“Sou pessoense e tenho time para torcer”: a nova … V2N4...CARVALHO, Phelipe Caldas Pontes....
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CARVALHO, Phelipe Caldas Pontes. “Sou pessoense e tenho time para torcer”: a nova geração de torcedores
do Botafogo-PB e o uso da cidade como valor simbólico a ser ressaltado. . Sociabilidades Urbanas – Revista de
Antropologia e Sociologia, v.2, n.4, p. 95-107, março de 2018. ISSN 2526-4702.
Artigo
http://www.cchla.ufpb.br/sociabilidadesurbanas/
“Sou pessoense e tenho time para torcer”: a nova geração de torcedores do
Botafogo-PB e o uso da cidade como valor simbólico a ser ressaltado
"I am pessoense and I have a team to support": the new generation of Botafogo-PB fans and the use of the city as a symbolic value to be emphasized
Phelipe Caldas Pontes Carvalho
Resumo: Nos últimos anos, diante de uma população que histórica e hegemonicamente torce por
clubes de futebol de fora de João Pessoa, grupos de jovens da capital paraibana vêm promovendo
uma espécie de resistência (muitas vezes organizada, mas nem sempre), em que começam a
questionar essa prática e a invocar ideias como território e identidade para propagar uma pretensa
necessidade da população local de torcer pelo time da própria cidade, no caso específico o
Botafogo Futebol Clube1. O artigo, pois, pretende analisar como a nova geração de torcedores do
Belo tenta reforçar o orgulho de ser paraibano, de ser pessoense, e, por extensão quase obrigatória,
de ser botafoguense. Num movimento que começou mais fortemente em 2013, quando o clube
pessoense conquistou o título da Série D do Campeonato Brasileiro e consequentemente o acesso
para a Série C da mesma competição, dando início a uma sequência que já é superior a cinco anos
consecutivos de calendário cheio e de competições nacionais, que fortalecem um sentimento de
pertença ao que é próximo e de rivalidade com o outro. E, neste novo cenário, almeja-se mostrar a
partir de um debate antropológico porque os conceitos de cidade e de lugar ganham importância na
construção coletiva desse imaginário criado e cultivado em prol do clube da terra. Palavras-
chaves: futebol, botafogo-pb, antropologia urbana, identidade, cidade
Abstract: In recent years, in the face of a population that historically and hegemonically supports
soccer clubs from outside of João Pessoa, youth groups in the capital of Paraíba have been
promoting a kind of resistance (often organized, but not always), in which they begin to question
this practice and to invoke ideas as territory and identity to propagate an alleged need of the local
population to support the team of their own city, in the specific case Botafogo Futebol Clube. The
article intends to analyze how the new generation of fans of the “Belo” tries to reinforce the pride
of being paraibano, of being pessoense, and, by extension almost mandatory of being
botafoguense. In a move that began most strongly in 2013 when the pessoense club won the
Brazilian Championship fourth Division and consequently access to the third Division. The club
started a sequence that has seen more than five consecutive years of full calendar of national
competitions, which strengthened a sense of belonging to what is close and of rivalry regarding the
other. And in this new scenario, it is desired to show from an anthropological debate why the
concepts of city and place gain importance in the collective construction of this imagery created
and cultivated for the sake of the local club. Keywords: soccer, botafogo-pb, urban anthropology,
identity, city
Domingo, 14 de janeiro de 2018. João Pessoa, Paraíba. Estádio José Américo de
Almeida Filho, popularmente conhecido por Estádio Almeidão. O Botafogo-PB está em
campo em partida contra o CSP2, pela terceira rodada do Campeonato Paraibano. O mando de
1A partir de agora chamado apenas Botafogo-PB ou Botafogo da Paraíba, como forma de diferenciar-se do xará
famoso do Rio de Janeiro. 2Nome popular do Centro Sportivo Paraibano, clube que desde 2011 disputa a primeira divisão do Campeonato
Paraibano.
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campo é do time adversário, mas é a torcida botafoguense quem ocupa a maior parte da
Arquibancada Sombra3 da praça esportiva.
De repente, percebe-se um crescente murmurinho na arquibancada, que pouco a pouco
tira a atenção do campo de jogo e coloca em evidência uma parte qualquer perto do
alambrado. Mais abaixo, estão dois homens andando lado a lado. Um deles veste uma camisa
do Vasco da Gama. O amigo, ao lado, usa uma bandeira do Flamengo presa ao pescoço,
utilizando-a como se fosse uma longa capa rubro-negra.
Eles iniciam uma extensa caminhada. Iniciando quase no extremo direito daquele setor
de arquibancada e indo em direção ao extremo esquerdo. Não se sabe bem por que eles fazem
o que fazem. Se existe alguma intenção outra ou se apenas entraram no estádio com o jogo já
rolando e, após entrar pelo primeiro portão que encontraram, buscam um melhor lugar para se
acomodar.
Aparentemente, a segunda opção é mais factível. Porque eles andam normalmente. De
forma serena, cadenciada, sem se apressar ou se retardar demais. Apenas caminham, mas o
efeito que eles provocam é o mais forte possível.
Inicia-se uma onda de vaias e xingamentos crescentes contra a dupla. E, a primeira
vista, eles mesmos têm dificuldades de entender que são os alvos. Ainda assim, o movimento
vai crescendo. Tornando-se mais forte. Ganhando adeptos.
