Sou Eu, Calvino, Conversas Com o Reformador - Uma Biografia [Elben M. Lenz César]

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CONVERSAS COM O REFORMADOR -------- U M A B I O G R A F I A --------

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A história do Reformador Francês João Calvino.

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  • CONVERSAS COM O REFORM ADOR-------- U M A B I O G R A F I A --------

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  • ELBEN M. LENZ CSAR

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  • SOU EU, CALVINO

    Categoria: Biografia / Igreja / Teologia

    Copyright 2014, Elben M. Lenz Csar

    Primeira edio: Setembro de 2014 Coordenao editorial: Bernadete Ribeiro Reviso: Natlia Superbi

    Dlnia M . C. Bastos Diagram ao: Bruno Menezes Capa: Rick Szuecs

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cm ara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Csar, Elben M. Lenz

    Sou eu, Calvino / Elben M. Lenz Csar. Viosa, M G: Editora Ultimato, 2014.

    ISBN 978-85-7779-113-2

    1. Calvinismo 2. Calvino, Joo, 1509-1564 3. Protestantismo 4. Reforma I. Ttulo.

    14-08460 ___________ '_________________________________ CDD^284.2

    ndices para catlogo sistemtico:

    1. Calvinismo : Teologia: Cristianismo 284.2

    PUBLICADO NO BRASIL COM AUTORIZAO E COM TODOS OS DIREITOS RESERVADOS

    E D IT O R A U L T IM A T O LTD A Caixa P osta l 43 365 7 0 -0 0 0 V iosa , M G T e le fo n e : 31 3 6 1 1 -8 500 Fax: 31 3 89 1 -1 557 www.ultimato.com.br

    BA marca FSC 6 a garantia de que a madeira utilizada na fabricao do papel deste livro provm de florestas que foram gerenciadas dc maneira ambientalmentc correta, socialmente justa e economicamente vivel, alem de outros fontes de origem controlada.

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  • j i Jud e Jlna, os dois primeiros isnetos meus e de Ejanira, com o desejo de que, peCa influncia do Esprito Santo e na hora certa, ahracem os trs somentes da (Reforma: o soa

    Scriptura, o soa gratia e o soa fi.de.

    * st st

    O verdadeiro discpulo de CaCvino s tem um caminho a seguir no obedecer ao prprio CaCvino, mas quele que era

    mestre de CaCvino.Kjir(Barti (1886-1968)

  • SUMARIO

    Prlogo 9

    Prefcio 13

    Apresentao 15

    1. A sbita converso de um licenciado em leis 19

    2 . Genebra: luz aps trevas 25

    3 . O livro transformado em catecismo 33

    4. 0 voo que no se realizou 39

    5. A igreja de Genebra 45

    6. Luxo, extravagncia e consumismo 51

    7. O doutor que no tinha mais f do que um porco 59

    8. Livro por iivro, captulo por captulo, verso por verso 65

    9 . Dependendo do espelho o ser humanose v feio demais 73

    10. O absolutamente santo eo absolutamente pecador 85

    11. A Europa pega fogo mais peia palavra escritado que pela palavra falada 91

    12. A eleio requer evangelizao 97

    13. O francs Jacques Lefvre redescobre osola gratia antes de Lutero 105

  • 14. A igreja de Genebra na Frana Antrtica 111

    15. 0 humanismo e a peste negra 121

    16. O nobilssimo e cristianssimo protetorda Inglaterra e Irlanda 127

    17.0 Diabo vira tudo de cabea para baixo 133

    18. O cristo no deve correr da fogueiranem correr para a fogueira 141

    ltima pgina 147

    ANEXOS

    De pai para filho 151

    0 que se diz de Calvino 157

    0 que se diz de A s Institutas 161

    Genebra no mapa . 163

    Cidades da Frana e da Sua onde Calvino viveu 165

    Cronologia de Calvino e eventos paralelos 166

    Bibliografia

    ndice onomstico

    169

    173

  • PRLOGO

    SOU EU, CALVINO!

    Q U A N D O EU ERA BEM PEQUENO, meu pai me destinou aos estudos de teologia. Mais tarde, porm, ao ponderar que a profisso jurdica comumente promovia aqueles que saam em busca de riquezas, essa viso o induziu a subitamente mudar seu propsito. E assim aconteceu de eu ser afastado dos estudos de filosofia e encaminhado aos estudos de jurisprudncia. A essa atividade me diligenciei a aplicar-me com toda fidelidade, em obedincia ao meu pai. Mas Deus, pela secreta orientao de sua providncia, por um ato sbito de converso, subjugou e trouxe minha mente a uma disposio suscetvel. Tendo assim recebido alguma experincia e conhecimento da verdadeira piedade, imediatamente me senti inflamado de um desejo to intenso de progredir nesse novo caminho que, embora no tivesse abandonado totalmente os outros estudos, me ocupei deles com menos ardor.

  • 10 SOU EU.CALVINO

    Fiquei totalmente aturdido ao descobrir que, antes de haver-se esvado um ano, todos quantos nutriam algum desejo por uma doutrina mais pura vinham constantemente a mim com o intuito de aprender, embora eu mesmo no passasse ainda de mero nefito e principiante.

    Possuidor de uma disposio um tanto rude e tmida, passei, ento, a buscar algum canto isolado onde pudesse furtar-me da opinio pblica. Em suma, enquanto meu nico e grande objetivo era viver em recluso, sem ser conhecido, Deus me guiava atravs de crises e mudanas, de modo a jamais me permitir descansar em lugar algum, at que, a despeito de minha natural disposio, me transformasse em ateno pblica. Deixando meu pas natal, a Frana, de fato me refugiei na Alemanha, com o expresso propsito de poder ali desfrutar em algum canto obscuro o repouso que eu havia sempre desejado, o qual me fora sempre negado.

    Mas qual! Enquanto me escondia em Basilia, conhecido apenas de umas poucas pessoas, muitos fiis e santos eram queimados na Frana. E a notcia dessas mortes em fogueira, tendo alcanado as naes distantes, incitavam a mais forte desaprovao entre uma boa parte dos alemes, cuja indignao acendeu-se contra os autores de tal tirania. A fim de conter tal indignao, fizeram-se circular certos panfletos mpios e mentirosos, declarando que ningum era tratado com tal crueldade, exceto os anabatistas e pessoas seciiciosas, que, por seus perversos desvarios e falsas opinies, estavam transtornando no s a religio, mas ainda toda a ordem civil.

    Frente a tudo isso, pareceu-me que, a menos que eu lhes fizesse oposio, usando o mximo de minha habilidade, meu silncio no poderia ser justificado ante a acusao de covardia e traio.

    Essa foi a considerao que me induziu a publicar minhas lnstitutas da Religio Crist (1536). Meu objetivo era, antes de tudo, provar que tais notcias eram falsas e caluniosas, e assim

  • PRLOGO

    defender meus irmos, cuja morte era preciosa aos olhos do Senhor. Como essas mesmas crueldades poderam muito em breve ser praticadas contra muitas pessoas infelizes e indefesas, eu alimentava a esperana de sensibilizar naes estrangeiras para que elas tivessem um mnimo de compaixo e solicitude pelas prximas vtimas. Ao serem publicadas, As Institutas no eram essa obra ampla e bem trabalhada de agora; na verdacie, no passavam de um pequeno tratado contendo o sumrio das primeiras verdades da religio crist.

    Tenho labutado fielmente para abrir o tesouro das Sagradas Escrituras a todo o povo de Deus. Embora o que tenho feito no corresponda aos meus desejos, a tentativa que empreend merece ser recebida com certa medida de simpatia. Quando algum ler os meus escritos, ver claramente que no busquei ser agradvel, a menos que eles, ao mesmo tempo, sejam proveitosos a outrem.

    JOO CALV1NO GENEBRA, 22 DE JULHO DE 1557(P a l a v r a s d e j o o C a l v i n o . r e t i r a d a s d e s u a d e d i c a t r i a d o COMENTRIO DO LIVRO DOS SALMOS.)

  • PREFCIO

    MUITO DIFCIL escrever sobre joo Calvino. Pelo menos por trs motivos: o grande volume de obras que ele produziu, a complexidade e amplitude de seu pensamento e o grande contingente de escritores que tm discorrido sobre ele. Tenho tido uma vasta experincia proveniente da longa vivncia com este misterioso personagem. Q uanto mais vivo com ele, mais me sinto perplexo ante o fato de que ele viveu to pouco e exerceu, num a poca de poucos recursos tecnolgicos, um imenso ministrio literrio, social, administrativo, pedaggico e, particularmente, teolgico.

    Tudo o que tenho escrito, lido e traduzido sobre Calvino me faz sentir como um nadador em alto-mar-, quanto mais nada, mais distante se sente da praia; parece que nunca chega. Digo isto porque, ao ler os originais de Sou Eu, Calvino, de Elben M. Lenz Csar, as informaes recebidas foram tantas, e com tanta

  • 14 SOU EU. CALVINO

    exatido, que era como se eu nunca houvesse lido nada sobre o que Joo Calvino escreveu. Se eu estivesse me programando escrever um livro sobre ele, certamente desistira da faanha depois de acompanhar o autor deste livro em sua to minuciosa e bela apresentao do grande reformador genebrino na forma de dilogo.

    Nestes ltimos anos, parece que as mentes crists do universo literrio voltaram-se para Joo Calvino. Poucos livros foram escritos sobre ele at a ltima dcada do sculo passado. J li quase tudo o que foi escrito sobre ele no vernculo, mas sinceramente dou boas-vindas ao livro que ora prefacio, dando graas ao Senhor da Igreja pela vida e ministrio de Elben Csar. Que o leitor tire a limpo pessoalmente, lendo com reflexo e orao, estas pginas que certamente iro fascin-lo. Eis um livro digno de ser lido e relido por todos!

    VALTERGRAC1ANO MARTINS GOINIA, 10 DE JUNHO DE 2014

  • APRESENTAO

    UMA IGREJA REFORMADA TEM DE SER CONSTANTEMENTE

    REFORMADA

    O FRA N CS JO O CALVIN O merece mais uma biografia. Ele tem sido apreciado por muitos desde o seu tempo - meados do sculo 16 - at hoje. um reconhecimento atrs do outro. Alguns chegam perto do exagero.

    Theodoro de Beza (1519-1605), seu substituto no plpito da Catedral Saint Pierre, em Genebra, escreve: No dia da morte de Calvino, no mesmo instante o sol se ps e o maior luzeiro que houve neste mundo para a direo da igreja foi recebido no cu. E podemos afirmar com acerto que em um s homem aprouve a Deus, em nosso tempo, ensinar-nos a maneira do bom viver e do bom morrer.

    No sculo seguinte, Montesquieu (1689-1755), escritor francs que lanou as bases das cincias sociais e econmicas, afirma que os genebrinos deveram tornar bendito o dia em que Calvino nasceu.

  • 16 SOU EU, CALVINO

    No sculo 19, o tambm francs EmestRenan (1823-1892), cientista da religio, declara que Calvino saiu vitorioso simplesmente por ser o maior cristo de seu sculo. E o famoso pregador ingls Charles H. Spurgeon (1834-1892) chega a dizer que Calvino era, de longe, o maior dos reformadores no que diz respeito aos talentos que possua, influncia que exercia e ao servio que prestou para o estabelecimento e difuso da importante verdade!.

    No sculo 20, Karl Barth (1886-1968), ilustre telogo suo que morreu quatrocentos anos depois de Calvino, confidencia: Eu poderia, feliz e proveitosamente, assentar-me e passar o restante de minha vida somente com Calvino.

    E agora, no incio do sculo 21, Alister McGrath, professor da Universidade de Oxford, diz que Calvino provou ser uma figura de extrema influncia na histria da Europa, mudando a perspectiva de indivduos e instituies, no incio da era moderna, medida que a civilizao ocidental comeou a assumir sua forma caracterstica.

