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    SUCESSO E FRACASSO ESCOLAR: VISES E PROPOSIES

    Bernard Charlot

    Este captulo apresenta a problemtica da pesquisa: discorre, primeiramente, sobre os marcos

    tericos que a guiaram desde sua formulao. Alm disso, apresenta a experincia de dois

    outros pases na rea da formao educacional de suas respectivas populaes.

    So quatro os tpicos a seguir: (1) Fracasso escolar: questo antiga, problema novo; (2)

    Sucesso e fracasso na escola: o que se sabe, sobre qu se debate, (3) Experincias para

    melhorar o nvel de formao da populao os casos dos Estados Unidos e da Frana e (4)Brasil: desafios da formao da populao.

    FRACASSO ESCOLAR: QUESTO ANTIGA, PROBLEMA NOVO

    Quem aprende espera atingir seus objetivos, mas sempre corre o risco de fracassar. Desse

    ponto de vista, a possibilidade do fracasso consta da prpria idia de aprendizagem. Aprender

    arriscar e expor-se; uma aventura, ao mesmo tempo excitante e psicologicamente perigosa.

    Sabe-se, por sinal, que, algumas vezes, crianas se recusam a aprender por medo de fracassar,

    de serem devoradas, destrudas (BOIMARE, 1999). Esse medo tanto maior quando j

    viveram a experincia de fracasso, humilhao e desvalorizao de si mesmas.

    Sendo assim, pode-se dizer que o fracasso sempre existiu, uma vez que o ser humano no

    pode viver sem aprender e, quando aprende, s vezes fracassa. Entretanto, outra a questo

    que hoje se coloca sobre o fracasso escolar, que passou a ser um problema importante nas

    sociedades contemporneas. J no se trata de uma mera questo pedaggica, mas de umproblema social e econmico. Para melhor entender como adveio essa perspectiva, poder-se-

    ia distinguir, grosso modo, trs momentos histricos.

    Na poca em que a maioria da populao nem sabia ler ou escrever ou no tinha completado a

    instruo primria, isto , o que equivale 5a srie no Brasil atual, nem fazia sentido falar em

    fracasso escolar.

    A maioria no entrava na escola e quem tinha a sorte de ser escolarizado e a desgraa de terfracassado no estava em uma situao particular. Sabia poucas coisas, como os demais. O

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    fracasso na escola no trazia problema social algum. Ao contrrio, chamava a ateno quem

    adquiria inesperadamente um saber que no correspondia sua situao social. Ao longo dos

    sculos XVIII e XIX, na Europa, ouviram-se e leram-se freqentemente queixas a respeito

    dos que aprendiam alm do que convinha sua posio social e que, por isso, passavam a ser

    amargos e sediciosos. At o iluminista Voltaire, admirado por ter um esprito aberto e

    tolerante, escreveu coisas muito elitistas sobre este assunto:

    conveniente que o povo seja guiado, e no seja instrudo. Ele no

    digno de s-lo. Parece-me essencial que haja indigentes ignorantes. Se

    vocs fizessem valer uma terra, como eu, e se vocs tivessem arados,

    seriam da minha opinio, no a mo-de-obra que preciso instruir;

    o bom burgus, o habitante das cidades, essa tarefa bastante rdua ebastante grande1.

    Ainda na primeira metade do sculo XX no se falava em fracasso escolar. Quem detinha a

    ateno era o personagem do bolsista, ou seja, o jovem europeu oriundo do povo que

    continuava seus estudos graas a uma bolsa recebida por suas qualidades pouco comuns.

    Mais tarde chegou um outro momento histrico, em que a maioria da populao completava

    quatro, cinco, e at oito ou nove anos de escolaridade, sem por isso seguir estudando no

    ensino mdio e, muito menos, no ensino superior. Foi o que aconteceu na Europa do sculo

    XX at a dcada de 1970 ou 1980 e o que est acontecendo no Brasil de hoje. Em uma

    configurao sociohistrica desse gnero, quem fracassa na escola encontra problemas mais

    tarde, na medida em que no sabe, ou no sabe fazer o que todos sabem. Todavia, o fracasso

    escolar no pesa demasiadamente em sua vida e no o impede ter uma vida normal, isto ,

    uma vida com trabalho, sustento, famlia, condies decentes de vida. Realmente, ainda

    existem empregos formais ou informais em que os saberes adquiridos na escola no so muitoteis e, em todo caso, no so imprescindveis. Naquela poca, quando uma pessoa passava

    fome, no era por ter fracassado na escola e, sim, por ter nascido no lugar e tempo errados, na

    periferia pobre de uma grande cidade ou no serto.

    A esse momento histrico se segue um outro, em que os Estados Unidos, a Europa, o Japo,

    os pases do Sudeste Asitico e alguns outros j entraram e que, ao que parece, constitui hoje

    1 Voltaire, cartas de 19 de mar o ode l de abril de 1766, citad as por B. Charlot

    (1979).

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    em dia o desafio educacional para o Brasil. Nessa configurao scio-escolar, a norma que

    todos os jovens de uma gerao completem o ensino mdio, geral, tcnico ou

    profissionalizante. Na verdade, esse o objetivo e, de fato, h jovens que no conseguem

    concluir o ensino mdio, nem sequer o ensino fundamental. So considerados em situao de

    fracasso escolar.

    Cabe notar que esse chamado fracasso sempre relativo a uma sociedade em determinada

    poca. No sculo XVIII, quer na Europa quer no Brasil, quem sabia ler e escrever e no sabia

    mais do que isso desfrutava de uma fama de pessoa instruda. H no muito tempo, quem

    tinha completado o ensino fundamental constava do grupo dos brasileiros instrudos. Hoje, no

    Brasil, quem sabe apenas ler e escrever pouco instrudo e quem no estudou alm do ensino

    fundamental no muito instrudo. At pouco tempo, essas pessoas no eram rotuladas defracassadas, j que, na maioria das vezes, no haviam tido a oportunidade de estudar. Hoje, j

    se pode considerar como fracassado o jovem que no concluiu o ensino fundamental e, em

    breve ser tambm o caso de quem no completar o ensino mdio.

    As pessoas que no atingiram o nvel educacional considerado bsico na sociedade moderna

    correm cada vez mais o risco de ficarem desempregadas. Na Frana, por exemplo, exigem-se

    diplomas para quase todos os tipos de empregos, includos os de caminhoneiro e barman, a

    ponto de ser muito difcil encontrar ocupao quando no se tem diploma algum. At o

    campons deve ter diploma para obter um emprstimo bancrio. Em uma situao desse

    gnero, quem fracassou na escola, isto , quem no alcanou o mesmo nvel que a maioria da

    populao, enfrenta muitas dificuldades para ter uma vida normal, ou seja, igual dos demais.

    Sendo assim, o fracasso escolar passa a ser um fracasso socioeconmico e incide em todos os

    aspectos da vida.

    Cabe tambm destacar o fato de que, na sociedade moderna, ou ps-moderna, no apenas aatividade profissional que requer um nvel de escolaridade cada vez mais alto, tambm a

    vida cotidiana. Estamos entrando em um mundo de auto-atendimento, senhas, processos

    seqenciais, bulas de remdios, etc., que exige de ns novas competncias, formas de pensar e

    novos modos de nos relacionarmos com os outros. Isto no significa dizer que ser impossvel

    usar o programa da mquina de lavar roupa ou usufruir de todas as possibilidades do celular

    sem ter conhecimentos de mecnica, eletrnica e informtica. Trata-se de outra coisa: de

    lgica seqencial, de inteligncia das situaes, de sentido de responsabilidade. O seguranado banco ou do condomnio deve ter uma cultura bsica que no era necessria 20 anos atrs,

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    bem como a faxineira, que deve saber que no se limpa o computador ou a impressora com

    baldes de gua.

    Em suma, tanto do ponto de vista da produo e do trabalho como no que tange ao consumo e

    vida cotidiana, melhorar o nvel de educao e formao da populao como um todo se

    tornou um imperativo econmico, social e cultural. J no suficiente ter bons mdicos e

    enfermeiras, como h no Brasil, chegou a hora de formar tambm a pessoa que cuida da

    agenda do mdico e de educar os prprios pacientes para pr fim ao desperdcio de milhares

    de horas de trabalho, a cada ano, nas ante-salas dos gabinetes mdicos brasileiros.

    nesse novo cenrio que comea a ser colocada, hoje, a questo do sucesso e do fracasso

    escolar no Brasil. Trata-se de caminhar, o quanto antes, para uma situao em que o nvelbsico de formao do brasileiro ser a concluso do ensino mdio. Perante tamanho desafio,

    preciso definir recursos e mtodos para melhorar a qualidade e a eficcia do ensino e das

    escolas. J se sabia que, quando uma criana deixa a escola sem saber ler, uma lstima tanto

    para ela como para os adultos. Hoje se sabe que tambm um absurdo econmico.

    Entretanto, por ter se tornado um problema econmico e social, a questo do fracasso escolar

    no deixou de ser tambm uma questo institucional, pedaggica, relacional, didtica e

    cognitiva. A ambio desta pesquisa tambm melhor entender as situaes e os processos

    que levam ao chamado sucesso ou fracasso escolar. Com a esperana de contribuir para a sua

    reduo.

    SUCESSO E FRACASSO NA ESCOLA: O QUE SE SABE, SOBRE O QUE SE DEBATE

    Existem vrios tipos de pensamento sobre o fracasso escolar, quer espontneos, isto ,

    enraizados no senso comum ou nas ideologias sociais e profissionais, quer tericos. No cabe

    apresentar aqui a histria do conceito, mas importante destacar os principais argumentos,

    uma vez que teremos de analisar opinies sobre o fracasso. Trs configuraes conceituais

    podem ser identificadas:

    acerca da noo de dom, j ultrapassada do ponto de vista terico, mas ainda viva nosenso comum e no discurso dos docentes;

    em torno da noo de reproduo social, que dominou o palco argumentativo nasdcadas de 1970 e 1980 e ainda constitui o discurso dominante entre os docentes;

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    em redor de noes como mobilizao, atividade, relao com o saber, que propem iralm da teoria da reproduo, sem por isso negar a desigualdade social perante a

    escola.

    O DOM: UMA ABORDAGEM TERICA ULTRAPASSADA, MAS UMA EVIDNCIA

    DO SENSO COMUM

    Por muito tempo a capacidade intelectual de aprender foi considerada como natural, ou ligada

    compleio natural do indivduo.

    Plato j falava de trs tipos de almas: a alma racional do filsofo, a irascvel do guerreiro e a

    concupiscvel dos artesos e agricultores. S o filsofo podia contemplar as Idias em si e,

    portanto, conhecer a verdadeira ordem do universo, o que lhe conferia o direito e, sobretudo, o

    dever de dirigir a cidade.

