Sou muito CARENTE - · PDF fileamor por um filho. Sempre disse que não lhe interessava...

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Sou muito CARENTE Foi a protagonista de Sangue do meu Sangue, de João Canijo, o filme português mais visto de 2011, mas agora teme que as decisões políticas condenem o cinema português. Com as lágrimas eo riso como companheiros, Rita Blanco fala do que é ser actriz, do suicídio do pai, e da filha, que a ensinou a amar Entrevista de RAQUEL CARRILHO Fotografias actuais de JOÃO FRANCISCO VILHENA APESAR DE APENAS ter estreado em Outubro, Sangue do Meu San- gue, de João Canijo foi o filme português mais visto de 2011, com 20.953 espectado- res. Esperava este sucesso? Não esperava nada, nem sucesso nem falta dele, porque quando faço um fil- me não espero nada. Faço o melhor que posso e sei e depois fico muito atra- palhada. Não tenho essa distância so- bre os objectos em que participo. E se fosse possível esperar alguma coisa, se- ria sempre negativa, porque tenho, re- lativamente a mim, uma enorme inse- gurança de pensar que não fiz o que queria e que as pessoas não vão gostar. A opinião dos outros é importante para si? Todas as críticas são importantes, mas uma à qual posso dar aten- ção: a minha. E nessa tenho chumba- do. Mas com gosto. Ou seja: coisas que gostei muito de fazer e este filme foi uma delas. Goste-se ou não, o João é seriissimo a trabalhar, vai até ao cerne das questões e isso implica, de alguma forma, qualidade. Fico encan- tada por a obra dele ter este sucesso. Este filme partiu do seu desejo de falar sobre amor incondicional. Foi uma lição que aprendeu quando foi mãe? Eu e o João tínhamos um caminho de trabalho neste sentido, este foi o de- grau seguinte. Mas sim, quando tive a minha filha pensei que não ia resistir. Doía tanto que pensei 'se isto é ser mãe, é horrível!'. De cinco em cinco se- gundos ia ver se ela estava viva, tal era o desespero de a perder. Mas temos ar- mas escondidas que nos protegem de nós e um dia acordei e percebi que não podia continuar assim senão morria de sofrimento. E comecei a desfrutar de ser mãe. Antes pensava que amava imenso, mas amor incondicional é o amor por um filho. Sempre disse que não lhe interessava uma carreira internacional, mas fez agora Amour, de Michael Haneke, e em Abril vai filmar em França. Tenho um problema: gosto muito da língua portuguesa - e sim, sou contra o acordo ortográfico. Sou actriz pela pala- vra e consigo alguma plenitude na minha língua. Se calhar é medo. Além de que não quis ter uma filha para de- pois não estar presente. Obviamente que isto não invalida alguns trabalhos como o filme que vou fazer em Abril. É um filme francês, sou protagonista, mas faço de portuguesa. Agrada-me porque fala de uma realidade próxima, o ser português. O que a motiva para aceitar um pro- jecto? Gostar das pessoas. Mesmo que o projecto seja mau? Se for com pessoas de quem eu gosto, não será de certeza absoluta. consi- go gostar de pessoas que admiro. É uma das minhas intransigências. Se o Luís Miguel [Cintra] me convidar para fazer uma peça, não me pergunto se o texto é bom. Sei que é. Mas ainda que não fosse, vou ganhar em traba- lhar com ele. Hoje em dia interessa-me mais o projecto eo pensamento do que propriamente a actriz. Ser actriz não me preenche. Gosto da ideia de traba- lhar com crianças e pessoas mais velhas. Não queria ter uma escola de actores, mas algo que promovesse o acesso à li te- ratura. Acredito na liberdade para pen- sar e essa vem da cultura. A cultura viveu dias mais felizes.. Estão a acabar com tudo. Neste momento, em Portuga], as pes- soas mais penali- zadas são as que trabalham. E isso é profunda- mente injusto. Estamos na sen- da do erro em vez de pararmos para pensar. Um país sem educação? estávamos sem perninhas, agora Ficamos sem cabeça! O futuro é a barbárie. quem defenda que não se pode reivindicar fundos para o cinema, se portugueses sem comida no prato. Não tem nada a ver uma coisa com a outra. Isso é uma demagogia bacoca e de gente muito ignorante que basica- mente é o que os nossos políticos fize- ram de Portugal: um povo ignorante. O cinema português não é, à partida, subsidiado pelo Estado. percenta- gens da RTP, mas os subsídios do ICA vêm da publicidade dos outros canais. As pessoas não podem viver com ¦» «Hoje em dia interessa-me mais o projecto DO QUE A ACTRIZ. Ser actrizjánãome preenche»

