SOUSA FILHO, Alípio. Cultura, ideologia e representações (artigo)

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Cultura, ideologia e representações Alípio de Sousa Filho * Proporemos aqui entender que existe uma relação estrutural entre cultura, ideologia e representações. De início, convém esclarecer que o que concebemos por ideologia é algo, se não inteiramente, em grande medida diferente do conceito utilizado por legiões de autores em filosofia e ciências humanas. Assim como totalmente afastado do sentido dado ao termo por um certo senso comum social que já o tornou “conceito” da vida cotidiana: a ideologia como sinônimo de opinião, idéias, convicções. Em outro lugar 1 , já assinalamos a necessidade de uma nova acepção para o conceito de ideologia que seja capaz de afastar inteiramente seu sentido como simplesmente equivalendo a idéias, opinião ou convicções e que seja capaz também de superar limitações da reflexão marxista sobre tal fenômeno, tratando-se da tradição teórica que mais longamente se ocupou do assunto. Esta tradição sempre vinculou a ideologia à dominação de classe e à existência do Estado, vista como as idéias que legitimariam a existência desse poder separado da sociedade, dando-lhe uma aparência de neutralidade, ao serem capaz (como idéias) de ocultar que o Estado é o órgão da dominação da classe econômica e politicamente dominante. A ideologia serviria para mascarar a divisão da sociedade em classes e o domínio particular de uma dessas classes através do Estado. Como crê a maioria dos autores que adotam essa concepção, a ideologia seria o modo próprio do imaginário das sociedades burguesas modernas, que, na sua função específica, asseguraria a reprodução das relações de produção capitalistas e, sob sua égide, a dominação econômica e política da burguesia. Ela seria, ainda, o instrumento que asseguraria essa dominação e, de modo próprio, somente se poderia pensar sua existência para o caso das sociedades nascidas com o advento do capitalismo. Trata-se aí, entretanto, de se ter tomado uma forma particular da ideologia na história – a “ideologia burguesa” – como sendo sua forma única e geral, deixando-se de reconhecê-la enquanto fenômeno de cultura, independente de modo de produção. E ainda que, para outros, seja possível falar de ideologia para o caso de sociedades que não apresentam nem mesmo uma importante diferenciação * Sociólogo, professor do Departamento de Ciências Sociais da UFRN. Doutor em Sociologia pela Universidade de Paris V – Sorbonne – França. Coordenador do Grupo de Estudos do Imaginário, do Cotidiano e do Atual/UFRN. 1 Cf. Sousa Filho, Alípio. Medos, mitos e castigos. São Paulo, Cortez, 1995.

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Cultura, ideologia e representações

Alípio de Sousa Filho*

Proporemos aqui entender que existe uma relação estrutural entre cultura, ideologia e

representações. De início, convém esclarecer que o que concebemos por ideologia é algo, se

não inteiramente, em grande medida diferente do conceito utilizado por legiões de autores em

filosofia e ciências humanas. Assim como totalmente afastado do sentido dado ao termo por

um certo senso comum social que já o tornou “conceito” da vida cotidiana: a ideologia como

sinônimo de opinião, idéias, convicções.

Em outro lugar1, já assinalamos a necessidade de uma nova acepção para o conceito de

ideologia que seja capaz de afastar inteiramente seu sentido como simplesmente equivalendo

a idéias, opinião ou convicções e que seja capaz também de superar limitações da reflexão

marxista sobre tal fenômeno, tratando-se da tradição teórica que mais longamente se ocupou

do assunto. Esta tradição sempre vinculou a ideologia à dominação de classe e à existência do

Estado, vista como as idéias que legitimariam a existência desse poder separado da sociedade,

dando-lhe uma aparência de neutralidade, ao serem capaz (como idéias) de ocultar que o

Estado é o órgão da dominação da classe econômica e politicamente dominante. A ideologia

serviria para mascarar a divisão da sociedade em classes e o domínio particular de uma dessas

classes através do Estado. Como crê a maioria dos autores que adotam essa concepção, a

ideologia seria o modo próprio do imaginário das sociedades burguesas modernas, que, na sua

função específica, asseguraria a reprodução das relações de produção capitalistas e, sob sua