    O que tem tornado Calvino uma pessoa respeitada nestes 450 anos entre a sua morte (1564) e os dias de hoje so As Institutos, seu maior legado, o livro mais lido durante o sculo 16, segundo Daniel-Rops. Alm das trs tradues de As Institutos em portugus publicadas por editoras evanglicas - Luz para o Caminho e Editora Cultura Crist -, temos uma quarta, lanada em 2007 pela Editora Unesp. Segundo o professor Ricardo Quadros Gouva, em importncia, influncia e qualidade, As Institutos no possuem rival na histria da teologia. Elas poderiam ser comparadas, talvez, Cidade de Deus, de Agostinho, ou Surraria, de Toms de Aquino, possivelmente Dogmtica Eclesistica, de Karl Barth. Entretanto, a todas essas obras a obra-prima de Calvino supera. As Institutas so um livro que fornece no apenas o melhor compndio de teologia crist jamais escrito, mas tambm a base de uma cosmoviso

  • APRESENTAO 17

    crist cuja abrangncia e consistncia so sem igual na histria da f crist.

    Apesar de toda a importncia dada vida e obra de Calvino, se Guilherme Farei, Pierre Viret e Theodoro de Beza, seus companheiros e admiradores mais prximos, se ajoelhassem diante dele, o reformador reagira bruscamente como o anjo do Apocalipse fez com o apstolo Joo: No faa isso! Pois eu sou servo de Deus, assim como so voc e seus irmos que continuam fiis verdade revelada por Jesus (Ap 19.10). Ou como Paulo e Barnab fizeram com a multido de Listra: Amigos, por que vocs esto fazendo isso? Ns somos apenas seres humanos como vocs (At 14.15). Mesmo correspondendo-se com reis e rainhas e outras autoridades, Calvino nunca perdeu a noo de que, diante de Deus, ele e os outros eram iguais, todos formados do barro (J 33.6). Joo Calvino era de carne e osso, e no anjo alado, simples homem e no super-homem. Quando morreu, seu corpo foi envolto num lenol, posto num atade de madeira e sepultado sem pompa nem aparato numa cova no identificada.

    Nestas pginas, coloco na boca de Calvino palavras que ele mesmo escreveu em seus muitos livros e palavras que fazem jus ao seu pensamento. Optei por no fazer uso das aspas para separar umas das outras por causa do estilo de perguntas e respostas.

    Meu maior trabalho foi formular as perguntas e no as respostas. As fontes destas so muitas, como As Institutos, A Providncia Secreta de Deus, O Catecismo de Genebra, Carta ao Cardeal Sadoleto e, principalmente, Cartas de Joo Calvino e os comentrios de Calvino de quase todos os livros da Bblia, desde o da Carta de Paulo aos Romanos at o do livro do profeta Ezequiel.

    Assumo uma dvida com alguns dos muitos bigrafos de Calvino. Em alguns casos, o que eles escreveram, coloco na boca de Calvino quase ipsis litteris, sem usar aspas nem citar os nomes dos autores. Entre eles menciono trs: Alister McGrath (A Vida

  • 18 SOU EU. CALVINO

    de Joo Calvino), Ronald Wallace (Calvino, Genebra e Reforma) e Hermisten Maia Pereira da Costa (Joo Calvino - 500 anos).

    Convidei Valter Graciano Martins para escrever o prefcio deste livro porque ele a pessoa que mais tem divulgado Calvino no Brasil, no s por meio de palestras em vrios lugares, mas, principalmente, por ser o tradutor perseverante e apaixonado de quase todos os comentrios bblicos e outros livros de Joo Calvino, publicados nos ltimos vinte anos pelas Edies Parakletos, por ele fundada, e pela Editora Fiel (a maior parte das tradues).

    Porque Joo Calvino escreve seu primeiro livro - De Clementia - aos 23 anos, tem uma experincia de converso sbita antes dos 26, publica a primeira edio de As Institutos aos 27 e inicia seu ministrio em Genebra antes de completar 28 anos - tive uma enorme vontade de dedicar este livro sobre o notvel reformador francs aos jovens da Aliana Bblica Universitria, da Mocidade Para Cristo, da Cruzada Estudantil para Cristo e da Jornada Mundial da Juventude. Contudo, para no limitar o alcance da obra, abri mo desse intento. Alm do mais, protestantes e catlicos sabem que a igreja est precisando de fato de uma reforma. Alis, uma das heranas da Reforma do Sculo 16 a famosa declarao de Lutero Ecclesia reformata semper reformanda (a igreja reformada tem de ser constantemente reformada). Tive a ousadia de colocar na pena de Calvino o que eu entendo por reforma no captulo onze: A reforma mexe com as estruturas, com os dogmas, com a liturgia, com as tradies, com a moralizao, com a pregao, com os princpios e com a histria e a vocao da igreja. algo operado por Deus mesmo de modo soberano e eficaz.

    ELBEN M. LENZ CSAR VIOSA (MG), 27 DE MAIO DE 2014(DIA DO 450 AN IVERSRIO DA MORTE DE CALVINO)

  • 1A SBITA CONVERSO DE UM LICENCIADO EM LEIS

    Toi com muita m vontade e muita dificudade que eu me identifiquei com a (Reforma

    A O senhor escreve cartas para pessoas nobres de seu pas e de outros pases, conversa e prega para elas com naturalidade, sem o menor constrangimento. De onde vem essa habilidade, j que sua famlia modesta?

    Embora minha me tenha vindo de uma famlia abastada, meu pai de fato era de origem modesta. Porm, meu pai, por ser secretrio do bispo de Noyon e procurador fiscal do municpio, tinha muito boas relaes com as famlias nobres. Graas a isso e providncia de Deus, tive o privilgio de receber a mesma educao que os nobres davam aos seus filhos, por bondade deles. Tanto em Noyon como em Paris fui colega dessas crianas privilegiadas. Foi nesse perodo que adquiri minha primeira educao e modos refinados para posteriormente transitar em todos os meios sociais com polidez, o que tem colaborado muito com o meu ministrio. Essa solidariedade me ajudou

  • SOU EU, CALVINO

    tambm a lidar com a morte prematura de minha me, quando eu tinha seis anos apenas, um irmo mais velho e trs irmos menores. Fiz questo de dedicar a Claude de Hangest, um dos meus amigos de infncia, o meu primeiro livro, um comentrio sobre Sneca, escrito quando eu tinha 23 anos. Na dedicatria mostrei minha gratido famlia: Devo a voc tudo o que sou e tudo o que tenho, pois desde bem cedo, ainda menino, fui educado em sua casa e iniciado em meus estudos junto com voc. Estou endividado com sua mui nobre famlia por meu primeiro aprendizado na vida e nas letras.

    0 senhor nasceu em Noyon?

    Nasci em Noyon, no dia 10 de julho de 1509. E a cidade da famosa catedral Notre-Dame (no a Notre-Dame de Paris nem a de Reims nem a de Amiens), construda h mais de trs sculos. Sou francs e no suo, como alguns pensam.

    Suponho que em Paris o senhor tenha estudado na Sorbonne, a famosa e tricentenria escola de teologia.

    No. Depois de passar alguns meses no Collge de La Marche estudando humanidades e latim com o grande humanista Mathurin Cordier, matriculei-me no Collge de Montaigu (Morro Agudo), uma escola menos requintada, mas pela qual passaram Erasmo de Roterd e Franois Rabelais, meu controvertido patrcio, autor da stira Gargntua e Pantagruel. Passei muito aperto nessa escola. A comida e as instalaes eram pssimas. Erasmo tinha razo: era um colgio infestado de piolhos. Ficava no labirinto de ruelas estreitas e sujas (o mau cheiro era enorme), onde havia faculdades, mosteiros, igrejas, capelas, hotis, livrarias e at bordis. O nmero de alunos era muito grande - talvez mais de 4 mil (na poca Paris devia ter 300 mil habitantes). A disciplina era muito rgida e estudvamos

  • A SBITA CONVERSO DE UM LICENCIADO EM LEIS 21

    muito - na verdade antes, durante e depois das refeies. Por um ano, fui colega de um espanhol chamado Incio de Loyola, dezoito anos mais velho. Ele tinha uma histria muito bonita: antes de vir a Montaigu em 1528, passou quase um ano inteiro orando e jejuando numa caverna perto de Manresa, onde passou por experincias misticas. O que o levou a achegar-se a Deus foi a leitura de um livro sobre a histria de Jesus quando estava se recuperando de graves ferimentos recebidos numa guerra com os franceses em Pamplona em 1521. Foi nesse colgio que conclu minha licenciatura em artes.

    Em Montaigu, o senhor poderia continuar os estudos e optar por teologia, direito, medicina e humanidades. Qual delas escolheu?

    Seria um bom lugar para cursar teologia. Nos 25 primeiros anos de nosso sculo, 25,4% dos estudantes de teologia que no pertenciam s ordens religiosas receberam seu treinamento em humanidades nessa universidade. Mas, por influncia de meu pai, que morreu pouco depois, fui estudar jurisprudncia em Orlans, ao sul de Paris, uma regio de castelos ao longo do rio Loire. Essa cidade muito conhecida por causa de Joana dArc, uma mocinha de 17 anos que, em nome de Deus, semelhana de Davi ao enfrentar o gigante Golias, derrotou os ingleses que a cercavam. Justamente naquele ano (1529), comemorvamos os 100 anos da vitria de Joana dArc, em 1429. Orlans uma cidade bem menos agitada que Paris e na poca tinha apenas uma faculdade, a de direito civil (no cannico). Tive o privilgio de estudar com Pierre de LEstoile, conhecido como o prncipe dos advogados franceses. Para beber no as guas estagnadas, mas as guas frescas dos clssicos e das Escrituras, aproveitei a oportunidade para estudar grego por conta prpria, sob a superviso de um amigo chamado Melchior Wolmar. No incio de 1531 graduei-me, sem muito entusiasmo, em direito, mesmo sem completar o curso. A minha verdadeira vocao

  • 22 SOU EU, CALVINO

    era outra. Mas o tempo que passei em Orlans me fez amar a literatura. L mesmo comecei a escrever De Clementia, um comentrio sobre a obra de Sneca. O livro foi publicado s minhas custas em Paris em 1532. Porm no teve a sada que esperava, o que me obrigou a pedir algum dinheiro emprestado a alguns amigos. Talvez houvesse alguma dose de vaidade tanto no estudo do grego como no preparo do livro. Rabelais dizia que quem no sabe grego no pode considerar-se sbio. Estudei tambm hebraico por conta prpria. Hoje vejo a mo de Deus em tudo isso. Sem o conhecimento do grego e do hebraico - lnguas originais das Escrituras eu no poderia ter escrito o comentrio de muitos livros da Bblia. De Orlans voltei para Paris.

    O que acontecia em Paris?

    Cheguei a Paris em abril de 1531. Dois anos depois, o evanglico Grard Roussel comeou a atrair multides com suas pregaes durante a quaresma (1533). O impacto foi to grande que a faculdade de teologia ordenou que seis de seus membros pregassem contra os erros e a perversa doutrina dos luteranos. Mas no ficou s nisso. A mesma faculdade, autorizada pelo vigrio de Paris, deu incio a uma perseguio por heresia contra Roussel, que tinha a cobertura de Marguerite dAngoulme, duquesa de Alenon e rainha de Navarra. Dizia-se que Marguerite, que estava grvida, tinha enlouquecido ao ler a Bblia. Outros pregadores comearam a imitar o estilo e as idias de Roussel. O caldo estava quase derramando. Os simpticos Reforma de Lutero queriam a princpio uma reforma interna. Mas o conservadorismo mantinha as portas fechadas. Para aumentar a tenso de um lado e de outro, o discurso de abertura do novo ano acadmico da Universidade de Paris, no dia Io de novembro de 1533, feito por Nicolas Cop, recm-eleito reitor, foi sobre a necessidade de reforma e renovao dentro da Igreja. Embora

  • A SBITA CONVERSO DE UM LICENCIADO EM LEIS 23

    o orador tenha sido modesto em suas propostas, o discurso foi considerado ofensivo e radical por aqueles que o ouviram. No dia 19 de novembro, Cop foi substitudo no cargo e pouco depois foi parar em Basilia, em busca de refgio.