    No sculo XIX, Gall, com a frenologia, sustentou a idia de que as faculdades intelectuais das

    pessoas e, de modo mais amplo, as suas caractersticas psquicas, so localizadas em rgos

    especficos, passveis de serem identificados, uma vez que se manifestam por protuberncias

    no crnio. Foram assim identificados os rgos do roubo e da morte (no crnio dos

    bandidos e assassinos), bem como outros rgos mais simpticos, como o da benevolncia ouda auto-estima. Tudo isto no tem nenhum valor cientfico, claro. Mas, apesar disso, foi

    feita uma longa necropsia no crnio de Einstein para saber de onde vinha a teoria da

    relatividade. Sem resultado algum, obviamente.

    O desenvolvimento da gentica poderia constituir um novo suporte, modernizado, dessas

    opinies do senso comum. No foi assim e, pelo contrrio, esvaziou-as de toda aparncia

    cientfica. Hoje em dia se sabe que no possvel imputar um comportamento a um gene ou a

    um conjunto de genes, muito menos quando se trata de um comportamento to complexo

    como a aprendizagem. Podem ser considerados conhecimentos slidos as seguintes idias a

    respeito deste assunto.

    1.No h dvida de que um determinado processo ou comportamento psquico precisa de

    uma base material, anatomofisiolgica, e, portanto, gentica. Se no tivssemos um

    corpo, no teramos nem emoes, nem idias, nem nada. De forma mais precisa,

    sabe-se que determinadas funes cerebrais (viso, memria, fala, etc.) deixam de serdesempenhadas quando determinadas regies cerebrais so afetadas e, ainda, que um

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    distrbio gentico acarreta conseqncias psquicas, em particular efeitos intelectuais.

    Entretanto, observam-se tambm, algumas vezes, processos de compensao ou

    substituio. Diferentemente da mquina, o organismo vivo se auto-regenera, ou, pelo

    menos, tenta faz-lo.

    2.Posto isto, necessrio acrescentar logo que o equipamento anatomofisiolgico, os

    genes, as regies cerebrais no produzem o comportamento. No so eles que se

    comportam bem ou mal, mas sim o sujeito humano, psquico e social. No se devem

    confundir as bases orgnicas com as causas do comportamento. As bases so

    indispensveis, mas o que orienta o comportamento o conjunto de desejos e normas

    que definem o sujeito, conjunto esse que se construiu ao longo de uma histria

    singular, por meio de inmeras mediaes psquicas, sociais e culturais. Em outras

    palavras, no se podem postular dons, diferenas naturais ou a gentica para

    explicar diferenas entre desempenhos intelectuais. Pouco se conhece sobre isso e, at

    onde sabemos hoje, uma questo impossvel de ser respondida. De fato, o que

    podemos observar nunca passa de diferenas em que impossvel separar o que diz

    respeito natura e o que diz respeito histria singular e social do sujeito. Atribuir a

    supostos dons diferenas de comportamento ou de atuao que podem ser explicadas

    por diferenas entre as condies de vida e entre as histrias dos sujeitos correr o

    risco de ocultar desigualdades sociais indubitveis atrs de supostas diferenas

    naturais. Talvez o desenvolvimento das neurocincias permita, um dia, a construo

    de modelos explicativos complexos, aqui possibilitem entender melhor os efeitos da

    base orgnica sobre a construo dos indivduos e os efeitos das mediaes

    socioculturais sobre os processos anatomopsicolgicos. Mas estamos longe desse

    momento, se que ele chegar um dia.

    Entretanto, por mais inconsistente que seja a idia de dom, ela est profundamente enraizadana ideologia profissional dos docentes. Sob esse ponto de vista, pouco mudou desde Gall e at

    Plato. De nada adianta criticar e culpar os docentes, mais interessante tentar entender por

    que tanta gente inteligente acredita em postulados sem fundamento e usa conceitos do senso

    comum sem distanciamento crtico.

    Em primeiro lugar, a noo de dom livra o docente da responsabilidade do fracasso: no

    culpa sua se, por natureza, um aluno no bem dotado. No se trata de um comportamento

    cnico dos professores, mas de uma proteo psicoprofissional. Cada profissional precisa de

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    um corpo de princpios e de noes que o proteja dos perigos psicolgicos gerados por sua

    atividade. o caso do docente, do mdico e da enfermeira, do advogado, do policial etc.

    Trata-se sempre de noes que, ao mesmo tempo, protegem o profissional contra as

    conseqncias desagradveis de sua atividade e repousam sobre a experincia profissional

    coletiva. Essa experincia prova e confirma repetitivamente a pertinncia da noo e isto

    porque, na verdade, uma experincia interpretada pelo profissional. O docente sempre

    encontra alunos que fracassam apesar de o professor ter feito de tudo para ajud-lo de

    tudo o que o professor sabe fazer, mas essa restrio no sua, nossa. Perante essa

    resistncia, aquele no sei o qu impensvel, o que Lacan chama de real (MRECH,

    2005); resta apenas uma sada: a explicao pelo dom.

    Sendo assim, o dom permite explicar... o inexplicvel. Quando um docente se depara comfracassos ou tambm, alis, com xitos, inesperados, estranhos e incompreensveis, resta uma

    explicao: esse aluno dotado ou, ao contrrio, intelectualmente limitado. No apesar

    de ser obscura que a noo de dom faz sucesso, mas sim porque obscura: sem contornos

    conceituais precisos, ela possibilita justificar o que no se consegue pensar. uma dessas

    noes cuja funo prtica consiste em fechar, pelo menos aparentemente, as questes que

    no se sabe resolver, sequer levantar de maneira clara.

    Enquanto houver fracasso pedaggico inexplicvel, enquanto alunos continuarem fracassando

    apesar dos esforos intensivos dos docentes, ressurgir a explicao pelo dom, sejam quais

    forem os resultados das pesquisas. Entretanto, a idia de dom constitui um empecilho no

    caminho para uma escola mais eficaz. Na realidade, difcil educar quando no se acredita na

    educabilidade de cada ser humano e, desta maneira, a idia de dom simboliza a renncia a

    educar, a tentar de novo, apesar dos fracassos anteriores.

    A REPRODUO SOCIAL PELA ESCOLA: OS APORTES DA SOCIOLOGIA DOSANOS 1960 E 1970

    Nas dcadas de 1960 e 1970 foi construda, na Frana, uma teoria chamada de sociologia da

    reproduo que se espalhou pelo mundo inteiro, at mesmo no Brasil, e se tomou a explicao

    dominante do sucesso e do fracasso escolares. Na verdade, existem vrias verses da

    sociologia da reproduo, bastante diferentes: as de Bourdieu, de Passeron, de Baudelot e

    Establet na Frana, a de Bowles e Gintis nos Estados Unidos e a de Willis na Inglaterra.

    Todavia, a idia fundamental a mesma: a escola contribui para a reproduo da desigualdade

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    social e, sendo assim, o fracasso escolar funcional na sociedade capitalista, burguesa etc.

    Em outras palavras, o fracasso pedaggico um sucesso social da classe dominante.

    Cabe evocar rapidamente as idias centrais dessas teorias, uma vez que sustentam muitos

    discursos de docentes, de jornalistas, de polticos e at de alguns pesquisadores, em particular

    os que atuam na rea da avaliao quantitativa.

    A teoria mais elaborada foi proposta por Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, em

    particular no seu livro La Reproduction, e da decorre a denominao dessa corrente

    sociolgica2. Eles explicam que a escola transmite e avalia uma cultura que no socialmente

    neutra. Assim, as crianas que receberam na sua famlia e na sua classe social uma educao

    voltada para aquela cultura que a escola privilegia tm mais chances de ser alunos bem-sucedidos na escola. Esta a base de todas as teorias da reproduo. Mas Bourdieu e Passeron

    criaram ou utilizaram conceitos especficos que fazem com que a sua teoria seja mais

    requintada que as demais. Eles so os seguintes:

    O conceito de autonomia relativa. A escola cumpre uma funo social atravs do seu papel

    cultural: ela contribui para a reproduo das desigualdades, mas produz esse resultado por

    meios especficos (ensinar, transmitir saberes...). Por isso, ela desfruta de uma autonomia

    relativa: uma instituio social com atividades e objetivos especficos. Essa autonomia

    imprescindvel para que a escola possa cumprir a sua funo social. De fato, se a escola

    selecionasse de forma aberta e transparente os filhos da classe dominante e rejeitasse os filhos

    das classes desfavorecidas, aconteceria uma revolta. Mas a escola pretensamente aprova os

    alunos que sabem e reprova os que no sabem, o que parece justo. Porm, a sociologia mostra

    que os que sabem so os filhos dos dominantes e os que fracassam os filhos dos dominados.

    Portanto, a escola no apenas reproduz as desigualdades, mas tambm as legitima,

    transformando-as em diferenas de saber e de competncia. Essa funo de legitimao essencial: outras estruturas sociais participam da reproduo das desigualdades, mas a escola

    a instituio que d legitimidade s diferenas. Pode-se dizer tambm que os jovens das

    classes desfavorecidas so vtimas de uma violncia simblica, isto , de uma violncia que

    no produzida por agresso fsica, mas por meios simblicos. Do ponto de vista de Bourdieu

    e Passeron, a escola uma instituio violenta, que pratica a violncia simblica, encoberta,

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    Entreta nto, c ab e a ssinalar que a id ia de rep rod u o j se enc ontra em Marx. Olivro de Bourd ieu e Passeron fo i pub lica do em franc s em 1969, e h va rias

    trad u es em po rtugus.

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    voltada contra os filhos das classes dominadas e em proveito dos herdeiros das classes

    dominantes.

    Entretanto, resta entender por que e como a cultura escolar favorece esses herdeiros. Trs

    conceitos so essenciais nesse assunto33: os de habitus, de capital cultural e de arbitrrio

    cultural.

    O habitus um conjunto de disposies psquicas construdas m um determinado meio social,

    refletindo as estruturas desse meio. Em outras palavras, nas crianas se constroem disposies

    psquicas que condizem com as condies sociais em que vivem. A seguir, os indivduos tm

    prticas e representaes aparentemente livres, isto , de acordo com o que lhes agrada.

    Porm, o que lhes agrada decorre das suas disposies psquicas e estas acatam as normassociais do seu meio. O conceito de habitus explica por que as pessoas obedecem a regras sem

    querer e sem saber. Explica, ao mesmo tempo, o determinismo social e a aparncia de

    liberdade do sujeito. Cada um faz o que quer e, ao faz-lo, contribui para a reproduo das

    estruturas e das desigualdades sociais. Na escola, cada um, quer seja docente, quer filho de

    ricos ou filho de pobres, faz o que gosta e no faz o que no gosta e, sendo assim, todos

    participam da reproduo das desigualdades sociais.

    Para enfrentar a reproduo, Bourdieu e Passeron propem tambm o conceito de capital

    cultural. A famlia transmite para as crianas um capital econmico (bens e servios), um

    capital social (relaes mantidas pela famlia) e um capital cultural (domnio da lngua,

    conhecimentos cultos, relao com a cultura etc.). Esse capital possibilita s crianas oriundas

    dos meios mais favorecidos atenderem s exigncias da escola, enquanto as crianas dos

    meios desfavorecidos no entendem essas exigncias. De fato, a escola valoriza e avalia

    formas de cultura e de relao com a cultura que condizem com as das classes dominantes.

    o que Bourdieu e Passeron chamam de arbitrrio cultural.

