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dezembro 2008 vol. 5 nº 4 Superando a pobreza rural

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dezembro2008vol. 5

nº 4

Superando apobreza rural

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2 Agriculturas - v. 5 - no 4 - dezembro de 2008

ISSN: 1807-491X

edito

rial

O Brasil concentra no meio rural o maior númerode pobres e segue ostentando um dos pioresíndices de desigualdade social do mundo. A con-tinuidade desse quadro em um país com tão

vastas disponibilidades territoriais, ambientais, econômi-cas e culturais só pode ser explicada pela permanência dohistórico padrão de desenvolvimento que reproduz estru-turas de poder bloqueadoras do acesso das populaçõesmais empobrecidas aos seus benefícios.

As políticas e programas governamentais parao campo têm sido incapazes de desarticular essas estrutu-ras, uma vez que não são concebidas para promover a ple-na cidadania e a inserção dos mais pobres nas dinâmicas dedesenvolvimento econômico. Ao contrário, orientam-se apartir da falsa dicotomia que considera parte do universodas famílias rurais como agentes econômicos, enquanto aoutra parte, a mais pobre, é vista como beneficiária da assis-tência social. Além disso, a tese de que a superação da po-breza será alcançada por meio do crescimento econômicoturbinado pelo agronegócio continua a legitimar politica-mente o modelo de desenvolvimento rural concentradorda renda e dos fatores de produção, sobretudo a terra. Aessência perversa dessa concepção se manifesta na paten-te contradição entre índices empregados na medida dodesenvolvimento: enquanto o Produto Interno Bruto (PIB)do agronegócio apresenta crescimento vertiginoso no cur-to prazo, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) nosterritórios de expansão das monoculturas permanece bai-xo ou mesmo em queda.

Embora o crescimento econômico seja um com-ponente a ser considerado nas estratégias para a supera-ção da pobreza, não há dúvida de que o efeito desse cres-cimento é tanto menor, ou mesmo negativo, quanto maisdesigual for a sociedade. Para ser efetiva, qualquer estraté-gia para superar a pobreza e as desigualdades sociais impli-ca a adoção de medidas que ampliem as margens de liberda-de dos mais pobres para que os mesmos possam partici-par e usufruir dos processos de geração de riquezas nasociedade. O acesso precário ou inexistente à terra e aosrecursos naturais; a insegurança alimentar e nutricional; osbaixos e incertos ingressos monetários, assim como a des-tituição de culturas e identidades socioculturais; o baixonível de participação em organizações sociais; e a margi-nalização no acesso aos benefícios das políticas públicasestão entre as formas de privação mais comuns vivenciadaspelas famílias agricultoras mais empobrecidas. Essas pri-vações de ordem material, cultural e política ocorrem deforma simultânea e se realimentam mutuamente, criandocírculos viciosos que reproduzem a pobreza ao tolher ohorizonte de escolhas dos mais pobres para elaborar e pôrem prática estratégias próprias para alcançar uma vidaplena e criativa.

As experiências apresentadas nesta edição de-monstram como a perspectiva agroecológica pode propi-ciar condições para o empoderamento das famílias ruraismais pobres ao fomentar dinâmicas de inovação agrícolae sócio-organizativa orientadas para a construção de cres-centes graus de autonomia técnica, econômica e culturalcom base na utilização inteligente dos recursos locais ena revitalização dos mecanismos de reciprocidade típicosem comunidades camponesas.

O editor

v. 5, nº 4(corresponde ao v. 24, nº 3 da Revista Leisa)

Revista Agriculturas: experiências em agroecologia é umapublicação da AS-PTA – Assessoria e Serviços a Projetosem Agricultura Alternativa –, em parceria com a Funda-ção Ileia - Centre of Information on Low External Input

and Sustainable Agriculture.

