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XIV Jornada de Estudos Antigos e Medievais – Maringá-PR, 18 a 20/11/2015 1 “STADTLUFT MACHT FREI”: A “LIBERTAÇÃO” DAS OBRIGAÇÕES FEUDAIS José de Arimathéia Cordeiro Custódio Introdução “O ar da cidade liberta”, dizia o provérbio alemão que serve de título a este estudo. Mas liberta de quê? Para o camponês, integrante da sociedade feudal europeia, a cidade parecia representar a liberdade do jugo do senhorio, da vassalagem inata que, dizia-se, havia sido determinada por Deus. A condição campesina era taxada ao extremo: uma série de obrigações tributárias – entre outras - incidia particularmente sobre o povo, oprimido e abusado. Este cenário foi muito bem representado pela história de Robin Hood, conhecido por roubar dos ricos e devolver aos pobres o pouco que lhes era tirado pelos impostos e caprichos de João Sem Terra. Não é deste justiceiro emblemático, porém, que trata este estudo. Pois um outro personagem se apresentou, na Baixa Idade Média, como um oásis no deserto da tributação extorsiva, a oferecer um alívio e uma fuga à população rural: a cidade. Porém, ainda na analogia do oásis, cabe observar que o que parecia ser uma salvação acabou se mostrando, na realidade, uma miragem, pois no meio urbano incipiente também havia opressão aos pobres, e nem sempre os muros das cidades eram intransponíveis ao direito costumeiro, típico do feudalismo. A liberdade pessoal e fiscal na cidade mostrava sua outra face, depois que o campesino adentrava seus portões fortificados. O ditado alemão sintetizava uma ideia criada no imaginário popular de que a cidade representava um avanço social, um lugar novo, cheio de oportunidades de ganhar a vida com mais liberdade e facilidade, sem a presença de senhores retrógrados e sua justiça costumeira e caprichosa, atrelada ao direito dado pela propriedade e pelo título nobiliárquico. Pirenne (2009, p. 105) considera as diferenças gritantes: “Em nenhuma época se observa um contraste tão nítido quanto o que opõe a sua organização social e económica à organização social e económica dos campos. Nunca existiu uma classe de homens tão especificamente, tão estreitamente urbana, como o foi a burguesia medieval”.

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XIV Jornada de Estudos Antigos e Medievais – Maringá-PR, 18 a 20/11/2015 1

“STADTLUFT MACHT FREI”: A “LIBERTAÇÃO” DAS OBRIGAÇÕES FEUDAIS

José de Arimathéia Cordeiro Custódio

Introdução

“O ar da cidade liberta”, dizia o provérbio alemão que serve de título a este estudo.

Mas liberta de quê? Para o camponês, integrante da sociedade feudal europeia, a cidade

parecia representar a liberdade do jugo do senhorio, da vassalagem inata que, dizia-se, havia

sido determinada por Deus. A condição campesina era taxada ao extremo: uma série de

obrigações tributárias – entre outras - incidia particularmente sobre o povo, oprimido e

abusado. Este cenário foi muito bem representado pela história de Robin Hood, conhecido por

roubar dos ricos e devolver aos pobres o pouco que lhes era tirado pelos impostos e caprichos

de João Sem Terra.

Não é deste justiceiro emblemático, porém, que trata este estudo. Pois um outro

personagem se apresentou, na Baixa Idade Média, como um oásis no deserto da tributação

extorsiva, a oferecer um alívio e uma fuga à população rural: a cidade. Porém, ainda na

analogia do oásis, cabe observar que o que parecia ser uma salvação acabou se mostrando, na

realidade, uma miragem, pois no meio urbano incipiente também havia opressão aos pobres, e

nem sempre os muros das cidades eram intransponíveis ao direito costumeiro, típico do

feudalismo. A liberdade pessoal e fiscal na cidade mostrava sua outra face, depois que o

campesino adentrava seus portões fortificados.

O ditado alemão sintetizava uma ideia criada no imaginário popular de que a cidade

representava um avanço social, um lugar novo, cheio de oportunidades de ganhar a vida com

mais liberdade e facilidade, sem a presença de senhores retrógrados e sua justiça costumeira e

caprichosa, atrelada ao direito dado pela propriedade e pelo título nobiliárquico.