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Sou muito CARENTEFoi a protagonista de Sangue do meu Sangue, de João Canijo, ofilme português mais visto de 2011, mas agora teme que asdecisões políticas condenem o cinema português. Com aslágrimas e o riso como companheiros, Rita Blanco fala do que éser actriz, do suicídio do pai, e da filha, que a ensinou a amarEntrevista de RAQUEL CARRILHO Fotografias actuais de JOÃO FRANCISCO VILHENA

APESAR

DE APENAS terestreado em Outubro,Sangue do Meu San-

gue, de João Canijo foi o

filme português mais

visto de 2011, com 20.953 espectado-res. Esperava este sucesso?

Não esperava nada, nem sucesso nemfalta dele, porque quando faço um fil-

me não espero nada. Faço o melhor

que posso e sei e depois fico muito atra-

palhada. Não tenho essa distância so-

bre os objectos em que participo. E se

fosse possível esperar alguma coisa, se-

ria sempre negativa, porque tenho, re-

lativamente a mim, uma enorme inse-

gurança de pensar que não fiz o quequeria e que as pessoas não vão gostar.

A opinião dos outros é importantepara si?

Todas as críticas são importantes,mas só há uma à qual posso dar aten-

ção: a minha. E nessa tenho chumba-do. Mas com gosto. Ou seja: há coisas

que gostei muito de fazer e este filmefoi uma delas. Goste-se ou não, o João

é seriissimo a trabalhar, vai até ao

cerne das questões e isso implica, de

alguma forma, qualidade. Fico encan-tada por a obra dele ter este sucesso.

Este filme partiu do seu desejo defalar sobre amor incondicional. Foi

uma lição que aprendeu quando foimãe?

Eu e o João já tínhamos um caminhode trabalho neste sentido, este foi o de-

grau seguinte. Mas sim, quando tive aminha filha pensei que não ia resistir.Doía tanto que pensei 'se isto é ser

mãe, é horrível!'. De cinco em cinco se-

gundos ia ver se ela estava viva, tal era

o desespero de a perder. Mas temos ar-

mas escondidas que nos protegem de

nós e um dia acordei e percebi que não

podia continuar assim senão morriade sofrimento. E comecei a desfrutarde ser mãe. Antes pensava que amava

imenso, mas amor incondicional é o

amor por um filho.

Sempre disse que não lhe interessava

uma carreira internacional, mas fez

agora Amour, de Michael Haneke, e emAbril vai filmar em França.

Tenho um problema: gosto muito da

língua portuguesa - e sim, sou contra o

acordo ortográfico. Sou actriz pela pala-

vra e só consigo alguma plenitude naminha língua. Se calhar é medo. Alémde que não quis ter uma filha para de-

pois não estar presente. Obviamente

que isto não invalida alguns trabalhos

como o filme que vou fazer em Abril. É

um filme francês, sou protagonista, mas

faço de portuguesa. Agrada-me porquefala de uma realidade próxima, o ser

português.O que a motiva para aceitar um pro-jecto?

Gostar das pessoas.Mesmo que o projecto seja mau?