O xingamento mais representativo é o de “paraibaca”, que, na linguagem êmica do
torcedor local, é o “paraibano babaca que torce por times de fora do Estado”. Outros se
somam a esse. Não tão simbólicos. Mas bem mais violentos.
Até que, de repente, um torcedor mais afoito tenta uma abordagem diferente. Projeta-
se em direção aos dois amigos e tenta arrancar à força a bandeira flamenguista que faz vezes
de capa de super-herói. O movimento é deliberado. O objetivo, mais do que claro. Arrancar a
bandeira do pescoço do torcedor e jogá-la no fosso que separa a arquibancada do campo de
jogo.
O agressor tem sucesso na primeira parte de sua ação, mas quando se prepara para
jogar a bandeira no abismo a sua frente é contido pelo dono da peça. Que reage. Briga pela
posse do objeto. E provoca um início de tumulto um pouco maior, com empurrões, gritos e
dedos na cara. A cena, contudo, demora pouco. E o flamenguista, tendo rapidamente
reconquistado sua bandeira, sai de cena antes que outra pessoa inicie mais um embate. Ficou
claro para os dois, de repente, que vestidos como estavam o estádio pessoense virara um
ambiente hostil.
Como pesquisador, observei toda aquela cena. Tomei nota. Refleti. E na primeira
oportunidade que tive puxei conversa com um torcedor botafoguense sobre o que acontecera.
Queria entender o alcance daquela prática. Como tudo aquilo era visto pelos demais. Se
aquilo não poderia ser interpretado como uma espécie de patrulhamento ideológico. Mas, ele
não titubeou. Vestido com a camisa do Belo4, chamou de vergonhoso quem ia com “camisas
de time de fora” para o Almeidão e chegou a defender medidas mais enérgicas e radicais: um
boicote das TVs locais, que não deveriam exibir em suas reportagens ninguém com camisas
de clubes de fora da Paraíba; e até uma lei estadual a ser aprovada pela Assembleia
Legislativa da Paraíba e sancionada pelo governador que proibisse o acesso de torcedores
vestidos com esse tipo de camisa às praças esportivas paraibanas.
Para ele - e para tantos outros com quem já conversara -, casos do tipo viraram algo
muito maior. Mais simbólico. Que justificava, por exemplo, o engajamento dos meios de
comunicação de massa e da classe política paraibana.
Para esses botafoguenses, não se trata de uma simples disputa entre torcidas. Trata-se,
isso sim, de um ato simbólico. De resistência. De preservação de valores culturais e
3Setor intermediário do Almeidão: nem tão popular, nem tão caro.
4Apelido carinhoso dado pela torcida ao Botafogo da Paraíba.
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imateriais. É uma luta por sobrevivência e por autoafirmação. Em que ideias como o ser
pessoense estão em jogo. De forma tão forte como o ser paraibano ou o ser botafoguense.
É isso o que será analisado aqui. Como - e por que - essa nova geração de torcedores
botafoguenses se apega aos símbolos e ao imaginário locais, a um sentimento tal de
nacionalismo, de bairrismo, de pertencimento ao lugar a que pertence, a ponto de tais valores
terem sempre que ser revalorizados em detrimento do outro. Numa espécie de contraofensiva.
Nem sempre pacífica.
O ressurgimento do Botafogo-PB
Entre as temporadas de 2004 e 2012, apenas para pegar o caso mais recente de crise, o
Botafogo-PB viveu uma de suas piores fases. E um de seus maiores jejuns de títulos. O clube
passava por dificuldades financeiras, não conseguia montar bons elencos e era seguidamente
eliminado em fases precoces do Campeonato Paraibano.
Sem se sair bem nas disputas locais, não conseguia se classificar para as competições
nacionais mais importantes. O clube, assim, não tinha calendário ao longo de todo o ano. E
muitas vezes passava temporada após temporada mais de seis meses com o departamento de
futebol desativado.
Historicamente, a população de João Pessoa já possuía uma tradição de também torcer
por clubes de fora da Paraíba, com principal predileção a cariocas como o Flamengo e o
Vasco. E a crise local contribuía para essa espécie de êxodo futebolístico.
Em 2013, contudo, chegara o momento do Botafogo da Paraíba. Empresários locais da
capital paraibana se uniram em prol do clube, montaram uma equipe realmente forte, e o
clube conquistou pela primeira vez em dez anos o título estadual. Com vaga garantida na
Série D do Campeonato Brasileiro, não parou por aí. E numa campanha histórica para os
padrões paraibanos conseguiu primeiro o acesso para a Série C e depois o próprio título
brasileiro da Série D. A primeira conquista nacional de um clube paraibano.
Jogo do Belo na Série C do Brasileirão de 2017: a bandeira do Botafogo-PB é agitada ao lado da bandeira
da cidade de João Pessoa. Símbolos identitários que são ressaltados pela torcida em momentos de
autoafirmação. (Foto: Phelipe Caldas Pontes Carvalho)
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Por causa dos feitos conquistados naquele ano, e graças ao que conseguiu nos anos
seguintes, desde então o Belo tem calendário cheio e há seis anos disputa ininterruptamente
campeonatos interestaduais. Passou a conviver com a rivalidade com outras cidades, outros
estados, outros costumes.
O sentimento de ser botafoguense, pessoense, paraibano, não tardaria a ser reavivado.
De forma ainda mais forte. Como há tempos não se via em João Pessoa. Foi inevitável. O
interesse aumentou. A média de público nos estádios cresceu. E, diferente de outrora, mesmo
diante de times de fora, com maioria botafoguense nas arquibancadas.