égide, a dominação econômica e política da burguesia. Ela seria, ainda, o instrumento que

asseguraria essa dominação e, de modo próprio, somente se poderia pensar sua existência para

o caso das sociedades nascidas com o advento do capitalismo. Trata-se aí, entretanto, de se ter

tomado uma forma particular da ideologia na história – a “ideologia burguesa” – como sendo

sua forma única e geral, deixando-se de reconhecê-la enquanto fenômeno de cultura,

independente de modo de produção. E ainda que, para outros, seja possível falar de ideologia

para o caso de sociedades que não apresentam nem mesmo uma importante diferenciação *Sociólogo, professor do Departamento de Ciências Sociais da UFRN. Doutor em Sociologia pela Universidade de Paris V – Sorbonne – França. Coordenador do Grupo de Estudos do Imaginário, do Cotidiano e do Atual/UFRN. 1 Cf. Sousa Filho, Alípio. Medos, mitos e castigos. São Paulo, Cortez, 1995.

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social de hierarquias – como são os casos das sociedades tribais, indígenas, primitivas –,

como continuam abordando o assunto a partir exclusivamente de uma perspectiva marxista, a

ideologia é pensada em termos de um conjunto de representações cuja função é assegurar as

condições simbólicas da reprodução das relações de produção dominantes nessas sociedades.

Com diferenças entre eles, essas são grosso modo as concepções sustentadas por autores

como Louis Althusser, Maurice Godelier, Emmanuel Terray, Claude Lefort e Marilena Chauí.

Uma outra concepção, de certa maneira próxima da anterior, define a ideologia como

um discurso de poder, mas este visto como um objeto de disputas em diversos campos, nos

quais os “atores” envolvidos nessas disputas transfigurariam relações de força em relações de

sentido. A ideologia seria o discurso que esses “atores” produziriam na situação de “disputa

de poder”, justificando para si próprios e para os outros o sentido de suas ações: algo como o

engendramento de uma espécie de “poder simbólico” (mas inteiramente esvaziado do sentido

crítico com o qual o definiu Pierre Bourdieu), convertendo-se num conceito neutro, sem a

análise do poder como constituído de relações assimétricas de sujeição, dominação (tão

detalhada e criticamente descritas por Michel Foucault). Tratar-se-ia de uma função da

relação de uma elocução com os interesses que expressa, num campo específico, para

constituir-se como um “pólo de poder”. Algo como uma arma com a qual atores sociais

conscientes lutariam na arena discursiva, tratando-se, pois, de apenas “obter adesão” a

significados (ou a significações) propostos. Grosso modo, essa é a concepção que aparece

(confusamente) num bom número de aplicadores das idéias de Terry Eagleton, John

Thompson, Antony Giddens e (curiosamente) também de Pierre Bourdieu – embora não se

trate de aplicadores que tenham se ocupado com a análise do fenômeno do ideológico como

tal, nem também, ao que parece, preocupados em considerar com exatidão o pensamento

desses autores.

Essas concepções anteriores não tornam possível ver que a ideologia constitui

fenômeno mais abrangente e que a dominação e o poder de que se tem que tratar são outros.

Não tornam possível ver que a ideologia responde a exigências mais profundas, determinantes

e estruturais que apenas a reprodução de relações econômicas e políticas. Anterior a toda

outra coisa, ela assegura, em qualquer sociedade, que a ordem social não desabe enquanto

também uma Ordem Simbólica. Resultado que a ideologia consegue obter ao assegurar –

através de representações – crenças que conferem à ordem – socialmente construída, arbitrária

e convencional – uma aparência de natural, inevitável, universal, sagrada. É, em primeiro

lugar, a perpetuação das crenças que convertem as normas, padrões, costumes, instituições de

uma ordem em coisas dadas, universais e imutáveis que torna possível que essa mesma ordem

