreviver? til ou intil?Quer dizer, pode servir, ou intil pois, no servin-do, nunca servil?

    Refletindo sobre a escrita, neste texto produzi-do a partir da experincia de quatro anos de pesqui-sa, cabe, ento, situar as prticas de escrita institu-das no interior da equipe, abordando as atas e ovigor com que retomamos a discusso terica so-bre a escrita e a prpria vontade de escrever. Porque e em que as experincias de escrever vivi-

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    das pela equipe de pesquisa se diferenciam das prti-cas escolares convencionais? Como contribuem pa-ra pensar a questo da formao? Esse um temaque emergiu ao longo da investigao; fizemos delequesto de pesquisa para pensar a formao e a ten-

    so entre, de um lado, o que significa para ns a es-crita e, de outro, o que significa escrever para os pro-fessores entrevistados. Essa tenso, que move a pes-quisa, nos mobiliza tambm para sugerir estratgiasde formao.

    Avanamos, ento, falando sobre a experin-cia das atas e refletindo sobre a sua dimenso for-madora.

    A dimenso formadora daescrita a prtica das atas

    Para pensar a escrita, o tempo e a histria co-meamos apresentando algumas idias no tdio idias que ainda se encontram em processo de fer-mentao. Agora, pontuaremos como fizemosem relao s entrevistas a dimenso formado-ra das atas. Ao final, alguns trechos9 de reunies sotrazidos, de modo a explicitar os diversos signifi-cados dessa prtica e a favorecer que o(a) leitor(a)faa outras interpretaes e comentrios crticos.

    Desde o incio institumos na pesquisa o pro-cedimento de fazer atas, julgando que seria interes-sante para registrar o processo. A encomenda erarepetida a cada reunio (quem escreve a ata hoje?),oferecendo a coordenadora voluntrios, caso noaparecessem inicialmente, sempre com o argumentode que escrever as atas era forma de treinar o pes-quisador, que estaria ao mesmo tempo dentro e forada situao vivida, acompanhando as discusses esendo capaz de registr-las por escrito, transcreven-do seus apontamentos depois etc. Progressivamen-te, a escrita da ata e a sua leitura na reunio seguintetornou-se ritual de iniciao, de insero na equi-

    pe, de manifestao de interesses e sentimentos, decrescimento na escrita, de questionamento de ati-tudes tomadas e de posies, de ao. Em muitasatas, as integrantes da pesquisa se referem a esseaprendizado.

    Vale registrar que a produo das atas tm umcarter de emulao, de assegurar a dimenso e acriao individual, o espao de cada um. Pois aqueleque fez a ata tem todo o tempo garantido para lero que escreveu, podendo tambm dizer o que pen-sa em relao a assuntos que escapam dos concei-tos tericos discutidos na reunio; assim tambmum espao autorizado de crtica e de elogio, de brin-cadeira e riso, de companheirismo e demonstraode conhecimento. Por outro lado, sendo lida para

    a equipe e no pela equipe, resguarda-se o autor deser corrigido, ainda que de modo passivo, por aque-le que o l. Nesse sentido, o espao das atas se con-figura aqui como prtica cultural e social de escri-ta e no meramente como prtica escolar. Escreve-se atas para escrev-las mesmo e no para apren-der a fazer atas, por isso elas no se prestam di-datizao. Sua dimenso formadora encontra-secertamente a, bem como no fato de permitir queacontecimentos passados sejam esclarecidos, reti-ficados, que casos aparentemente distantes do temada reunio sejam contados, dificuldades comparti-lhadas. A singularidade com que cada qual enten-de o todo valorizada e, ao mesmo tempo, aprecia-da pelo outro. Aqueles dez a quinze minutos tor-nam-se assim tempo de um para os outros, de to-dos em um; tempo de tranar laos de coletividadee traar desse modo a histria coletiva que fica re-gistrada, escrita para ser depois lida, pensada, cri-ticada, nunca mudada no mbito daquela ata, masreescrita e ressignificada nas seguintes.