Rua Candelária, nº 9, 6º andarCentro, Rio de Janeiro/RJ, Brasil 20091-020

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Conselho EditorialEugênio Ferrari

Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata, MG - CTA/ZMJean Marc von der Weid

AS-PTAJosé Antônio Costabeber

Ass. Riograndense de Empreendimentos de Assistência Técnica eExtensão Rural – Emater, RS

Marcelino LimaCaatinga/Centro Sabiá, PEMaria Emília Pacheco

Federação de Órgãos para a Assistência Social e Educacional Fase, RJMaria José Guazzelli

Centro Ecológico, RSMiguel Ângelo da Silveira

Embrapa Meio AmbienteRomier Sousa

Grupo de Trabalho em Agroecologia na Amazônia - GTNASílvio Gomes de Almeida

AS-PTA

Equipe ExecutivaEditor Paulo Petersen

Editor convidado para este número Jorge O. RomanoProdução Executiva Adriana Galvão Freire

Pesquisa Adriana Galvão Freire, Paulo PetersenBase de dados de subscritores Nádia Maria Miceli de Oliveira

Copidesque Rosa L. PeraltaRevisão Gláucia Cruz

Tradução Flávia LondresFoto da capa Adriana Galvão FreireProjeto gráfico e diagramação I Graficci

Impressão HolográficaTiragem 6.000

A AS-PTA estimula que os leitores circulem livremente os artigos aquipublicados. Sempre que for necessária a reprodução total ou parcial de

algum desses artigos, solicitamos que a Revista Agriculturas: experiênciasem agroecologia seja citada como fonte.

Nota: Esta edição está em conformidade com o novo acordo ortográficoda língua portuguesa que entrará em vigor em janeiro de 2009.

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sum

ário

Publicações pág. 41

Editor convidado Jorge O. Romano pág. 4

Agroecologia em Rede pág. 43

Artigos

Mulheres rompem barreiras no Mali pág. 38Jonas Wanvoeke, Rosaline Maiga Dacko, Kalifa Yattarae Paul Van Mele

pág. 38

Fundos Solidários: alternativa para construção de pág. 34autonomia e empoderamento das mulheres ruraisCélia Santos Firmo

pág. 34

Superando a pobreza rural a partir das riquezas nativas: pág. 29a experiência da Cooperativa Grande SertãoIgor S.H. de Carvalho

pág. 29

Combate à pobreza rural e sustentabilidade no pág. 23semiárido nordestino: a experiência do projeto DomHelder CamaraPablo Sidersky, Felipe Jalfim e Espedito Rufino

pág. 23

Caminhos da inclusão social no Agreste da Paraíba pág. 18Sílvio Gomes de Almeida, Paulo Petersen, Adriana Galvão Freiree Luciano Silveira

pág.18

Notas sobre projetos de geração de renda e experiências pág. 13econômicas coletivas em comunidades e assentamentosrurais de Minas GeraisAna Paula Gomes de Melo, Eduardo Magalhães Ribeiro e Flávia Maria Galizoni

pág. 13

A conquista de terras em conjunto: autonomia, pág. 8qualidade de vida e AgroecologiaAna Paula Teixeira de Campos e Eugênio Alvarenga Ferrari

pág. 8

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4 Agriculturas - v. 5 - no 4 - dezembro de 2008

edito

r co

nvid

ado

Pobreza:o problema e a

construção de soluções

Oproblema: “A pobreza não se restringe à dimensão econômica e à privaçãodos bens materiais que constituem sua manifestação mais explícita. Ela en-volve também uma dimensão política e cultural”, nos alertam Almeida,Petersen, Freire e Silveira no artigo na página 18 desta edição.

A construção de soluções: “Os pequenos projetos direcionam para o aprendizado conjun-to e a prática solidária e, dessa forma, permitem que muitos grupos excluídos se apropriem de recursosmateriais e simbólicos para organizar sua atuação no mundo, para consolidar seus caminhos e paraconstruir novas causas, próprias e independentes”, apontam por sua vez Melo, Ribeiro e Galizoni notexto reproduzido na página 13.

É justamente o diálogo entre a complexidade do problema e a busca de soluções visandorecolocar os pobres e os excluídos como sujeitos do seu destino a marca do conjunto dos artigos deSuperando a pobreza rural, a nova edição da Revista Agriculturas: experiências em agroecologia.

Ainda que a pobreza tenha diminuído de forma contínua e significativa nos últimos anos,se adotados os critérios convencionais de medição que levam em conta apenas o volume de renda, asua dimensão é inaceitável para um país que se apresenta como um ator democrático chave na novageopolítica multipolar. Assim, tanto o problema da pobreza como a construção de soluções para suasuperação são dois temas complexos e de grande relevância na atualidade.