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se conserve sem que seja posta em questão pelos que a ela estão submetidos. A ideologia,

portanto, atende a esse “anseio” de toda ordem social em se preservar, preservando as crenças

que asseguram a consagração simbólica de suas normas, padrões, instituições, costumes – não

sendo um atributo específico desta ou daquela expressão social, mas inerente a todo sistema

de sociedade, e só secundariamente (por extensão de seus efeitos) podemos pensar que

concorre para a reprodução das relações de produção. Contrariamente ao que foi proposto

pelo materialismo histórico, a reprodução das relações de produção não é o que a ideologia

visa realizar em primeiro lugar, este aspecto não é senão mais um dentre todos os demais da

reprodução social, e mesmo a idéia de que a ideologia “visa” alguma coisa não faz sentido:

ela não visa nada, pois não é pensamento racional, consciente, voluntário. Enquanto um

fenômeno de cultura – da ordem de um acontecer anônimo, involuntário, impessoal –, a

ideologia traduz o temor de toda ordem à sua desagregação e torna-se uma resposta metafísica

a esse temor. Sua gênese e função, portanto, são determinadas diretamente pelo ser de toda

ordem social em sua “aflição” de se preservar como ordem. Do ponto de vista de sua

determinação ontológica, a existência da ideologia e a existência de organização social são

inseparáveis.

Em qualquer sociedade em que se manifeste, a ideologia assegura a coesão social,

regulando os vínculos que unem os indivíduos às normas e aos papéis que lhe são atribuídos.

Em termos durkheimianos2, trata-se do “cimento social” de toda ordem, pois permite que os

membros de uma sociedade (qualquer sociedade) aceitem sem maiores resistências as tarefas,

os papéis e os lugares sociais que lhe são atribuídos, engendrando as condutas – o que Pierre

Bourdieu chamou de habitus – indispensáveis ao funcionamento da ordem e suas

engrenagens.

Em decorrência do fato de que toda cultura inscreve seus sujeitos em um conjunto de

convenções (normas, padrões, costumes, instituições), mas sem que estes saibam que estão

sendo inscritos – e que se trata sempre de convenções humanas, culturais e históricas – e sem

que eles possam fazer suas escolhas, e porque, na longa duração histórica e antropológica,

desaparecem todos os vestígios do caráter arbitrário e convencional da ordem social,

engendra-se o desconhecimento, por parte dos próprios sujeitos, da natureza da cultura e desse

2 É preciso dizer que uma teoria da forma geral da ideologia obriga-se a retomar Durkheim e suas teses sobre a sociedade e a reprodução social. Trata-se de autor banido dos estudos de ideologia por bom número de autores marxistas pelo erro de ser considerado “funcionalista” – o que não quer dizer qualquer coisa de importante do ponto de vista do conhecimento teórico: afinal, desde os seus fundadores, o materialismo histórico contém desenvolvimentos do “funcionalismo”, do “estruturalismo”, etc. comuns a qualquer esforço de compreensão da vida coletiva –, mas autor cujas obras, se vistas sem preconceitos teóricos, constituem tratados sobre a natureza social da ideologia e sua eficácia na reprodução social.

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caráter da ordem a que estão submetidos. A ideologia se sustenta justamente nesse

desconhecimento. Um desconhecimento que é fonte da produção de representações que

autonomizam como natural, única, inevitável, universal, sagrada, eterna e imutável a ordem

instituída. Esse desconhecimento e essa autonomização do instituído caracterizam a situação

de alienação e de sujeição vividas pelos sujeitos humanos na própria experiência da cultura,

independente de modo de produção e de realidades sociais específicas (existência de classes,

Estado, etc.).