    Entretanto, durante a fase exploratria da pes-quisa, quando entrevistamos professores de pr-escola e 1 grau, o que encontramos em relao escrita foi, ao contrrio, a vergonha, o medo, o blo-queio, a mo imobilizada, como sendo os sentimen-tos e lembranas que, com freqncia, acompanhama escrita a partir de situaes que foram vividas naescola; sentimentos e impresses relativas escrita

    9 Por limite de espao no h como trazer os textosdas atas na ntegra o que possibilitaria uma anlise crticamais correta.

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    experimentados e contados por professores (Kramer& Jobim e Souza, 1994). De certa forma, podera-mos tentar ler nos seus textos falados e escritos o que foi neles escrito; como as prticas de es-crita que tiveram na infncia e na adolescncia se

    inscreveram nas suas aes e modos de se relacio-nar com a escrita (Certeau, 1994); que decorrnciasessa trajetria traz para sua relao atual com aescrita dentro e fora da escola. Escrevem? O qu?Gostam? No gostam? Por qu?

    Por outro lado, as experincias de escrita re-latadas por professoras e futuras professoras ementrevistas individuais ou coletivas e em breves pro-dues escritas no decorrer de encontros onde a salade aula tornou-se tempo de pesquisa (Kramer,

    1995) revelaram-se distintas dos depoimentos etestemunhos presentes na escrita das atas. As pro-fessoras falam, de um lado, da mesma dificuldadeidentificada, na origem, por Anne-Marie Chartier(1995): a escrita escolar. De outro lado, os depoi-mentos revelam surpresas: falam de uma intimida-de buscada, da necessidade de registrar histriasvividas em agendas ou dirios, referem-se a um gos-to de escrever, ainda que essas mesmas pessoas afir-mem que no gostam de escrever nas tarefas esco-lares, apresentando grandes dificuldades para rea-liz-las, desempenho precrio e notas baixas. En-contramos a poetas que no se do bem na es-cola nas atividades regulares de produo de tex-tos. Diversos escritores10 relatam o horror que ti-nham os meninos das aulas de portugus. A lnguaestrangeirizada, retalhada, cindida das pessoas re-tira dela seu sentido. O afastamento que se imprimee impe s pessoas, na escola, em relao litera-tura, leitura dos clssicos, poesia, fruto de umprocesso distorcido, deturpado, elitista e elitizadorda lngua. Mais do que isso, resultado de umasituao em que s na escola a literatura existe paracrianas e adultos, tendo perdido sua profunda re-lao com a vida humana e social, com as prticas

    cotidianas de debate, emulao e crtica. Prticas deleitura e escrita supem um projeto no qual educa-o e cultura estejam entranhadas, vinculadas.

    Diferentes de tais depoimentos so os relatosde antigos professores que atuaram nos anos 20, 30

    e 40 e nas dcadas de 50 e 60. Para as pessoas entre-vistadas que atuavam como professores no incio dosculo, a escrita se revela produo e intervenoconcretas. H livros, cartilhas, poemas, memrias,discursos, cartas para polticos (enviadas para o pre-sidente da Repblica, para o prefeito, para os jor-nais), denncias. Escrita feita que enfrenta, com iro-nia, o preconceito, j que s no digo que tenho96 anos seno vo achar que so coisas de uma ve-lha caduca. Ser que se pode dizer que entre as pro-

    fessoras que atuavam nos anos 20, 30 e 40 a escritano foi escolarizada? A prpria pergunta, dirigidaa elas, sobre se liam e/ou escreviam quando profes-soras, foi muitas vezes recebida com estranheza, co-mo se estivessem a nos perguntar se possvel pen-sar em uma escola onde no se l e no se escreve.

    preciso reafirmar a necessidade de leitura eescrita na escola ou elas precisariam ser inerentes prtica escolar? No ser que, naquela poca, lei-tura e escrita estavam naturalizadas na prtica es-colar, enquanto hoje se encontram dela extradas,devendo ser (re)introduzidas de fora para dentro?Conclumos que a leitura e a escrita eram constitu-tivas da atividade e do estilo de ensinar. Com o de-correr do tempo e as mudanas institudas na esco-la, passou-se a ensinar a leitura e a escrita e no maisa ensinar com a leitura e a escrita. A escrita, princi-palmente, foi didatizada, disciplinarizada, tal comose deu com a prpria histria.