    A Foi nessa poca que o senhor teve a sua experincia de converso?

    Na dcada de 1520, em toda a Europa ningum nascia protestante. Afinal o grito nascente da Reforma era recentssimo (31 de outubro de 1517) e acontecera em outro pas. Deixe-me ser o mais claro possivel. A converso aconteceu mesmo e foi tremendamente marcante. Mas no foi como a converso da mulher pecadora nem como a do ladro na cruz. No me convert do mundanismo para Cristo. Graas ao bom Deus, graas ao temor do Senhor e graas herana religiosa, sou pecador, mas nunca fui um pecador de sarjeta, como o filho prdigo. Minha converso foi do romanismo para o protestantismo, do humanismo para o cristianismo, da superstio para a f evanglica, do tradicionalismo escolstico para a simplicidade bblica. A Bblia que recebi de presente de um dos meus familiares me arrebatou do catolicismo. No foi uma mudana fcil. Em carta ao cardeal Saduleto, escrita quando eu tinha 30 anos, no escondi essa dificuldade: Contrariado com a novidade, eu ouvia com muita m vontade e, no incio, confesso, resisti com energia e irritao. Foi com a maior dificuldade que fui induzido a confessar que por toda a minha vida eu estava na ignorncia e no erro. Muitas vezes converso nada mais do que romper com o passado. Ela no meramente uma experincia religiosa privada e interna, porm abrange uma mudana exterior, visvel e radical da lealdade institucional. Antes de minha converso eu me achava obstinadamente devotado s supersties do papado de tal modo que no conseguia desvencilhar-me com facilidade de to profundo abismo de lama. Deus, por um ato sbito de

  • 24 SOU EU, CALVINO

    converso, subjugou e trouxe minha mente a uma disposio suscetvel. Com esse toque soberano e misericordioso, me senti inflamado de um desejo to intenso de progredir que, embora no tenha abandonado totalmente os outros estudos, me ocupei deles com menos ardor. No prefcio de meu Comentrio aos Salmos, eu conto essa experincia to notvel quanto inesperada e imprevisvel, acontecida na metade exata de minha existncia! Por um pequeno perodo de tempo, tentei ser um reformado por dentro sem tirar a mscara catlica.

    ^ Quando tirou a mscara, o senhor comeou a sofrer perseguio?

    Em outubro de 1534, fui obrigado a deixar Paris e perambulei por Angoulme e Poitiers, na Frana. Depois, passei algum tempo na Itlia e em Estrasburgo. Finalmente, em janeiro de 1535, fui parar em Basilia, conhecida como um centro de letras e um lugar seguro p$ra aqueles que eram simpatizantes da causa evanglica ou j participantes dela, como era o meu caso. Por ser uma cidade de lngua alem e por eu no falar a lngua de Lutero, meus contatos eram com os que falavam francs ou latim, entre os quais nomeio dois dos meus melhores amigos, Guilherme Farei e Pierre Viret. Erasmo de Roterd ainda era vivo, morava na cidade e morrera no ano seguinte, aos 70 anos, a idade limite citada no Salmo 90.

  • 2GENEBRA:LUZ APS TREVAS

    Movido peCafuminante imprecao de

  • 26 SOU EU, CALVINO

    pediu para ficar nem me convidou delicadamente a associar-me a ele em seu ministrio na cidade. Ele apenas me ameaou. Se eu no me mudasse para Genebra, Deus amaldioaria os meus estudos. Farei tinha quase o dobro da minha idade e me meteu medo. Movido mais por essa fulminante imprecao, pareceu-me que dos cus a mo divina estava me aprisionando para sempre na cidade do lago. Em janeiro de 1537, pus as mos no arado.

    Genebra uma cidade bonita?

    Poucas cidades tm uma localizao to bela como Genebra. Estamos margem de um lago de guas azuis chamado Lman e rodeados de montanhas, que, no inverno, ficam cobertas de neve. uma cidade muito antiga, visitada por Jlio Csar cinquenta anos antes de Cristo. Nos ltimos dez anos, a populao subiu de 13.100 para 21.400 habitantes, por ela ter se tornado uma das cidades de refgio da Europa. Vrios estrangeiros, principalmente franceses, moram em Genebra para escapar perseguio religiosa. No falamos nem alemo nem italiano, o que acontece em outras partes da Sua. Nossa lngua oficial o francs. Somos uma cidade-estado e no pertencemos aos cantes de Berna nem Friburgo. Por ser uma das encruzilhadas da Europa, muita gente passa por Genebra. At a primeira metade do sculo passado notveis feiras internacionais eram realizadas aqui. Quase 70% da populao formada de artesos.

    ^ Quando Genebra se tornou protestante?

    Sob o ponto de vista histrico e jurdico, foi no dia 27 de agosto de 1535, logo aps um debate pblico entre catlicos e protestantes do qual os reformados saram vitoriosos. Desde ento a missa no mais celebrada. Um dos mosteiros foi transformado numa escola primria, com matrcula obrigatria para crianas. Outro foi transformado em hospital. Padres, monges e freiras no

  • GENEBRA: LUZ APS TREVAS 27

    foram expulsos da cidade. A maior parte foi embora por deciso prpria. A reforma de Genebra, em certo sentido, comeou com o p direito, pois reconheceu a liberdade de culto e as dimenses sociais do evangelho. Porm, em outro sentido, comeou da estaca zero, pois houve mudana de rtulo e no mudana de vida. Farei e outros tiveram de enfrentar o tremendo desafio de pregar o evangelho e o novo estilo de vida a uma multido de protestantes at ento s de nome. Foi por causa disso que, um ano depois, ele me procurou na estalagem em que eu estava hospedado e me constrangeu a permanecer em Genebra.

    0 que levou o povo a votar a favor da Reforma na tal assemblia pblica?

    Para chegar a esse ponto da histria nada foi fcil nem to rpido. Eu tinha 23 anos e conclua o curso de direito em Orlans, na Frana, quando Guilherme Farei e Antoine Froment comearam seu ministrio em Genebra (outubro de 1532). Os dois tinham uma audcia fora do comum e eram muito espertos. Numa ocasio, estando em Roma, Farei subiu ao plpito de uma igreja e gritou mais alto do que o padre que estava entoando a missa. Noutra, ele entrou numa procisso e arrancou algumas relquias das mos de um padre e as jogou no rio. Froment, por sua vez, portou-se com muita criatividade: ele colocou em vrios pontos de Genebra o seguinte aviso: Um jovem recm-chegado nesta cidade dar instruo na leitura e na maneira de escrever a lngua francesa a todos que quiserem, grandes e pequenos, homens e mulheres, mesmo aqueles que nunca foram escola. Caso no aprendam a ler e a escrever dentro de um ms, ele no deseja nenhuma recompensa pelo seu trabalho. O professor acrescentou: Esse homem tambm cura muitas doenas de graa. Foi um sucesso! De fato ele ensinava e medicava os doentes, mas no perdia a oportunidade de incluir pequenos sermes e comentrios sobre a Bblia em

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    suas aulas. Vrias vezes tentaram matar Farei e Froment, mas sempre em vo. Em abril de 1535, a empregada da casa onde os pregadores estavam hospedados, subornada por alguns padres, colocou veneno na sopa de espinafre de um deles. Meu amigo Pierre Varet quase morreu. Piores ainda foram os embates violentos entre uma multido de catlicos e uma multido de protestantes. Essa fase difcil terminou com o edital dos conselhos de Genebra dando grande causa aos reformadores. A partir da a cidade de Genebra passou a ter a tranquilizante divisa: Post tenebras Lux (Luz aps trevas).

    A O senhor est com 55 anos. Portanto, j viveu mais da metade do presente sculo. E vive na parte ocidental e no hemisfrio setentrional, onde esto 95% de todos os cristos. O que pensa do sculo 16?

    No sei o que vir depois deste sculo. Porm considero o sculo atual um presente de Deus. No s por causa da Reforma e da Contrarreforma, mas por causa de muitas outras coisas, a comear com as fantsticas descobertas martimas. Ferno de Magalhes acaba de fazer a primeira viagem ao redor do mundo (1519-1522). Antes dele, Vasco da Gama descobriu o caminho das ndias (1498) e Cristvo Colombo descobriu a Amrica (1492). Esses eventos bem-sucedidos provocam tremendas mudanas geogrficas. Na rea da astronomia, que muito me atrai, o polons Nicolau Coprnico acaba de publicar De Revolutionibus Orbium Caelestium [Das revolues dos mundos celestes]. Na rea da matemtica, o avano enorme no que diz respeito s fraes decimais, trigonometria retilnea e esfrica, s equaes de terceiro e quarto graus e ao livro Trattato de Numeri e Misure [Tratado sobre os nmeros e medidas], do italiano Tartaglia, publicado em 1545. No ramo da medicina, o mais importante, creio, o livro do meu patrcio Ambroise Par, de 1545, intitulado Mthode de Traicter les Playes [Mtodo

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    de tratar as feridas], que pode abrir portas para salvar muitas vidas. Curiosamente foi o herege Miguel Serveto, que ns queimamos vivo em Genebra, que distinguiu as cavidades direita e esquerda do corao, isto em 1533, pouco antes de morrer. Acho que devo mencionar ainda o formidvel trabalho do flamengo Gerardus Mercator, que fez um grande mapa da Europa e uma representao plana da Terra. O que ele fez pode nos ajudar a entender melhor o desafio da ltima ordem de Jesus: Vo a todos os povos do mundo e faam com que sejam meus seguidores (Mt 28.19). A impresso que eu tenho que esses nossos arautos da cincia moderna trabalham para Deus. Coprnico, por exemplo, entende que os astrnomos so sacerdotes de Deus e que, no exame da natureza, eles devem glorificar o Criador.

    No campo das artes, o atual sculo tem sido prdigo?

    Muito prdigo. Ainda estamos sob o impacto do polivalente Leonardo da Vinci, que morreu em Amboise, na Frana, quando eu tinha apenas nove anos. Ele empregou seu gnio em quase todas as artes e cincias. Foi pintor, escultor, arquiteto, inventor, botnico, gelogo, engenheiro e msico. Alm de tocar alade e outros instrumentos por ele inventados, da Vinci era um repentista, capaz de improvisar letra e msica conforme ia tocando. Tinha tambm suas excentricidades: escrevia com ambas as mos e fazia suas anotaes de trs para frente com a mo esquerda. Dizem que ele deixou um caderno de 7 mil pginas com desenhos, esboos de invenes e comentrios sobre pinturas, anatomia e filosofia. Embora tenha pintado o mural A Ultima Ceia no refeitrio de um mosteiro na Itlia, o artista, ao contrrio de muitos outros, no demonstrava interesse algum pela religio. Temos tido artistas notveis que produzem muito mais pinturas religiosas do que de outra natureza. Um dos mais impressionantes o

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    afresco A Criao de Ado, do italiano Michelangelo, pintado na Capela Sistina, em 1511. Entre os pintores do presente sculo, alguns se comprometem com a Reforma de Lutero, como Albrecht Drer, amigo de Filipe Melncton, e Lucas Cranach. O primeiro fez um quadro abordando um dos temas mais queridos por ns, A Queda do Homem (1504). E o segundo pintou A Crucificao (1503).