Essa realidade do desconhecimento torna possível um discurso da cultura sobre si

mesma que faz com que não seja percebida como construção social, humana, particular e

histórica e, ao mesmo tempo, se faça perceber como natural, divina, universal e eterna. A

ideologia é propriamente esse discurso da cultura sobre os sujeitos, tornando-se o próprio

modo de operar da cultura – é sua língua – enquanto um sistema de convenções, mas cuja

natureza e estrutura profunda os sujeitos ignoram. Através dela, a cultura oferece de si uma

imagem invertida quanto à sua gênese, natureza e funcionamento. A ideologia afasta assim o

perigo da tomada de consciência pelos sujeitos do caráter convencional da cultura e sua

ordem. A tomada de consciência do arbitrário cultural é um interdito como outros e medida

sobre a qual todos os outros interditos se apóiam: tabu universal, considerado pela

antropologia como fundante da cultura, da vida de grupo, que é a proibição do incesto senão

um interdito calcado na convenção do parentesco ignorada como convenção por todos? Os

estudos etnológicos o demonstram, a proibição do incesto é a lei de um pacto e de um

silêncio: o que não se pode tocar – o interdito, o recalcado – é também o que não se pode

falar, dizer. (Entre todas as sociedades, o exemplo dos Na, na China, talvez seja o que mais

claramente exprima o sentido do não dizer que o interdito obriga3.) A proibição do incesto é

uma forma humana que se sustenta num não saber sobre a lógica das coisas que funda um

não fazer e um não dizer essenciais à reprodução dessa própria lógica – uma lógica oculta.

Embora não seja a Linguagem como tal, a ideologia se confunde com esta porque, não

sendo a linguagem, somente se torna possível na linguagem, e é ela própria também uma

linguagem. Não é, contudo, redutível a esta porque a ideologia é uma modalidade de relação

com a linguagem: aquela na qual o sujeito se constitui numa relação de alienação com ela,

que, embora dominante, não é, entretanto, a única modalidade possível. De fato, a linguagem 3 Cf. Cai Hua, Une société sans père ni mari: les Na de Chine. Paris, PUF, 1997. Trata-se uma etnia chinesa, habitante de cidades do vale do Yongning, no sudoeste da China, cuja forma da organização social é matrilinear e apoiada na instituição da visita sexual noturna que sustenta as formas do encontro sexual entre homens e mulheres e suas descendências. Entre os Na, não há casamento e assim nem as figuras do pai nem do marido. A mulher Na cria seus filhos com seus irmãos e irmãs e o que é considerado incesto é a evocação do sexual entre aqueles que habitam a mesma casa.

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é quase toda ela essa relação de alienação, mas podemos ter com a linguagem uma outra

relação em que ela não seja mais (mesmo temporariamente, por um efeito de suspensão,

separação) código, ordo (?), designação, repetidos na automação social e no

desconhecimento, mas uma possibilidade instituinte, criadora, modificadora, a partir do que,

como linguagem, pode fazer ser e tornar possível um mais que o código, a designação

deixaram de fora.

A ideologia, como uma linguagem, opera igualmente através de uma lógica simbólica

graças a qual o arbitrário cultural se torna invisível aos sujeitos. Tal como ocorre com os

signos lingüísticos – estes são de natureza arbitrário-convencional, mas essa realidade os

falantes das línguas ignoram, como já apontado por Saussure (o que já indica um efeito de

alienação e de sujeição nas operações da Linguagem como tal) –, na ideologia, a cultura

desaparece como convenções histórica e socialmente construídas pelos homens e aparece

como independente de toda ação humana, a-histórica, universal, intransformável. Assim, uma

vez que se trata de desconhecer as operações e os sentidos profundos que presidem a

construção do arbitrário cultural, os sujeitos humanos se vêem vinculados a um conjunto de

convenções que ignoram a origem e o destino, ocorrendo aí o efeito de alienação (observado

por Marx, embora pensado por este como um produto da divisão do trabalho) e de sujeição,

entendendo-se por isso um efeito de assujeitamento às convenções culturais e um efeito de

sujeito: isto é, a própria via pela qual o indivíduo humano é constituído como sujeito social.

Nesta altura de nossa reflexão, torna-se importante assinalar que a ideologia constitui,

portanto, a forma simbólica da dominação a que todos os sujeitos sociais estão submetidos no

espaço da cultura, sabendo que “a ordem simbólica funciona como uma imensa máquina

simbólica que tende a ratificar a dominação” (Bourdieu).