    Essas idias ainda constituem um corpo explicativo potente, embora hoje sejam criticadas. As

    obras de Christian Baudelot e Roger Establet e de Samuel Bowles e Herbert Gintis, por

    interessantes que sejam, no proporcionam tantos instrumentos conceituais como as de

    Bourdieu e Passeron. Elas decorrem de uma origem comum: as idias de Louis Althusser

    3 Outros conceitos so essenciais no pensamento de Bourdieu, em particular o

    c onc eito de c am po . Mas o nosso foc o a questo do suce sso e frac asso e sc olar,e no a teo ria de Bourdieu, porta nto, nos limitam os ao s c onc eitos teis para o nosso

    propsito.

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    sobre os aparelhos ideolgicos de Estado. Segundo Althusser, cada sociedade produz nos

    jovens, ao mesmo tempo, competncias e maneiras de se comportarem que os levem a aceitar

    seu futuro lugar na diviso social do trabalho. Na sociedade moderna, incumbe, sobretudo

    escola, a funo de produzir a submisso ideolgica (ALTHUSSER, 1974).

    Baudelot e Establet explicam que a escola, longe de ser nica, como se pretende, dividida

    em duas redes estanques: uma rede primria-profissional, que prepara a mo-de-obra de

    execuo, e uma rede secundria-superior, que forma para as funes de concepo e de

    comando. Ambas as redes inculcam nos jovens a mesma ideologia, mas sob formas

    diferentes, relacionadas ao seu destino social. O instinto de classe dos jovens proletrios

    resiste a essa presso ideolgica de modo espontneo e no organizado, por meio da baguna,

    da violncia e da recusa de estudar (BAUDELOT e ESTABLET, 1971).

    Idias parecidas, adaptadas situao norte-americana, so encontradas na teoria da

    correspondncia de Bowles e Gintis (1976). Segundo esses autores, a escola da sociedade

    capitalista inculca formas de disciplina e de obedincia que dizem respeito aos vrios nveis

    da diviso do trabalho. futura mo-de-obra de execuo, ensina o respeito absoluto s

    regras. Ao pessoal de nvel intermedirio, inculca, ao mesmo tempo, o sentido de hierarquia,

    de iniciativa e de responsabilidade. Aos futuros dirigentes, ensina a interiorizao das normas

    e da ordem, de modo que tenham a iluso de no obedecer seno sua conscincia ao

    exercerem funes de comando.

    Por fim, socilogos anglfonos desenvolveram teorias da resistncia que podem ser

    consideradas como um prolongamento da sociologia da reproduo, mas tambm uma critica

    da sua abordagem demasiadamente objetivista (Giroux, Willis, Hargreaves, Ball)44. Em vez

    de considerarem o aluno de meio popular como uma vtima passiva da reproduo, essas

    teorias destacam a sua resistncia e a sua participao involuntria no processo de reproduo.A teoria mais elaborada a de Paul Willis. Com um mtodo etnogrfico, mostra que os

    rapazes da classe operria (os lads) valorizam a cultura viril da fora fsica, da briga, da

    cerveja e desprezam as normas escolares e os buracos de ouvido (ear-holes), como

    denominam os que no Brasil designamos como CDF. A cultura da antiescola (anti-

    schoolculture), ao mesmo tempo que lhes possibilita resistir ideologia dominante, levando-

    os ao fracasso, participa do processo de reproduo (WILLIS, 1977; trad. em 1991). Nas

    4 Ver Giroux, 1988 e o artigo de sntese de Charlot, 1992.

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    abordagens desse gnero a escola no apenas um lugar onde os jovens do povo so vtimas

    da dominao, da violncia simblica, do arbitrrio cultural, tambm um local de lutas

    sociais.

    Ao chamar a ateno sobre o fato de que os contedos e formas escolares no so neutros e

    que a escola no fica afastada dos processos de dominao social, as teorias da reproduo

    puseram fim a certa ingenuidade sociolgica. Esse foi o seu grande mrito histrico. Hoje em

    dia, a existncia da desigualdade social em frente e dentro da escola um fato estabelecido.

    Alm disso, foi tambm levantada, na esteira das teorias da reproduo, a questo da

    contribuio da escola para outras formas de desigualdade que no as formas sociais, em

    particular as desigualdades de sexo e de raa ou etnia.

    Alm disso, as sociologias da reproduo criaram e trabalharam conceitos que passaram a

    constar dos instrumentos de anlise usados nas cincias sociais: violncia simblica,

    resistncia, anti-school-culture etc. Outros, como habitus ou capital cultural, continuam a ter

    inegvel valor heurstico, embora sejam objeto de debates e controvrsias.

    O fato da desigualdade social na escola est estabelecido. Os processos financeiros e

    institucionais que geram a desigualdade so conhecidos: existncia de duas redes de ensino,

    uma pblica e outra particular (no Brasil, por exemplo), hierarquizao e concorrncia entre

    estabelecimentos escolares, inclusive no ensino pblico (no Japo, por exemplo), escolas

    pblicas cuja populao escolar reflete as condies sociais dos moradores do bairro (no

    Brasil, na Frana etc.), cursinhos pagos que complementam a escola regular e alteram a

    concorrncia entre alunos (no Japo, na Coria do Sul, no Brasil etc.). Quando determinados

    recursos beneficiam uma parte da juventude, entende-se, sem dificuldade, porque apenas uma

    parte segue estudando, ao passo que a outra pra de freqentar a escola.

    Entretanto, h um assunto que permanece bastante obscuro: por que, entre alunos que

    recebem o mesmo ensino, nos mesmos estabelecimentos, com os mesmos docentes, nas

    mesmas condies, diferem tanto nos nveis de sucesso? Este o problema que o Brasil ter

    que enfrentar de agora em diante. Quando no conseguia escolarizar todas as suas crianas, a

    prioridade era encontrar recursos financeiros e humanos para matricular todos os jovens.

    Apesar de o objetivo no ter sido completamente atingido, j que ainda h crianas pouco

    escolarizadas, pode-se considerar que agora a meta outra: levar os jovens brasileiros no

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    apenas escola, mas tambm ao saber, s referncias humanas fundamentais, ao esprito

    crtico e, se que se pode sonhar, ao prazer de aprender. Essa ambio sustenta esta pesquisa.

    ALM DA QUESTO DA REPRODUO: MOBILIZAO, RELAO COM O

    SABER, EFICCIA DA ATIVIDADE

    A desigualdade social diante e dentro da escola um fato. A explicao pela noo de

    reproduo uma teoria. O fato permanece inegvel. A teoria hoje criticada por ser

    insuficiente, e foram desenvolvidas novas abordagens que incidem no modo como colocada

    e pesquisada a questo do sucesso e do fracasso escolar.

    As abordagens qualitativas enraizadas no interacionismo simblico ganharam espao na

    sociologia da educao, em particular a etnografia da escola (WOODS, 1999;

    HAMMERSLEY, HARGREAVES, BALL e al.)55 e a etnometodologia (COULON, 1993).

    Foram pesquisadas as interaes e a questo do sentido da escola.

    Foi proposta tambm uma teoria da relao com o saber e com a escola (CHARLOT,

    BEILLEROT, CHEVALLARD e al.)6, que levanta as questes do sentido e da atividade, O

    tema da atividade igualmente o foco das abordagens construtivistas e didticas.

    Observam-se convergncias entre essas abordagens. Por exemplo, a noo da relao com o

    saber cada vez mais usada pelos didticos, em particular, na rea da matemtica e das

    cincias (MAURY e CAILLOT, 2003). Seria difcil (e intil) apresentar aqui todas essas

    correntes. Portanto, nos limitaremos a alguns princpios que, a nosso ver, esto no mago das

    pesquisas atuais acerca do sucesso ou do fracasso sco1ar.

    1.Diante e dentro da escola h desigualdades de classe, de sexo, de cultura, de etnia ou

    raa.2.Essa desigualdade origina-se em bases materiais, financeiras, institucionais. Portanto, o

    combate ao fracasso escolar requer uma atuao contra a desigualdade social, a

    misria, a fome, etc. Uma teoria pedaggica que desconhecer esses aspectos do

    problema corre o risco de cumprir uma funo ideolgica e mistificadora: dar a

    5

    Ver cHARL0T, 1992 e WO ODS, 1999.6 Ver na b ibliog rafia : CHARLOT, 2000 e 2005: BEILIEROT, 1989 e 1996; MO SCONI, 2000;

    HATCHUEL. 2005; MAURY e CAILLOT, 2003.

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    entender que o problema do fracasso seria resolvido se os alunos pobres e sua famlia

    se esforassem.

    Entretanto, essas bases no podem explicar tudo. Na realidade, a desigualdade escolar repousa

    sobre bases sociais objetivas, mas produz seus efeitos por intermdio de processos subjetivos.

    No por ser pobre que o aluno fracassa, por no estudar o suficiente. Porm, isto no quer

    dizer que a pobreza pouco importa: se o aluno no estuda o suficiente, muitas vezes porque

    pobre e tem outras preocupaes que no a escola. A cadeia completa a seguinte: pobre,

    luta para sobreviver, no estuda muito, fracassa. um erro desconhecer a importncia da

    pobreza, outro erro desprezar a implicao do sujeito na produo do sucesso ou do fracasso

    escolar. Ignor-la , na maioria das vezes, substituir o trabalho paciente de transformao real

    das situaes atuais por uma denncia sociopoltica legtima, porm impotente. Alm disso, preciso deixar claro que sujeito e social no so duas palavras opostas, uma vez que cada um

    de ns ao mesmo tempo ser humano, membro de uma sociedade e uma cultura (ou vrias) e

    sujeito singular, original e insubstituvel. Em outras palavras:

    a transformao escolar requer a transformao social; a transformao escolar contribui para a transformao social;

    uma mudana sociopoltica da noite para o dia no basta para resolver osproblemas de aprendizagem da leitura mas pode ser que ajude;

    todos aprenderem a ler no basta para mudar a sociedade mas ajuda, comcerteza.

    O problema contemporneo do sucesso e do fracasso escolar coloca-se nessas tenses entre o

    que social e o que mais especificamente escolar, o que remete s relaes sociais

    estruturais e o que se refere vida psquica do sujeito. O aluno , ao mesmo tempo,

    indissociavelmente, humano, social e psquico (CHARLOT, 2000 e 2005).

    Nessa perspectiva foram realizadas a coleta e a anlise dos dados desta pesquisa.