Pirenne (2009, p. 105) considera as diferenças gritantes: “Em nenhuma época se

observa um contraste tão nítido quanto o que opõe a sua organização social e económica à

organização social e económica dos campos. Nunca existiu uma classe de homens tão

especificamente, tão estreitamente urbana, como o foi a burguesia medieval”.

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Este estudo se debruça sobre as obrigações dos feudos, tributárias ou não, que

incidiam principalmente sobre a plebe. Foca também sobre a realidade urbana que surgia, com

o desenvolvimento comercial. O dito germânico não foi criado à toa, mas, como sempre, era

verdadeiro só sob determinadas circunstâncias. Em outras, serviu apenas como ferramenta de

sedução para conseguir mão de obra, necessária para sustentar o novo modelo de produção

que nascia e crescia.

Para fundamentar este panorama, foi realizada uma pesquisa em obras de

medievalistas consagrados como Pirenne (1982) Duby (1993), Baschet (2006), Bloch (2009),

Gilli (2011) e Grossi (2014), entre outros, que descreveram e analisaram a história econômica

da Idade Média, demonstrando o simultâneo e interdependente crescimento comercial e

urbano, que deu origem ao ditado alemão. De forma crítica, entretanto, os autores mostram

que as cidades, de fato, não representavam uma utopia ou – mais ao gosto dos medievais – um

paraíso terrestre.

Era um complexo momento de transição, e a sedução da cidade escondia armadilhas e

tanta opressão quanto do lado de fora de seus muros, nos campos. Porém, foi um momento

histórico de grande importância para a sociedade europeia, porque marcou o início de um

processo de exploração que não parou mais, assim como não parou o desenvolvimento urbano

desde então, deixando mais este legado desde os tempos medievos. Assim o diz Giordani

(1997, p. 152): “O aparecimento da burguesia em pleno mundo feudal constitui um

acontecimento de importância decisiva nos futuros rumos da história”.

Obrigações feudais

O Feudalismo, sistema baseado na posse da terra e relações de vassalagem, encontrou

seu auge na Baixa Idade Média, mais especificamente entre os séculos XI e XIII, quando

começou a declinar de forma irreversível. Naturalmente, foi um processo longo e gradual, em

ritmo diferente para cada região da Europa, avançando até Idade Moderna adentro, em alguns

casos.

No modo feudal, os senhores feudais, na qualidade de proprietários das terras e

seguindo um direito consuetudinário, possuíam autoridade plena para fixar e aplicar as leis e

regras que organizavam o convívio no limite de suas terras. Do uso (ou não) de moeda aos

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casamentos; da caça às festividades, valia a justiça do senhorio. Assim, os suseranos

aproveitavam desta condição privilegiada para impor seus interesses sobre a população servil.

Baschet (2006) faz uma detalhada exposição destas obrigações e da relação de domínio dos

senhores de terras sobre os servos, e sintetiza: “Se forem somadas todas as exigências

senhoriais, a dominação mostra-se bastante pesada” (2006, p. 137).

Grossi (2014, p. 275) explica como era o Direito no Feudalismo:

O direito feudal é aquele conjunto de costumes (e mais tarde, mas secundariamente, de algumas leis imperiais, sentenças de cúrias feudais, teorizações doutrinais) que pouco a pouco se acumularam durante todo o período medieval e que disciplinam aquele universo de relações entre senhores e vassalos, entre superiores e inferiores, que é a ordem feudal: relações pessoais que consistem em homenagem e fidelidade por parte do vassalo e em proteção por parte do senhor. Um universo jurídico exclusivo, que desenvolveu suas próprias regras e que tem seus próprios tribunais para aplicá-las;

A origem desta prática remonta uma antiga tradição germânica - o beneficium – pela

qual um proprietário concedia parte de suas terras em troca de tributos e serviços. Além disso,

o próprio processo de arrendamento fundiário, que marcou o fim do Império Romano,

também contribuiu para este processo. No período medieval, os tributos ficaram conhecidos

como obrigações e constituíam o conjunto de impostos e outros atos que um servo deveria

pagar ou praticar para o senhor feudal. Lopez (1986, p. 59-60) confirma esta tese, em sua

descrição do sistema feudal, e vai além: “Tal organização favorecia os senhores, mas era-lhes

preexistente; foi intensificada pela introdução de novos métodos e alfaias que exigiam um

esforço conjunto, mas tinha raízes profundas na vida rural da época bárbara e mesmo da Pré-

História”.