    A Em sua opinio, de tudo o que tem acontecido na primeira metade do presente sculo o que mais vai influenciar o mundo daqui para frente?

    Muito mais importantes que as descobertas martimas e tudo o mais foram a redescoberta da Bblia, a redescoberta da graa e a redescoberta da justificao pela f. Em resumo, o maior evento de todos foi aquele que estamos chamando de reforma religiosa, algo muito mais amplo e universal que qualquer outra reforma na histria religiosa de Israel ou da igreja. Muitos esto dando a prpria vida para que isto acontea e continue a acontecer. Estamos produzindo centenas de livros da mais pura teologia e muitos comentrios bblicos, graas inveno da imprensa, exatamente h cem anos. Sem medo de exagerar, sob o toque do Esprito Santo, estamos abrindo a porta da igreja para que Jesus entre outra vez e ocupe o seu lugar no plpito e na vida dos fiis. Por muito tempo ele esteve batendo porta e prometendo: Se algum ouvir a minha voz e abrir a porta, eu entrarei na sua casa e ns jantaremos juntos (Ap 3.20). J temos Jesus em nossa mesa e estamos jantando com ele e convidando o mundo inteiro para vir comer conosco!

    No me lembro qual, mas numa dessas conversas o senhor me contou que foi expulso de Genebra. Por qu?

    Depois de permanecer todo o ano de 1537 e o primeiro trimestre de 1538 em Genebra, eu e Farei fomos expulsos de l pelo

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    Pequeno Conselho. Entendo que tivemos pressa demais para mudar as coisas. No tive a pacincia necessria para lidar com certos costumes arraigados na sociedade que no combinavam com a moral evanglica. Alm de coisas menores, como a santificao do domingo e os jogos de azar, havia coisas bem mais reprovveis, tais como festas sem recato, muita pompa (e no austeridade), bebedeira, adultrios etc. A prostituio era sancionada e oficializada pelas autoridades. Veja s: a supervisora dos prostbulos era uma mulher eleita pelo Pequeno Conselho. A divisa da cidade luz aps trevas era apenas uma afirmao proftica e no uma realidade presente. Foi nessa ocasio que escrevi Instruo na F, mais conhecido como o Catecismo de Genebra, e comecei a pregar sobre ele. Nosso desejo era que cada genebrino, homem e mulher, se submetessem a esse documento apondo a ele a sua assinatura. Era um otimismo demasiado! Foi a que surgiram as primeiras divergncias entre mim e o Pequeno Conselho. Comearam a ter antipatia por mim: afinal, alm de ser um jovem de 28 anos, eu era um cidado francs, e no suo. O caldo acabou entornando, at que Farei e eu fomos expulsos oficialmente de Genebra em abril de 1538.

    Voltou para Basilia?

    No. Fui para Estrasburgo, onde passei os trs anos mais felizes da minha vida, que eu chamo de meus anos dourados. Separei-me de Farei, que foi para Neuchtel - embora amigos, ramos muito diferentes. Com a experincia de Genebra, passei a mudar as minhas atitudes, meu temperamento, meu estilo. Amadurec bastante. Cinco meses depois de ter chegado, fui convidado a pastorear uma comunidade de lngua francesa e a lecionar na Escola Alta (setembro de 1538). Tive muitas atividades literrias: publiquei a segunda edio de As Institutos em latim e a primeira em francs, e escrevi a Carta ao Cardeal Sadoleto e o Comentrio da Epstola de Paulo aos Romanos. Foi em

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    Estrasburgo que aprendi a lidar com pessoas de todas as classes, de humildes refugiados a mestres e telogos, como Matthieu Zell, o cura da catedral da cidade, Johannes Sturm, o fundador do Gymnasium de Estrasburgo, e Martin Bucer, um telogo da altura de Lutero. Deus me usou para despertar muitos jovens para o ministrio. Em meio a tudo isso, dei um grande passo frente: casei-me no dia 14 de agosto de 1540 com uma jovem viva chamada Idelette de Bure e me tornei padrasto de um menino (Jacques) e uma menina (Judith). Fui muito aplaudido porque todo mundo achava estranho que eu fosse solteiro sendo absolutamente contrrio ao celibato sacerdotal. Foi meu irmo Antoine quem descobriu Idelette e me aproximou dela sutilmente: como minha futura mulher no falasse francs, ele me pediu para ser o professor dela. Tornei-me de uma hora para outra seu professor, esposo e pai de seus filhos. Convidei Farei para celebrar nosso casamento. Dois anos depois, em julho de 1542, tivemos nosso nico filho, que, para tristeza nossa, morreu poucos dias depois.

    J Em Estrasburgo, naturalmente o senhor se esqueceu de Genebra...

    Quando eu estava comeando a me esquecer, recebi um surpreendente convite. Sabe de quem? Era do Pequeno Conselho de Genebra. Eles queriam que eu voltasse cidade e recomeasse o meu ministrio de pastor, pregador e professor. No dia 13 de setembro de 1541, trs anos e meio depois de expulso, fixei residncia outra vez em Genebra, onde estou at hoje! Infelizmente sem Idelette, que morreu h quatorze anos, em 1549.

  • 3O LIVRO TRANSFORMADO EM CATECISMO

    JL igreja jamais preservar a si mesma sem um catecismo

    O que o senhor chama de catecismo?

    Trata-se de um manual da doutrina crist, geralmente em forma de perguntas e respostas, voltado instruo religiosa. Eu diria em linguagem menos simples que um mtodo racional de ensino da f e da moral crist, segundo um programa sistemtico, para levar especialmente as crianas a professarem sua f em Jesus de modo consciente e convincente.

    Quando se usou pela primeira vez o termo catecismo?

    Foi em 1375, quando o arcebispo de York, na Inglaterra, publicou o texto Lay Folks Catechism. Meio sculo depois, o concilio de Tortosa, na Espanha, ordenou a elaborao de um breve compndio que bem poderia chamar-se catecismo, pois ensinava o que se deve crer, o que se deve pedir, o que se deve observar, o que se deve evitar e o que se deve desejar e esperar.

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    A Sempre o mestre que faz as perguntas e as crianas que respondem?

    No. Embora no muito comum, pode ser o contrrio: a criana pergunta e o mestre responde. E o caso do catecismo Disputatio Pueronim, publicado no sculo 11, disposto em dez captulos: perguntas sobre a criao, sobre a pessoa de Deus, sobre os anjos, sobre o homem, sobre o Antigo Testamento, sobre o Novo Testamento, sobre a igreja, sobre os sacramentos, sobre os smbolos da f e sobre o Pai-Nosso. J no catecismo de Honrio de Autun, o mestre pergunta e o discpulo responde.

    Desde quando a igreja tem feito uso do catecismo?

    Provavelmente a partir do sculo 2o. O uso universal do batismo infantil aps o sculo 6o incentivou o preparo dos catecismos para firmar as crianas j batizadas. As perguntas e as respostas giravam normalmente em torno dos Dez Mandamentos, do Credo Apostlico e da Orao do Senhor. Mas foi a Reforma que de fato popularizou o uso do catecismo, por causa de sua nfase considervel na educao religiosa no s das crianas, mas tambm dos jovens e adultos. Doze anos depois de romper oficialmente com Roma (1517), Lutero publicou o seu Catecismo Menor, que substituiu o Catecismo Maior, do ano anterior (1528). O que o levou a preparar o catecismo e difundir o seu uso o mximo possvel foi a constatao de que o povo de Deus nada conhecia da doutrina de Deus, sobretudo nas aldeias. Mais ainda, que muitos pastores eram quase totalmente ignorantes e incapazes de ensinar. Embora todos se chamem cristos e participem dos santos sacramentos - escreve Lutero no prefcio de seu catecismo - no conhecem nem a Orao do Senhor, nem o credo, nem os Dez Mandamentos, vivendo como pobres animais e porcos sem inteligncia, embora saibam muito bem - agora que o evangelho lhes veio - como podem abusar de sua liberdade. Para o reformador alemo, o catecismo no passa

  • 0 LIVRO TRANSFORMADO EM CATECISMO 35

    de um livro que instrui por meio de perguntas e respostas. Ningum forado a crer, mas dever dos pastores treinar e impelir a grande massa a saber o que errado e o que certo em matria de f. Depois de ministrar o Catecismo Menor, os pastores tinham de passar para o catecismo mais longo, para terem uma explicao mais profunda e mais completa.

    Pr curiosidade, quantas perguntas e respostas tem o Breve Catecismo , de 1529?

    So 375 perguntas e respostas, mais de uma para cada dia do ano. Vou dar alguns exemplos. Para a pergunta 5 (Donde tirou Lutero essa doutrina?), a resposta Lutero tirou essa doutrina da Escritura Sagrada ou Bblia. Para a pergunta 42 (Quem o nosso prximo?), a resposta Nosso prximo todo aquele que necessita do nosso amor. Para a pergunta 56 (Que matrimnio?), a resposta O matrimnio a unio vitalcia instituda por Deus e contrada, mediante esponsais legtimos, entre um homem e uma mulher para uma s carne. Para a pergunta 95 (Homem qualquer pode alcanar a salvao mediante as obras da lei?), a resposta Nenhum homem pode alcanar a salvao mediante as obras da lei, porque desde a queda no pecado o homem natural de todo incapaz para guardar a lei de Deus e o prprio cristo s a cumpre imperfeitamente. Para a penltima pergunta, a de nmero 374 (A quem se no deve dar a Santa Ceia?), a resposta A Santa Ceia no se deve dar aos mpios e impenitentes manifestos, aos hereges, aos que deram escndalo e ainda no o removeram e aos que no podem se examinar a si mesmos, como, por exemplo, crianas e pessoas sem sentidos.

    O catecismo era ensinado apenas nas igrejas e pelos pastores?

    De forma alguma. O catecismo era levado para dentro dos lares e o chefe da famlia tinha de ensin-lo sua famlia.

  • 36 SOU EU, CALV1NO

    Pessoalmente, como o senhor avalia o catecismo?

    Em minha longa carta de outubro de 1548 ao duque de Somerset, quando ele era regente da Inglaterra durante a menoridade de Eduardo VI, eu lhe disse francamente que a igreja de Deus jamais preservar a si mesma sem um catecismo, que como a boa semente impedindo a extino do bom cereal e multiplicando o trigo na seara do mundo, era aps era. Quem pretende construir um edifcio duradouro, que no entre logo em decadncia, deve providenciar que as crianas sejam instrudas num bom catecismo que mostre resumidamente a elas, em linguagem apropriada sua idade, em que consiste o verdadeiro cristianismo.

    O senhor mesmo nunca elaborou um catecismo em francs?

    Durante o inverno de 1536-1537, publiquei o meu primeiro catecismo, se que se pode cham-lo de catecismo, pois no era em forma de perguntas e respostas. A obra intitulava-se Instruo e Confisso de F e era para o uso da igreja de Genebra. Cinco anos depois, no incio de 1542, resolvi transformar esse livro, j traduzido para o latim, num verdadeiro catecismo, com 373 perguntas e respostas (duas a menos que o de Lutero). Foi minha primeira exposio teolgica sistemtica em lngua francesa (As Institutas haviam sido escritas em latim).

    A Um catecismo de quase quatrocentas perguntas e respostas no grande demais, principalmente quando se pensa no leitor mirim?

    Pela aceitao que ele teve, a ponto de provocar maior unidade entre as igrejas reformadas, creio que isso no problema. Eu o dividi em quatro partes: a primeira sobre a f de um modo geral (130 perguntas); a segunda trata dos Dez Mandamentos (102); a terceira s sobre a orao (63); e a ltima parte se refere Palavra e aos Sacramentos. A partir de 1561, esse catecismo ganhou mais importncia, visto que da em diante cada novo ministro da igreja devia jurar fidelidade aos ensinos nele expressos e comprometer-se a ensin-los.