A Federação Paraibana de Futebol, é bem verdade, não possui documentos confiáveis
sobre o período entre 2004 e 2012 que comprovem oficialmente esse aumento na média de
público do clube pessoense a partir de 2013. Mas é possível atestar a informação a partir dos
mais antigos e assíduos, que já frequentavam os jogos do Belo antes da boa fase atual. Foi o
que fiz. E ao menos um vendedor ambulante, um dos meus interlocutores ao longo da
pesquisa, e que há pelo menos oito anos comercializa bebidas no entorno do estádio em dias
de jogos do clube pessoense, confirma a informação. “Antes isso aqui era um calmaria. Quase
sem torcida. Melhorou muito nos últimos tempos”, ele informa.
Aumentou, de fato, o interesse pelo Belo. E agora, eles, os torcedores, lotam com mais
frequência o estádio. Carregando bandeiras do clube, mas também de João Pessoa e da
Paraíba. Com cânticos que ressaltam a origem deles. E o orgulho de serem de onde são.
É um novo perfil de torcedor, uma nova relação com o futebol. Vivida sempre
coletivamente, num fenômeno crescente, que ninguém sabe ainda até onde vai, mas que
certamente vale ser observado mais a fundo.
A força do lugar antropológico para o futebol
Para entender o que se passa em João Pessoa nesses últimos anos, pode-se
inicialmente dialogar com Michel Agier, que vai pensar a cidade a partir dos lugares, das
situações e dos movimentos. E que, além disso, vai nos convidar a pensar a cidade a partir do
ponto de vista dos citadinos. Dos seus moradores. Daqueles que vivem a cidade. “A partir de
uma dupla relação: a dos citadinos entre si e a deles com a cidade como contexto social e
espacial” (2011, p. 91).
Ele defende, pois, uma ênfase nas situações (sejam elas ordinárias, extraordinárias, de
passagem e rituais) em detrimento das estruturas. Porque são as situações que vão dar um
significado, um sentido simbólico à cidade, que vão definir os laços dela com seus moradores.
Que vão transformar um simples espaço urbano em “lugar”.
Agier, por sinal, explica que “os lugares próximos do citadino são aqueles com os
quais ele se identifica o mais espontaneamente possível” (Ibid., p. 103). Ainda que,
rapidamente, “os lugares nos quais os citadinos fundam sua primeira pertença estendem-se
desde logo cedo para além de seu universo doméstico, frágil no tempo e relativamente
incompleto do ponto de vista de suas funções socializadoras” (Ibid., p. 104). É quando o
citadino sai de casa e do seio familiar para ganhar a rua, desbravar a vizinhança, explorar os
lugares de jogos e de lazer. “Tomamos familiar toda uma série de lugares da cidade. A soma
desses lugares indica o oposto da estranheza, mas um tecido de relações estreitas, que nos
asseguram certas familiaridades da cidade” (Ibid., p. 108).
Em resumo, para Agier, o lugar “é um espaço de relações, de memória e de
identificação relativamente estabilizadas” (Ibid., p. 108). É, eu completaria, onde os
indivíduos deixam o isolamento para se encontrarem como comunidade.
Mais a frente, o autor vai discorrer sobre velhos conceitos de cultura no estudo
antropológico para, em seguida, defender uma abordagem diferente, que esqueça uma
definição de cultura em si e privilegie o momento da criação cultural. Para tanto
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a atenção deve dirigir-se às situações reais de interação entre os indivíduos e sobre
os significados que os atores criam nas relações cotidianas (situações normais), nos
acontecimentos (situações extraordinárias, ocasionais), em situações rituais e em
espaços/tempo intermediários (situações de passagem) (Ibid., p. 147, grifo do autor).
Com tudo isso, ele vai pontuar que “outro domínio do imaginário urbano é formado
pelas interpretações simbólicas da cidade frequentada, ou seja, pelas relações dos citadinos
com certas partes ou o conjunto do espaço urbano” (Ibid., 156). E que “a maior parte dos
movimentos identitários atuais é da cidade” (Ibid., p. 168).
São diferentes fragmentos de seu estudo que levam para o mesmo caminho: a cidade,
com suas ruas, vielas e pontos de encontro, é o lugar ideal e propício para a criação de uma
comunidade, para a invenção de identidades, para a construção de um imaginário coletivo que
vai fazer as pessoas se sentirem como sendo parte de algo maior.
E, aqui, vale inclusive trazer à tona o próprio conceito de “nação” defendido por
Benedict Anderson: “uma comunidade política imaginada – e imaginada como sendo
intrinsecamente limitada e, ao mesmo tempo, soberana” (2008, p. 32).
Sendo, a propósito, imaginada “porque mesmo os membros da mais minúscula das
nações jamais conhecerão, encontrarão, ou sequer ouvirão falar da maioria de seus
companheiros, embora todos tenham em mente a imagem viva da comunhão entre eles” (Id.,
Ibid., p. 32). E limitada “porque mesmo a maior delas [...] possui fronteiras finitas, ainda que
elásticas, para além das quais existem outras nações” (Id., Ibid., p. 33).
A cidade, a comunidade, a vizinhança, a ideia de nação compartilhada com quem está
próximo, enfim, tem papel fundamental na própria ideia de coletividade. E isso ganha uma
força ainda maior com as diferentes situações que envolvem o futebol, um esporte que por si
só tem uma incrível capacidade de mobilização.