As obrigações podiam variar entre os muitos feudos da Europa, mas alguns eram

recorrentes. Entre eles, podem ser citados: albergagem (obrigação de hospedar o senhor);

banalidade (pelo uso de bens ou insumos do feudo, como celeiro, forno, moinho e pontes);

capitação (imposto per capita da família); censo (tributo pago pelos vilões); corveia (trabalho

compulsório durante alguns dias da semana); formariage (taxa para ajudar no casamento do

senhor ou seu parente); mão morta (taxa para permanecer no feudo, em caso de perda do pai

ou da família camponesa); talha (parte da produção); tostão de Pedro (dízimo para a igreja

local); taxa de justiça (pelos serviços judiciários do senhor).

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Giordani (1997, p. 42) fala dos direitos senhoriais, originados no “bannum” bárbaro,

que gerou as chamadas “banalidades” feudais: “Entre elas algumas parecem absolutamente

arbitrárias. (...) Essas banalidades tornaram-se, com o decurso do tempo, insuportáveis ‘não

por causa do princípio que lhes havia dado origem mas por causa do espírito com que os

senhores as praticaram’”.

Fourquin (1986, p. 211-2) também aborda o que chama de “senhorio banal”, originário

do “direito de ban”, que consistia tanto na exploração judiciária quanto econômica. E detalha:

O direito de ban permite ao senhor regular a vida econômica do senhorio banal: “é o senhor quem fixa o ciclo” das rotações (quando elas existem, dos afolhamentos mais tarde), impõe a data em que podem começar os trabalhos da colheita; regulamenta os direitos de uso das florestas, dos baldios ou das terras desocupadas depois das colheitas. É finalmente em virtude do direito de ban que o senhor impõe aos súditos do senhorio a obrigação de utilizar de maneira exclusiva o forno, o moinho, a prensa que ele mesmo edificou. De qualquer forma, o direito de ban é uma fonte de lucros que indiretamente, como no caso das banalidades, quer indiretamente, em virtude das multas que sancionam toda a desobediência ao comando.

Por muito tempo, entendia-se que era assim mesmo que as coisas deveriam ser. Era a

ideologia das Três Ordens. Duby (1993, p. 180-1) explica:

A exploração senhorial obedecia a um padrão sociológico que provavelmente se ajustava à realidade das relações econômicas e que, ao mesmo tempo, lhes dava uma maior solidez. À medida que se afastava o ano 1000, os concílios de paz começaram a invocar a teoria das três ordens, que tinha germinado lentamente num estreito círculo de intelectuais: desde a Criação, Deus tinha distribuído tarefas específicas a cada homem; uns deviam orar pela salvação de todos, outros deviam lutar para proteger o povo; cabia aos membros do terceiro-estado, de longe o mais numeroso, alimentar, com o seu trabalho, os homens da religião e da guerra. Este padrão, que rapidamente marcou a consciência coletiva, apresentava uma forma simples e em conformidade com o plano divino e assim sancionava a desigualdade social e todas as formas de exploração econômica.

A promessa de liberdade

Gilli (2011, p. 367) assinala o esforço da cidade em construir sua imagem positiva:

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Ao mesmo tempo em que se desenvolvem as instituições comunais, constrói-se uma verdadeira ideologia da cidade, conduzida por um patriotismo urbano e articulada em torno de alguns temas que ecoam uns aos outros: o bem comum, a paz e a liberdade, Esses valores, por mais instrumentais que sejam, encontraram uma forma de aplicação na cenografia urbana e nos esforços dos governos populares para criar locais adequados à sua celebração.