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    O seu catecismo e o Catecismo Menor , de Lutero, no seriam suficientes? Parece que est saindo outro catecismo.

    Trata-se do Catecismo de Heidelberg, publicado em fevereiro de 1563, por iniciativa do prncipe eleitor Frederico III, que havia se convertido f reformada trs anos antes. Ele convidou Zacarias Ursinus, professor da Faculdade de Teologia de Heidelberg, na Alemanha, e Gaspar Olivianus, ambos com menos de 30 anos, para prepararem um catecismo a fim de ensinar a doutrina bblica aos jovens da igreja. um catecismo trs vezes menor do que o meu. Tem apenas 129 perguntas e respostas, dispostas de tal modo que podem ser estudadas durante os 52 domingos do ano. Alm do meu catecismo e dos catecismos de Lutero e de Ursinus, saram vrios outros: os catecismos de Oecolampadius, de Bullinger, de Cranmer, de Allen e do rei Eduardo VI.

    A Qual a sua opinio sobre o Catecismo de Heidelberg?

    a melhor possvel. Considero-o superior ao meu catecismo e ao de Lutero. Porque Frederico queria um catecismo conciliador que pudesse combinar o melhor da sabedoria luterana e reformada, o Catecismo de Heidelberg (a cidade da Alemanha Ocidental onde foi escrito) o mais ecumnico de todos, pois rene trs correntes do pensamento reformado. Ademais, est isento de definies dogmticas e notavelmente no sectrio. Possui um carter inteiramente bblico. Toda a sua estrutura moldada pela perspectiva bblica. Eu diria que esse catecismo deixa a Escritura falar e no procura substitu-la. Em sua posio teolgica, ele cristo, evanglico e reformado, e est plenamente fundamentado no trabalho dos apstolos e dos conclios ecumnicos da igreja antiga (no romana). O melhor que ele um manual da religio prtica. Em vez de levantar problemas especulativos, apresenta a f crist de maneira proftica, acentuando a sua importncia para a vida diria. Foi elaborado para ser ao mesmo tempo um guia para a instruo

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    religiosa das crianas e dos jovens e uma confisso para toda a igreja. Por seu qudruplo propsito (catequtico, teolgico, litrgico e querigmtico), o Catecismo de Heidelberg tornou-se imediatamente popular, primeiro nas reas reformadas e, em seguida, nas reas luteranas. Ele tem trs divises principais: Nosso pecado e culpa (primeira parte), Nossa redeno e liberdade (segunda parte) e Nossa gratido e obedincia (terceira). Entendo que a ltima parte deste abenoado catecismo constitui-se em um pequeno clssico da vida devocional.

    A Nos quarenta anos que separam o Breve Catecismo de Lutero (1529) e o catecismo da Contrarreforma, em preparo, a Igreja Catlica produziu algum catecismo?

    Em 1555 surgiu a Suma da Doutrina Crist, com perguntas e respostas, destinada aos jovens estudantes de nvel superior, aos clrigos em formao e aos leigos cultos. No ano seguinte apareceu o Catecismo Mnimo, em forma de abecedrio, para crianas e pessoas ignorantes que estavam aprendendo a ler. Por fim, em 1558, veio a lume o Pequeno Catecismo dos Catlicos, para estudantes de nvel mdio. Dos trs, este ltimo foi o que obteve maior xito em virtude da sua pedagogia e da preciso das perguntas e respostas.

    A A Contrarreforma no produziu catecismo algum?

    Eu soube que o Concilio de Trento, encerrado agora em 1563, nomeou uma comisso presidida pelo cardeal Carlos Borromeu, sobrinho e secretrio do papa Pio IV e arcebispo de Milo, para preparar um catecismo que expresse a reao catlica Reforma. Estou sabendo tambm que o jesuta Jos de Anchieta, missionrio espanhol no Brasil, teria escrito um catecismo bilngue (na lngua portuguesa e na lngua dos nativos daquele continente recnvdescoberto), intitulado Dilogo das Coisas da F, com perguntas e respostas. Talvez seja o primeiro catecismo escrito fora da Europa e para um pblico no cristo.

  • 4O VOO QUE NO SE REALIZOU

    (podar pe(a metade os a6usos do cristianismo no resoCve o proCema

    / Em sua carta de 28 de junho de 1545 a Melncton, o senhor diz que temos de estar sempre em guarda para no prestar deferncia demasiada aos homens . Todavia, menos de seis meses antes, em sua carta a Lutero, o senhor refere-se a ele como excelentssimo pastor da igreja crist , celebrrimo senhor , notabilssimo ministro do Criador e meu pai respeitadssimo e sempre honorvel . O senhor deixou de montar guarda?

    No posso concordar com a agressividade de Martinho Lutero, mas no posso negar sua coragem, sua firmeza e suas bases. Ele enfrentou papas e soberanos poderosos com absoluto sucesso. O movimento que empreendeu dois anos depois de redescobrir o valor da f no sacrifcio vicrio de Jesus no foi uma tentativa frustrada de reforma, mas uma autntica e imorredoura reforma da igreja crist, quando ele tinha apenas 34 anos.

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    /> O senhor parecido com Lutero?

    Sou to pecador e to salvo quanto ele. Temos o mesmo zelo pela igreja, a noiva de Cristo. Enfatizamos sempre os trs so- mentes: o sola Scriptura, o sola gratia e o sola fide. Tanto eu como Lutero no fomos at o final do curso de direito e estudamos hebraico por conta prpria. Ambos nos dedicamos ao ministrio, ambos somos professores universitrios, ambos fazemos sermes expositivos versculo por versculo, ambos gostamos mais do livro dos Salmos, ambos devemos muito da nossa caminhada teolgica Carta de Paulo aos Romanos, ambos nos casamos depois dos trinta anos. Tanto Lutero como eu sabemos que precisamos oferecer continuamente resistncia pecaminosidade latente e temos conscincia de que estamos dando muito trabalho a Satans. Em nossa admoestao contra os perversos, usamos os mesmos termos trava ou freio: as autoridades devem no somente restringir, mas tambm dirigir o povo. Por fim, ns somos parecidos porque nem ele nem eu gostamos dos adjetivos luteranos e calvinistas, aplicados aos nossos irmos reformados. Mas Lutero 26 anos mais velho que eu. Ele alemo e eu, francs. Ele nasceu no final do sculo 15 e eu, no incio do sculo 16. Ele fala uma lngua germnica e eu, uma lngua latina. Ele viveu na Alemanha e eu vivo na Sua. Ele da primeira gerao de reformados e eu, da segunda (eu era um menino de apenas oito anos quando Lutero rompeu oficialmente com Roma). Ele se casou com uma freira e eu, com uma viva. A maior diferena entre ns dois quanto ao temperamento.

    Como assim?

    Sou menos expansivo, menos impetuoso, menos arrojado. Tenho um temperamento tmido. Sou acanhado por natureza. Jamais teria coragem de atacar os papas com palavras to

  • O VOO QUE NO SE REALIZOU

    insolentes quanto Lutero. Ele chamava o papa Clemente VII de arquipatife. Em sua obra Advertncia a seus Estimados Alemes, publicada em abril de 1531 (ano em que meu pai morreu), o javali da floresta (nome que o papa Leo X deu a Lutero em sua encclica Exsurge Domine, de 1520) diz que os papas no tm juzo nem vergonha, so dez vezes piores que os turcos, verdadeiros diabos, miserveis patifes, assassinos sanguinrios, miserveis inimigos de Deus e assim por diante.

    ^ Apesar dos mesmos trs somentes , parece que h diferentes tendncias entre a reforma feita por Lutero e a reforma que est sendo feita por sua instrumentalidade.

    Embora haja muita unidade entre uma e outra, h algumas diferenas entre ns. Para Lutero, a lei de Deus serve para revelar a santidade de Deus e conduzir o pecador a Cristo; para mim, alm disso, a lei mostra ao crente o caminho da santificao. Para Lutero, o arrependimento conduz f; para mim, o arrependimento flui da f. Para Lutero, a ordo salutis (a ordem da salvao) segue o seguinte itinerrio: vocao, iluminao, converso, regenerao, justificao, santificao e glorificao; para mim, comearia com a eleio, a predestinao e unio com Cristo, sem excluir os demais. Para Lutero, o batismo regenera e remove a culpa e o poder do pecado; para mim, o batismo incorpora o fiel na aliana da graa. Para Lutero, Cristo est presente objetivamente no sacramento da Ceia do Senhor; para mim, Cristo tambm est presente, mas de modo espiritual, no fsico. Quanto ao princpio regulador da vida do crente, mais uma questo de palavras (a posio luterana admite muitas coisas no culto que a posio reformada no admite).

    Na citada carta a Lutero, o senhor escreve: Quisera poder voar at voc para desfrutar da felicidade de sua companhia ao

  • Jmenos por algumas horas e conversar com voc acerca de vrias questes . O senhor chegou a estar com Lutero?

    Infelizmente, no. Na poca eu estava com 36 anos e Lutero, com 62. Um ano e um ms depois de minha carta, ele entregou o seu esprito a Deus em Eisleben, para onde tinha ido a fim de apaziguar os dois condes de Mansfeld. Isso aconteceu no dia 18 de fevereiro de 1546. No entanto, tenho esperana de me encontrar com ele no reino de Deus em breve.

    Na mesma ocasio, o senhor enviou alguns de seus pequenos livros, pedindo que, nas horas vagas, ele os examinasse superficialmente , ou que solicitasse algum que o fizesse em seu lugar e depois conversasse com ele sobre o contedo dos livros. Este seu gesto demonstra alguma timidez ou modstia demasiada?

    Penso que no. Apenas levei a srio as tantas e pesadas responsabilidades de Lutero.

    A Parece que tanto Lutero como o senhor de vez em quando tm uma crise de depresso...

    Quem no as tem? Depresso a quase completa capitulao de nimo, de bem-estar, de segurana emocional, de autoconfiana, de energia, de alegria e at mesmo da vontade de viver. Veja a experincia de Elias. Depois de experimentar vitrias estrondosas em seu ministrio, de enfrentar a terrvel Jezabel, seu marido Acabe e os quatrocentos profetas de Baal no monte Carmelo, o profeta passou por uma crise de depresso. Ele ficou com medo, refugiou-se no deserto, teve vontade de morrer, chegou a pedir que Deus o levasse e ainda experimentou uma autoavaliao extremamente negativa (eu sou um fracasso). Veja tambm J. Por causa de seu intenso sofrimento, o homem da terra de Uz passou por uma profunda depresso. A certa altura, ele desabafou: Agora j no tenho mais vontade de viver; O desespero tomou conta de mim; O meu corao est agitado e no descansa;

    42 SOU EU. CALV1N0

  • 0 VOO QUE NO SE REALIZOU 43

    Levo uma vida triste, como um dia sem sol; e Minha harpa est afinada para cantos fnebres, Somos pessoas de carne e osso, e no anjos alados. Somos homens, e no super-humanos. Vivemos numa poca de transio, de mudana, de reforma. Os poderes que no querem a reforma da igreja nos ameaam, nos perseguem, nos colocam nas masmorras, na Torre de Londres, na estaca, na forca, no cadafalso. As potestades do ar no desistem de ns. Apesar da orao, apesar das promessas das Escrituras, apesar das alegrias da comunho com o Senhor e com os irmos, apesar do apoio de algum fidalgo ou monarca, apesar da alegria de viver e de morrer para o Senhor - h momentos em que todos ns camos em depresso. No somos melhores do que Asafe quando vemos que tudo parece ir bem com os libertinos, os opositores, os mentirosos, os orgulhosos, os traidores e os que fazem questo de trazer a esposa e os filhos para assistir a morte por fogueira do esposo e do pai, como aconteceu em 1555 com John Rogers, o primeiro mrtir protestante executado por ordem de Maria, A Sanguinria.