    3.O ser humano no objeto e nunca poder ser reduzido a esse estado, mesmo se ele

    prprio o quisesse. Portanto, no pertinente considerar o aluno fracassado como

    vtima passiva das classes dominantes. Ele vive uma experincia que interpreta e,

    conforme o sentido conferido a essa situao de fracasso, age e reage de maneira

    diferente. Pode-se ir at mais longe na anlise e perguntar em que medida, como e por

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    que o prprio aluno participa da construo da sua situao de fracasso. a

    perspectiva de Willis, como j foi mencionado. Podemos resgatar tambm a

    abordagem de Howard Becker, com a idia de rotulao, de Irving Goffman, com o

    estudo do estigma e, de modo mais geral, a da sociologia interacionista nas suas vrias

    formas. Segundo Becker, quem rotulado acaba por adaptar o seu comportamento ao

    que se espera dele e, assim, por participar do processo de rotulao (BECKER, 1963).

    De acordo com Goffman, o estigma no deve ser entendido como uma caracterstica

    fsica, psquica ou social da pessoa estigmatizada, mas sim como uma relao entre

    esta ou aquela que a estigmatiza (GOFFMAN, 1975). Pode-se dizer, nessa perspectiva,

    que o sucesso ou o fracasso escolar tambm uma relao social e o efeito de

    processos de rotulao. Ao prolongar essa abordagem se chega idia de que o

    sucesso ou o fracasso escolar no uma coisa, um fato que acontece, mas uma

    situao construda ao longo da histria pessoal, institucional, cultural e social do

    aluno e, ainda, de um conjunto de relaes. Segundo Charlot, preciso pesquisar as

    relaes com o saber e, de modo mais geral, com o aprender, quer fora da escola quer

    dentro e, para tanto, necessrio investigar as relaes do aluno com o mundo, com os

    outros, consigo mesmo, com a linguagem, com o tempo etc. Assim abordados, o

    sucesso e o fracasso escolares deixam de ser objetos sociomiditicos e passam a ser

    objetos de pesquisa.

    Esta pesquisa busca melhor compreender os sentidos do sucesso ou do fracasso escolar na

    mente dos atores, quer sejam alunos, quer sejam professores ou diretores, supervisores, pais

    etc. Portanto, presta ateno aos processos pelos quais os alunos constroem o seu mundo

    escolar, como diz a fenornenologia, definem as situaes, segundo a expresso do

    interacionismo simblico e, de forma mais particular, a de Goffman. Interessa-se tambm

    pelas configuraes das relaes que constituem a relao com o saber.

    4.Que o ser humano no seja objeto traz outra conseqncia: nunca suficiente conhecer

    sua posio social objetiva, embora seja til, e sempre preciso saber qual sua

    posio social subjetiva (CHARLOT, 2000). Cada ser humano ocupa na sociedade

    uma posio que pode ser levantada e analisada de fora, com base em uma

    categorizao objetiva. Por exemplo, o estatstico estabelece uma lista de categorias

    socioprofissionais e encaixa o aluno numa dessas categorias. Esse processo legitimo,

    mas nem sempre suficiente. De fato, quando se trata de um assunto em que importa a

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    questo do sentido, como o caso nesta pesquisa, leva tambm em considerao o

    sentido que o aluno confere, subjetivamente, posio social objetiva que ocupa. Ser

    objetivamente filho de operrio, de desempregado, de negro, de ndio etc., uma

    posio social que pode ser vivenciada de vrias maneiras: com amargura, orgulho,

    vontade de demonstrar (aos demais) o seu valor etc. essa posio subjetiva que

    incide na mobilizao escolar da criana e, s vezes, da sua famlia, e no a posio

    atribuda na classificao estatstica do IBGE.

    5.A escola uma instituio de formao, de cultura, de transmisso e apropriao de

    saber, e no apenas um lugar de reproduo social. Como mencionado anteriormente,

    no por ser pobre que se reprova, mas por no ter adquirido os saberes e construdo

    as competncias atinentes a um determinado nvel de escolarizao. Portanto, a

    questo compreender por que alunos, proporcionalmente mais numerosos nos meios

    populares, no conseguem atingir o nvel esperado.

    Pode acontecer que alunos no consigam aprender porque vivem em condies em que

    quase impossvel aprender: trabalham para sobreviver, sofrem pssimas condies de estudos

    etc. Sobra, entretanto, outro caso: quando o menino fracassa apesar de as condies familiares

    e escolares serem corretas. Por que, em um pas como a Frana, onde a escola pblica boa,

    com material, turmas de 25 alunos, docentes formados e corretamente pagos, h alunosfracassados? Esse problema j no apenas problema do Primeiro Mundo, est se tornando

    nosso tambm, no Brasil. Nesse caso, no so somente as condies de escolarizao que

    devem ser investigadas, igualmente, e antes de tudo, o confronto do jovem com o saber. Se

    o aluno reprovado porque no sabe. Sendo assim, o problema da reproduo passa a ser:

    por que, na escola, os alunos dos meios populares encontram mais dificuldades para aprender?

    Por muito tempo, a sociologia falou da escola, do fracasso e do sucesso, da reprovao, da

    seleo e da reproduo sem pesquisar mesmo esse confronto do jovem com o saber e

    propondo respostas amplas demais. Arbitrrio cultural? Talvez, mas onde, exatamente? As

    crianas de meios populares deparam-se com mais dificuldades do que os seus colegas de

    classe mdia para aprender a ler. Conclui-se que arbitrrio cultural ensinar a ler a essas

    crianas? De nossa parte, claro que no iremos concluir isto. O habitus dessas crianas no

    condiz com as exigncias escolares? Talvez, mas quais disposies psquicas das crianas e

    quais exigncias da escola? Ademais, esse habitus pode ser mudado ou no? Se no pode, a

    sociologia est nos propondo um novo fatalismo, com determinismo inexorvel. Se pode,

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    como sustenta Bourdieu, a questo passa a ser: como transformar o habitus escolar das

    crianas do meio social desfavorecido? E se for assunto de capital cultural, preciso saber

    como transmiti-lo na escola aos jovens que no o herdaram da famlia. Seja qual for a porta de

    entrada para o problema, a porta de sada a mesma: entender o que acontece quando uma

    pessoa se envolve em um ato de aprendizagem, em particular quando se trata da criana e da

    escola.

    Vale a pena assinalar que, na Frana, os socilogos prestaram maior ateno ao que

    chamaram de xitos paradoxais. No se surpreendem quando um aluno oriundo dos meios

    populares fracassa, corno se fosse coisa normal, esperada, lgica. Ao contrrio, admiram-se

    quando uma criana pobre atinge um grande sucesso. Nesse caso paradoxal, no h discurso

    pronto para explicar o fenmeno, necessrio abrir mo dos preconceitos, refletir e pesquisar.Por sinal, interessante tambm o caso dos fracassos paradoxais dos filhos de classe mdia, e

    at de classe mdia alta, fracassos esses que foram pouco pesquisados. Quando se analisam

    dados, quer sejam quantitativos ou qualitativos, o interesse pelas situaes inesperadas e

    paradoxais leva a prestar ateno s margens e no apenas s maiores freqncias.

    6.Aprender requer uma atividade intelectual. Pode-se ensinar, ajudar, acompanhar quem

    aprende, mas ningum pode aprender no lugar do outro. Por sinal, talvez essa seja a

    maior fonte de sofrimento dos docentes: eles so cobrados pelos resultados do ato de

    ensino/aprendizagem, apesar de no poderem produzir diretamente esses resultados

    (CHARLOT, 2005).

    O esquema seguinte apresenta as ligaes bsicas entre os elementos do ato de

    ensino/aprendizagem.

    A atividade intelectual do aluno que produz o saber aprendido.A atividade do professor incide na atividade do aluno (mas no a determina).

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    As condies materiais, financeiras, institucionais etc., incidem nas prticas do professore do aluno (mas no as determinam).

    O saber incide nas atividades do aluno e do professor.Seria possvel completar o esquema introduzindo o grupo de alunos, as condies sociais, a

    histria pessoal etc. Contudo, ao fazer isso, o esquema se tornaria complexo a ponto de no

    esclarecer mais nada. Portanto, nos limitamos ao essencial.

    O esquema evidencia que:

    as atividades do aluno e do professor se constroem na encruzilhada entre, por um lado,exigncias cognitivas e epistemolgicas (que decorrem da natureza do saber a ser

    apropriado) e, por outro, condies materiais, financeiras e institucionais;

    a atividade do aluno o ponto de articulao entre os demais elementos do ato deensino/aprendizagem.

    Portanto, a pesquisa deve prestar ateno particular questo da atividade. Esta remete a dois

    assuntos ligados, mas diferentes: a questo da mobilizao para e na atividade e a questo da

    eficcia.

    7.O conceito de mobilizao passou a ser importante nos debates contemporneos sobre a

    escola e o sucesso escolar.

    Em primeiro lugar, pesquisas mostraram que a mobilizao da famlia um elemento

    essencial nas histrias de xito paradoxal (LAURENS). Quando os pais encontram os

    professores, valorizam a escola e o que ela ensina, as chances de o filho ser bem-sucedido so

    maiores. So maiores tambm quando os pais so militantes (pouco importa do qu), uma vez

    que os militantes valorizam o saber.

    Em segundo lugar, as pesquisas sobre a relao com o saber mostraram a importncia da

    mobilizao do prprio aluno. Charlot e sua equipe tentaram entender por que certos jovens se

    mobilizam para uma atividade intelectual, enquanto outros permanecem indiferentes ao que a

    escola ensina. Falam de mobilizao e no de motivao, por considerarem que se motiva

    algum de fora, ao passo que se mobiliza a si mesmo a partir de dentro. O que importa o

    motor interno da ao que leva a pessoa a adentrar a atividade intelectual. Beillerot e sua

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    equipe pesquisaram a questo dos desejos, conscientes e inconscientes, que sustentam a

    relao com o saber. (BEILLEROT, 1996).

    S aprende quem entra em uma atividade intelectual, e s entra quem est animado por um

    desejo. Essa mobilizao depende do sentido que o aluno confere escola, ao saber, ao fato

    de aprender, quer na escola quer fora dela. Portanto, esta pesquisa atribui grande importncia

    questo do sentido e da mobilizao, quer entre os alunos, obviamente, mas tambm entre

    os professores e na comunidade que cerca a escola.

    8.Para aprender preciso se mobilizar intelectualmente, mas tambm desenvolver uma

    atividade eficaz. Alexis Leontiev, colega e seguidor de Vygotsky, define a atividade

    como uma unidade entre trs elementos: um motivo, um objetivo (ou um resultadoantecipado) e uma ao (constituda por uma seqncia de operaes). Em sua

    opinio, o sentido a relao entre o motivo e o objetivo, e a eficcia a relao entre

    a ao e o objetivo (LEONTIEV, 1984). Essa conceituao da atividade evidencia que,

    por necessria que seja a mobilizao do aluno, ela no suficiente. Estar com

    vontade de saber um bom ponto de partida, mas no garante o sucesso na chegada.