Voltemos ao caso de João Pessoa e de sua população, agora já cientes dos conceitos
expostos acima. A relação do pessoense com times de fora da cidade foi construída ao longo
de décadas. E movida por múltiplos motivos. As transmissões de rádio e de TV que
tradicionalmente priorizaram jogos dos clubes do Rio de Janeiro (e de São Paulo a partir da
década de 1990) certamente ajudou a esse fenômeno. Uma população heterogênea, com
pessoas vindas de diferentes locais, também contribuiu. Mas certamente tudo isso foi
reforçado por um futebol local fraco e um clube da cidade em crise durante anos a fio.
A mudança se inicia, como já dito, justo nas disputas da Série D do Brasileirão de
2013, quando de repente o Belo passa a protagonizar importantes jogos, quase todos
decisivos. As partidas daquela Série D e principalmente a final da competição (realizada num
Almeidão com casa cheia) são o que se pode chamar de “situações extraordinárias”, ou
“situações ocasionais na medida em que alteram por um tempo o curso normal da vida
cotidiana” (AGIER, 2011, p. 94).
São eventos que, pelo seu caráter extraordinário, têm a capacidade de modificar a
ordem vigente. O estádio local fica cheio em detrimento dos bares, que antes ficavam lotados
com torcedores de times de fora; o papo nos grupos de amigos migram da Série A para a Série
D; o movimento nas ruas em dias de jogos também são alterados. De repente, a cidade respira
a campanha botafoguense. De repente, quase nada interessa mais a não ser a data do próximo
jogo do Botafogo-PB.
Todos esses episódios de fato aconteceram naquele ano. Mas, ao mesmo tempo, as
mudanças provocadas pelas situações extraordinárias são efêmeras. Momentâneas. Não se
sustentam no longo prazo se nada mais acontecer. Caso o Belo não tivesse conquistado o
acesso em 2013, por exemplo, a “onda botafoguense” que se vira naquele ano teria muito
provavelmente acabado junto com a sua campanha. E paulatinamente o curso normal da vida
pós-Série D teria voltado ao que era antes.
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O que se propõe aqui não é mera hipótese, mas uma certeza baseada em fatos
passados. Pois a mesma situação já tinha acontecido dez anos antes, em 2003, quando o clube
pessoense teve uma campanha muito boa na Série C5 daquele ano (conseguindo mobilizar
momentaneamente a população de João Pessoa em torno de si), mas acabou deixando o
acesso escapar na última rodada. A empolgação, assim, durou pouco.
Mas enfim, o que aconteceu de diferente num intervalo de dez anos? O que houve em
2013 que não houve em 2003? O acesso de divisão, pois. Não só isso. Mas o prolongamento
ano após ano do protagonismo botafoguense. Das disputas de um “nós”, representado pelo
Botafogo-PB; contra um “outro”, representado por clubes dos mais diferentes estados
brasileiros que passaram a medir forças com o time da casa. Intensificando, não apenas entre
os torcedores mais fiéis, mas também na própria população de João Pessoa, muito do
sentimento de nação proposta por Anderson, em que o jogo da alteridade é posto em prática.
Logo, o que aconteceu de diferente em 2013 foi a transformação daquilo que era
“situação extraordinária” em “situação ritual”. Que desde então se repete domingo após
domingo, jogo após jogo, campeonato após campeonato, ano após ano. Na mesma cidade, no
mesmo estádio (cada vez mais familiar, mais acolhedor, mais caro ao seu povo), reunindo a
mesma coletividade. Em busca dos mesmos objetivos.
E, como bem diz Agier, a situação ritual “é o local privilegiado de elaboração e de
aplicação de estratégias identitárias coletivas” (2011, p. 99). Da mesma forma, “é no espaço
ritual que o papel de invenção da identidade se manifesta” (Ibid., p. 156).
A partir de 2013, o público no estádio foi aumentando na medida em que ir ao Almeidão torcer pelo Belo
virou um ritual a ser vivido em grupo. (Foto: Phelipe Caldas Pontes Carvalho).
Em outras palavras, foi na Série D de 2013 que o Botafogo-PB voltou a chamar a
atenção da população de sua cidade. Mas foi nos anos seguintes, nas competições que
surgiram a partir de então, e nos cada vez mais recorrentes momentos de emoção e de tensão
5 Na época, a Série C era a última divisão do Campeonato Brasileiro, já que a Série D só foi disputada pela
primeira vez em 2009.
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cotidianos proporcionados pelo futebol do time local, que a fidelidade foi sendo pouco a
pouco (re)conquistada.
Foi quando o Botafogo-PB deixou de ser o clube de alguns poucos torcedores mais
fiéis e passou a ser pensado como o clube-símbolo de João Pessoa e de seu povo. Quando o
Almeidão deixou de ser reles estádio pouco ocupado e foi ressignificado como reduto
principal do futebol pessoense e de sua gente. Quando áreas da cidade, antes apenas ruas ou
praças, passaram a simbolizar pontos de encontro para as concentrações pré-jogo e para as
comemorações pós-jogo. Foi, enfim, quando o mero espaço virou lugar. E “lugar
antropológico”, nas palavras de Marc Augé, em que acontece a “construção concreta e
simbólica do espaço” (1994, p. 51). Lugares esses, inclusive, que “se pretendem [...]
identitários, relacionais e históricos” (Ibid., p. 52).