O que acabamos de descrever é correlato (e não apenas correlato, mas inteiramente

relacionado e dependente) à situação em que, ignorando uma clivagem determinante, o

indivíduo se reconhece em sua própria imagem, caucionada pela presença e pelo olhar do

outro (movimento situado, num primeiro momento, no que a psicanálise chamou “estádio do

espelho”), identificando-se num eu imaginário que desconhece o sujeito que o funda. O

indivíduo, que não sabe o que é, capturado por uma ilusão, acredita ser aquele eu a quem vê

existir na representação e no reconhecimento do Outro. Trata-se, porém, de um engano, pois o

discurso desse eu é um discurso consciente, que se toma por único, todavia atravessado pelo

discurso não controlável do sujeito do inconsciente.

Não podemos ignorar que, em grande medida, o conhecimento produzido pela

psicanálise interessa a uma teoria da forma geral da ideologia, como a que nos ocupamos em

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dar prosseguimento. A obra de Freud, seguido por Lacan, descreve essa realidade da

“estrutura do desconhecimento” – tal como falou dela Althusser4 –, fundante do sujeito, e por

ele ignorada enquanto uma estrutura profunda que o determina. A relação existente entre

ideologia e inconsciente torna-se evidente se aceitarmos que o sujeito do inconsciente é, em

grande parte, o sujeito da ideologia, e vice-versa, não sendo possível compreender um sem o

outro. A primeira indicação dessa relação foi dada pelo próprio Freud. Por sua vez, Althusser,

em curtas sugestões que deixou sem desenvolvimento, indica essa mesma relação, mas sem

que se possa saber ao certo como as desenvolveria, pois concebia a ideologia como uma

“opacidade” determinada pela divisão da sociedade em classes e pela existência do Estado, e

cujo fim precípuo seria assegurar a reprodução das relações de produção. Ora, não haveria,

então, nem ideologia nem inconsciente nas sociedades sem classes e sem Estado? De nossa

parte, interessa prosseguir com as indicações que sugerem a relação entre ideologia e

inconsciente, para desenvolvimento da hipótese de que a força da ideologia advém – mais do

que por outras razões – do fato dela se constituir também como parte do psiquismo

inconsciente. 5

No próprio Freud, encontramos uma indicação dessa relação que estamos propondo

aqui entre ideologia e inconsciente. Em sua famosa conferência intitulada “A dissecação da

personalidade psíquica”6, Freud, numa rápida alusão ao materialismo histórico, critica-o por

subestimar a ideologia como puro produto de condições econômicas (e, como se sabe, no

marxismo, desenvolveram-se teses segundo as quais a ideologia teria pouca importância na

reprodução social, sendo apenas um pálido reflexo invertido das relações de produção),

sugerindo que a herança cultural “opera através do supereu, desempenhando um poderoso

papel na vida do homem, independente de condições econômicas”. Freud pensará essa

herança em termos de “ideologias do supereu” e destaca sua força na instauração do

comportamento social duradouro. Não deixaremos de considerar aqui o uso do termo

ideologia(s) por Freud e o que ele pensou em sua aplicação, pois, não restaria dúvida que o

autor o que pretende é chamar atenção para o efeito da longa memória do precipitado cultural

sobre o indivíduo (primeiro na forma da autoridade parental) – que corresponde, no psiquismo

inconsciente, à instância do supereu (“o supereu de uma criança é, com efeito, construído 4 Cf. Louis Althusser, Freud e Lacan/Marx e Freud. Rio de Janeiro, Graal,1985 5Desdobramento dessa hipótese, atualmente, sob minha orientação no mestrado em Ciências Sociais da UFRN, a psicanalista Claudia Maria Formiga Barbosa desenvolve estudo sobre o que está chamando um “campo favorável”, no processo de constituição do sujeito, no qual se desenvolveria uma articulação entre ideologia e inconsciente que, em grande medida, torna possível compreender como a ideologia se torna eficaz ao nível do sujeito. 6 Freud, Sigmund. “A dissecação da personalidade psíquica”. Rio de Janeiro, Imago, 1976 (Obras Completas, v.XXII)