    A questo da eficcia da atividade de aprendizagem no est ausente desta pesquisa, mas

    permanece nas suas margens. A pesquisa focaliza a questo do sentido, da mobilizao e no

    entra diretamente nos aspectos epistemolgicos, metodolgicos ou didticos da atividade dos

    alunos e de seus professores. Esse ponto muito importante, mas exigiria a construo de

    uma rede de pesquisa mais ampla, provida de maiores recursos e, sobretudo, com grande

    disponibilidade de tempo para novas investigaes.

    ESTADOS UNIDOS E FRANA: DUAS EXPERINCIAS DE POLTICAS PARA

    MELHORAR O NVEL DE FORMAO DA POPULAO

    Os pases do chamado Primeiro Mundo comearam a se preocupar com a modernizao dos

    seus sistemas educacionais a partir do fim da dcada d 1950 e ao longo da dcada d 1960.

    Estavam entrando no perodo de crescimento econmico acelerado que se seguiu

    reconstruo da economia europia depois da Segunda Guerra Mundial. O desenvolvimento

    econmico fez com que se tornasse necessria uma mo-de-obra mais qualificada e, de modo

    geral, uma populao com nvel de formao mais alto. O lanamento ao espao do primeiro

    Sputnik, pela URSS, em 4 de outubro de 1957, contribuiu tambm para chamar a ateno dos

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    pases ocidentais, em primeiro lugar dos Estados Unidos, sobre a importncia da educao na

    sociedade moderna. Ao longo dos anos 1960 foram publicados muitos relatrios, foram

    propostas numerosas reformas e implantadas vrias medidas.

    Nos Estados Unidos da dcada de 1960, a questo mais polmica foi a da democratizao

    racial das escolas. Em 1966, James Coleman publicou seu famoso relatrio Equality of

    Educational Opportunity (Igualdade de oportunidades educacionais), em que sustentava que a

    influncia dos colegas no aproveitamento escolar era muito significativa. Assim, a segregao

    dos alunos de condio socioeconmica mais baixa era prejudicial. Consequentemente, era

    necessrio integrar os jovens pobres das minorias tnicas nas mesmas escolas em que

    estudavam os brancos de classe mdia. Comeou o debate a favor ou contra o h&isiig

    (deslocamento por nibus de jovens negros para escolas situadas em outros bairros que noaqueles onde moravam).

    Na Europa, a questo candente da dcada de 1960 foi a da escola secundria, ou seja, da

    abertura a todos os jovens das sries entre o final do ensino primrio e o inicio do ensino

    mdio (o que corresponde no Brasil atual aos ltimos anos do ensino fundamental):

    comprehensive school/ inglesa, collge francs e seus equivalentes em outros pases, em

    particular na Itlia e nos Pases Baixos.

    bvio que no possvel relatar aqui os debates, tentativas, reformas, etc. relacionadas de

    uma forma ou de outra com as polticas de reverso do fracasso escolar. Por outro lado,

    importante aproveitar a experincia de pases que se depararam com o problema antes do

    Brasil, especialmente em se tratando de um relatrio da UNESCO, organizao internacional

    voltada para educao, a cultura e a cincia. Diante disso, sero apresentados, a seguir, dois

    casos em que se articulam a poltica educacional e preocupaes pedaggicas: o movimento

    de reforma do ensino da matemtica e das cincias nos Estados Unidos, da dcada de 1960 de 1990, e o dispositivo francs das Zones dPrioritaries (reas Educacionais Prioritrias),

    implantado em 1982 e ainda vigente.

    A REFORMA DO ENSINO DE MATEMTICA E DE CINCIAS NOS ESTADOS

    UNIDOS

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    Comeamos por indicar as principais etapas do movimento de reforma e, a seguir,

    apresentamos os seus norteadores sciopolticos e pedaggicos7.

    O movimento de reforma

    Em outubro de 1957, o Sputnik russo foi lanado ao espao. Em 1958, a Organizao de

    Cooperao e Desenvolvimento Econmico (OCDE) criou um Escritrio do Pessoal

    Cientfico e Tcnico com o intuito de melhorar a eficcia do ensino de matemtica e de

    cincias. Em 1959, a OCDE organizou na Frana um seminrio considerado como o ato de

    fundao da reforma da matemtica moderna. Esta foi implantada na dcada de 1960.

    Propunha uma aprendizagem precoce das estruturas lgico-matemticas abstratas. A reforma

    deparou-se com muitas dificuldades e o movimento a favor do ensino desse tipo dematemtica refluiu na dcada de 1970.

    No entanto, no se renunciou idia de uma reforma do ensino de matemtica e de cincias,

    muito ao contrrio. Em 1980, nos Estados Unidos da Amrica, National Council of Teachers

    of Mathematics (NCTM) Conselho Nacional dos Professores de Matemtica deu incio

    a uma mobilizao dos docentes, professores universitrios, pesquisadores, acadmicos e

    autoridades pblicas, da qual decorreu, em 1989, o documento fundamental da reforma:

    Curriculum and Evaluation Standards for School Mathematics (Parmetros de Currculo e

    Avaliao para a Matemtica na Escola).

    A presso por uma reforma cresceu na dcada de 1980, por causa da publicao, em 1983, de

    um relatrio alarmante que iria se tornar famoso: A Nation at Risk: The Imperative For

    Educational Reform (Uma nao em perigo: a necessidade de uma reforma educacional). No

    mesmo ano de 1983, uma comisso publicou um relatrio cujo ttulo constitua em si um

    programa de ao: Edaca/IngAmeriransfor lhe 21s/ Ceinurg: A plan f ar/loa for improziingrnathernalics, science and /echnofogy criara/loa for ali American elemen/arj and secoadar

    s/uden/s se 1/mi their ac!iievemea/ is lhe hes/ ia lhe worid

    I 1995 ou seja, Educando americanos para o sculo XXI: um plano de ao para melhorar

    a educao matemtica, cientfica e tecnolgica de todos os alunos norte-americanos do

    7

    Esta seo sobre os Estados Unidos utiliza amplamente, com autorizao daautora, um captulo da tese de doutorado defendida, em 2002, por Veleida Anahi

    da Silva , na Universida de d e Paris 8 (Franc a).

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    ensino fundamental e mdio, de modo a que seu sucesso seja o maior do mundo por volta de

    199588.

    Em 1985, a American Association for the Advancement of Science (AAAS) Associao

    Norte-Americana para o Avano da Cincia) deu incio a um projeto que levou, em 1989, a

    um livro de referncia, Science for All Americans (Cincia para todos os Americanos). Para

    definir um currculo que possibilitasse atingir os objetivos enunciados no documento, foi

    constituda uma rede de trabalho. Seis equipes, cada uma com 25 pessoas (docentes e pessoal

    administrativo dos vrios nveis de ensino e disciplinas), em cinco estados, e com o apoio de

    consultores que participaram do projeto da AAAS, trabalharam durante trs anos. Com base

    nesse trabalho, um grupo transversal de docentes elaborou um questionrio, dirigido a

    milhares de pessoas. Levando em conta cerca de 1.300 respostas, recebidas de 46 estados, ogrupo transversal redigiu o relatrio definitivo, publicado em 1993:

    BenchmarksfrrScienceLileracj (Referncias para uma cultura de base cientfica). Alm disso,

    a AA.AS produziu livros, CDRoms, etc., e oferece programas de formao para os docentes.

    A reforma ainda faltavam os Standards (Parmetros), que definiriam de forma precisa a

    organizao do ensino. J em 1990, a National Science Teachers Association (NSTA)

    Associao Nacional dos Professores de Cincias, deu incio a um projeto de reforma

    curricular e, em 1992, publicou um documento. Em 1991, a NSTA e outras organizaes

    pediram ao National Research Council (CNR) Conselho Nacional de Pesquisa , da

    Academia Nacional das Cincias, que coordenasse a implementao de parmetros para o

    ensino das cincias. Em 1994, um relatrio preliminar foi enviado a 18.000 pessoas e a 250

    grupos. Em 1995, foi publicado o relatrio definitivo do CNR: Natioiia/Scjence Educaiin

    Standards (Parmetros Nacionais para a Educao Cientfica).

    O estado federal acompanhou o processo por intermdio do EisenhoiverNaalPrqgram(Programa Nacional Eisenhower), que coleta e produz material pedaggico, assessora as

    reformas locais, distribui verbas para a formao inicial e continuada dos professores de

    matemtica e cincias, etc.

    8

    A d ata de 1995 se o bt m soma ndo a 1983, ano de pub lic a o do relatrio, os 12anos do ensino bsico norte-americano. Por ensino bsico entende-se, aqui, o que

    c orrespond e, no Brasil, ao ensino fund amenta l e md io.

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    Apresentamos esse movimento de reforma com alguns detalhes porque ele revela um modelo

    interessante de elaborao e implementao de reforma educacional.

    Nesse modelo, a reforma no elaborada por um pequeno grupo de amigos do ministro, nem

    por um grupo partidrio ou universitrio. , de fato, um movimento amplo, que liga vrias

    associaes e autarquias: associaes de professores de matemtica ou de cincias,

    Associao para o Progresso da Cincia, Academia de Cincias, Congresso e governo federal.

    A ningum permitido apoderar-se do assunto como sendo seu, afastando os demais. Alm

    disso, um pr-projeto foi elaborado e amplamente divulgado. As reaes foram levadas em

    conta para a redao do projeto definitivo. Nesse movimento, a opinio dos docentes contou

    muito. Eles aplicariam a reforma, o que lhes dava o direito de participarem, com um grande

    peso, do seu processo de elaborao. Da sua parte, os docentes assumiram plenamente oprojeto, que no passou a ser um mero libi para obter melhores salrios e condies de

    trabalho.

    Vale a pena salientar tambm que o processo durou aproximadamente dez anos, quer se

    tratasse do ensino da matemtica ou das cincias. Pode-se considerar que demorou muito.

    Pode-se, ao contrrio, ressaltar que o resultado foi amplamente aceito e que a reforma no foi

    alterada e anulada alguns anos mais tarde, ao passo que no Brasil a reforma da matemtica

    moderna, concebida por um pequeno grupo de especialistas, teve um tempo de vida bastante

    curto.

    Por fim, no foram elaborados programas oficiais para serem respeitados risca. A reforma

    recomenda e sugere s escolas (isto , neste caso, aos conselhos locais que dirigem as escolas

    boards of education) contedos, mtodos e estratgias que foram elaborados por meio de

    consulta ampla e aberta.

    Os norteadores sociopolticos e pedaggicos da reforma

    O documento de 1983 Educatin Americaus for lhe 2lst Ceuturji no deixa dvida a

    respeito do motivo essencial da reforma: trata-se de concorrncia econmica e de poder

    internacional.

    A iVaco que, de modo eip etacu lar e audaq, conduziu o mundo para a

    idade da tecnoleriia esta fracassando hoje em prover as suas prop riascrianas dos iustrsuuentos intelectuais necessrios para o sculo XXI

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    (..j. Nossas criancas poderiam passar a ser indivduos atrasados em um

    mundo tecnoloico. No devemos permitir que isso ocorra; a Amrica

    no deve se tornar um dinossauro industrial9.