A liberdade começou com uma realidade fática: os mercadores viajavam de um feudo

a outro e precisavam ser livres para isso, ainda que pagando taxas alfandegárias. Pirenne

(1982, p. 56) pergunta: como seria possível o comércio sem a liberdade? Assim, afirma o

autor:

A liberdade transforma-se em condição jurídica da burguesia, em tal grau que não é somente um privilégio pessoal, mas um privilégio territorial inerente a solo urbano, da mesma forma que a servidão é inerente ao solo senhorial. Basta, para gozar de tais prerrogativas, ter residido um ano e um dia no interior da cidade. Die Stadtluft machat frei, diz o provérbio alemão: o ar da cidade dá a liberdade.

De fato, a burguesia foi conquistando alguns privilégios e gerando uma ideia, entre a

população medieval, de que a cidade era o ambiente libertador, como descreve Pirenne (1982,

p. 61):

O burguês medieval, ao contrário, é um homem que difere qualitativamente de todos os que vivem fora da muralha municipal. Logo que se abrem as portas e se franqueia o fosso, penetra-se em outro mundo, ou, para falar com mais exatidão, em outro domínio de direito. A aquisição da burguesia produz efeitos que equivalem ao fato de ser armado cavaleiro ou, para um clérigo, o de ser tonsurado, pois lhes confere um estado jurídico especial. O burguês escapa, como o clérigo e o nobre, ao direito comum; como eles, pertence a um estado (status) particular (...). O território da cidade não se torna menos privilegiado que os seus habitantes. É um asilo, uma imunidade, que põe a salvo dos poderes exteriores aquele que se refugia, tal como se tivesse abrigado em alguma igreja.

Neste “santuário”, os outros “naipes” medievais – clero e nobreza - não têm força.

Pirenne (1982, p. 170) expõe:

Sabe-se que o clero constitui na cidade medieval um elemento estranho. Os seus privilégios excluem-no da participação nos privilégios urbanos. No

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meio da população comercial e industrial que o rodeia, seu papel, do ponto de vista econômico, é simplesmente o de consumidor. Quanto à nobreza, só nas regiões mediterrâneas, na Itália, no sul da França e na Espanha, é que reside nas cidades uma parte dos seus membros.

O autor enfatiza a essência burguesa da cidade do medievo: “A cidade medieval é,

portanto, essencialmente, uma criação da burguesia. Existe só para os burgueses e graças a

eles. Em seu interesse próprio e exclusivo criaram as instituições e organizaram a economia”

(1982, p. 171). Baschet (2006, p. 148), porém, afirma que a aristocracia era muito presente na

cidade, daí dizer que “assim como em relação à anacrônica noção de liberdade, devemos

duvidar da suposta ‘democracia’ dos governos urbanos”.

Gilli, contudo, fala de um senso de urbanidade cultivado nas cidades, de uma educação

política, que elaborava uma doutrina de vida cívica, baseada em fontes religiosas e

autoridades civis. Diz o autor (2011, p. 352):

Essa urbanidade, no sentido de ‘polidez da cidade’, que se encontra mais amplamente na maneira de viver as relações sociais, só pode ser identificada por meio de indícios fugazes. (...) Traços específicos marcam a relação com o espaço urbano, a proximidade com os poderosos, as relações de vizinhança, as intervenções na vida associativa, em suma, toda a densidade da vivência citadina, em uma civilização comunal parecida com nenhuma outra.

Pode-se dizer tranquilamente que este discurso de liberdade e civilidade funcionou,

porque efetivamente provocou um deslocamento populacional para as cidades. Mas havia os

que eram contra. Libera (1999, p. 169) cita um “slogan” que correu na capital francesa no

século XIII: “Paris, paraíso para os ricos, inferno para os pobres”. A máxima tinha algumas

variantes, como trocar “inferno” por “pântano”.