Pobreza como situação de negação de direitos, capacidadese oportunidades

Os direitos humanos definem as condições básicas para resguardar a vida das pessoas emqualquer lugar do planeta. As capacidades de um indivíduo consistem na sua liberdade para fazer oudeixar de fazer ações, ou seja, são o poder que permite às pessoas escolherem genuinamente os seusdestinos. As oportunidades, por sua vez, não se restringem às disponibilidades de recursos, mastambém estão relacionadas à autoestima, ao acesso aos processos decisórios, ao poder de iniciativa eao reconhecimento de cada voz na comunidade num determinado contexto histórico.

Em situações de pobreza, há indivíduos que têm acesso aos recursos mínimos para suasubsistência, mas não conseguem garantir um padrão de vida digno, quando confrotado com arealidade sociocultural da comunidade e/ou sociedade em que vive (pobreza relativa). Há tambémaqueles indivíduos que não têm acesso nem mesmo aos alimentos e recursos necessários para suasobrevivência física (pobreza absoluta).

Assim, sob uma perspectiva mais abrangente, a pobreza seria basicamente um estado denegação de direitos humanos, de desempoderamento e de restrição das capacidades e das oportuni-dades reais de pessoas e grupos.

Processos que geram desigualdades e acentuam oempobrecimento

No Brasil, a concentração de poder, riqueza, renda e dos outros diferentes capitais –social, cultural, ambiental, etc. – é fruto de um processo histórico de controle econômico e político

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exercido pelas elites nacionais e locais sobre o Estado, o mercado e a sociedade. Elas têm utilizado aspolíticas e os recursos públicos em benefício próprio. Tais práticas vêm sendo adotadas há séculos etêm se intensificado com o neoliberalismo, sob a égide dos grandes grupos financeiros e das corporaçõesinternacionais. Como resultado, temos 75% da riqueza nacional nas mãos de apenas 10% da popula-ção, enquanto 90% do povo brasileiro fica somente com 25%. Dentro desses 10% da população rica,cinco mil clãs de famílias controlam 40% do total da riqueza nacional. Outros exemplos: R$ 120bilhões no pagamento dos títulos da dívida pública são repassados para 20 mil clãs de famílias (cercade R$ 6 milhões por família ao ano), enquanto a previdência social utiliza R$ 140 bilhões no atendi-mento de 21 milhões de famílias de aposentados (cerca de R$ 6 mil por família ao ano). Já o tãopropalado programa Bolsa Família gasta R$ 8 bilhões na assistência de 8 milhões de famílias (cerca deR$ 72,00 por mês para cada família).1

A partir desses dados, percebemos que os processos que geram desigualdades econômi-cas, políticas e sociais entre os indivíduos, grupos, regiões e/ou países no acesso a recursos, tais comopoder, renda e prestígio, se constituem nas principais causas de produção e reprodução das situaçõesde pobreza e de exclusão social, agindo, portanto, como processos que acentuam o empobrecimen-to. São justamente esses processos e situações – que têm se potencializado com o modelo neoliberal– que não respeitam os direitos humanos nem permitem a igualdade das capacidades básicas e dasoportunidades reais de todas as pessoas. A importância dos processos que geram desigualdades paraa reprodução e agravamento do empobrecimento fica muito evidente em países que apresentam umnível de desenvolvimento econômico intermediário, porém com marcadas diferenças na distribuição derenda e riqueza. É o caso do Brasil, onde a proporção de indivíduos em situação de pobreza é três vezesmaior do que a de países com renda per capita similar. Assim, no Brasil, os processos que geramdesigualdade social – e não a falta de recursos – são a principal causa da pobreza e da exclusão social.

A pobreza no meio rural

Os habitantes da zona rural estão entre os mais empobrecidos do país. Apesar de os índicesde pobreza rural estarem diminuindo de forma generalizada, a sua incidência continua sendo o dobroda urbana. A situação de pobreza rural é mais aguda nas regiões Nordeste e Norte, onde milhões depessoas veem denegados seus direitos a uma vida digna.

Esse quadro também é resultado de relações de poder que beneficiam velhas e novas elitesagrárias e agroindustriais. O modelo do agronegócio, que tem nas grandes corporações um dos seusatores e beneficiários principais, é fortemente valorizado no país que busca garantir superávit primá-rio por meio de exportações agrícolas. Esse modelo tem influenciado as posições oficiais do governonas negociações dos acordos internacionais de comércio, seguindo a lógica de sujeição à liberalizaçãodo mercado neoliberal. Seus interesses também têm orientado a introdução de novas tecnologias,como a de sementes geneticamente modificadas, que contribuem para a perda de autonomia dosagricultores e para a restrição de seus direitos, intensificando assim os processos de empobrecimentonas áreas rurais. Essas posições têm prejudicado a agricultura familiar que responde por 70% dos empregosno campo e por 40% da produção agropecuária nacional.