    As citaes desta seo foram extradas da tese de doutorado de Veleida Anahi da Silva

    (2002) e traduzidas pelos responsveis por esta pesquisa.

    As mesmas idias so encontradas no livro da AAAS, Science for All Americans, publicado

    em 1989:

    A primeira preocupao o aparente declnio econmico ela Amrica.

    Os fracassos dos Estados Unidos no que tange educao acabarampor ler considerados coletivamente como a principal fonte dos fracassos

    econmicos.

    Essa preocupao econmica levou a objetivos de democratizao do ensino da matemtica,

    das cincias e da tecnologia. O documento de 1983, j mencionado, declarava que as bases

    que definem a alfabetizao, cultura bsica do sculo XXI,

    so necessrias a todos10 os estudantes no apenas aos sbios de

    amanh, no apenas aos que tm talento e fortuna, no apenas ao

    pequeno grupo para quem a excelncia uma tradio social e

    econmica. Todos os alunos precisam ter bases slidas em matemtica,

    cincias e tecnologia.

    Em 1989, o livro da AAAS dizia a mesma coisa:

    Quando se contemplam as realidades demogrficas, as necessidades

    nacionais e os valores democrticos, aparece de maneira clara que a

    nao no pode mais seguir ignorando a educao cientfuica para todos

    os estudantes. J no se deve aceitar que a raca, o idioma, o sexo ou a

    condico econmica sejam fatores que determinem quem recebe e

    910

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    quem no recebe uma boa educao em cincias, matemtica e

    tecnologia.

    E aqui fica claro o quadro econmico e sociopoltico da reforma: um pas que pretende ser

    uma potncia econmica deve proporcionar urna boa educao em cincias, matemtica e

    tecnologia a todos os seus filhos, includos os pobres, os negros, as mulheres, os imigrantes,

    etc. H mais de 20 anos que os Estados Unidos esto cientes disso.

    Para que a educao possa atingir os que ainda no atingia, preciso mudar os mtodos

    pedaggicos. So iguais as concluses dos grupos que elaboraram as reformas do ensino de

    matemtica e do ensino de cincias.

    Para levar a matemtica a todos os jovens preciso contemplar suas necessidades, orientao

    intelectual, estilo de aprendizagem. Deve-se ensinar uma matemtica em relao com os

    problemas do mundo real (real-ivorld prohlemsj. Portanto, recomendam-se explorao,

    experimentao, grupos de discusso, inquiry.

    Inquiry: esta palavra sempre repetida, que pode ser traduzida aproximadamente por investi

    ga&e, resume a reforma pedaggica em matemtica e, ainda mais, em cincias. No relatrio

    do NRC de 1995, l-se:

    A iuv6stlgao iiqui;y,) sobre questbcs autnticas ,geraelasp6las

    e.>perlncias elos alunos a estratgia central para ensinar a cincia.

    Os docentes focaliam a iveestigaccio, de frma predominante, sobre

    fenmenos reais, nas salas de aula, fora delas ou nos laboratrios, l

    onde investigaces podem ser propostas aos alunos, ou sej, l onde

    possvel gui-los para elaborarem investigaccies, nos limites da, suas

    capacidades (NRC, 1995, citado por Silva, 2002).

    Inquiry uma atividade em colaborao com outros alunos, em interao com o docente e

    com o meio ambiente. tambm um conjunto de atividades: coletar, observar, anotar,

    desenhar, medir, contar, entrevistar etc. ainda um mtodo inspirado pelas abordagens

    cientficas. Inquiry muda contedos e mtodos da educao cientfica e, ainda, a relao com

    o mundo ambiente, com os outros, consigo mesmo e, afinal, a relao ao mesmo tempo com a

    cincia, com o ensino, com a escola (SILVA, 2002).

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    decidido levar 80% da gerao at esse nvel no ano 2000, e os outros 20% deviam receber

    uma formao profissionalizante pela via da aprendizagem prtica nas lojas, usinas, oficinas,

    etc. A oferta dos lycees (liceus), encarregados do ensino mdio, foi ampliada, acrescentando

    sries profissionais s sries gerais e tecnolgicas j existentes. A meta de 80% era ambiciosa

    demais e no foi atingida. Todavia, hoje, na Frana, cerca de dois teros dos jovens de cada

    gerao completam o ensino mdio. Os demais ora se formam pela aprendizagem

    profissionalizante fora da escola, ora abandonam o ensino mdio antes do final, ora constam

    dos cerca de 10% dos jovens em situao de fracasso escolar grave. Vale a pena assinalar que,

    em todos os grandes pases do chamado Primeiro Mundo, se encontra uma minoria de 8% a

    15% de jovens aqum do nvel de formao considerado como mnimo no pas.

    Para entender essa situao, preciso distinguir o fracasso escolar relativo e o fracassoabsoluto ou quase absoluto (CHARLOT, 1987). Quando um jovem no aprende a ler e no

    tem domnio das quatro operaes da aritmtica, faltam-lhe as prprias bases da cultura

    escolar e isto um smbolo de fracasso. Ainda h, na Frana e no Brasil, esse tipo de jovem.

    Todavia, entre os alunos considerados fracassados na Frana, a grande maioria entrou no

    colgio e completou o que corresponderia aqui ao ensino fundamental; esses alunos sabem ler

    e fazer contas, embora tenham dificuldade de entender as sutilezas de um texto. Na Frana,

    eles so considerados fracassados, enquanto no Brasil, constam da maioria da populao. Seufracasso relativo apenas ao nvel de sucesso da maioria dos jovens, e diferente do fracasso

    chamado por simetria de absoluto dos jovens que nem conseguem ler ou nada entendem do

    que lem.

    Os socilogos da reproduo no prestaram ateno a essa diferena, ao passo que a escola,

    ao mesmo tempo, educa os jovens e contribui para a reproduo social. O exemplo da Frana

    evidencia a importncia dessa distino. Quando criou o colgio e, assim, abriu a todos o

    ensino secundrio, o governo francs organizou trs sees diferentes e, de fato, socialmente

    marcadas. Ao fazer isto, democratizou o sistema de ensino, mas manteve para os filhos das

    classes dominantes uma seo de excelncia. Quando o colgio passou a ser nico,

    permaneceu a seleo socioescolar graas ao ensino mdio, em que, aos poucos, a

    Nem todos conseguem o batca/aiaiat, exame e diploma nacional de final do ensino mdio. que

    da direito automatico a uma vaga em uma universidade (no ha vestibular na Frana; quem

    obtm o hataJaijrea1, que um exame e no um concurso, pode entrar e entra nauniversidade). Todavia, mais de 800o desses jovens conseguem esse diploma seo

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    matemtica e fsica se tornou a seo da elite2. Hoje, mais de dois teros de cada gerao

    cursa o ensino mdio, mas em sees que, de fato, so hierarquizadas. A sociedade capitalista

    moderna precisa de uma escola que hierarquize os jovens e, ao proceder desta maneira, cria o

    fracasso relativo. Ela no precisa de jovens que no saibam ler, que fiquem desempregados e

    que s vezes se tornam violentos, entram no trfico, ou seja, de jovens que constituem mais

    uma fonte de despesa do que uma oportunidade de ganho.

    Portanto, o fracasso escolar assim entendido no beneficia a sociedade capitalista moderna,

    nela includa a sociedade neoliberal globalizada. E um investimento perdido e pressupe

    despesas com polticas de assistncia social, de segurana, de represso. Isto se tornou muito

    claro na Frana atual. Os fenmenos de imigrao (com uma maioria de imigrantes islmicos

    oriundos de pases africanos), de crise industrial e desemprego, de segregao espacial dospobres, articulados uns com os outros, levaram a uma situao em que existem, na periferia de

    cidades grandes ou mdias, bairros onde a maioria da populao constituda de filhos e

    netos de imigrantes, hoje franceses, pobres, desempregados. As escolas desses bairros

    acolhem at 80% de jovens oriundos dos fluxos imigratrios. A maioria desses jovens

    calma, estudiosa, etc., mas h uma minoria agitada, revoltada, engajada no trfico ou na

    militncia islmica fundamentalista. Essa minoria foi recentemente s ruas e evidenciou o

    quanto profunda a fratura social nos bairr os da periferia.

    Em uma situao desse gnero, a questo educacional muito importante. A Frana tentou

    enfrentar o problema, que j tem quase 25 anos, por meio das Zunes dLducation Pdorilaires

    (ZEP) Areas de Educao Prioritrias).

    A POLTICA E A PEDAGOGIA DAS ZONES DDIJCTION PRIORITA IRES (REAS

    DE EDUCAO PRIORITRIAS)

    O conceito de reas de Educao Prioritrias nasceu na Inglaterra, em 1967, no relatrio de

    Lady Plowden entregue ao governo trabalhista, que havia solicitado recomendaes para

    enfrentar a crise

    No liceu francs existem vias diferentes (geral, tecnica e prossiunalizante) e, em cada uma

    delas, sees diferentes, conforme as disciplinas ou tecoicas dominantes ou as profisses de

    referncia das escolas primrias inglesas. O relatrio props, entre vrias medidas, uma

    poltica de discriminao positiva (poithe dLcrirniatn), atribuindo mais verbas a escolas ou

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    reas socialmente prioritrias (Educacina/PriritjAreas). O dispositivo foi implantado em 1968

    e abandonado aos poucos depois de uma avaliao negativa, em 1972, e da chegada ao poder

    dos conservadores e de Margaret Thatcher. Na mesma poca, a idia foi adotada por um

    sindicato de docentes franceses, e da passou para o Partido Socialista, em 1977. Em maio de

    1981, o socialista Franois Mitterrand se elegeu presidente da Repblica e, j em julho, o

    governo anunciou a criao das Zones dducazionprortaires. Essas ZEP, como so

    comumente chamadas, foram organizadas em 1982 e a idia se espalhou por vrios pases da

    Europa e mesmo alm dela.

    A idia bsica a de discriminao positiva, traduo direta da expresso inglesa. O objetivo

    fundamental das ZEP, em todos os textos oficiais, o combate ao fracasso escolar, em

    particular o fracasso das crianas das famlias desfavorecidas. Trata-se de atribuir maisrecursos s escolas freqentadas por essas crianas, que receberam menos da sociedade.

    discriminao, mas positiva. Notem que se poderia equiparar essa idia de dvida social

    usada no Brasil. Todavia, logo se percebeu que esse suplemento de verba apenas permitia

    diminuir em dois ou trs o nmero de alunos em cada turma, o que no mudava a situao de

    maneira sensvel. Portanto, idia de discriminao positiva foi acrescentada a de projeto.