Se for com pessoas de quem eu gosto,não será de certeza absoluta. Só consi-

go gostar de pessoas que admiro. É

uma das minhas intransigências. Se o

Luís Miguel [Cintra] me convidar

para fazer uma peça, não me perguntose o texto é bom. Sei que é. Mas ainda

que não fosse, vou ganhar só em traba-

lhar com ele. Hoje em dia interessa-me

mais o projecto e o pensamento do quepropriamente a actriz. Ser actriz já não

me preenche. Gosto da ideia de traba-

lhar com crianças e pessoas mais velhas.

Não queria ter uma escola de actores,

mas algo que promovesse o acesso à li te-

ratura. Acredito na liberdade para pen-sar e essa vem da cultura.

A cultura já viveu dias mais felizes..Estão a acabar

com tudo. Neste

momento, em

Portuga], as pes-

soas mais penali-zadas são as quetrabalham. Eisso é profunda-mente injusto.Estamos na sen-da do erro emvez de pararmospara pensar. Um

país sem educação? Jã estávamos sem

perninhas, agora Ficamos sem cabeça!O futuro é a barbárie.Há quem defenda que não se podereivindicar fundos para o cinema, sehá portugueses sem comida no prato.

Não tem nada a ver uma coisa com aoutra. Isso é uma demagogia bacoca e

de gente muito ignorante que basica-

mente é o que os nossos políticos fize-

ram de Portugal: um povo ignorante.O cinema português não é, à partida,subsidiado pelo Estado. Há percenta-

gens da RTP, mas os subsídios do ICAvêm da publicidade dos outros canais.

As pessoas não podem viver só com ¦»

«Hoje em diainteressa-memais o projectoDO QUE AACTRIZ. Seractrizjánãomepreenche»

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batatas e cebolas, E o Francisco José Viegasé o pior secretário de Estado que podíamos

ter neste momento, porque não fez frente. É

um yes man. Queixa-se, mas não procurasoluções. Se não pode fazer nada, como diz,então demite-se.

Acabou de fazer 49 anos. Que recorda-

ções mais fortes guarda da infância?

Acho que as infâncias com muitas recorda-

ções é porque foram marcadas por coisas ter-

ríveis. A minha não foi. Tenho pequenas me-

mórias como estar numa piscina no Vimeiro,de férias, e atirar-me de uma prancha muito

alta, quando nem sabia nadar e tinha sido

avisada que não podia su-

bir. E lembro-me vaga-mente de os meus pais se

terem separado

Que idade tinha?Seis anos. A minha mãe

estava grávida. Separa-ram-se antes de o meu ir-

mão nascer.

Ate essas memórias saocor-de-rosa?

Sim. A minha vida foi fá-

cil. No liceu é que tenho ideia que era muito

nervosa e ansiosa e tinha vergonha de tudo e

mais alguma coisa. Até tomei comprimidos

porque tinha dores horríveis e gases! Mas ao

mesmo tempo adorava ir para a escola. É

como o teatro! Adoro fazer teatro, mas antes

vomito e tenho diarreia. Devo ser maluca ou

masoquista.O que faziam os seus pais?

A minha mãe foi uma das fundadoras da es-

cola Fernão Mendes Pinto, do movimento de

escola moderna. Mas nunca foi professora lá,era professora do Liceu Francês, onde andei

toda a vida. O meu pai morreu há muitosanos e era director comercial ou de publici-dade, não sei bem. E escrevia, mas nunca pu-blicou. Tenho esses textos guardados. Nuncative coragem de os ver.

Porquê?Tenho medo que não sejam bons.

Mas não acha que, aos seus olhos, serão

sempre bons?