A falta de democratização no acesso a recursos naturais e produtivos pelas pessoas pobrese excluídas se mantém, uma vez que a reforma agrária e as políticas públicas para a agricultura familiarficam relegadas ao segundo plano. Os movimentos sociais do campo – como o Movimento Sem Terra(MST), o sindicalismo de trabalhadores rurais congregado na Confederação Nacional dos Trabalha-dores na Agricultura (Contag) e dos trabalhadores rurais da agricultura familiar reunidos nas Federa-ções dos Trabalhadores da Agricultura Familiar (Fetrafs) –, assim como outras organizações não-governamentais e da sociedade civil, como a Articulação Nacional da Agroecologia (ANA), têm semobilizado a fim de viabilizar a efetivação de ações que visem à democratização das relações de podere o desenvolvimento de um modelo centrado na agricultura familiar e na Agroecologia.

Diante desse cenário, vem se desenvolvendo, no espaço rural brasileiro, um grande númerode iniciativas com intensa participação das populações empobrecidas, de movimentos sociais e orga-nizações da sociedade civil, buscando enfrentar as múltiplas faces da pobreza.

1 Dados da entrevista concedida por Márcio Pochmann à Agência Brasil (02/03/06).

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As múltiplas faces da pobreza

O fenômeno da pobreza é multidimensional. Ele pode ser considerado uma situação, umacondição, um estado ou uma vivência.

Quando falamos de situação de pobreza, estamos ressaltando os processos sociais quecriam e reproduzem a pobreza. Aqui, a questão fundamental que se coloca é: “Quais são os fatoresque produzem e reproduzem a pobreza?”

Quando falamos de condição de pobreza, estamos procurando identificar os elementos deprivação, em geral materiais e sociais, que caracterizam a pobreza. Nesse sentido, a questão é: “Quaissão os sinais da pobreza?

Quando falamos de estado de pobreza, estamos ressaltando a temporalidade da pobreza.Pessoas ou grupos mais vulneráveis podem em momentos particulares da sua trajetória social entrarou sair da pobreza. A questão então seria: “Quais são os momentos de maior risco de entrar napobreza ou com mais potencialidades de sair dela?”

Quando falamos de vivência da pobreza, estamos recuperando a dimensão vivida, existen-cial da pobreza. Lutar pela superação da pobreza é lutar também contra a visão tecnocrata que reduzas pessoas pobres a números abstratos ou segmentos estatísticos. A pobreza é uma experiênciaterrivelmente real e indivisível para aqueles que a vivenciam. Ao mesmo tempo, cada grupo tem umaconcepção do que é a pobreza, fundada em valores próprios. As questões que se colocam aqui são:“Como se compreende a pobreza? Como ela é vivenciada?”

Nesse sentido, querer dar conta das múltiplas faces da pobreza implica reconhecer não sóa diversidade de questões que ela coloca, mas também a complexidade das respostas. Esse reconhe-cimento se torna particularmente importante quando se tenta construir as complementaridadesnecessárias – as tão faladas sinergias – entre as práticas das pessoas pobres, as ações dos movimentossociais, as iniciativas das diferentes organizações da sociedade civil e as políticas públicas que visam asua superação. O desafio é tanto reconhecer as diferenças e limites quanto criar sinergias que visematenuar os sofrimentos criados pela vivência da pobreza, propostas que procurem diminuir os riscosde entrar na pobreza, assim como implementar ações que almejem reduzir os sinais da pobreza epolíticas que pretendam mudar os processos estruturais que geram empobrecimento e desigualdade.

A construção de soluções

Nos artigos que compõem esta edição encontramos exemplos dessas práticas, ações, inici-ativas e políticas. No artigo A conquista de terras em conjunto, a partir da experiência dos agriculto-res e agricultoras familiares de Araponga (MG), Campos e Ferrari colocam no debate o acesso à terracomo fruto da auto-organização das famílias e da articulação com o sindicato de trabalhadores rurais.Os autores abordam também o sentido de liberdade e autonomia que a conquista da terra propor-ciona, assim como o impacto da práticas agroecológicas no aumento da segurança alimentar e naredução da vulnerabilidade das famílias.