    Dizem que o senhor, Lutero e outros reformadores so cismticos muito relutantes.

    E pura verdade. Nem Lutei-o nem eu queramos deixar a Igreja Catlica. Pelo contrrio, sonhvamos com um catolicismo reformado, uma Igreja Catlica reformada de acordo com a Escritura. Estvamos interessados tanto na sua pureza como na sua unidade. Em 1552, por exemplo, escrevi para Thomas Crammer, arcebispo de Canterbury, da Igreja da Inglaterra, que a separao da igreja estava entre as maiores desgraas do nosso sculo. De minha parte, no hesitaria em cruzar dez mares se isso resolvesse a questo. Roma no abriu as portas para a reforma, embora agora, no recnvencerrado Concilio de Trento, ela tenha aberto algumas janelas, pelo menos no que diz respeito moral do clero.

  • 44 SOU EU. CALV1NO

    ^ Qual ideal norteia sua vida?

    Meus ideais no esto ocultos. Falo sobre eles em quase todas as cartas. Tomemos por exemplo a carta que escrevi no desastroso ano de 1548 (foi nesse ano que meu querido irmo Antoine ficou sabendo que sua esposa o traa), ao duque de Somerset, que na poca era a maior autoridade do governo da Inglaterra. Porm, no me custa fazer uma lista dos meus ideais:

    1) Gostaria que todos os nobres e aqueles que administram a justia se submetessem em retido e total humildade ao grande rei Jesus, prestando-lhe reverncia sincera, com f no fingida em corpo, alma e esprito;

    2) Gostaria que a doutrina de Deus fosse proclamada com eficcia e poder, de modo a produzir seu fruto, levando totalmente a cabo uma notvel e completa reforma da igreja;

    3) Gostaria que o escndalo e a converso frvola no virassem hbitos de modo' que o nome de Deus no venha a ser blasfemado;

    4) Gostaria que a reforma da igreja fosse completa, pois podar os abusos do cristianismo pela metade jamais ir restaurar a situao ao estado de pureza;

    5) Gostaria que a sabedoria do Esprito, no a da carne, prevalecesse em tudo;

    6) Gostaria que o nome de Deus fosse sempre mais e mais glorificado por todos os fiis.

  • 5A IGREJA DE GENEBRA

    Vcios secretos devem ser repreendidos secretamente

    Dizem que o senhor o grande ditador de Genebra e teria introduzido na cidade uma espcie de terrorismo religioso.

    Quando no uma completa inveno, esse e outros mitos representam uma grave distoro da realidade. Eu no tomei Genebra de assalto. Fui convidado a voltar e assumir a liderana da igreja cedendo s fortes insistncias do conselho genebrino. Eu morava at ento em Estrasburgo e estava feliz da vida. Cheguei a Genebra em setembro de 1541, dois meses depois de completar 32 anos. Tinha um ano de casado e dois enteados, filhos do primeiro matrimnio de Idelette. Logo ao chegar, entreguewne tarefa de redigir uma espcie de constituio para a igreja e a cidade, que ficou conhecida pelo nome de Ordenanas Eclesisticas. Foram dez dias de intenso trabalho. Depois de examinado pelos outros pastores e pelo Pequeno Conselho, o manual foi adotado no dia 20 de novembro. Nesta constituio

  • 46 SOU EU, CALV1NO

    aparentemente simples, inspirada basicamente nas Escrituras e na prtica da igreja primitiva, conforme se l no livro de Atos, encontra-se uma forma democrtica representativa e republicana de governo da igreja. No sei como posso ser considerado ofensivamente o grande ditador de Genebra se vrias vezes eu sofri oposio e minha voz no foi ouvida em alguns pontos!

    Quantas ordens de ofcio vocs tm em Genebra?

    Existem quatro ordens de ofcio institudas por nosso Senhor para o governo de sua igreja: pastores, doutores, presbteros e diconos. Entendo que, se quisermos uma igreja bem organizada e preservada, devemos observar esta forma de governo. O ofcio do pastor proclamar a Palavra de Deus e ento instruir, admoestar, exortar e repreender, tanto em pblico como em particular, alm de administrar os sacramentos e exercer fraternalmente a disciplina, juntamente com os presbteros e assistentes.

    Qualquer membro da igreja pode tornar-se pastor?

    Ningum pode fazer parte deste ofcio sem um chamado da parte de Deus. Aquele que se diz chamado deve ser examinado pelo Conselho quanto doutrina e quanto conduta. Se o candidato no possuir conhecimento bom e slido da Escritura e capacidade para comunic-la ao pblico de maneira edificante, ele no ser ordenado pastor. Para saber se ele est apto para ensinar preciso sabatin-lo. Ele tambm no alcanar o ministrio sagrado caso no tenha bons hbitos e comportamento adequado luz do ensino de Paulo.

    Exige-se algum juramento da parte do candidato caso ele seja ordenado?

    Ao ser ordenado, eleito e empossado, o novo pastor far o seguinte juramento perante o Conselho: Eu prometo e juro

  • A IGREJA DE GENEBRA 47

    que, no ministrio para o qual sou chamado, servirei fielmente a Deus, ministrando de forma pura a sua Palavra para edificao desta igreja qual ele me uniu, que de forma alguma farei mau uso de sua doutrina para servir s minhas paixes carnais nem para agradar homem algum, mas a aplicarei com conscincia para o servio de sua glria e para proveito deste povo do qual sou devedor. Alm desse primeiro compromisso, o candidato aceito e aprovado promete comportar-se com lealdade, sem dio, favoritismo, vingana ou qualquer outro sentimento carnal no af de exortar os que caem em pecado. Por ltimo, ele promete servir igreja e ao povo de tal maneira que no seja impedido de prestar a Deus o servio que de acordo com sua vocao lhes deve.

    A O Conselho exerce algum tipo de superviso sobre os pastores?

    E claro que sim, no sentido de mant-los no cumprimento de seu dever. Uma vez por semana ns nos reunimos para juntos discutirmos a Escritura e verificar se todos estamos conservando a pureza doutrinria e a concordncia entre ns. Consideramos crimes intolerveis coisas como heresia, cisma, rebelio contra a ordem eclesistica, blasfmia notria, simonia, corrupo, bebedeiras, perjrio, lascvia, apropriao indbita, danas e outros vcios similares. Condenamos tambm qualquer intriga com o objetivo de um pastor ocupar o lugar do outro. Embora no coloquemos no mesmo nvel, repudiamos tambm a negligncia na leitura e no estudo da Palavra, a bajulao, a grosseria, a difamao, a avareza, a ira incontida, rixas, contendas e at a frouxido nos modos e maus gestos.

    E os outros ofcios, quais so?

    A primeira ordem formada de pastores; a segunda, de doutores; a terceira, de presbteros; e a quarta, de diconos. O ofcio

  • 48 SOU EU, CALVINO

    prprio dos doutores a instruo dos fiis na verdadeira doutrina, a fim de que a pureza do evangelho no seja corrompida pela ignorncia ou por ms opinies. Esses homens so preletores em teologia, pessoas especializadas no Antigo Testamento e no Novo Testamento. Eles devem ser escolhidos e remunerados para terem sob sua responsabilidade professores tanto para lnguas como para dialtica. O ofcio prprio dos presbteros supervisionar a vida de cada pessoa para admoestar amigavelmente os que esto errando ou vivendo uma vida desordenada. Eles tm de ser homens de vida honesta e reta, sem mancha e acima de suspeitas. No conveniente que sejam substitudos com frequncia sem motivos, enquanto cumprirem com fidelidade o seu dever. O ofcio prprio dos diconos receber, administrar e manter bens para os pobres e cuidar dos doentes. Os que contribuem para esse fim precisam estar seguros de que as doaes no sero empregadas de outra maneira, seno na caridade. Esse ofcio no deve se limitar aos pobres da comunidade eclesistica, mas tambm aos doentes do hospital, aos idosos que no podem trabalhar, s vivas, aos rfos, aos detentos e outras pobres criaturas. Esse ministrio precisa desencorajar a mendicncia at o ponto de vir a ser observada a total proibio de pedir esmola. Os que passam necessidades unicamente porque so preguiosos no devem receber assistncia, mas ser advertidos contra a preguia.

    Em suas Ordenanas Eclesisticas h alguma norma sobre o culto?

    Sim. Propus e foi aprovado que tivssemos trs cultos por domingo nas trs igrejas (So Pedro, Madalena e So Gervsio) - um ao raiar do dia e os outros s nove e s trs da tarde - e outros trs durante a semana apenas na primeira igreja, que a nossa catedral (nas segundas, quartas e sextas). Todo domingo, ao meio-dia, h uma aula de catecismo para crianas nas

  • A IGREJA DE GENEBRA 49

    trs igrejas. Para dar conta deste programa semanal tm sido necessrios cinco ministros e trs auxiliares.

    O senhor no acha imprprio oferecer o catecismo para crianas no horrio de meio-dia?

    Pode ser. Mas vale a pena. As crianas so importantes. Insistimos que os cidados ou moradores de Genebra devem levar seus filhos ao catecismo todos os domingos. Distribumos um formulrio para ser preenchido pelos pais a fim de verificar se as crianas esto entendendo e decorando as respostas. Quando uma criana for suficientemente bem instruda no catecismo, ns a submetemos a um teste: ela deve recitar solenemente um resumo do que aprendeu. S ento poder professar a f diante da igreja e passar a participar da Santa Ceia.

    A igreja de Genebra a favor da disciplina?

    Entendemos que vcios secretos devem ser repreendidos secretamente. Ningum deve trazer o seu vizinho perante a igreja a fim de acus-lo de faltas que no sejam pelo menos notrias ou escandalosas, a menos que ele se mostre contumaz. Os que no se corrigem devem abster-se da Santa Ceia at o momento em que retornam com disposio e nimo melhor. Toda disciplina deve ser feita com tal moderao que no haja rigor pelo qual algum possa ser magoado, pois mesmo as correes so apenas remdios para se trazer pecadores de volta a nosso Senhor.

    Vocs realizam cerimnias nupciais e fnebres?

    Por que no? Celebramos o casamento tanto em dia de semana como no domingo. Se for no dia do Senhor, ele acontece antes do culto. Fazemos questo de introduzir cnticos sacros para alegrar e incentivar o louvor. Mas no celebramos no domingo de Santa Ceia, em honra ao sacramento. Quanto aos funerais,

  • 50 SOU EU, CALV1NO

    temos algumas normas. O irmo que faleceu deve ser sepultado no antes de doze horas aps a morte nem depois de vinte e quatro horas. Aqueles que vo levar o caixo at a sepultura - que chamamos de carregadores - devem desencorajar quaisquer supersties contrrias Palavra de Deus e devem cumprir o horrio do sepultamento.

    ^ Todas essas instrues e normas foram criadas pelo senhor em dez dias de trabalho?

    Exatamente. Escritas por mim e aprovadas pelo Pequeno Conselho. Tenho informaes de que elas esto sendo adotadas fora de Genebra, como, por exemplo, na Esccia de John Knox.

  • 6LUXO, EXTRAVAGNCIA E CONSUMISMO

    Vma coisa certa: quando as riquezas dominam o domem, (Deus despojado de sua dominao

    A salvao somente pela graa de Deus e no pelas obras, como o senhor insiste sempre, no desobriga o crente reformado das boas obras?