    Talvez a importncia da prtica das atas, vi-vida na pesquisa, esteja no fato de elas terem, almdos aspectos analisados, restitudo s professoras ocarter de aprender com a escrita e com a leitura(lembro que elas so escritas para serem lidas emconjunto). Cada um(a) reescreve a reunio anteriordo grupo e, fazendo-o, nela se reinscreve. Aqui re-side, fundamentalmente, a sua dimenso formado-ra. Os trechos de atas transcritos, a seguir, expres-sam o que estamos tentando dizer. Assim, a primei-

    10 Na literatura brasileira encontramos tais relatosentre outros em Mrio de Andrade, Jos Lins do Rego, Gra-ciliano Ramos, Joo Cabral de Melo Neto, Raul Pompia.

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    ra ata permite pensar que a escrita tem um carterreestruturador da subjetividade:

    Tentamos desatar a escrita, a histria, a leitu-ra... E hoje eu tento desatar esses ltimos dias. Vidaque desata. Desata na ata que a prpria vida. Madru-gada, o sono no vem, e a tristeza profunda. Olhoo computador. Aprendi a lidar com ele. Quem sabeele possa me ajudar; a essa hora da madrugada meusamigos esto dormindo. J quinta-feira. Dia da nossareunio. Fico feliz. Ser que teremos ata? Esse momen-to mgico que nos une, nos faz mais humanas... hu-manas sim, porque somos mulheres que querem viver.Que vivem apesar dos solavancos da vida. Que acre-ditam na vida. Que acreditam num mundo melhor,

    numa sociedade melhor, mais justa, mais humana,cheia de vida, cheia de alegria... apesar da tristeza ques vezes insiste em bater nossa porta. E se eu ten-tasse escrever uma ata? Outro ensaio? Quem sabe umdesabafo, ou uma reflexo? Quem sabe a ata me aju-de a desatar um pouco a vida. Achei um nome: Ata-vida (trecho da ata da reunio do dia 14/11/96, escri-ta por Maria Cristina P. de Carvalho).

    Por outro lado, a ata se constitui em espao deaprimorar a forma de escrever. O trecho a seguirevidencia a importncia de registrar fatos, signifi-cados, o calor das reunies e as discusses.

    A fogueira. Um dos mais belos espetculos danatureza o do fogo. Gosto do fogo: ele aquece, in-vade, transforma. Quem nunca se flagrou encantado,meio que hipnotizado, olhando o fogo? Vrios so osmotivos: o colorido vivo, o bailado das chamas, o ca-lor [...] Trago o fogo e suas imagens pois me proponhoneste momento a reacender a fogueira em torno da

    qual nos reunimos em nossa ltima reunio. Foguei-ra boa, nela tambm eu joguei minhas dvidas e trans-formadas pelo fogo as recolhi. , Cris, bem que vocfalava que sua resenha era quente!!

    A tarde comea sem imaginarmos o quo quenteseria [...] Utilizando-se dos textos produzidos a partirdas entrevistas com dona Lara, dona Adlia e Lenapermite que, dentro das categorias que comeam a serconstrudas, as vozes delas suscitem as questes. Como

    quando d. Lara diz a respeito de livros e bibliotecas:se no tinha, tinha que ter, devia ter ou Lena que,como leitora contumaz, fala sobre leituras, formaoe cidadania [...]