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segundo o modelo não de seus pais, mas do supereu de seus pais; os conteúdos que ele

encerra são os mesmos, e torna-se veículo da tradição e de todos os duradouros julgamentos

de valores que dessa forma se transmitem de geração em geração”) –, precipitado

inteiramente correspondente ao que aqui designamos por ideologia. Em obras como Mal-estar

na civilização ou O Eu e o isso, esse precipitado da cultura aparece como os Ideais: “as

restrições morais”, “o passado”, “a tradição”, “a religião”, “a educação”, “o comportamento

social”. Não sem razão, é no contexto da reflexão sobre o papel dos Ideais que Freud formula

o conceito de “supereu cultural”7. Que significaria esta instância – outros a pensaram como

“inconsciente cultural"8 – senão a ideologia?

Assim, podemos insistir em nossa hipótese segundo a qual a ideologia adquire força

porque, em cada sujeito, ela opera através do inconsciente, sendo o supereu uma de suas

portas de entrada (embora, como instância psíquica, o supereu não se restrinja a essa

atividade), e igualmente se exerça através da instância psíquica designada por Freud como

sendo o eu – “grande parte do eu e do supereu pode permanecer inconsciente e é normalmente

inconsciente” –, o eu que “não é senhor em sua própria casa” – “pobre criatura que tem que

servir a três senhores, por conseguinte, sofre a ameaça de três perigos, por parte do mundo

externo, da libido, do isso e da severidade do supereu” –, tornando-se também instância

psíquica pela qual a ideologia atua. Todavia, por agora, deixaremos suspenso o

desenvolvimento do assunto.

Se uma parte da explicação marxista deve ser conservada, deve ser aquela que

compreende o que Marx e Engels, em A Ideologia Alemã, assinalaram como sendo próprio da

ideologia: inverter a realidade. Com efeito, o que caracteriza essencialmente o ser da

ideologia é promover a inversão da realidade social, através de representações que afastam

inteiramente sua gênese histórica e seu caráter de produto humano, pondo em seu lugar uma

representação da realidade social que a torna uma verdadeira segunda natureza. Assim, o que

é próprio da ideologia é converter os objetos de natureza social em objetos de natureza

natural. O mundo humano-social como objeto social, cultural e historicamente construído é

transfigurado em objeto dado, natural, eterno, sagrado. A ideologia – como se fosse um

fenômeno de “magia social” (Mauss) – assegura a imposição e a “eternização do arbitrário”

(Bourdieu), mas apagando todos os vestígios dessa operação de imposição e eternização. A

própria Natureza é também representada na ideologia como sem história e como um produto 7 Cf. Sigmund Freud. Mal-estar na civilização. Rio de Janeiro, Imago, 1974 (Obras Completas, v. XXI) 8 Cf. Claude Lévi-Strauss. Antropologia Estrutural I e II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; Cf. igualmente Pierre Bourdieu. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertran Brasil,1999

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dado, eterno e sagrado. A chamada “hipótese criacionista” – Deus como criador da Natureza e

do homem – é um exemplo dessa representação.

A ideologia, como a religião em Durkheim, é um “delírio bem fundado” ou, como em

Marx, é uma “ilusão” que torna possível a dominação, pois, sendo um discurso social sobre o

próprio social faz este desaparecer como aquilo que ele é – construção humana, cultural e

histórica, particularizada como um conjunto de escolhas arbitrárias – para em seu lugar

instituir uma imagem que seja sua consagração simbólica como algo cuja existência não é

histórica nem produto da ação humana. É através de uma tal representação da realidade social

que se torna possível que a dominação – vista aqui como a realidade do assujeitamento na

cultura, um dado antropológico – não seja experimentada como tal, mas vivida pelos sujeitos

simplesmente como “cultura”: costumes, padrões, moral, direito, etc. (Aliás, este é um

problema que permanece em muitas análises em antropologia, quando os autores tratam de

cultura como um congelado neutro, sem considerar a dimensão de dominação sobre os

sujeitos que está no centro de todo processo de instituição e reprodução das culturas

humanas.) Desse modo, quando determinamos o papel da ideologia em tornar “invisível” a

dominação, isso deve ser entendido como efeito, em primeiro lugar, de representações