Por sua vez, Melo, Ribeiro e Galizoni nos trazem a construção de soluções a partir depequenos projetos associativos de geração de renda de diferentes regiões de Minas Gerais. Ao longodo artigo, nos defrontamos com questões fundamentais, como o reconhecimento das demandas, aimportância das metodologias participativas, os desafios da articulação com mediadores e gruposlocais, a recorrência de problemas econômicos nas iniciativas e a necessidade de olhar para elastambém como projetos formativos, políticos, sociais, celebrativos, experimentais e distributivos.

Em Caminhos da inclusão social no Agreste da Paraíba, Almeida, Petersen, Freire e Silveirachamam a atenção para a importância, na construção de soluções, de problematizar a conceituaçãoda pobreza, contextualizando-a e identificando as suas formas de expressão a partir da visão dosatores locais. Eles também destacam o desafio de reorientação das propostas e metodologias dasiniciativas das organizações da sociedade civil que trabalham para a superação do círculo vicioso dapobreza a partir do reconhecimento tanto das estratégias “de sobrevivência” dos grupos mais pobresquanto da capacidade que esses grupos possuem – e/ou necessitam – para construir os seus própriosprojetos de inserção social.

Sidersky, Jalfim e Rufino, em sua análise sobre a experiência do projeto Dom Helder Camarano Rio Grande do Norte, apontam para a importância do enfoque agroecológico, com ênfase na

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Jorge O. Romanoantropólogo, doutor em Ciências Sociais pelo CPDA/UFRRJ

[email protected]

valorização do saber popular, na troca de saberes e nas metodologias participativas na construção desoluções para superação da pobreza. O artigo traz exemplos dos desafios enfrentados nos agroecos-sistemas de gestão familiar, assim como ressalta a importância da organização dos agricultores e doacesso a terra, crédito e assessoria técnica.

A experiência da Cooperativa Grande Sertão no Norte de Minas Gerais que Carvalho nostraz é uma oportunidade ímpar para discutir questões centrais na construção de soluções para supe-ração da pobreza, como cooperativismo, geração de renda, diversificação de produção, acesso amercados, sustentabilidade ambiental e valorização das riquezas nativas.

A questão da promoção dos direitos das mulheres na construção de soluções se apresentacom força em dois outros artigos que compõem esta edição. Firmo recupera a experiência do fundosolidário na região semiárida da Bahia como uma alternativa de construção de autonomia e empode-ramento das mulheres rurais. Por sua vez, Wanvoeke, Dacko,Yattara e Van Mele nos levam a Mali, nocontinente africano, para olhar como as mulheres, por meio da construção de sua própria organizaçãode produtoras de arroz e com a utilização de metodologias participativas, rompem barreiras de gêneroe casta que as mantinham em estado de pobreza.

Acesso à terra, à água, a sementes nativas e a outros recursos naturais. Promoção da dasegurança alimentar. Incremento da produção garantindo a sustentabilidade ambiental. Acesso acrédito, à assistência técnica e a mercados institucionais. Maior valor agregado na produção e melhorcomercialização dos produtos. Promoção da organização social e fortalecimento das comunidades.Construção de alianças e articulações em redes. Participação nos processos de tomada de decisõescoletivas. Fortalecimento da solidariedade, da autoestima e da dignidade. Valorização da culturalocal e de seus recursos simbólicos. Promoção dos direitos das mulheres. Novos aprendizados, iden-tificação de alternativas e caminhos próprios. Essas são as construções de soluções para a superaçãoda pobreza que o conjunto de artigos desta edição da Revista Agriculturas: experiências em agroeco-logia nos traz. Essas construções apontam para os processos de empoderamento das populações emsituação de pobreza, para a promoção de direitos e para as lutas pela democratização do acesso aosrecursos do Estado, do mercado e da sociedade.

O desafio permanece: a superação dos processos deempobrecimento como questão política

Porém, os êxitos dessa diversidade de práticas, ações, iniciativas e políticas que sãoexemplificados nesta edição não podem fazer esquecer uma questão central na luta contra a pobreza.Em última instância, a superação dos processos de empobrecimento é uma questão política, que dizrespeito à manutenção ou a transformações das relações de poder na sociedade. A redistribuição darenda gerada no mercado – quando ocorre – é fruto de um processo de conquista política dos setoresempobrecidos e excluídos. Ou seja: a completa superação das situações de pobreza implica a mudan-ça das relações de poder existentes que produzem e reproduzem os processos de geração de desigual-dades econômicas, políticas e sociais. Dessa forma, as políticas de superação da pobreza têm queenfrentar a questão redistributiva no acesso aos recursos.