Não. Sou hipercritica. Quando a minha filhafaz coisas de que não gosto, sou incapaz de

dourar a pílula. Se calhar os textos são mara-

vilhosos, e eu não sei. Ele era um homem en-

graçado. Vestia-se de uma maneira que não

era tradicional - lembro-me uma vez que foi

ao Liceu Francês com um casaco de peles até

aos pés, óculos redondos e socas. Nem queriaacreditar e escondi-me na casa de banho. Dis-

se às minhas amigas para dizerem que eu não

estava lá. E eu adorava o

meu pai! Mas desapareciaimenso tempo, porque iatrabalhar para outros paí-

ses. Quem tomava conta

de nós era a minha mãe. E

o meu padrasto. Tive um

padrasto mágico, um ho-

mem extraordinário. Eujá era de ler, mas ele deu-

-me livros que nunca me

chegariam às mãos na-

quelas idades. Nunca quis substituir nin-

guém, nunca se impôs e esteve lá sempre.

[Chora] Estou tão maricas. . . Já não sou boni-

ta, a chorar pareço um rato morto.

Que livros foram esses?

Li tudo antes do tempo. Ia às prateleirasdo meu padrasto e tirava livros como As Li-

gações Perigosas. . . Quando o li nem queriaacreditar! Tinha 13 ou 14 anos! Desde peque-na que vivia com muitas culpas e, de repen-te, percebi que não era só eu que era perver-sa. Aqueles senhores eram piores! Fui-me

desculpabilizando. Chupei no dedo até aos

18 anos e o que eu queria era ficar em casa

a chupar no dedo e a ler. Era um vício. E tor-nou-se um refúgio. Era muito tímida.A timidez minou-lhe a adolescência?

Acha? Adorava rapazes!

«O Francisco^José Viegas É

UM YES MAN.Se não podefazer nada, comodiz, demite-se»

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Mas não era tímida?

Era, mas adorava na mesma! Não namo-

rava, mas aflorava a ideia. Apaixonava-meimenso. Uma vez tive uma paixão tão gran-de por um rapaz e ele não me achava graçanenhuma. Namorou ligeiramente comi-

go. . . Deu-me um beijo.

Nessa altura pensava ser escritora' 1

Nunca tal me passou pela cabeça. As pou-cas coisas que me passaram pela cabeç; , foi

ser actriz e professora de ginástica. Por umlado, fazia muito desporto, natação e ginás-tica desportiva. Por outro, tinha um baúcom roupas para me mascarar e passava o

dia no espelho, a vestir e despir, a fazer per-

sonagens.Ia muito ao teatro e ao cinema?

Sim. Tinha a sorte de ter uma família dis-

ponível. Fizeram parte do Coro Lopes-Gra-

ça, e estava habituada a ver espectáculosconstantemente. Ia com eles na camioneta,tudo a cantar. Mais tarde tive um cartão

para ir ao Quarteto porque o meu pai era

amigo do Pedro Bandeira Freire e vi mui-tos filmes fora de época, como aconte :eucom os livros. Era muito nova, mas fui àantestreia do Voando Sobre um Ninho deCucos com o meu pai.A política esteve sempre presente, So-bretudo através do seu padrasto?

Sim. O meu padrasto esteve uns aninhos

preso. . . Oito, salvo erro. Foi libertado í in-

da antes do 25 de Abril. Tive a sorte de es-

tar numa escola privilegiada, mas sabia o

que existia. Fui educada no sentido daconsciência política, mas nunca me im m-seram naria.

Sabia que havia censura?Claro! Sabia que havia coisas que não

podia ler, apesar de ter acesso a tudo. Sen-

do que eu, nessa altura, não me entregavaa leituras políticas. Nos concertos encon-trava o Zeca Afonso, o Zé Mário Branco,mas nunca assisti a confrontos. O Coro ¦»

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Lopes-Graça tinha direitos, não entravam

por ali adentro. Mas quando aparecia o

Américo Tomás na televisão eu e o meu ir-

mão dizíamos 'Olha o cabeça de vaca!'. Em

casa podíamos dizer isto. Lembro-me que,

depois do 25 de Abril, a minha consciência

política atormentou-me pela primeira vez.