espontâneas, coletivas e impessoais, nas quais todos os sujeitos estão implicados, que tornam

invisível o próprio caráter social, humano e histórico da ordem social e, por conseguinte,

também invisível a realidade da sujeição às convenções dessa mesma ordem. Nada disso será

compreendido se for mantida a concepção segundo a qual essas representações são produtos

de uma intenção voluntária e consciente de classes ou grupos que dominam a sociedade, tal

como muitos ainda crêem. A dominação como algo invisível para os sujeitos que a ela estão

submetidos é fenômeno que se origina da autonomização das instituições em relação à

sociedade (tal como Cornelius Castoriadis abordou o assunto9) e da impossibilidade, na

situação da vida cotidiana, da tomada de consciência do arbitrário cultural – aqui, mais uma

vez, inspiramo-nos de Pierre Bourdieu10.

Podemos ainda acrescentar, a ideologia constitui o canal de ingresso do indivíduo na

cultura. Aquilo que a antropologia chama endoculturação somente pode ser compreendido

através do trabalho de inculcação do arbitrário cultural ignorado como tal. Toda

endoculturação é resultado de um processo de socialização que, em última instância, significa

a interiorização das convenções culturais, sociais, morais, através de diversos ritos e

instituições, tornando-se a via pela qual se tornar membro da sociedade é não apenas a

9 Cf. Cornelius Castoriadis. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. 10 Cf. Pierre Bourdieu. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Difel, 1987

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efetivação de uma destinação forçada a que o ser humano está obrigado (para se constituir

como humano), mas também a via de sua constituição na alienação e na sujeição, sem que o

sujeito disso se dê conta, como já assinalamos. Uma teoria adequada da socialização dos

indivíduos se obriga a pensar o trabalho de interiorização como o próprio trabalho pelo qual a

ideologia se torna a realidade do pensar e do agir dos sujeitos, mas sem que nem esse trabalho

nem a ideologia apareçam como existindo. De volta a Bourdieu, poderíamos aqui tratar de

habitus – as disposições duradouras de comportamento, uma obra de cultura como a héxis

entre os gregos antigos.

A ideologia funda o consensus omnium, ao mesmo tempo em que nele se apóia,

cumprindo as funções de uma “consciência coletiva” – tal como Durkheim pensou o assunto

para o caso das sociedades primitivas –, ao menos quanto a uma aproximação que se pode

fazer entre as funções do imaginário social nas sociedades tribais e nas sociedades complexas:

produção da coesão social, a partir da coerção simbólica (da Lei Social), cujo efeito maior é o

de converter a todos em sujeitos (dessa Lei) – os sujeitos sociais. Num e noutro casos, com

diferenças importantes que não iremos tratar aqui, a ideologia, como a “consciência coletiva”

da sociedade, funda o “conformismo lógico” e o “conformismo moral” que transformam os

sujeitos sociais em prisioneiros daquilo que, no entanto, eles são os criadores e os modelos – o

leitor reconhecerá, fazemos aqui aplicações modificadas de Durkheim11. Se nas sociedades

primitivas as “representações coletivas” são o que fundam e são os veículos da consciência

coletiva, nas sociedades complexas o mesmo podemos dizer das “representações sociais”.

(Uma diferença entre representações coletivas e representações sociais é proposta por Serge

Moscovici, e aqui a tomaremos como suficiente.)

Até aqui, referimo-nos a representações, à representação invertida da realidade, etc.

Mas nada dissemos de mais claro sobre a relação das representações com a ideologia. Como

já se disse muitas vezes, a força da representação advém do fato de que ela é capaz de incluir

como fazendo parte da realidade a representação que dela se faz. Isto é, a representação é

capaz de produzir imagens, conceitos, idéias, etc. de modo a fazer com que, no pensamento

dos sujeitos, torne-se possível passar da representação da realidade para a realidade da

representação como sendo a própria realidade. A ideologia se realiza justamente nessa

natureza da representação, passando de algo virtual a alguma coisa a mais, podendo circular e

exercer-se como idéias, conceitos, opiniões, visões, etc.