Muito mais contundente foi Bernardo de Claraval, ainda no século XII, para quem

Paris era o lugar da perdição, e quis alertar os mestres e estudantes parisienses. Le Goff

(2003, p. 44-45) reproduz as palavras do monge:

Fugi do ambiente de Babilônia, fugi e salvai vossas almas. Ide todos juntos para a cidade do refúgio, onde podereis vos arrepender do passado, viver na graça para o presente, e esperar com confiança o futuro (quer dizer, nos mosteiros). Encontrarás bem mais nas florestas do que nos livros. Os bosques e as pedras ensinar-te-ão mais do que qualquer mestre.

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Teriam estas críticas algum fundamento?

A realidade

Pirenne (2009, p. 126) afirma que as relações sociais eram complexas, cheias de

contrastes, como em qualquer sociedade em transição: “Nada é mais bizarro do que a nascente

burguesia”, afirma.

É preciso ter cuidado para não aplicar a noção moderna de liberdade sobre o que

acontecia nas cidades medievais. Baschet (2006, p. 147) alerta contra este risco:

É verdade que começa a circular, então, o ditado segundo o qual “o ar da cidade torna livre”, e que a constituição das populações urbanas em comunidades (communitas, universitas) dotadas de uma personalidade jurídica é em geral adquirida com grande luta no decorrer do século XII. Mas seria errado decalcar sobre essa época uma concepção moderna da liberdade, pois as liberdades naquele momento consistem essencialmente em obter franquias urbanas (por exemplo, a isenção dos direitos senhoriais, em especial sobre os mercados e os pedágios, ou a possibilidade de cobrar taxas por sua própria conta) e privilégios permtindo uma organização política autônoma (conselho e representantes eleitos), o exercício de uma justiça própria e a formação de milícias urbanas.

Os mercadores, efetivamente, eram livres. Mas grande parte dos imigrados, atraídos

pela possibilidade de trabalho, não conseguiam deixar para trás a condição servil. “Ainda que

tendo cessado de ser camponeses, não podiam apagar a mancha de que a servidão marcara a

classe rural”, diz Pirenne (2009, p. 126). Bastava que o seu senhor o encontrasse e o levasse

de volta.

E mais: se um mercador livre se casasse com uma mulher servil, pelo direito

costumeiro seus filhos deveriam seguir a condição da mãe, ou seja, um homem livre não

podia transmitir sua liberdade aos filhos, e novamente a servidão retonava á família. O direito

antigo e consuetudinário estava em franco choque com o novo cenário social. Tal cenário só

mudou gerações depois, quando finalmente o habitante urbano adquiriu sua liberdade em

relação aos senhores feudais: “burguês e homem livre tornaram-se sinónimos”, anota Pirenne

(2009, p. 149).

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Os primeiros trabalhadores a serviço destes burgueses, por sua vez, vinham de

condição social mais precária. Pirenne (1982, p. 51) descreve: “É certo, em primeiro lugar,

que o comércio e a indústria tiveram de recrutar-se, em sua origem, entre homens desprovidos

de terra e que viviam, por assim dizer, à margem de uma sociedade em que somente a terra

garantia a existência. Ora, esses homens eram mui numerosos”. O autor diz mais: “Quanto às

populações do campo, a burguesia as considera, unicamente, como um objeto de exploração”

(1982, p. 62).

É claro que muitas das obrigações feudais eram simplesmente impossíveis de

subsistirem, dada a diferente natureza da cidade. Não havia, por exemplo, como cobrar pela

atividade agrícola, inexistente na cidade. Na esteira destas transformações, o Direito mudou,

modificando contratos, prazos, procedimentos judiciários, sucessão. Mas o Direito urbano,

destaca Pirenne (2009, p. 153), era pródigo em castigos corporais, com penas como mutilar,

castrar e decapitar, na melhor tradição da Lei de Talião.

Porém, o mesmo Pirenne (1982, p. 50) observa que os senhores feudais mantiveram

parte de seu poder, mesmo intramuros:

Sem dúvida, os senhores da terra conservaram durante algum tempo, nas cidades nascentes, prerrogativas econõmicas, como a obrigação imposta à burguesia de servir-se de seus fornos ou seus moinhos, o monopólio da venda de seus vinhos durante uns dias depois da vindima, ou ainda certas contribuições exigidas das corporações de ofícios.