Ao mesmo tempo, essa superação só se realizará plenamente com a promoção e defesa dosdireitos das pessoas pobres e excluídas, tanto no âmbito do Estado quanto do mercado e da socieda-de civil. Num país como o Brasil, o último da América a abolir a escravidão e um dos mais desiguais domundo, a luta pelos direitos dessas pessoas assume diferentes frentes. Desde a luta pelo respeito,cumprimento e real universalização dos direitos civis, políticos e laborais (que reconheçam as popula-ções pobres e excluídas enquanto indivíduos, cidadãos e trabalhadores) até a luta pela garantia legale prática dos direitos sociais, econômicos, culturais e ambientais. Mas para que tanto a questãoredistributiva quanto a real universalização dos direitos aconteça é necessário haver na sociedade umaforte vontade política que oriente o Estado na busca da justiça social e que promova a construção deum modelo de desenvolvimento humano, democrático, justo e sustentável.

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8 Agriculturas - v. 5 - no 4 - dezembro de 2008

A conquista deterras em conjunto:

autonomia, qualidade de vida eAgroecologia1

O pequeno municí-pio de Arapongafica localizado na

região da Zona da Mata de MinasGerais e ocupa parte da Serra do Bri-gadeiro, que alguns nativos prefe-rem chamar de Serra dos Arrepiados.O clima é ameno, propício para a pro-dução de café arábica de excelentequalidade. De acordo com dados doIBGE (2005), o município possui7.942 habitantes. Desse total, apro-ximadamente 80% residem na zonarural, onde 86% das propriedadesrurais têm menos de 50 hectares eocupam 38% da área total.

A experiência apresentada neste artigo foi de-nominada, pelos próprios agricultores, de conquista deterras em conjunto. Trata-se de uma alternativa de acessoà terra por parte dos que não tinham nenhuma perspecti-va de permanecer no campo, distinta das formas de lutados movimentos sociais de reforma agrária hoje existentesno país.

Na conquista de terras em conjunto, pequenosproprietários e trabalhadores rurais adquirem conjunta-mente uma área de terra, onde cada novo proprietário teráa chance de comprar uma propriedade, que em média va-ria entre 1 e 6 hectares, de acordo com suas condições depagamento. A parte da área que será destinada ao novoproprietário é definida a partir de critérios construídos pelogrupo. Os que têm melhores condições financeiras fazemum empréstimo solidário ao novo proprietário para a com-pra da terra, o que acontece ainda hoje entre parentes e,em menor número, entre amigos. A dívida é sempre pagacom produtos, como arrobas de café, milho ou em cabe-ças de gado. Essa experiência se institucionalizou em 1989e até 2007, de acordo com os dados fornecidos pelo Sindi-cato de Trabalhadores Rurais de Araponga, 174 famíliasjá haviam conquistado o seu pedaço de terra, totalizando620 hectares.

O Centro de Tecnologias Alternativas da Zonada Mata (CTA-ZM)2 iniciou um trabalho de promoção daAgroecologia junto a agricultores(as) familiares deAraponga em 1987, mas foi só no início dos anos 1990que se deu conta do andamento e da importância da expe-

Ana Paula Teixeira de CamposEugênio Alvarenga Ferrari

"(...) a terra para mim é vida, autonomia, liberdade, sabe? Direito que a pessoa tem de falar, deouvir, enfim, de trabalhar. Em resumo, a terra significa vida, você tá entendendo? Porque é

onde você tem tudo. Se você tem um pedaço de chão, você tem tudo, você tem autonomia, defazer bem o que você pensa, quer. Você sonha, você tem a liberdade de plantar, de colher, sabe?Você só não tem a liberdade de destruir ela. Você tem que pensar que hoje ou amanhã você tem

que deixar ela para os outros, né? Sinceramente, um pedaço de chão para quem trabalha naroça, principalmente, é tudo."