Augé, por sinal, dialoga de forma muito próxima com Agier ao reforçar a importância
do ritual na construção do simbólico. E do sagrado também. Pense um pouco no Estádio
Almeidão de tantos jogos e tantas conquistas botafoguenses. Pois, para Augé, o estádio, como
“lugar antropológico”, ganha ares de sacro para todo torcedor do Botafogo-PB. Ele explica: “a
sacralidade dos locais onde se concentra a atividade ritual é uma sacralidade que se poderia
dizer alternativa. Assim, aliás, criam-se as condições de uma memória que se vincula a certos
lugares e contribui para reforçar seu caráter sagrado” (Ibid., pp. 57 e 58).
Mesmo sendo um estádio antigo e pouco confortável, o Almeidão, enquanto “lugar antropológico”, ganha
ares de sagrado para o torcedor botafoguense; espaço de festa, música, bebida e entrega coletiva antes
mesmo do início do jogo. (Foto: Phelipe Caldas Pontes Carvalho).
É sempre importante ressaltar que esse não é, claro, um processo homogêneo.
Harmonioso. Consensual ou equânime. As pessoas reagem de forma e intensidade diferentes a
esse novo fenômeno. Em graus igualmente diferentes. Em níveis de adesão distintos também.
De toda forma, existem sim evidências de que nesses últimos anos o sucesso do
Botafogo-PB foi capaz de mudar a relação do pessoense com o futebol. Em 9 de julho de
2017, por exemplo, em jogo contra o Sampaio Corrêa pela Série C do Brasileirão daquele
ano, conversei demoradamente com um grupo de torcedores, em frente ao Estádio Almeidão,
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que admitiram taxativamente que até algum tempo atrás torciam para os mais diversos clubes
do país, mas que abriram mão de suas respectivas paixões para abraçar incondicionalmente o
Belo.
No grupo, inclusive, chamou a atenção a presença de autodenominados ex-vascaínos e
ex-flamenguistas que se declaravam agora todos torcedores do time de João Pessoa. Dá para
imaginar? Torcedores que passaram a vida toda nutrindo rivalidades mútuas entre si e que
agora pulavam do mesmo lado da arquibancada. Unidos principalmente pela relação que
ambos os lados passaram a ter pelos símbolos da mesma cidade.
O que proponho ao me adentrar nessa reflexão é a ideia de que existe uma relação
quase que de cumplicidade total do citadino com sua cidade. E, a meu ver, isso interfere na
relação desse mesmo citadino com o futebol e principalmente com o clube de sua terra.
Principalmente quando esse clube se apresenta em evidência, de forma competitiva, forte. É
um querer bem à cidade que em algum momento refletirá num querer bem ao clube dessa
mesma cidade. Mesmo que, originalmente, ele, o citadino, tenha preferências outras.
São muitos os autores que dialogam com essa relação das pessoas com a cidade. Vou
me ater agora especificamente a Caiafa, para quem “a cidade é um permanente „lugar de
encontro‟” (2005, p. 4). Ela diz mais: “Habitar uma cidade é experimentar de alguma forma a
vizinhança de estranhos” (2002, p. 91). É se envolver com o novo. Com o diferente. Fazer
parte de algo maior.
Nessa mesma linha, Caiafa completa: “As cidades geram um poderoso espaço de
exterioridade que se opõe tanto ao interior dos espaços fechados quanto à interioridade do
sujeito” (Ibid., p. 92). Sujeito esse que ganha as ruas. E se fortalece, se expande, se liberta das
próprias amarras. Diversifica-se. Interage e se integra. Compõe uma coletividade. Porque “a
mobilidade é fundamental para que a população possa se distribuir e se misturar, ocupando
coletivamente o espaço da cidade” (Ibid., p., 93).
Ela não fala necessariamente sobre o papel do futebol nessa relação. Mas, é sabido,
esse é um tema que é inerente à maioria dos brasileiros. Até porque, como bem diz DaMatta,
o futebol promove entre seus muitos fãs “relações insubstituíveis de simpatia, „sangue‟ (ou
„raça‟) e amor” (1994, p. 16).
O conflito está posto
Não é pouca coisa o fenômeno descrito acima. Quando o pessoense, acostumado a
torcer por clubes cujas sedes estão para além das divisas de sua cidade, de repente se volta
para o que é essencialmente local. Com um ímpeto, uma paixão, um fervor que muda a sua
própria relação com o futebol.
De toda forma, esse não é um fenômeno universal, obviamente. Nem poderia ser.
Aliás, não existe nem mesmo evidências que comprovem que hoje a torcida do Botafogo-PB
em João Pessoa seja maior do que as torcidas locais de Flamengo ou Vasco. Muito
provavelmente nem seja.
Mas, o que acontece é que, antes de 2013, a força da torcida do Botafogo-PB frente à
popularidade dos clubes cariocas em João Pessoa não chegava nem mesmo a ser comparável.
E, diante de um abismo entre um e outro, as tensões eram apaziguadas.
A partir de 2013, contudo, à medida que a torcida do Botafogo-PB foi ganhando novos
adeptos, e à medida que sua força passou a minimamente se equiparar em termos locais com
esses mesmos clubes cariocas, as tensões, antes adormecidas, foram sendo reascendidas.
O conflito, enfim, estava posto. Um conflito, é bem verdade, numa perspectiva
positiva, como gosta de defender Georg Simmel, já que ele é em essência uma “sociação”. E
também porque “é próprio do conflito resolver a tensão entre contrastes” (2011, p., 569).
Ainda assim, é esse mesmo conflito que vai levar certa radicalização às arquibancadas.