11 Émile Durkheim. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Paulinas, 1989

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Convém, então, definir as representações como a menor parte da ideologia. Elas

constituem o veículo através do qual a ideologia circula na sociedade e pelo qual se realiza

sua ancoragem no interior dos sujeitos. Como materialização da ideologia em sua menor

parte, as representações se tornam visões e práticas duradouras de sujeitos que estão

investidos de crenças que as adotam para conceber o mundo, a si próprios e os outros, embora

desconheçam a história dessas mesmas crenças e práticas. Através das representações, a

ideologia é capaz de significar para cada um o que se é e significar como se deve conduzir em

conseqüência. Naturalmente, o que dissemos antes sobre a linguagem vale também para as

representações. Embora as representações constituam mônadas sem as quais a ideologia não

tem vida, nem todas as representações são ideológicas. Nem todas estão parasitadas por ela.

Insistimos aqui na tese de que o que define o ideológico no essencial é ser o ocultamento da

dominação a que os sujeitos sociais estão submetidos, dado que estes desconhecem a natureza

convencional (arbitrária) da ordem social e das instituições que lhe dão sustentação.

A ancoragem da ideologia pelas representações sociais é a medida de sua eficácia

social. Alguns exemplos bastariam para ilustrar o que aqui estamos formulando. Talvez os

exemplos mais claros sejam aqueles que tratam da linguagem do parentesco nas diversas

sociedades e o exemplo da sexualidade. Como demonstram os estudos antropológicos, os

diversos povos utilizam termos para expressar os lugares dos indivíduos na rede do parentesco

de maneira que, espontaneamente, passam a crer que estes lugares respondem a necessidades

inscritas no biológico, sem mais nada. A ideologia é capaz de fazer desaparecer o caráter

social da consangüinidade e da filiação e em seu lugar fazer aparecer a Natureza e o sagrado.

Os termos do parentesco se transformam de convenções sociais em realidades biológicas e

império de desígnios divinos. Se é fato que o parentesco está constituído de dados biológicos

de base, é também certo que o que o parentesco institui é uma nomenclatura – verdadeira

língua – de caráter puramente convencional, informada por representações (mitos, etc.), não

apresentando nenhum traço que possa ser tomado como “fundamento natural” das lógicas dos

parentescos nos diversos povos. Em nosso auxílio, podemos citar aqui uma estudiosa do

assunto: “Concluamos, a consangüinidade é tão somente uma relação socialmente

reconhecida e não biológica”12. Ou como afirma em outro lugar: “a taxionomia do

parentesco é o idioma biológico de relações sociais.” Da mesma maneira, a sexualidade

humana, vista pelos diversos povos como produzida pela natureza– seria também determinada

pelo biológico –, é desconhecida como construção cultural e histórica. Homens e mulheres,

12 Cf. Françoise Héritier. Masculino/Feminino : o pensamento da diferença. Lisboa, Instituto Piaget, 1996

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em todas as sociedades, vivem a ilusão de que o são por uma definição natural, ignorando que

são produtos de construções sociais. Ignoram que a sexualidade segue de par com a instituição

do parentesco, pois é na “teia ideológica” do parentesco que se define o gênero e os ideais

sexuais. Brevemente, situaremos aqui a gênese dos diversos preconceitos em torno da

sexualidade. Ignorando que não se nasce homem nem mulher, mas que se vem a sê-lo,

homens e mulheres seguem modelos de gênero e vivem suas sexualidades sob o domínio de

convenções culturais e históricas, mas ignoradas como tais, passando a representar

preconceituosamente tudo o que foge às convenções estabelecidas. A ideologia conforma a

todos nas representações que os conformam na dominação dos padrões culturais aceitos.

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(Publicado em SOUSA FILHO, A. Cultura, ideologia e representações. In: Maria do Rosário de Carvalho; Maria da Conceição Passeggi; Moises Domingos Sobrinho. (Org.). Representações sociais: teoria e pesquisa. 1 ed. Mossoró: Fundação Guimarães Duque/Fundação Vingt-un Rosado, 2003, v. 1376, p. 71-82. ISBN 85-89888-01-0)