As guildas - ou corporações de ofício, que reuniam os artesãos, fabricantes e

manufatureiros de uma cidade – apesar de incentivarem uma produção em pequena escala

“industrial”, possuíam regras muito rígidas quanto ao modo de fazer, circunscrição das

vendas, número de aprendizes e outras questões mercadológicas. Os conflitos ocorriam.

Lopez (1986, p. 140) afirma que “embora as guildas de ofícios tivessem de apresentar uma

imagem persuasiva e benevolente num meio que considerava com maus olhos associações de

pessoas mais humildes, a sua estrutura exterior incluía, de modo rudimentar, algumas

características tanto dos cartéis como dos sindicatos operários”.

De outro lado, os proprietários rurais reagiam às mudanças que lhes causavam perda

de renda. Lopez (1986, p. 175) ilustra:

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A liberdade pessoal, um grande passo em frente se abrisse a porta a oportunidades de expansão, tornava-se um fardo indesejável quando implicava pesadas responsabilidades adicionais. É significativo que o decreto francês de 1315, que pferecia aos servos do rei a emancipação em nome da “liberdade natural de todos os homens” acrescentava ao mesmo tempo que se alguém preferisse “permanecer na situação humilhante da servidão”, ficaria no entanto sujeito, como os outros, a um novo imposto de guerra aplicado aos homens livres.

Heers afirma que fontes medievais dão conta de que houve um período de

esvaziamento de aldeias, na França e na Alemanha principalmente, paralelo ao declínio da

renda dos senhores feudais, o que lhes fez reagir ao êxodo. Diz o autor (1981, p. 207):

Dessa forma, esses senhores tentam compensar suas perdas e a fraqueza de suas rendas elevando mais as taxas pessoais sobre os camponeses, as ajudas feudais (na Alemanha), os direitos de justiça. Tentam, também, na Inglaterra, impor, com o apoio do rei, um retorno aos antigos salários. Proíbem aos camponeses, desejosos de mudar para as cidades, o abandono de suaas tenências. Derivam disso, em todos os casos, sérios atentados à liberdade pessoal e mesmo, por vezes, uma semi-servidão.

Os senhores feudais, portanto, não assistiram pacificamente à transição de um modo

de vida rural para um urbano. Houve conflitos bélicos, exclusão social e aumento de

criminalidade, a ponto de os cronistas e contadores de histórias da época produzirem contos

famosos, que sobreviveram aos séculos, como o de Robin Hood. Heers (1981, p. 195) fala

deste período de crise:

Bandos de fora-da-lei, antigos soldados desertores, contrabandistas e caçadores-ladrões, aldeões escapando do imposto ou do serviço militar real, tomam a floresta na Normandia, as terras incultas (a touche) no Languedoc. Levam aí uma vida instável e precária, reúnem-se aos carvoeiros, catadores de madeira, lenhadores, e fazem pesar sobre as terras cultivadas, sobre as aldeias e mesmo sobre as cidades, uma ameaça constante. O folclore da época, as crônicas, as miniaturas e os afrescos mostram por toda parte cidades eriçadas de torres, aldeias em fogo e em ruínas, homens desolados pelas devastações da guerra.

É oportuno lembrar que os períodos críticos não atingiram somente o meio rural. As

cidades também tiveram suas crises e suas consequências – ruins para uns, nem tanto para

outros. Pirenne (1982, p. 188) ilustra:

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As multidões obreiras das grandes cidades industriais viveram sujeitas às crises e ao desemprego. Bastaria que a matéria-prima não pudesse chegar, por causa de uma guerra ou proibição de importar, para que os teares deixassem de funcionar e bandos de desocupados enchessem as ruas ou vagassem pelos campos pedindo esmola. Fora desses períodos de miséria involuntária, a condição dos mestres, proprietários ou locatários de oficinas era muito satisfatória, mas assim não era a dos companheiros que empregavam.

Para empregar um termo contemporâneo, a qualidade de vida dos empregados era – e

permaneceu assim por alguns séculos adiante – deplorável. Viviam em habitação alugada, em

ruelas estreitas, e muitas vezes possuíam uma única muda de roupa. Vagavam de cidade em

cidade à procura de trabalho, reunindo-se nas segunda-feiras nas praças, em torno das igrejas,

aguardando um mestre que os convocasse. Normalmente, eram trabalhos de oito dias, com

jornada diária que ia do amanhecer ao anoitecer. O salário era pago no sábado à tarde.