Muito porque é uma de suas funções primordiais “resolver dualismos divergentes, [...]
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conseguir algum tipo de unidade, mesmo que seja através da aniquilação de uma das partes
em litígio” (Ibid., p, 568).
Flamenguistas e vascaínos, antes aceitos (ou ao menos tolerados) com suas respectivas
camisas nas arquibancadas do Estádio Almeidão, como espécies de coirmãos da torcida do
Belo, passam a ser desprezados. Os mistos6 são criticados. Todos xingados de paraibacas. Do
mesmo modo, as emissoras de TV e suas transmissões de “jogos nacionais” passam a ser
pretensamente boicotados. O discurso se inflama. Ganha a cidade em forma de protesto
político, bandeira de luta, símbolo de resistência.
Vestir a camisa do Botafogo-PB em público, ir aos jogos, defender sua cidade de
forasteiros ou de traidores, ocupar as vias em grupos cada vez maiores, entoar os cânticos do
Belo, ganham sentidos bem mais fortes do que teriam a primeira vista.
A mudança de comportamento e o conflito gerado por essa mudança, inclusive, não
chega a ser surpresa. Manuel Castells explica que “toda e qualquer identidade é construída”
(1999, p., 23). E que, dentre diferentes tipos de identidades, construídas socialmente em meio
a relações de poder, existe uma que é de resistência, “criada por atores que se encontram em
posições/condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica da dominação,
construindo, assim, trincheiras de resistência e sobrevivência” (Ibid., p., 24).
Resistir e sobreviver, pois, são ações essenciais no processo de autoafirmação da
identidade botafoguense. O que exige, por exemplo, a continuidade nos anos vindouros das
tais “situações rituais” tão necessárias para o fortalecimento deste grupo social ascendente.
Tanto que, quando o clube se livrou do rebaixamento na Série C do Brasileirão de
2017, na última rodada da fase de grupos da competição7, instantaneamente seus torcedores se
declararam como sendo muito mais do que apenas botafoguenses.
Ao longo do jogo decisivo, monitorei as redes sociais “ocupadas” pelos torcedores do
clube pessoense. E em seus desabafos aliviados, em suas comemorações extasiadas, em seus
choros convulsivos após o jogo decisivo, evidenciou-se a cada momento uma emoção por ser
nordestino, uma honra por ser paraibano, um orgulho por ser pessoense que transcendia o
meramente lúdico. Era um discurso que, ao menos aparentemente, ultrapassava o esportivo e
passava a ser, acima de tudo, político. Carregado de simbologias. De tomadas de posição.
O próprio título do presente artigo faz referência a um grito de guerra cada vez mais
comum nas arquibancadas do Almeidão. “Sou pessoense e tenho time para torcer” não é dito
aleatoriamente. Fora de contexto. À toa. É dito coletivamente, em cânticos dos mais
diferentes ritmos, na maioria dos jogos do clube. Entoados ora de forma animada, ora em tons
furiosos. Mas sempre como uma forma de ruptura, de demarcação de território, de
reafirmação de identidade.
Nesse cenário de acirramento, o pessoense que segue torcendo para clubes de fora de
sua cidade passa a ser visto por todos aqueles que frequentam semanalmente o estádio local
como um “estrangeiro”, conforme o conceito de Simmel. “Considerado e visto [...] como um
não pertencente, mesmo que este indivíduo seja um membro orgânico do grupo cuja vida
uniforme compreenda todos os condicionamentos particulares deste social” (2005, p., 271).
Ademais, as regras de conduta e de convivência no estádio ficam mais rígidas. É o
caso dos torcedores com camisas de clubes cariocas, citado detalhadamente na introdução
deste artigo, que de repente passam a ser violentamente hostilizados por causa exclusivamente
de suas vestimentas.
Pois, em momentos de tensão, de acirramento e de rivalidade mais aflorada, o grupo se
fecha em si. Até como forma de preservação e autodefesa. Define suas próprias marcas. Seus
6Termo êmico que indica o torcedor que torce ao mesmo tempo para um clube local e um clube de fora.
7Vitória fora de casa em cima do Sampaio Corrêa, por 3 a 2, em 9 de setembro de 2017. Vale lembrar que o Belo
só não foi rebaixado porque além da vitória em cima do Sampaio, acabou beneficiado com o tropeço do Moto
Club, que no mesmo dia e horário foi derrotado pelo Fortaleza por 1 a 0.
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próprios códigos de reconhecimento e de pertencimento. E vai cobrar que os presentes
cumpram essas regras veladas, esses símbolos identitários.
Não é uma ação conscientemente articulada. Ninguém precisou olhar para o lado,
assentir positivamente com a cabeça para o colega próximo, ou mesmo receber alguma
recomendação nesse sentido, para começar os xingamentos. Os gritos. A intimidação. Não
houve uma liderança, um pedido formal de quem quer que seja, uma ofensiva orquestrada,
que culminasse na tentativa de um botafoguense em arrancar a bandeira do pescoço do
flamenguista.
Nada disso. Os botafoguenses apenas sabem, ou passaram a saber nos últimos tempos,
que o Estádio Almeidão é um ambiente sagrado. Reduto do futebol paraibano. Casa de uma
torcida que, na visão deles, defende a própria identidade local. Almeidão como lugar - e não
espaço - a ser defendido e protegido de eventuais invasores.