Em que sentido?Morria de medo que aquilo voltasse. Pen-

sava: agora temos cartazes e autocolantes

do MDP/CDE na parede e está tudo à vonta-

de. Mas um dia eles voltam e vêem logo que

somos de esquerda! Era horrível.

E onde estava no 25 de

Abril?

Tinha ido dormir a casa da

minha avó, eu e o meu ir-mão. O telefone tocou ainda

de madrugada. Era a minha

mãe, a chorar de alegria, a

dizer 'Já está! Já está!'. Não

estava a perceber nada, mas

a minha mãe disse que não

íamos à escola porque ia ha-

ver uma revolução. Não fo-

mos à escola durante uns dias, apesar de o

liceu ser território francês. A minha mãe,

apesar de ter envolvimento político, nunca

nos deixou aproximar. Nem sabíamos que o

nosso padrasto era do Partido Comunista

Português.Com toda essa protecção, quando é quedecide que realmente quer ser actriz?

Não sabia como é que havia de ser actriz,

era tão estúpida, vivia de tal maneira numa

bolha! Pus a hipótese de ir para Filosofia ou

Motricidade. Até que o meu pai me disse: 'Se

queres ser actriz por que não vais para o

Conservatório?'. Nem sabia o que era! Os

meus avós, ultra-católicos e conservadores,

não acharam graça nenhuma! A minha avó

chorava sempre que me via!

No Conservatório encontrou um mundo

novo?

Não. A minha vida foi toda de guetos, no

bom sentido. Nunca vivi a vida real. O Li-

ceu Francês era uma zona especial, o Con-

servatório também não era normal, era o

mundo das pessoas 'fora'.

E onde não havia espaço para continuar a

ser tímida?Claro que havia! Mas gostava daquilo e

fui educada que nenhuma pessoa inteligen-

te recua perante o medo. Foi o que fiz sem-

pre. Não me passa pela cabeça desistir.

O seu pai não chegou a vê-la actriz?Tinha 20 e poucos quando ele se suicidou.

Ainda fiz o Conservatório com ele vivo, mas

não me chegou a ver já a trabalhar mesmo.

E ele era o meu grande admirador. Até me

irritava, mas ele achava que eu era muitotalentosa. Numa altura até achou que eu po-dia ir aos Jogos Olímpicos como nadadora.

O suicídio de um pai não se esquece?

O meu pai era anarquista. Era um homem

que sempre me falou no sentido da liberdade

e do espaço de pensamento. Tinha a ver com

os surrealistas e com uma determinada épo-

ca em que o suicídio era visto de maneira di-

ferente, era uma coisa literária. Quem sou

eu para julgar uma decisão de liberdade?

Isso é a análise que faz hoje, mas na altu-

ra imagino que não terá sido capaz de

pensar assim.

Por mais que racionalizasse, era fáha e

achei que, se calhar, ele não gostava assim

tanto de mim. Havia uma dor egoísta que me

fazia pensar: 'Porque é

que ele dizia que gostava

tanto de mim e deixou-

-me?'. Mas o cérebro ser-

ve para alguma coisa.

Estreia-se como actrizainda a estudar?

Sim. No Conservatório

íamos às produtoras

com as nossas fotogra-fias darmo-nos como fi-

gurantes. Numa delas,

estava lá um homem que me disse: 'Tu aí, fa-

las francês?'. Disse que sim, ele fez-me um tes-

te e eu fui escolhida para uma participação

num filme com o Giuliano Gemma e a As-

sumpta Serna, o Le Cercle des Passions. O

João Canijo era assistente de realização. Logo

depois fiz um filme com o Jorge Silva Melo, o

Ninguém Duas Vezes, em que o João também

era assistente, e contracenava com o Luís Mi-

guel Cintra, que nem sabia quem era! Três

dias depois, o Luís Miguel liga-me a perguntar

se quero fazer Mariana Espera Casamento.

Foi a primeira vez que trabalhei num teatro.