    De modo nenhum. As boas obras no causam a salvao, mas devem ser a causa dela. uma questo de ordem: primeiro a salvao e, depois, as obras. Pode-se dizer que a doutrina do sola gratia santifica as obras, pois arranca delas a chaga da barganha e as torna uma expresso da gratido e louvor a Deus. Em Genebra damos muita importncia ao social. Temos exercido grande influncia sobre o governo civil da cidade. Da as leis at sobre sade e segurana. Cuidamos das coisas grandes e das pequenas. Por exemplo, proibido jogar lixo ou excrementos humanos nas ruas, proibido acender uma lareira em quartos sem chamins, proibido construir uma sacada sem grades (para evitar que as crianas caiam dela). Intrometemo-nos em tudo:

  • 52 SOU EU, CALVINO

    uma enfermeira no pode levar consigo para a cama os bebs, os vigias noturnos devem fazer suas rondas com responsabilidade, os negociantes no podem cobrar demais pela sua mercadoria. Na poca das eleies, o pregador da Catedral de Saint Pierre deve pregar sobre a necessidade de eleger homens piedosos, e os eleitos so exortados a governar sob a direo de Deus e para a glria dele. Em nossas exposies bblicas, apontamos como contrrias tica crist as habituais manobras para aumentar o lucro, tais como a estocagem de trigo na esperana de que ele suba de preo, a especulao financeira e o monoplio. Quando o primeiro dentista montou seu consultrio em Genebra, eu mesmo fiz a primeira consulta para testar sua competncia.

    Antes de sua primeira chegada a Genebra, Guilherme Farei, na tentativa de moralizar a cidade, colocou rdea curta em todo mundo. Por exemplo, a presena aos cultos dominicais era obrigatria, sob pena de pesadas multas. Leis severas demais do resultado?

    Minha experincia diz que no funcionam nem em curto nem em longo prazo. Temos de pedir sabedoria a Deus, tanto para no pesar demais como para no pesar de menos. No podemos cair nem no legalismo (no faa isso, no faa aquilo) nem na frouxido (no pecado isso, no pecado aquilo). Temos de apelar mais ao corao do que coero. Naturalmente algumas leis foram necessrias para disciplinar Genebra e torn-la uma cidade reformada no s nominalmente. Fizemos leis para regulamentar o uso de bares, para proibir a blasfmia contra Deus, a venda de po e vinho a preos acima dos estipulados, a prtica do jogo de cartas (que tirava o dinheiro de muitos em favor de poucos) etc. Tornamos obrigatria a instruo pblica. Acabamos com os muitos dias santos herdados da Igreja Catlica e devolvemos ao domingo a importncia que ele deve ter, tornando-o verdadeiramente o dia do Senhor, o dia de ir igreja, o dia de descanso semanal. Embora nossas intenes fossem as melhores possveis, descobrimos que leis por demais

  • LUXO, EXTRAVAGNCIA E C0NSUM1SM0 53

    severas, que excedem os limites do razovel, provocam insatisfao, mesmo entre os crentes verdadeiros. Os libertinos, que pendiam para o lado oposto, acabaram nos expulsando de Genebra, eu e Farei, em abril de 1538.

    O senhor tem sido contra o luxo, a extravagncia e os gastos suprfluos. Mas, se a pessoa que se entrega a isso algum honestamente rico, ele no tem o direito de gastar o seu dinheiro como bem entende?

    Mesmo no havendo a menor suspeita sobre a origem da fortuna de algum, de modo nenhum ele deve esbanjar o seu dinheiro com o consumismo desenfreado. Isso pecado, para no usar a palavra crime. E pecado porque ao redor dele h muitos que no tm teto, no tm o que comer nem o que vestir, seja irmo na f ou no. Os mandamentos de Deus em favor dos pobres, das vivas, dos rfos, dos imigrantes e dos incapacitados para o trabalho aparecem com impressionante frequncia em toda a Bblia, tanto na antiga dispensao como na nova. Uma vez convertido, Zaqueu, alm de separar algum dinheiro para restituir aos que porventura tivessem sido lesados por ele, tomou a deciso de repartir a metade de seus bens com os pobres. Os fazendeiros do Antigo Testamento no deveram colher todos os frutos de seus campos, mas deixar pelo menos os cantos das plantaes para os necessitados, segundo a lei da rebusca da qual as vivas Noemi e Rute se valeram. A extravagncia sinal de egosmo e, portanto, pecado, e pecado grave. Na parbola do bom samaritano, Jesus mostra que tanto o sacerdote como o levita no quiseram gastar tempo, esforo e dinheiro com aquele semimorto beira da estrada. O que os ricos perdulrios gastam com o luxo e o suprfluo daria para construir orfanatos, abrigos para os sem moradia, escolas e hospitais. Os proprietrios de grandes extenses de terra, muitas vezes abandonadas, poderiam dividir uma parte delas

    )

  • 54 SOU EU. CALVINO

    em pequenos stios e doar a famlias pobres e desempregadas. Os donos de grandes fortunas deveriam abrir novas empresas, no para obterem mais dinheiro, mas para criar mais ofertas de trabalho. Uma coisa certa: quando as riquezas dominam o homem, Deus despojado de sua dominao. O caso srio!

    ^ No seu entender, o oitavo mandamento da lei de Deus - no roube - significa apenas subtrair alguma coisa alheia?

    Defraudamos o prximo de seu bem quando deixamos de cumprir com os deveres dos quais somos incumbidos. Estou certo de que aquele que no se desincumbe para com os outros das obrigaes que sua vocao inclui retm o que pertence a outrem. Trocando por midos: ele est quebrando o oitavo mandamento, dando mau testemunho e fazendo sofrer ainda mais os que j sofrem.

    ^ Afinal, o senhor contra ou a favor da desobedincia civil?

    O governo civil to necessrio quanto po e gua, luz e ar. Sou a favor da hierarquia na rea conjugal (a liderana do marido), na rea familiar (a liderana dos pais) e na rea social (a liderana dos magistrados). Sem essas lideranas, ocorre o caos. Todavia, por causa da Queda, todas elas podem falhar, tanto pela omisso como pelo abuso. Se sou contra ou a favor da desobedincia civil, tenho de tomar muito cuidado com a resposta, porque ela pode ser torcida e generalizada. Entendo que cometemos um crime contra o prprio Deus quando obedecemos a ordens e exigncias de um governo contrrio vontade expressa de Deus. Por esta razo, no temo em afirmar que Daniel no pecou ao desobedecer a ordem dada por Nabucodonosor para que toda a populao do vasto imprio babi- lnico adorasse a esttua que ele mandou erguer. Diria o mesfho a respeito das parteiras Sifr e Pu que, em desobedincia ao rei do Egito, deixaram vivos os filhos das mulheres hebreias, incluindo Moiss. Tambm diria o mesmo a respeito da desobedincia

  • LUXO. EXTRAVAGNCIA E CONSUMISMO 55

    religiosa dos apstolos que no deixaram de anunciar o evangelho, desprezando a deciso quase unnime do sindrio.

    O senhor contra o servio militar?

    Sou absolutamente contra o uso blico em defesa da f e em defesa dos perseguidos por sua f. Nossas armas so diferentes. Quando os tiranos lanam suas baforadas, devemos volver nossos olhos para contemplar o socorro que Deus d aos seus. Sofrer perseguio no significa ser abandonado por Deus. Os tormentos so uma provao e os tiranos no podem sobre ns mais do que Deus lhes permite, como se v claramente na histria de J. Temos de aprender a esperar a mo de Deus. Em algum momento, ele frear o furor dos tiranos e os far cessar a despeito de seus dentes e fria. Ganhar uma guerra religiosa pela fora no nos lcito. Tudo quanto sustentarmos temerariamente sem a aprovao do Mestre no pode ter um resultado feliz. Sou igualmente contrrio ao engajamento do crente num exrcito mercenrio. Se h gente no mundo que seja desregrada aquele que, em vez de aplicar-se a algum trabalho honesto e legtimo, corre atrs de um soldo a quem mais lhe d. E sobre que condio? Para matar e ferir ou, ento, para ser morto ele prprio. Por causa da oferta - muito comum hoje convocar soldados mercenrios -, essa uma tentao muito forte para os nossos jovens. Zunglio em Zurique e eu aqui em Genebra temos lutado contra isso.

    Para ser verdadeiramente piedoso, o crente precisa evitar qualquer contato com a sociedade, com o mundo secular?

    A piedade de alguns anos atrs preconizava isso. Mas o ensino de Jesus exatamente o contrrio. Na chamada orao sacerdotal, feita na noite de quinta para sexta-feira, Jesus orou ao Pai: No peo que os tires do mundo, mas que os guardes do Maligno (Jo 17.15). Se o crente fugir do ambiente no cristo, como ser luz do mundo e sal da terra?

  • 56 SOU EU, CALVINO" \

    Foi o senhor que fundou a Academia de Genebra?

    A primeira universidade de que temos notcia no era crist nem europeia. Trata-se da universidade de Al-Azhar, fundada no Cairo no ano de 970. As duas primeiras universidades crists e europeias so a de Bolonha, na Itlia, e a de Paris, na Frana, onde estudei. A primeira universidade protestante a nossa Academia de Genebra, construda numa pequena colina prxima catedral, no com dinheiro de algum prncipe ou cardeal, como tem sido comum at ento. Eu mesmo levantei a maior parte dos recursos com os moradores da cidade. Lembro-me de uma pobre senhora que deu somente cinco moedas e de um tipgrafo bem-sucedido que doou a maior parte de sua fortuna. Ela foi inaugurada no dia 5 de junho de 1559, poucos dias depois do meu quinquagsimo aniversrio. Todos os professores eram protestantes e muito competentes. Entre eles, cito os nomes de Pierre Viret, de 48 anos, e Theodoro de Beza, de 40. Quase todos vieram de Lausanne. Beza assumiu a reitoria. Grande parte dos estudantes vem de vrias naes da Europa, especialmente do meu pas. A matrcula est aumentando muito de ano em ano. Todos os alunos se comprometem oficialmente com a confisso de f reformada. Aps a concluso do curso secundrio, alguns permanecem para estudar teologia, medicina ou direito, que so os cursos mais procurados. No teto da varanda, sustentada por pilares de granito, mandamos colocar trs passagens bblicas em trs lnguas, todas sobre sabedoria: Salmo 111.10 em hebraico, 1 Corntios 1.24 em grego, e Tiago 3.17 em latim.

    O tempo todo o senhor se refere Queda. Isso no seria superestimar o evento?

    Tudo o que eu pregar ou escrever sobre a Queda ser pouco. Dou graas a Deus porque a Reforma redescobriu o significado pleno da desobedincia de nossos primeiros pais. Do conceito

  • LUXO, EXTRAVAGNCIA E CONSUMISMO 57

    incompleto da Queda, expresso na teologia de Toms de Aquino, conhecido como Doctor Angelicus, que viveu trs sculos atrs, partimos para o conceito de queda total e absoluta. O ser humano em sua totalidade obra de Deus. Depois do acontecimento que o captulo trs de Gnesis narra, ele tornou-se um ser cado em toda a sua natureza, inclusive o intelecto e a vontade. Foi uma runa sem medida que atingiu o homem, a sociedade, o mundo, a histria e a criao. Tudo foi desmantelado pela Queda, principalmente a relao da criatura humana com a criao. Paulo resume: Quando o pecado entrou no mundo por meio de um s homem, o pecado entrou na raa humana inteira, e o pecado dele trouxe consigo a morte a todos os homens (Rm 5.12).

    ^ O senhor porventura gasta a mesma quantidade de saliva para pregar sobre a esperana apontada pelo precursor de Jesus, de que o Senhor o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo?