Mais uma ver recorrendo a Simmel, o grupo tende a se fechar em momentos como
esse, almejando se proteger de forças externas. Ele enfatiza: “A autopreservação de
associações muito jovens requer o estabelecimento de limites estritos e uma unidade
centrípeta. Portanto, não podem permitir a liberdade individual e desenvolvimento interior e
exterior próprios” (1973, p. 18).
Torcida Jovem do Botafogo-PB, Copa do Nordeste de 2018: as regras de conduta são até mais fortes
dentro das torcidas organizadas, mas invariavelmente se estendem para além delas. (Foto: Phelipe Caldas
Pontes Carvalho).
É fato. O botafoguense não está livre para ir como queira ao estádio. A liberdade,
nesse contexto, é em certa medida uma falácia, uma vez que certas cores, certas camisas,
certos comportamentos são simplesmente vetados pela massa. Ainda que se vá ao estádio com
o objetivo declarado de se torcer pelo Botafogo da Paraíba, algumas condutas precisam ser
seguidas, sob pena de sofrer retaliações.
Não se pode, por exemplo, ir de vermelho a um jogo contra o alvirrubro Náutico,
como os que foram realizados em 2014 e 2018 pela Copa do Nordeste. Muito menos a uma
partida eventual contra o Campinense ou contra o Sport, ambos rubro-negros e cujas
rivalidades contra o Belo são ainda mais fortes. Nem se pode, como já foi amplamente
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colocado, ir com camisas de clubes cariocas. Ou de tantos outros estados que se possa
imaginar.
São muitos os outros exemplos que podem ser citados. É altamente recomendável que
não se declare abertamente, dentro do estádio, em meio a botafoguenses mais apaixonados,
outras preferências, outros clubes que dividam com o Belo um espaço no coração. Assim
como é preferível que não se mostre um interesse muito evidente em jogos de competições
completamente distintas daquela que o Botafogo-PB disputa no momento. Em ambos os casos
a reação pode ser desmedida. Porque ambos os casos podem demonstrar certo desinteresse ao
clube local, que é justo o que está sendo frequentemente combatido dentro das arquibancadas.
As regras de conduta são tácitas. De conhecimento interno do grupo. E são, também,
marcas de pertencimento. Cumpri-las regiamente é se integrar à coletividade. É ser aceito pela
torcida. É ser reconhecido como um igual. Não cumpri-las é sofrer as consequências. Ser
expulso do grupo. Taxado de indigno. Paraibaca. Misto. Tolo.
Tem-se aí, por sinal, muito da “lei do segredo” que, segundo Michel Maffesoli, todo
grupo social possui. E isso acontece, segundo o autor, como “mecanismo de proteção frente
ao exterior” e como “modo de fortalecer o grupo” (1998, p., 128). É uma espécie de acordo
não publicizado, mas sabido pelos integrantes do grupo, que “reforça e confirma a
solidariedade fundamental” (Ibid., p., 129) de dada comunidade.
São, também, códigos que definem quem de fato integra um ou outro grupo. Porque,
ainda segundo Maffesoli (1998), o sujeito não é uma individualidade em si mesmo. Mas, ao
contrário, só existe como coletividade, atendendo a um anseio que o autor considera natural
em prol do agrupamento e movido por um sentimento de pertencimento que vai colocá-lo em
diálogo com aqueles que possuem interesses comuns.
É um processo complexo, não restam dúvidas. Em eterna mudança e constantemente
sendo negociado pelas diversas forças que o mediam. Complexo, a propósito, como a própria
ideia de sociedade, com suas alianças e principalmente suas oposições. Pois a sociedade “é o
estar com um outro, para um outro, contra um outro que, através do veículo dos impulsos ou
dos propósitos, forma e desenvolve os conteúdos e os interesses materiais ou individuais”
(SIMMEL, 1983, p., 168).
Conclusão
Domingo, 21 de janeiro de 2018. João Pessoa, Paraíba. Estádio José Américo de
Almeida Filho, popularmente conhecido por Estádio Almeidão. Passou-se apenas uma
semana daquela partida contra o CSP, em que torcedores desavisados do Flamengo e do
Vasco quase eram fisicamente agredidos. Desta vez, o jogo é contra o Treze, de Campina
Grande, um dos principais rivais do Botafogo-PB. É o primeiro Clássico Tradição8 da
temporada e válido pela primeira fase do Campeonato Paraibano.
O jogo terminaria empatado em 1 a 1. Mas um momento específico da partida
mostraria bem o que significava a rivalidade entre dois grandes clubes; e mostraria
principalmente a emoção que o futebol possibilita aos assíduos frequentadores das “situações
rituais” proporcionadas pelo esporte. Estive presente ao confronto. Eis como registrei em meu
diário de campo esse momento a que me refiro9:
Os cerca de dois minutos que separam a marcação do pênalti e o erro do atacante do
Treze, que perde o pênalti do time visitante, é quase teatral. O primeiro ato é de
xingamento total contra o árbitro, chamado de ladrão previamente, sentenciado antes
mesmo de qualquer replay que possa condená-lo ou absolvê-lo. O segundo ato é de
um silêncio absoluto. Em alguns esportes tenta-se desestabilizar o rival. Mas, no
8 Nome pelo qual é como é conhecido o duelo entre Botafogo-PB e Treze, disputado pela primeira vez em 1939.
9 Apenas algumas poucas correções pontuais, para melhorar o entendimento do texto, foram feitos na
transcrição.