O Luís Miguel Cintra, juntamente com o João

Canijo e depois o João

Botelho, formam umtriunvirato que faz parteda sua vida?

E o Jorge Silva Melotambém. Estive semprerodeada pelos melhores.

E eu era uma miúda quenão sabia nada. Deram-

¦me acesso a livros, a

obras... Fiz uma viagem

numa 4L com o pintorAntónio Charrua, o João Canijo e o Jorge

Silva Melo para Paris, da qual não me es-

queço. Era a menina nas mãos dos mons-

tros - no bom sentido, claro.

Foram anos loucos em que o processo cria-

tivo estava acima de tudo. No final dos anos

80, para se preparar para um filme, chegou

a viver com uma porca?No Filha da Mãe, do João, tinha uma leitoa

que me seguia como um cão. E pode-se habi-

tuar um porco a fazer isso, mas para tal ela

veio para minha casa dois meses. Mas erauma chata. Na primeira noite dormiu ao

meu colo e a partir daí já não foi possível de

outra maneira, se não. . . Não dá para ter um

porco a guinchar num apartamento à noite.

Mas era muito limpinha, tomava banho to-

dos os dias.

A determinada altura, o facto de ter uma

relação pessoal com o João Canijo minou a

ligação entre o realizador e a actriz?

Não. Nessa altura estava mais disponível

para trabalhar com ele, discutíamos as his-

tórias, as razões por que trabalhávamos em

cinema. Acho que, não é que o João me te-

nha usado como cobaia de actriz, mas com-

preendeu alguma coisa comigo, no sentido

do que é que pode ser o ser actor.

Mas chegaram a um ponto de sufoco em

que lhe atirou uma cadeira à cabeça...Não quero falar muito sobre isso, as coi-

sas pessoais são pessoais. Cada um tinhade trabalhar com pessoas diferentes parase enriquecer. Depois pudemos voltar a tra-

balhar juntos.Como chegou à televisão?

Fiz pouca televisão, mas fiz desde muito

nova. Lembro-me de quase morrer de medo

quando fui dizer um poema em directo, era

muito novinha. Mas a grande entrada na te-

levisão foi pela mão do Herman [José]. Um

dia ele foi ver uma peça chamada Perver-

sões, do David Mamet, com o Miguel Gui-

lherme, o José Pedro Gomes, eu e a Alexan-

dra Rosa, e convidou-me para trabalhar.Tinha uma enorme admiração por ele.

O registo dele não ia contra a imagem de

'actriz séria' que vinha a construir?

Sim, mas eu não tenho partis pris nen-

huns!

E os outros tiveram?Talvez. Fiz muita televisão, coisas muito

más e lembro-me que, nessa

altura, fui muito pouco cha-

mada. Não trabalhava com

certas pessoas. Mas não foi

em relação ao Herman!Adorei trabalhar com ele e

fartei-me de aprender.Foi em relação à Caça aoTesouro e outros concur-sos que apresentou?

Pois... As pessoas, cora ra-

zão, diziam-me que me esta-

va a enterrar, mas estive a ganhar enduran-

ce, a vários níveis.

Mas a televisão também lhe trouxe ale-

grias, como a série da RTP Conta-meComo Foi.

Adorei! Foi um regresso ao passado, às ori-

gens. Aquela coisa de a minha personagem, a

Margarida, dizer 'Oh minha mãe', vem da mi-

nha mãe que tratava assim a minha avó. Usei

a maneira de falar da minha avó que tinha ex-

pressões da Beira, e também coisas da litera-

tura portuguesa.

Surpreendeu-a o carinho com que pas-

«Tinha umaleitoa que meSEGUIA COMOUM CÃO E

tomava banhotodos os dias»

«Achei que ele

não GOSTAVAASSIM TANTOde mim», dizsobre o suicídio

dopai

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«Na altura daNoiiedaMáLíngua ATÉ MEATIRARAMuma pedra da

calçada»

sou a ser vista pelosportugueses? Porqueantes não era vista as-sim...