    Concretamente, uma ZEP contempla, no caso mais freqente, algumas escolas maternais e

    primrias (l a 5a sries) e um ou dois colgios (6 a ga sries). S podem participar das ZEP

    estabelecimentos escolares pblicos (que representam mais de 80% dos estabelecimentos

    franceses). A ZEP designada como tal pelo Ministrio da Educao Nacional, em uma

    articulao entre os escales central e local do ministrio. Os critrios utilizados so de ordem

    social e escolar, em particular: categoria socioprofissional dos pais, percentual de

    desempregados, nmero de intervenes da assistncia social, percentagem de alunos

    estrangeiros, atrasados etc. Algumas vezes, ocorreram presses polticas locais, mas so casos

    raros. As unidades dependem administrativamente do fiscalizador local das escolas

    (funcionrio pblico), mas, na maioria dos casos, o personagem mais importante o

    coordenador da ZEP. Trata-se de um docente, cujo horrio de trabalho reduzido em 5O (ou

    100% nas maiores ZEP).

    A ZEP elabora um projeto, que leva em conta o projeto de cada escola, de carter coletivo. O

    papel do coordenador fundamental para ultrapassar o isolamento de cada escola, fomentar a

    elaborao de um projeto coletivo e, a seguir, acompanhar a sua realizao. Muitas vezes, oprojeto focaliza aes ligadas leitura (inclusive a organizao de uma biblioteca), cultura

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    geral (visitas a museus, convites a escritores ou pintores locais), s relaes com o bairro

    (jornal ou rdio da ZEP), a eventos interculturais (festivais, por exemplo). A administrao

    incentiva muito, em particular por meio das verbas atribudas, as parcerias entre as escolas,

    por um lado e, por outro, associaes culturais e sociais, prefeitura, instituies culturais

    (teatro, museu...), etc. Em princpio, o projeto elaborado para trs anos e a ZEP avaliada

    no final desse perodo. De fato, h pouca avaliao institucional das ZEP.

    A principal dificuldade com que se depara o dispositivo ZEP que ela se transforma em

    instituio permanente. rarssimo que uma ZEP saia do dispositivo depois de trs anos. A

    maioria das ZEP criadas em 1982 ainda existe e o nmero de ZEP aumentou muito: eram 362

    em 1982, so 710 em 2005. Para enfrentar essa dificuldade, o ministrio criou, em 1998, redes

    de educao prioritria, ou seja, dispositivos mais leves e flexveis que as ZEP quepossibilitam acolher escolas a serem ajudadas, mas sem participao plena na ZEP e, tambm,

    dar uma ajuda s escolas que estavam em ZEP quando esta no foi renovada. Entretanto,

    permanece a dificuldade bsica. Ajudam-se escolas de um bairro para elas melhorarem o nvel

    de sucesso dos alunos. Caso melhorem mesmo esse nvel de sucesso, saem da lista das escolas

    com dificuldades e perdem a verba suplementar com o risco de retornar s dificuldades.

    Caso as escolas no tenham melhorado nada, permanecem na lista das escolas com

    dificuldades, e se pode colocar a questo de saber por que uma escola que no soube usar averba suplementar para resolver os seus problemas iria receber nova verba.

    Alm disso, os franceses cometeram o mesmo erro dos ingleses: atribuiram aos docentes de

    ZEP um prmio insuficiente para atrair os mais experientes e que complica a questo da

    eliminao do dispositivo. Ensinam nas ZEP mais docentes novos do que em outras regies.

    Na realidade, o trabalho nessas escolas mais difcil, o prmio no compensa e uma parte dos

    docentes que a trabalha no tem outra opo. Se eles investirem muito, a ponto de melhorar a

    situao, o salrio baixa porque a ZEP acaba e, com ela, o prmio ZEP!

    Outra dificuldade fundamental de ordem pedaggica. Aconselha- se a ZEP a fazer projetos

    relacionados com a vida cotidiana dos alunos, a se ligar ao bairro (os franceses no falam em

    comunidade), a se abrir etc. A pedagogia oficial das ZEP prima da pedagogia valorizada

    pela reforma do ensino das cincias nos Estados Unidos. Mas, paralelamente, os docentes

    devem cumprir as obrigaes dos programas oficiais e so avaliados em relao a eles. Dessa

    forma, encontram-se nas ZEP, nas suas escolas e classes, por um lado, uma pedagogiacotidiana que hesita entre a tradio e o salve-se quem puder e, por outro, projetos

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    interessantes que devoram o tempo necessrio para cumprir o programa. As ZEP no

    resolveram o problema que fica tambm no centro da reforma do ensino da matemtica e das

    cincias nos Estados Unidos: a dupla injuno contraditria (o ckubk bind da teoria da

    comunicao) de levar os alunos a um saber constitudo, socializado, predeterminado e de

    acompanhar as suas experincias, descobertas, investigaes.

    Talvez seja por isso que a avaliao das ZEP no leve a concluses otimistas. preciso ter

    cuidado com esse tipo de avaliao nacional de um dispositivo por natureza local. Existem

    unidades cuja existncia no ultrapassa o documento oficial: o responsvel redige o projeto,

    as escolas compartilham o dinheiro e, na verdade, nada acontece. H outras ZEP que atingem

    resultados bastante positivos, inclusive no que tange s aprendizagens. Entretanto, a avaliao

    nacional permite ter uma idia dos pontos fortes e das fraquezas do dispositivo. Ora, todas asavaliaes realizadas, desde 1982, chegam s trs mesmas concluses:

    1.o dispositivo ZEP eficaz em diminuir a tenso, os conflitos, a violncia nas escolas e

    melhorar a vida cotidiana de cada um;

    2.o dispositivo no mostra eficcia nenhuma no que diz respeito s aprendizagens e

    questo do sucesso e do fracasso escolar: sob esse ponto de vista, no diminui a

    discrepncia entre as escolas das ZEP e as demais;

    3.no entanto, essa discrepncia no cresceu, ao passo que as condies sociais de vida

    nesses bairros pioraram. Pode-se considerar que a existncia das ZEP impediu que o

    fracasso escolar passasse a ser ainda maior.

    Hoje, os franceses consideram que as ZEP constituem um dispositivo positivo, mas que no

    resolvem o problema do fracasso escolar.

    O BRASIL: DESAFIOS DA FORMAO DA POPULAO

    Os ventos do ps-guerra que sacudiram os Estados Unidos e a Frana, no bojo dos quais se

    colocaram novos desafios para a educao nacional daqueles pases, tambm se fizeram

    presentes no Brasil. Na verdade, esse movimento em direo a uma escola que enfrentasse as

    exigncias do mundo contemporneo parecia explodir no sculo XX, quando o Brasil iniciava

    de forma mais contundente a passagem de uma economia predominantemente rural para a

    urbana, industrializada.

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    A despeito de tudo o que se tentou realizar anteriormente, s na aproximao da metade do

    sculo XX o pas iria construir um sistema educacional para atendimento s grandes massas:

    na estimativa de (SAVIANI, 2004, p. 50-5 1), entre 1933 e 1998, enquanto a populao global

    do pas quadruplicou, a matrcula geral aumentou 20 vezes, passando de 2.238.773 para

    44.708.589 alunos3.

    A partir da dcada de 1960, intensas experimentaes educacionais aconteceram tambm no

    interior do campo educativo, pressionando pela realizao de reformas que culminaram em

    novas leis federais (1961, 1971 e 1996). Mas o pas terminou o sculo com uma gama de

    problemas educacionais a serem enfrentados, alm dos que ainda haviam sido herdados do

    sculo XIX por exemplo: taxas relativamente altas de analfabetismo da populao a

    requererem aes especficas quanto os que chegavam com o novo sculo se avizinhando como, por exemplo, a problemtica da incluso digital. Assim, era preciso universalizar o

    ensino primrio (o que fez, por exemplo, a Frana no incio do sculo XX) e o ensino

    fundamental (a Frana, nos anos 1960 e 1970), generalizar o ensino mdio (Frana anos

    1980 e 1990, ainda no estando concludo esse esforo) e expandir o ensino superior. Mas, ao

    contrrio da Frana, que distribuiu tais aes educativas ao longo do tempo, no Brasil est

    sendo preciso fazer tudo isto concomitantemente, desde a alfabetizao de adultos criao

    de um sofisticado sistema de ps-graduao nacional.

    A Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional em vigncia, seus diversos aparatos

    jurdicos de regulamentao e complementaridade e o corpo de diretrizes e referncias

    como os Parmetros Curriculares Nacionais podem ser considerados equivalentes, no

    plano da necessidade de aes, ao que outros pases, tais como Estados Unidos e Frana,

    tambm sentiram4. Mesmo assim, dadas as imensas diferenas entre aqueles pases e o

    Brasil, mais complicado pinar um programa especfico que tenha, aqui, uma natureza

    semelhante ao que foram as ZEP na Frana ou a reforma do ensino da matemtica e das

    cincias nos Estados Unidos, na busca do enfrentamento do que se configurava, para aqueles

    pases, em uma situao de fracasso escolar5.

    A prpria noo de fracasso escolar no Brasil parece ser bastante difusa; no h ainda, no

    plano da ao, uma agenda na qual se possa indicar o que vem conseguindo reunir os

    diferentes segmentos sociais ao redor da priorizao da educao nacional e da busca do

    sucesso escolar. Do mesmo modo, no plano da construo de conhecimento sobre a temtica,o impacto dos estudos parece se restringir ao uso que deles se faz no mundo acadmico.

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    Muitos desses trabalhos, diga-se, so bastante significativos como o caso do estudo

    seminal que foi desenvolvido por Patto, em um livro que ajudou a formar, desde ento, vrias

    geraes de educadores brasileiros (PATTO, 1999). Por outro lado, parte da produo ainda

    rudimentar, como deixa transparecer um estudo desenvolvido por (ANGELUCCI e/ai. 2004),

    que abordam o estado da arte da pesquisa sobre o fracasso escolar no perodo de 1991 a 2002

    na Universidade de So Paulo USP.

    Angelucci e outros identificaram quatro concepes de fracasso escolar como fontes

    norteadoras das pesquisas analisadas. A primeira entendia o fracasso escolar como um

    problema psquico em qu havia uma certa culpabilizao das crianas e de seus pais. De

    acordo com aqueles autores, tais pesquisas partiam do princpio de que o fracasso escolar se

    deve a da ccpacidade intelecinal dos alunos, decorrentes de problemas emocionais. A segundaconcepo enfocava o fracasso escolar numa perspectiva tcnica, ou melhor, na inadequao

    das tcnicas de ensino. Assim, atribua-se o fracasso do aluno falta de domnio da tcnica

    correta por parte do professor. Havia, portanto, uma transferncia da culpa do aluno para o

    professor. O enfoque mudava quase que radicalmente na terceira concepo, ao abordar o

    fracasso escolar como uma questo institucional. Aqui o entendimento era que o fracasso era

    produzido, na medida em que considerava a escola como instituio inserida em uma

    sociedade de classes regida pelos interesses do capital, sendo a prpria poltica pblica, aservio daqueles interesses, um dos determinantes desse fracasso. A quarta e ltima

    concepo, ainda que calcada na mesma lgica anterior, isto , na sociedade de classes,

    deslocava o foco das atenes para o interior da instituio escolar, mais especificamente,

    para nas relaes de poder estabelecidas no interior da escola e aqui se partia do princpio

    de que a escola, ao estruturar-se na cultura dominante, estaria praticando um ato de violncia,

    pois passaria a no reconhecer, ou a desvalorizar, a cultura popular.