    Convido-o a ouvir as minhas pregaes na Catedral de Saint Pierre, a assistir s minhas aulas de teologia na academia e a ler os meus livros. Dou igual nfase Queda e ao levantamento do ser humano. A desgraa da Queda ajuda a entender a glria da salvao. Nunca deixo os rapazes da academia nem o povo de Genebra sem a esperana que est diante de ns. A Jesus Cristo incumbe restaurar todas as coisas boa ordem, em estado como era antes da Queda. Isso significa que a presente confuso reinante ser desfeita pela vinda de Jesus. A Bblia chega a dizer que o leo viver sem causar dano e no mais se lanar presa, e que a serpente contentar-se- de seu p e nele se esconder, e no ferir com sua picada venenosa. Enfim, tudo quanto est em confuso e desordem ser restaurado sua ordem primitiva. Estamos aguardando o dia em que seremos semelhantes a Jesus, e no mais sujeitos humilhao e servido do pecado, por dentro e por fora. Caminhamos em direo ao fim do mal, ao fim do tempo, ao fim da histria, ao fim do mundo. Seremos

  • 58 SOU EU. CALV1NO

    plenamente restaurados e integralmente remidos. Esse o evangelho que Jesus mandou pregar agora no mundo inteiro, antes da consumao de tudo. No temos apenas duas boas novas para dar - a boa nova de que Jesus nasceu e a de que ele ressuscitou. H uma terceira boa nova, aquela que um dos 24 ancios disse a Joo: Pare de chorar! O Leo da tribo de Jud, a Raiz de Davi, venceu e mostrou que digno de abrir o livro e quebrar os sete selos (Ap 5.5). Depois dos sete selos, depois das sete trombetas e depois das sete taas, Jesus descer do cu em poder e muita glria, os mortos vo ressuscitar, os vivos sero transformados, os pecadores sero julgados por suas obras ms, o Diabo ser lanado fora, os cus e a terra que hoje existem sero destrudos e substitudos por novos cus e nova terra, nesta ou em outra ordem.

    ^ Pena que o senhor no tenha escrito um comentrio do Apocalipse...

    De fato. Apocalipse foi o nico livro do Novo Testamento sobre o qual no escrevi comentrio algum. Quanto aos livros do Antigo Testamento, faltaram nove.

    A nica coisa a fazer agora esperar a plenitude da salvao?

    Esperar s no! Isso nos levaria indolncia, impacincia, irritao. Precisamos adquirir a conscincia no s da grande comisso, mas tambm de que a igreja uma antecipao do reino de Cristo em sua vinda. Somqs como uma sociedade provisria, mesmo imperfeita, governada pelas leis de Cristo. Temos um ministrio didtico (a igreja precisa pregar e ensinar), um ministrio poltico (a igreja precisa vigiar o Estado) e um ministrio social (a igreja precisa socorrer os necessitados). Vem a calhar a citao de Paulo que aparece na Carta aos Efsios: Voc que est dormindo, acorde! (Ef 5.14).

  • 7O DOUTOR QUE NO TINHA MAIS F DO QUE UM PORCO

    0 Mafigno tem triunfado so6re ns deforma a nos origar a aai^gr a ca6ea

    Tenho ouvido aqui e ali alguns rumores a seu respeito. Naturalmente alguma coisa juzo temerrio ou intriga. Outros, quem sabe, expressam mesmo alguma conduta seno repreensvel, pelo menos estranha. Por exemplo, o senhor a favor da tortura?

    Sou obrigado a admitir que pelo menos uma vez eu me manifestei favoravelmente tortura de algum. Foi em 1555, por ocasio da queda dos libertinos. Referindo-me priso do chefe deles, numa carta a Farei, escrevi: Veremos o que a tortura pode arrancar deles.

    Disseram-me que o senhor s vezes usa expresses muito duras com seus oponentes.

    No nego. Certa vez eu disse que fulano de tal no tinha mais f do que um cachorro ou do que um porco. O pior que eu

  • 60 SOU EU, CALV1NO

    estava me referindo a Pierre Caroli, um doutor da Sorbonne que havia se tornado protestante e fora residir em Genebra. Perdi a pacincia com ele por causa de algumas de suas idias no muito ortodoxas. j

    A Parece-me que o senhor fica no alto da escada para repreender algum l embaixo, no primeiro degrau. Por exemplo, o senhor teria escrito duquesa de Ferrara uma carta muito clara, dizendo que ela havia se desviado do reto caminho a fim de agir de acordo com o mundo.

    No verdade. Voc leu apenas o primeiro pargrafo da minha carta. Nos outros, passei a usar o pronome na primeira pessoa do plural: De fato o Maligno tem triunfado sobre ns de forma que temos sido forados a gemer com isso, a abaixar nossa cabea e a no fazer mais perguntas .

    A propsito, verdade que o senhor teria dito ter uma besta selvagem feroz em su interior que ainda no havia conseguido dominar?

    Sim. Eu estava fazendo a mesma confisso de Paulo: No fao o bem que quero, mas justamente o mal que no quero fazer o que fao (Rm 7.19). Eu estava me referindo carga pecaminosa que todos carregamos dentro de ns. Eu estava lamentando essa propenso pecaminosa permanente, a qual s pode ser vencida por Jesus Cristo.

    Uma dessas propenses pecaminosas seria na rea sexual?

    Por que no? Se Paulo adverte a Timteo a ser um exemplo na pureza e a tratar as mulheres jovens da igreja como irms, com toda pureza (lTm 4.12; 5.2), por que eu estaria livre de alguma tentao nesta rea? Lutero dizia que a castidade no to fcil quanto calar e descalar os sapatos.

  • 0 DOUTOR QUE NO TINHA MAIS F DO QUE UM PORCO 61

    boca pequena, algum me passou a informao de que o senhor vtima de tendncias homossexuais.

    O responsvel por essa maledicncia irresponsvel um homem chamado Jrme-Herms Bolsec, ex-monge carmelita que virou protestante e depois voltou para o seio da Igreja Catlica. Alm de telogo e polemista, Bolsec formou-se em medicina e exerceu por algum tempo a profisso numa cidade perto de Genebra. Ele tambm diz que tenho o hbito de flertar com qualquer mulher que se aproxima de mim. Quanto prtica homossexual, a minha convico que ela uma escolha pervertida e execrvel, como voc pode ver em meu Comentrio aos Romanos, logo no captulo um. Quanto outra acusao, ela tambm no procede.

    Chamam-no s vezes de o grande ditador de Genebra. Isso expressa a verdade?

    apenas um mito, uma completa inveno que representa uma grave distoro dos fatos. Durante quase toda minha vida, aqui em Genebra, eu fazia parte da classe C, formada pelos estrangeiros residentes na cidade, e no da classe A, formada pelos nativos. Estes eram chamados de citoyens (cidados) e aqueles de habitants (habitantes). O corpo diretivo do Petit Conseil (Pequeno Conselho), responsvel por todos os aspectos da vida de Genebra, inteiramente composto de citoyens. Os habitants no tm nenhum direito de voto, no podem portar armas nem assumir posto pblico. Eventualmente, podem tornar-se pastores ou dar aulas, mas somente em razo da ausncia praticamente absoluta de outras pessoas nascidas em Genebra e qualificadas. Somente em 1559, com a idade de 50 anos, que eu fui promovido a cidado de Genebra. Se nem citoyen eu era, como seria o grande ditador de Genebra? Pode ser que, por meio das minhas pregaes na Catedral de

  • 62 SOU EU. CALV1N0

    Saint Pierre, ao redor da qual a cidade est construda, das minhas aulas na academia, dos meus atendimentos pastorais, dos meus livros e do meu testemunho, eu tenha exercido alguma influncia sobre a populao e nos destinos de Genebra. Mas sem o menor contedo poltico.

    A Por falar em testemunho, o seu testemunho sempre bom?

    No tanto quanto o meu dever e o meu desejo. Algumas vezes perco as estribeiras e deixo a carne aparecer. Nem sempre domino a minha irritabilidade e controlo o meu pavio curto. Tenho sido obrigado a confessar tristemente a Deus as vezes em que no sou capaz de me manter nos limites, deixando que minha blis assuma o controle da minha mente, derramando amargura por todos os lados. O tratamento que dispensei, por exemplo, a Andreas Osiander foi agressivo e arrogante. E na disputa com Miguel Serveto cheguei a gritar com ele.

    A verdade que uma criana foi decapitada em Genebra por ter agredido os pais dela?

    Ao que eu saiba, isso nunca aconteceu em Genebra.

    A Mas o enforcamento do mdico herege Miguel Serveto aconteceu...

    Aconteceu, sim, e eu no posso negar a minha participao. Fui eu que pedi a priso dele, fui eu que fiz acusaes contra ele, fui eu que debati perante o Pequeno Conselho para provar que as heresias dele estavam ameaando a igreja de Cristo. Mas o julgamento, a condenao e a execuo de Serveto foram obra do Pequeno Conselho. O homem foi queimado numa estaca no dia 27 de outubro de 1553, com a idade de 42 anos. Certo ou errado, era isso que fazamos com os hereges em toda a Europa. Embora eu no tivesse pacincia com Serveto, fiz de tudo para que ele fosse morto de outra maneira que no pelas chamas, mas

  • no obtive sucesso. Por meio de muitas cartas, tentei demov-lo de seus erros, mas outra vez sem sucesso. Mandei as minhas Institwtas para ele e ele me enviou as suas Restitutas, publicada secretamente em Viena naquele ano. Enquanto em muitos outros lugares da Europa a condenao de hereges ou pseudo-hereges pena mxima algo rotineiro, Serveto foi o nico indivduo executado em Genebra desde que eu vim para c. (No perodo de trs anos, de maio de 1547 a maro de 1550,39 pessoas foram para a fogueira na Frana pelo mesmo motivo.) No comparec execuo de Serveto, mas soube que foi uma cena horrvel: os executores eram inexperientes e os espectadores, horrorizados com os prolongados gritos da vtima em agonia, tentavam, por piedade, atiar o fogo para queimar mais rapidamente, jogando feixes de lenha sobre ele a fim de apressar o processo da morte. Com esse mesmo intuito, resolveram enforc-lo ali mesmo na estaca. Meia hora depois Serveto era um homem morto.

    Por falar em heresia, o j citado Jrme Bolsec tem espalhado a notcia de que o senhor quer abolir o domingo a fim de observar, em lugar dele, a sexta-feira.

    Isso mentira. Nunca demonstrei o menor sinal de desejar tais mudanas, alis, minha posio totalmente contrria a elas.

    ^ Na cidade francesa de Poitiers ouvi dizer que o senhor enriqueceu-se em Genebra, est cercado de pompa e faz todo mundo beijar seus ps...

    Venha at minha casa aqui na rua do Canho e veja como eu vivo. Pergunte ao cardeal Sadoleto qual foi a impresso dele do meu estilo de vida quando ele veio me visitar pouco tempo atrs. Ele estranhou que eu mesmo houvesse aberto a porta da casa para ele entrar, e no um criado. Alis, ele achava que eu tinha um monte de pessoas para me servir. Sou verdadeiramente rico no sentido de estar abundantemente satisfeito com meus

    0 DOUTOR QUE NO TINHA MAIS F DO QUE UM PORCO

  • 64 SOU EU, CALVINO

    escassos recursos. Eu me realizo com riquezas do tipo que o dinheiro no pode comprar.

    Deixe-me tocar agora num ponto delicado: o senhor hipocondraco?

    De fato um ponto delicado, mas vamos a ele. Tenho pensado no assunto. A impresso que tenho que sou realmente uma pessoa doente e uma das minhas doenas seria a tal hipocondria a que o amigo se refere. Valendo-me dos diagnsticos mdicos e da minha prpria observao, tenho sofrido dos seguintes problemas de sade que cito em ordem alfabtica, e no em ordem de acometimento: artrite, asma, calafrios, clculos renais, dificuldades respiratrias, enxaqueca, ascardeos intestinais, febre, gota, hemorragias, indigesto, lassido renal, nefrite, pleurisia, tosse e lcera. Disseram-me tambm que eu tenho um tipo de tuberculose. J me consultei com eminentes md