Pirenne (1982, p. 188) acrescenta: “Assim, os operários da grande indústria formavam

uma classe à parte, no meio dos outros artesãos, muito semelhantes aos proletários modernos.

Eram reconhecidos pelas “unhas azuis”, pela indumentária e pela brutalidade dos seus

costumes”.

Na hierarquia urbana, sofriam aprendizes e mestres, segundo Pirenne (1982, p. 189):

“Oprimidos pelas pessoas encarregadas de distribuir o trabalho, os mestres viam-se, por sua

vez, obrigados a oprimir os companheiros e aprendizes”. Enfim, apareceu logo uma

diferenciação entre o burguês e a plebe que migrou para a cidade, como aponta Giordani

(1997, p. 156):

Entre a burguesia e as camadas inferiores das populações urbanas também surgem conflitos: ‘Bem cedo a burguesia propriamente dita, formada sobretudo por grandes comerciantes que obtêm seus ganhos mais facilmente que os artesãos, destaca-se do povo e confisca seus ganhos em seu proveito’.

No século XIV, todas estas tensões – somadas a problemas políticos e a chegada da

peste negra – resultaram em violência, greves e agitações sociais, despedaçando a imagem de

“paraíso” que a cidade vinha nutrindo desde séculos antes.

Outros aspectos da vida social demonstram que a cidade não era um reduto de

igualdade e ampla liberdade. Gilli (2011, p. 353) dá um exemplo: “As formas de exclusão

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política eram, entretanto, bastante refinadas, e nem todos os cidadãos eram iguais. Um dos

testemunhos dessa desigualdade é fornecido pelos sistemas eleitorais”.

Considerações Finais

As incipientes cidades não pretendiam promover nenhuma libertação messiânica. Pelo

contrário, a burguesia quis garantir sua sobrevivência a partir da diferenciação do trabalho no

campo, mas em melhores condições do que a classe campesina. Pirenne (2009, p. 123)

aponta: “Aliás, isto era muito mais vantajoso para a burguesia do que para os camponeses. As

cidades esforçaram-se energicamente para o salvaguardar. Nunca deixaram de combater toda

a tentativa de introduzir a indústria no país campesino. Velaram cuidadosamente pelo

monopólio que garantia sua existência”.

Claro, havia também os camponeses que não queriam ou não podiam migrar para as

cidades. Lopez (1986, p. 177) explica: “As cidades representavam a esperança dos ambiciosos

e de desenraizados; mas um grande número de camponeses não pode ou não quer deslocar-se,

ainda que tenham de viver em circunstâncias mais miseráveis do que o mais baixo

proletariado urbano”.

Apesar de os autores, em tácito consenso, concordarem que progressivamente a

liberdade foi ganhando seu espaço no meio urbano, isso não significou que ela veio

acompanhada de igualdade. De fato, estes dois valores nunca descobriram um bom equilíbrio,

seja na História ou no Direito. Enfim, os camponeses que decidiram abandonar o meio rural e

a vida de vassalagem, mesmo no século XIV, já declinando a Idade Média e o feudalismo,

encontraram na cidade condições de vida igualmente ruins ou até piores, considerando o

cenário estranho. Heers (1981, p. 203) descreve bem a situação:

A fuga para as cidades é, para os camponeses das cercanias, um meio de escapar às pressões senhoriais, de evitar a volta às antigas servidões. Mas esses recém-chegados, frequentemente sem raízes, que abandonaram sua paróquia, sua comunidade aldeã, sua família, aacham-se muito mal integrados na cidade. Não participam de forma alguma, duante anos, da vida política e social. Formam uma plebe instável, mal paga, que a menor crise econômica reduz ao desemprego e à miséria.

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Este aspecto parece não ter mudado. Ainda é o retrato dos êxodos e movimentos

migratórios de refugiados, seis séculos depois.

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