    Numa viso longitudinal, pode-se afirmar que as elevadas taxas de reprovao e de evaso

    constituem objeto de pesquisas e de polticas pblicas h longo tempo. Mudam, porm, as

    suas percepes e explicaes. Nos anos 1960, eram freqentes as anlises que realavam a

    pobreza dos alunos (e em muitos casos dos professores) e a insuficincia de recursos, mtodos

    e tcnicas da escola para promover o seu sucesso, aplicando-se com freqncia a teoria dos

    sistemas, Os insumos, basicamente, explicavam os resultados. Deslocando o foco para a

    caixa preta, foram importadas concepes sobre a privao cultural dos alunos, que deveria

    ser suprida a partir da pr-escola. A esta concepo de ausncia de cultura do aluno ou de sua

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    deficincia, contrapuseram-se crticas antropolgicas de grande peso que contestaram a

    cultura da pobreza e as suas polticas compensatrias. Poppovic, no Brasil, foi uma das

    principais autoras a refutarem essa perspectiva, propondo o conceito de marginalizao

    cultural (POPPOVIC, 1972). A criana socialmente desprivilegiada possui uma cultura rica,

    voltada para os desafios do ambiente em que vive, capaz de assustar uma criana de condio

    social mais alta. Entretanto, a sua cultura desvalorizada e marginalizada pela sociedade e

    pela escola, que, assim, impe requisitos.

    A esta viso antropolgica e psicolgica correspondeu, no campo da sociologia, a teoria da

    reproduo, j mencionada. Uma das obras-chave foi a de Cunha, que confrontou o discurso

    liberal da igualdade de oportunidades com as condies concretas da educao brasileira,

    concluindo que o acesso e a qualidade esto desigualmente distribudos (CUNHA, 1975).Mais ainda, a escolarizao, ao avaliar o aproveitamento, se organiza para premiar as aptides

    desenvolvidas pelas classes no-trabalhadoras. As chamadas razes de ordem intelectiva que

    impedem o progresso escolar so, na verdade, geradas por distines sociais prvias que no

    refletem o mrito individual. Assim, a escola contribui para reproduzir as linhas de classe.

    A essa posio, quase fatalista, se contraps outra, ainda nos anos 1970, que enfatizou os

    fatores intra-escolares do fracasso. As condies internas da escola podem ser menos

    selecionadoras, por isso se destacou o sentido poltico da prtica do professor, que se realiza

    por meio da sua competncia tcnica. O sentido poltico da escola dado pela transmisso de

    conhecimentos teis tambm aos dominados. Cria-se, deste modo, uma contradio:

    promover a escolaridade interessa classe dominante, mas esta mesma escola pode transmitir

    conhecimentos relevantes aos dominados (MELLO, 1982). Estudando o fracasso escolar, a

    pesquisa verificou que o perfil de bom aluno traado pelos professores se fundamenta em

    padres dificilmente alcanveis pela criana pobre. Em geral, as explicaes do fracasso no

    questionam a ao da escola, ao contrrio, culpam o aluno pelo fracasso. Revela-se, assim, a

    recuperao do pensamento liberal, que considera as pessoas e a sua posio social em termos

    de dons ou peculiaridades tidas como autnomas em vista de condies objetivas da vida

    material. Se a escola promotora da igualdade de oportunidades, a criana fracassa por falta

    de esforo individual. Deste modo, absolve-se a escola e condena-se a vtima.

    As crticas s teorias da reproduo passaram a ver a escola como uma arena onde se exerce a

    resistncia dos alunos e das classes populares e onde geraes, culturas e valores diferentes seopem. Assim, o fracasso mais complexo que o alegado. A reproduo no uma forma de

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    barro, em que a escola se encontra a servio das classes dominantes, mantendo a sociedade de

    classes.

    Por outro lado, h trabalhos que registram o que os prprios afetados diretamente pelo

    fenmeno do sucesso/fracasso escolar os alunos pensam sobre a temtica. Um estudo

    transcultural envolvendo estudantes do Brasil, da Argentina e do Mxico, desenvolvido por

    Ferreira e/ai. com o objetivo de identificar a atribuio de causalidade ao sucesso e ao

    fracasso escolar, verificou no haver diferenas quanto explicao de seus prprios

    desempenhos. Os resultados do estudo evidenciaram que

    a causa bsica a que alunos mexicanos, a)genziu1os e brasileiros se

    referenciam, ao explicarem seu prprio desempenho acadmico e o deoutros a/tinos, sejam eles bem ou malsucedidos, estudem em escolas

    pblicas ou particulares e pertenam ao seu prprio pas ou a outro pas

    o eijcff co, seguido, a certa cia, da capacidade, eipecialmenle quando

    se hata de explicar sucesso escolar (FERREIRA, et al., 2002).

    Ferreira assinala, no entanto, que a maioria das pesquisas brasileiras que envolvem crianas

    do ensino fundamental aponta para o fato de que os alunos tendem a atribuir seu sucesso a

    fatores internos, com destaque para o esforo (FERREIRA, 2002). Por outro lado, o fracasso

    tende a ser atribudo a causas internas e externas, isto , falta de esforo e dificuldade da

    tarefa, respectivamente. Os resultados indicariam, portanto, que os alunos tendem a se

    responsabilizar tanto por seus sucessos quanto por seus fracassos.

    Tal fato pode ser corroborado pelos resultados de uma pesquisa realizada por Ireland &

    Carvalho com alunos da 4a srie de cinco escolas pblicas, em que se constatou que mais de

    90% desses alunos atriburam a si mesmos a responsabilidade pelo fato de algum dia virem asofrer uma reprovao (IRELAND & CARVALHO, 2005). Nesse sentido, Tratenberg, em

    seu polmico artigo A escola organi7acdo complexa, ao comentar o formato da instituio

    escolar, assinala que

    urna escola jhndada na rnemori7acdo do conhecimento, num sistema de

    eXames que mede a eficcia dapreparaco ao mesmo, nadaprovando

    quanto forrnaco durvel do indivduo, desenvolve urna pedagogia

    paranica, estranha ao concreto, ao seu fim. Quando falha, inteeprefa

  • 7/31/2019 Sucesso e Fracasso Escolar

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    cite evento corno reiponsahilidade do educando. (TRATENBERG,

    1976).

    De certa forma, o que se observa nos resultados da maioria das pesquisas que as atribuies

    do sucesso e/ou do fracasso escolar raramente so concebidas como resultado da conjuno

    ou ausncia dela de quatro fatores: o esforo do aluno, o compromisso do professor, a

    estrutura da escola e o envolvimento dos pais.

    Os prprios instrumentos de verificao do sucesso/fracasso escolar ainda so de certa forma

    incipientes. Nesse contexto, pode-se at mesmo atribuir um certo sentido expresso fracasso

    escolar conforme o que medido pelo SAEB, isto : fracassa aquele que no atinge um

    determinado escore nesse exame. O que, obviamente, projeta, no mesmo movimento, aatribuio de um certo nexo expresso sucesso escolar, pelo que igualmente medido pelo

    SAEB, ou seja: exitoso aquele que atinge ou ultrapassa esse mesmo escore. Aquele que

    fracassa, ou o seu reverso aquele que exitoso pode ser o aluno que prestou o exame,

    ou a escola onde se estuda, ou a rede escolar, ou a Unidade da Federao, a regio, o pas

    isto depende do nvel de agregao dos dados obtidos pelo SAFE.

    interessante notar que estudos existentes sobre o fracasso escolar no Brasil raramente

    utilizam uma definio como a referida acima. O que mais comum so as formas de se

    circunscrever o fenmeno, falando-se, por exemplo, de taxas de analfabetismo, das

    precariedades fsicas e materiais das escolas pblicas, da (des) qualificao e dos baixos

    salrios dos professores, de taxas de (des)escolarizao das crianas e adolescentes na faixa

    da obrigatoriedade escolar, de reprovao e de evaso. Os conceitos vo, ento, se compondo,

    com novos indicadores sendo agregados. Por exemplo: medida que a busca de uma taxa de

    escolarizao universal vai deixando de ocupar um lugar proeminente na agenda, fala-se,

    ento, de fluxo idade/srie este fortemente mencionado na segunda metade dos anos 1990.Mais recentemente, inclui-se tambm o absentesmo de alunos e de professores um

    tema ainda relativamente pouco pesquisado. E, medida que se caminha para a

    institucionalizao de exames externos escola como so os casos do SAEB, do ENEM,

    da participao do Brasil no Pisa, etc. o conceito de proficincia passa a ser includo na

    discusso sobre sucesso e fracasso escolar e, quem sabe, possa vir a refletir uma certa sntese

    dos fenmenos anteriormente mencionados (reprovao, evaso, absentesmo, etc.).

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    nessa direo que esta pesquisa tambm caminha: a de que, mesmo com a possibilidade de

    se criticar os exames de proficincia hoje aplicados nas escolas brasileiras, esse conceito o

    de proficincia uma ferramenta que pode ter grande potencial tanto para o mundo da

    investigao cientfica quanto para o da articulao dessas pesquisas com a formulao de

    polticas pblicas no mbito da temtica do sucesso/fracasso escolar. De resto, encontra-se

    exatamente a, nesse ponto o do cmzamento entre necessidade de pesquisa e possibilidade

    de articulao de seus resultados com a formulao de polticas pblicas uma justificao

    da parceria que ora a UNESCO e o INEP realizam sob a forma do presente trabalho.

    Uma das hipteses, nesta pesquisa, que sustenta essa adoo do conceito de proficincia tal

    como formulado pelo SAEB/INEP a de que, na proficincia, ou melhor, em seus resultados,

    est consubstanciado o que geralmente se entende, de forma flexvel, e muitas vezes ambgua,por sucesso fracasso escolar fenmenos ora aparentemente desconectados, ora muito

    facilmente conectados, quando essa aparncia de facilidade enganadora. Em outras palavras,

    quanto mais penetrados pelo senso comum como o caso do conceito de sucesso/fracasso

    escolar mais esses conceitos precisam ser buscados na complexidade que o senso comum

    tende a esconder. Para alm do fracasso escolar tema que j figurou como ttulo inspirado

    de um livro sobre a temtica um mote que orienta a busca dos possveis significados que

    esses conceitos comportam.

    Uma das dimenses de originalidade desta pesquisa em relao a muitas outras que versam

    sobre o mesmo tema reside precisamente na assuno da necessidade de mais investigaes

    sobre os resultados do SAEB. Na verdade, o SAFE identifica fracasso/sucesso escolar por

    intermdio de uma avaliao de competncias cujo resultado pode ter um tratamento

    estatstico, quantitativo, do tipo taafs por cento dos iiknios X so c&paes de levando