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futebol paraibano, isso dificilmente acontece na hora de um pênalti. Não por questão
de cortesia, diga-se. Mas o medo do gol iminente é tão aterrorizante e imobilizador,
que ninguém faz nada. Nem fala. Muito por isso, o som do apito autorizando enfim
o chute é perfeitamente audível. Único som do local, quase. E, neste momento, a
impressão que dá é que até as respirações são interrompidas. Momentaneamente
suspensas. Em ambos os lados. Não deve ser pouca a pressão. Milhares de pessoas
olhando para o mesmo camisa 9, todos sem coragem nem mesmo para respirar, mas
ao mesmo tempo tentando em vão cadenciar as batidas histéricas dos próprios
corações. Pensando bem, são milhares de corações incontidos, que ganham vidas
próprias, e que observam os poucos segundos de corrida do artilheiro até a bola. A
pancada que ele dá na pelota, inclusive, é o último som seco e solitário a ser ouvido
antes do estrondo inevitável que se seguirá, naquele que será o terceiro e ainda
imprevisível último ato de toda a cena. Eis que o imponderável surge. O jogador erra
o alvo. Chuta para fora. Mantém o empate no placar, já quase uma vitória para o
time da casa. Vê-se isso pela reação de sua torcida. Que extravasa. Explode. Todos
ao mesmo tempo. De forma completamente incontrolável. Meio segundo depois de
se convencer de que o imponderável de fato se fez presente. O time rival é o
primeiro alvo, incluindo aí todo tipo de xingamento ao torcedor galista10
que é
minoritário naquele momento. Em meio a isso, ouvem-se também abusos contra o
tal árbitro, aquele mesmo que já antes havia sido julgado e condenado como sendo
um ladrão. Mas tudo isso acontece numa espécie de transe muito mais intensa,
indescritível, caótica. Porque acontece simultaneamente em meio aos pulos, aos
abraços coletivos, aos gritos de “Belo” e ao choro emocionado dos mais extasiados.
A coletividade formada pelos torcedores do Botafogo-PB, em momentos como esse, e
que são cada vez mais comuns desde 2013, alcançam uma espécie de ápice, de torpor, de
arrebatamento, que revoluciona, acredito eu, a forma como a população local consome o
futebol.
Ao longo desta pesquisa, iniciada em 2017 e ainda em curso, eu já conversei com
diversas pessoas que nunca tinham ido ao estádio antes e que resolveram ir pela primeira vez
impulsionados pelo sucesso que o clube local vinha conquistando recentemente. Convidados -
ou convocados - muitas vezes por amigos que já tinham o hábito de frequentar o Estádio
Almeidão e que acabavam por conseguir convencer novos adeptos a participar dessa
experiência.
Em todos os casos, a resposta foi a mesma. Esses neotorcedores se disseram
contagiados pela energia da coletividade que lota o estádio, a ponto de se sentirem movidos e
motivados a ir outras vezes ao Almeidão. A ponto de já se declararem um pouco mais
fortemente botafoguenses do que eram antes.
Penso que é assim que novos torcedores surgem no dia a dia do Belo, num processo de
transformação que deve persistir enquanto o clube se mantiver em evidência ou, pensando a
longo prazo, até o dia em que toda uma nova geração de botafoguenses originais for formada
na cidade.
É a hipótese que levanto aqui. Baseado numa série de autores que comprovam a força
da coletividade na construção das identidades. Baseado numa observação participante que
empiricamente comprova como a cidade de João Pessoa se veste de Botafogo-PB em
momentos de ápice esportivo do clube em questão. E como normalmente essas adesões
deixam marcas para a posteridade.
De toda forma, ainda não se alcançou um possível estágio de estabilidade. E, é
justamente nesta fase de instabilidade, de assentamento, de mudanças e reclassificações ou
reconstruções, que o conflito se torna palpável.
O Botafogo-PB, como clube e como torcida, sempre foi minoritário em sua própria
cidade. Mas vive desde 2013 uma onda positiva (incluindo aí uma incrível temporada de
2016, quando o clube fez a melhor campanha de sua história numa edição de Copa do Brasil e
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O Galo é o mascote e o apelido do Treze. Galista, pois, é uma das formas possíveis de se referir ao trezeano.
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quase conquistou um novo acesso, desta vez para a Série B do Campeonato Brasileiro) que
faz com que se apresente como força emergente. Como foco de resistência. Como um dos
símbolos do orgulho de ser pessoense tão alardeado pelos citadinos locais.
Não tem como ser diferente. Um processo desses não se dá sem um certo nível de
acirramento, de conflito, de disputa. É o que de certa forma Fredrik Barth defende ao deslocar
“o foco da investigação da constituição interna e da história de cada grupo para as fronteiras
étnicas e sua manutenção” (2000, p. 27).
O que está em jogo, afinal, não é a composição isolada e descontextualizada de cada
grupo de indivíduos. O que está em jogo, muito pelo contrário, é justo o limiar que indica
aquilo o que o indivíduo de fato é como grupo identitário. Porque, sendo aquilo o que é, ele
passa automaticamente a não ser todo o resto.
No fim, é tudo muito simples. São as ações, os comportamentos, os gostos, os gestos,
os cânticos, as vestimentas, e tantas outras características, que vão definir se um pessoense é
ou não é botafoguense aos olhos desse mesmo agrupamento. Sendo, será bem vindo pela
massa. Não sendo, será alvo dessa mesma massa. Até que adira de corpo e alma ao
movimento ou desista de vez de frequentar o sacro Estádio Almeidão.
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