    Bel, Cida e Bia esto elaborando um texto so-

    bre a mesa-redonda. preciso destacar um movimentoque se instaurou no interior do grupo, ganhou forae tomou corpo: a vida relao com a escrita. Todasesto envolvidas na escrita de algum texto, sejam re-senhas, atas, relato de participao, seminrios... Mo-vimento voluntrio (at nosso papos de elevador agoraso assim: , t escrevendo um texto sobre...) que temme feito refletir e retomar produes anteriores doprprio grupo, tirando algumas idias do choco e colo-cando outras para chocar [...]

    Penetramos de fato na corrente da linguaguemsendo leitores, escritores, narradores... Falando de es-crita, Rachel l a ata da defesa da Ana. A beleza dadefesa se estende na ata da Rachel (ah, o bichinho daescrita pegou voc tambm!!), que como ela diz daAna, tambm cresce atravs das suas palavras, torna-se grande, forte [...]

    Poder e palavra, tica so abordados por ns.Passamos s entrevistas... e resenha [...] A fogueirase acendeu. Cada uma jogava nela sua viso, sua opi-nio. Achei esse momento de grande riqueza, vivemosna prtica a capacidade de ser grupo e dentro dele nosreconhecemos como indivduos, com pensamentos di-versos, mas que constrem e se fazem gente nessa plu-ralidade. A tarde prossegue com outra resenha, essaagora tratando especificamente do contexto educacio-nal, de como eram os manuais para os professores. Ape-sar de se destinarem a professores da dcada de 50,eram reedies de manuais produzidos nos anos 30.

    Combinamos no nos encontrarmos na prxi-ma semana para agilizar as entrevistas, que prometemtanto quanto as do semestre anterior. Encontro adia-do, promessa no ar... (trecho da ata escrita por Ritade Cssia Frangella, reunio de 10/10/96).

    Se essa ata fez uma rpida meno reunioanterior (A beleza da defesa se estende na ata daAna Beatriz; ah, o bichinho da escrita pegou voctambm!!), a ata transcrita a seguir ir delibera-

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    da e firmemente referir-se a essa prtica e s escri-tas que dela resultam. Vejamos:

    A reunio comea com a leitura das atas [...] Aata da Rita j conhecemos bem [...] Parece que o bi-chinho da escrita [...] j se tornou companheiro fiel.Essa unio traduz amor, paixo e fidelidade [...] V-nia e sua escrita [...] uma caracterstica especfica desua escrita a maneira como conduz a leitura de sua ata,convida para um mergulho no universo da escrita [...]A ata da Bebel parece que foi feita [...] naturalmente,[...] de forma sutil e singular. A colcha revela o seuolhar, seus questionamentos e dilogos com a leiturae escrita e mais ainda com a sua experincia enquan-to professora que, ao fugir da didatizao, encontraum convidado seu timidamente encolhido num can-to esperando e querendo compartilhar [...]

    Me perdoem a viagem mas a fogueira acesa naltima reunio se transformou numa brasa saudvelde ser reacesa, j que faz parte da dinmica e do coti-diano do grupo, ou melhor, a brasa da contradiopresente nas discusses de um grupo que acredita naproduo coletiva e na ressignificao do conhecimen-to, a partir desta produo. De maneira que esta bra-sa parte integrante do contexto e da histria do gru-

    po, traduz a singularidade de cada um, do grupo, as-sim como revela a sua totalidade [...]

    Eu e Rita apresentamos a nossa entrevistada aogrupo [...] e em seguida o grupo leu a transcrio daentrevista. Aps a leitura da transcrio abriu-se omomento de crtica entrevista e transcrio; o gru-po percebe que importante: assegurar cada uma dasentrevistadoras; colocar entre parnteses as observa-es pois revelam o contexto; no deixar que hajafragmentao entre vida profissional e vida pessoal.