(Paulinho, 41 anos, agricultor e pequeno proprietário)

1Pesquisa realizada por Ana Paula Teixeira Campos, que forneceu os dados de suadissertação de mestrado, a partir da qual se elaborou este artigo.2Organização de assessoria, criada em 1987 por profissionais de ciências agrárias elideranças do movimento sindical dos trabalhadores rurais da Zona da Mata.

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riência, que de fato constituía uma precondição para aampliação da Agroecologia no município. A partir daí, oCTA-ZM buscou apoiar e estimular a conquista de terrasem conjunto, mobilizando recursos para sua sistematiza-ção e expansão.

Portanto, é uma experiência que teve sua ori-gem e continua sendo gerida pelos(as) próprios(as)agricultores(as), sendo vista por estes(as) como uma dasestratégias mais efetivas para a superação da pobreza ru-ral. Vale ressaltar que o conceito de pobreza adotadopelos(as) agricultores(as) não está somente relacionado àfalta de acesso a bens materiais e serviços básicos, mastambém à situação de dependência e falta de autonomiadas famílias, à perda da autoestima, da autodeterminaçãoe da identidade cultural.

Conquista de terras em conjunto: origens nahistória de família

"A terra significa assim: o meio para nós sobreviver,plantar, colher. Se não tivesse terra, não tinha nem como a

gente sobreviver... Agora a situação melhorou muito,tá na casa da gente.”

(Neuza, 27 anos, agricultora e pequena proprietária)

A conquista de terras em conjunto começoucom a família Lopes, composta por nove irmãos e irmãs,sendo que três deles realizaram a primeira compra de terraem conjunto e em família, entre 1977 e 1978: o seu Alfires,conhecido como Fizim (falecido em 1999), o seu Aibes,conhecido como Bibim, e o seu Niuton, conhecido comoseu Neném. Segundo o depoimento de seu Neném, a his-

tória da conquista surgiu por causa de Bibim, que deseja-va sair do regime de parceria por não ter terra suficientepara manter a família. Por isso, precisava comprar maisterra. Os proprietários da região, entretanto, não vendi-am parcelas de terra muito pequenas e nem davam créditoaos meeiros. Foi então que os irmãos Neném e Fizim sereuniram para adquirir um pedaço maior, para que Bibimpudesse comprar sua parte. A compra foi realizada comempréstimo bancário, venda de produtos e o que era con-seguido com o trabalho dos três.

Passados dez anos, ao voltarem de uma reu-nião das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), seu Ne-ném e Fizim vinham caminhando e refletindo sobre a leitu-ra de uma passagem bíblica que, segundo seu Neném, eraassim: "Falava que os cristãos vendiam suas propriedadese colocavam nos pés dos apóstolos. Mas a gente interpre-tou que esse trecho não estava certo. A gente tinha quefazer diferente. A gente imaginou assim: se vender, aí pio-ra, temos que fazer o contrário: comprar." Tiveram entãoa idéia de criar a conquista de terras em conjunto.

A primeira compra coletiva"A conquista de terra... eu acho que conheci uma história

maravilhosa e faço parte dela. O que eu puder fazerpara um trabalhador ter um pedaço de terra, o que

eu puder contribuir, eu vou fazer. Para mim a históriada conquista de terra não pode acabar nunca,

porque cada dia que ela cresce é um trabalhadorque está conseguindo o seu pedaço de terra,

é um sonho realizado."(Sônia, 33 anos, agricultora e pequena proprietária)

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Família de Cosme e Amélia: pioneiros na conquista de terras em conjunto

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Depois da primeira compra em família, em1977, a primeira compra coletiva foi realizada em 1989,envolvendo não só membros dos Lopes, mas outrosmeeiros e trabalhadores rurais. Assim, o que era históriade família e acontecia com empréstimo de produtos, pos-teriormente se transformou em um fundo de créditorotativo administrado pelo Sindicato de TrabalhadoresRurais de Araponga, que recebeu uma doação da Funda-ção Ford3 para ser usada como capital de giro para a cria-ção do fundo. A partir de então, o empréstimo passou aser feito com um recibo do sindicato, com descrição daquantidade e o equivalente em arrobas de café. Ao pagaro empréstimo, o que pode ser feito em até dois anos, apessoa ganha um recibo de quitamento da dívida.

Com a disseminação da experiênica nomunicípio, o grupo elaborou um con-junto de critérios para a entrada denovos membros. Entre 1994 e 1995,algumas pessoas se reuniram e escre-veram os Dez Mandamentos. Ele podeser considerado como o documentomais importante que orienta o grupo epermite a adesão de novos comprado-res de terras em conjunto.