Nao, não era. A serie ti-

nha um lado muito emo-

cional, também da mi-nha parte. Aconteceu-me

ir na rua, virem-me dizer

alguma coisa e ter de mecontrolar e depois chorarde comoção, de gratidão. Tive a sorte! de ter

aquele papel.E também mudou a opinião que tinha datelevisão?

Continuo a achar que se faz televi ião de

muito má qualidade. O Conta-me foi um oá-

sis. Esporadicamente tenho feito comas vá-

lidas, como a série Maternidade, que estoua fazer agora. As telenovelas são unia má-

quina de transformar o cérebro em papa.Acho bem que se faça, dá trabalho ao 3 acto-

res, mas a mirn não me interessa. Se i izesse

uma telenovela, 200 cenas a dizer a riesmacoisa, todos os dias, das sete da manhã às

oito da noite, morria.Morreu um bocadinho quando foi abriga-da a fazer Tempo de Viver, na TVP.

O papel era pequeno e até me diverti por-

que gostava da equipa.Mas foi obrigada a fazer essa telenovela.

Foi um acordo com o tribunal. Ia entrarnuma série e pus algumas condições que fo-

ram alteradas. Tinha umafilha pequena e tinha dito

que não queria trabalharmais do que três dias porsemana. Dez dias antes de

começarmos, já ia ter de

gravar quase todos os dias.

Passei-me e vim-me embo-

ra. Foram não sei quantosanos de processo e acabou

por haver um acordo: fazer

a tal telenovela.

Ainda na televisão, é impossível esquecera passagem pela Noite da Má-Ungua, naS/C. Sente que revelou aí o seu lado mais

'palhaça'?Adoro dizer mal das coisas, mas na altura

era uma miúda. Foi o Rangel que me convi-dou e eu gostava muito dele, era muito es-

perto. Em certa altura aquilo foi muito di-vertido! Mas as pessoas não gostavam nadade mim! Até me atiraram uma pedra da cal-

çada que 'felizmente' acertou num amigo.É para isto que servem os amigos. [Risos]Nunca sai desse registo da actriz, da mu-lher que está sempre a brincar?

Não somos todos uma grandessíssimaconstrução? Adoro brincar, faz parte de

mim.Em contraponto à Rita brincalhona há umlado seu muito explosivo?

Muito. Nado muito, é o meu psiquiatra, se-

não já tinha morto a minha família. Às vezes,

cá em casa, dizem-me 'Rita, caiu uma colher,

não foi a bomba de Hiroshima'. Quando dou

por mim, já foi. Mas peço desculpa. Quase to-

dos os dias peço desculpa à minha filha. Se

lhe levanto a voz ou se fui fria. Sou uma cha-

ta do caraças com os horários, mas fui educa-

da assim. Sou um monstro. A minha filha jáme diz: 'Não precisas de me dizer todos os

dias a mesma coisa!'.

Costuma dizer que ela é mais inteligente.É. Tem uma inteligência afectiva, que é

uma coisa em que eu sou um bocadinhonéscia. Ela é muito boa nisso. Fico parva a

pensar que aquilo saiu de dentro de mim.Por vezes sente que ela é que é a adulta?Ela tem uma inteligência afectiva inacre-

ditável. Também tem um lado infantil, mas

consegue discernir, verbalizar, ser amável.Fico impressionada. Não é dependente. Vaiser afectivamente muito esperta.E a Rita não é?

Eu não sou. Não calhou.

Isso atormenta-a?Já me atormentou mais. Talvez tenha a

ver com insegurança. Sou muito insegura,afectivamente dependente e muito carente,Em tempos disse que viveu sempre apavo-rada com a ideia de não amar o suficiente.Com a sua filha encontrou a excepção?

Entre amar e saber amar vai um caminhotão grande... Amo-a profundamente. Mas não

sei amá-la bem. Disso tenho a certeza. [email protected]

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