    Neste momento surge a questo a respeito deuma entrevistada, voltar ou no? Na primeira conver-sa todos os objetivos foram atingidos? A professoraimpossibilitou o contato com a outra entrevistada, ous estaria garantindo a sua exclusividade enquantoentrevistada? A brasa comea a ficar mais forte [...]Fundamental esta conversa, pois neste espao de cr-tica que foi aberto, que nos ativemos a uma questomuito importante que deve ser refletida pelo grupo.

    Como estamos entrando em campo? Com pr-noes?E as transcries? Estamos preocupados somente coma retratao do dito, com medo de perder ou deixarescapulir algo, e no ser fiel? Quem quer ou deve serfiel realidade? possvel ser fiel realidade? Como

    lidar com a produo cientfica, sem pretender umatola neutralidade [...]? Devemos ento buscar a objeti-vidade, mas esta s assegurada a partir do momentoem que assumimos a subjetividade. Neste momentome dou conta que no possvel dar conta de tudo,temos a inteno de perceber num dado momento ques-tes importantes para a pesquisa, tendo a absolutacerteza que muitas coisas ficaram ou ficaro de fora,ou melhor, ficaram e ficaro no choco [...] impossveldar conta da realidade, possvel e fundamental perce-

    ber a objetividade enfrentando o vis da subjetividade.

    Com clareza, nesta ltima ata, a escrita tra-tada como constituidora da conscincia. Fisgadaspelo bichinho da escrita, as pesquisadoras/pro-fessoras, no prprio ato de escrever as atas, trans-formam-se. Nisso reside o seu carter formador.

    Concluindo...

    Discutimos, na pesquisa e neste artigo, queantes as pessoas aprendiam com a histria vivida,contada, compartilhada, coletivizada e, hoje, coma desvalorizao da experincia e do espao da nar-rativa, trata-se de aprender histria. Com essaperspectiva disciplinar, a histria deixa de ser per-cebida como algo vivido e feito pelos homens e pas-sa a ser matria ensinada e aprendida. O mesmoparece acontecer com a leitura e a escrita: cada vezse enfatiza mais a necessidade de aprender a ler e aescrever e no (o que consideramos fundamental)a importncia de aprender com a linguagem, coma leitura, com a escrita, compreendidas como ex-perincias, como prticas sociais e culturais, maisdo que como prticas escolares.

    A escola tem a obrigao de assegurar a todoso acesso ao conhecimento e, nesse sentido, garan-tir condies para prticas reais de leitura e escrita seu dever. Por outro lado, entendemos que a for-

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    Leitura e escrita de professores

    mao um direito e a concretizao de prticas deleitura e escrita precisa ser considerada parte daformao de professores. Nesse processo, aprendercom a experincia, rever a prpria trajetria coma leitura e a escrita, reler aquilo que foi escrito em

    cada um de ns e no s aquilo que aprendemosa escrever e a ler podem se constituir em aesformadoras da maior importncia.

    Pensar a formao menos como treinamentolinear e mais como histria que se transforma podeser assim produtivo, se se pretende que professorese professoras sejam sujeitos da histria e sujeitos nahistria. Enfim, ter um olhar agudo voltado ao pas-sado, dirigindo-nos ao futuro, pode nos ajudar arepensar a situao grave vivida no presente e este

    presente que precisamos encarar, embora mud-loparea hoje to difcil. Nesse sentido, concordamoscom Brecht quando diz:

    Tudo se transforma. Recomear possvel mesmo no ltimo suspiro.Mas o que aconteceu, aconteceu. E a guaque puseste no teu vinho no podemais ser retirada.O que aconteceu, aconteceu. A gua

    que puseste no teu vinho no podemais ser retirada. Pormtudo se transforma. E recomear possvel mesmo no ltimo suspiro.(apud Konder, 1996, p. 73).

    SONIA KRAMER professora do Departamento deEducao da Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Ja-neiro e pesquisadora bolsista do CNPq.

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