Os Dez Mandamentos da conquista de terrasem conjunto são:

1 - Interesse pela terra: ter amor pela terra e compromisso.2 - Comportamento no grupo: ter sinceridade, não men-

tir, não tomar decisões individualistas, participar dereuniões.

3 - Meio ambiente: ter consciência ecológica.4 - Divisão: formar um grupo responsável e não tomar

decisões precipitadas.5 - Conquista das terras: fazer economia para comprar

terra, ter em mente que isso é possível e viver emsintonia com a comunidade.

6 - Forma de convivência: ter diálogo e compreensão

com os companheiros, tratar de assuntos que envol-vem a família, participação e reflexão religiosa emgrupos, independente de seita.

7 - Participação e contribuição da mulher: lutar e ani-mar o companheiro, exigir seu nome nos documen-tos, não ter vergonha de ser lavradora, participaçãona partilha das terras, participação nas decisões emgrupo.

8 - Participação agrícola: participação nas trocas de ser-viço e mutirão, recuperação e conservação do solo,visitar as propriedades dos companheiros, usarleguminosas.

9 - Maneiras de usar as coisas móveis do grupo: usar tra-ção animal para os serviços do grupo, uso dos ani-mais por pessoas acostumadas com esse trabalho,reconhecer as necessidades maiores de serviços, terzelo com os animais.

10 - Maneira de usar os imóveis: conservar e ampliar asestradas, manter trilhas, usar e oferecer estruturascomo moinho, engenho, olaria, usina, manter tor-neiras fechadas quando a água for pouca, controlarseus pequenos animais para não prejudicarem a pro-priedade vizinha.

Nos mandamentos podemos identificar trêsgrupos de temas abordados pelos agricultores. Primeiro,há um conjunto de postulados morais que permitem ava-liar a confiabilidade dos membros e definir padrões éticosde conduta comunitária (mandamentos 2, 4, 5 e 6). Emsegundo lugar, eles determinam uma série de procedimen-tos de decisão e resolução de problemas comuns (manda-mentos 9 e 10). Por fim, alguns dos mandamentos incor-poram também questões de gênero e meio ambiente (man-damentos 1, 3, 7 e 8). E, de modo geral, todos incorpo-ram na sua redação o discurso agroecológico. No conjun-to, os Dez Mandamentos configuram regras-em-uso que,elaboradas pelos próprios agricultores e agricultoras, per-mitem monitorar o comportamento daqueles que partici-pam da conquista de terras, reduzindo a possibilidade deoportunismo e risco para a experiência.

As conquistas da conquista:liberdade, práticas agroecológicase qualidade de vida

“Terra é liberdade, é segurança, é conforto. Para mim terra équase tudo, nossa mãe, é dela que a gente veste, que a gente

come, que a gente tira a nossa saúde. A conquista de terra foia liberdade, só de ter a minha casa na minha propriedade e

você deitar tranquilo à noite e acordar tranquilo. Você plantao que você quiser, antes não podia fazer isso, o dono da terra

achava que ia prejudicar a lavoura.”(José, 34 anos, agricultor e pequeno proprietário)

3A partir de uma sugestão da Fundação Ford, o CTA-ZM incluiu em um projetodotação de recursos para a criação de um Fundo de Crédito Rotativo para a conquistade terras a ser gerido pelo STR.

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Reunião da CEB de Araponga em 1981

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A experiência da conquista de terras emconjunto traz lições, aprendizados eexemplos de superação da pobreza ru-ral, dos problemas individuais, mas tam-bém coletivos. As associações de créditoparticipativo e as organizações associa-tivas desenvolvidas pelos próprios agri-cultores ampliam as alternativas deação e proporcionam novas modalida-des de acesso e mobilização de recursosmateriais e imateriais. Assim, o que osagricultores familiares de Araponga es-tão realizando representa muito mais do

que obter bem-estar material.Eles não estão apenas com-prando terra, mas tambémadquirindo autonomia, que semanifesta em todas as esfe-ras da vida: no manejo da la-voura, na diversificação daprodução, no uso de práticasagroecológicas dentro da pro-priedade, na frequência dos fi-lhos à escola, na participaçãoem movimentos sociais, nasreuniões do sindicato, na reali-zação de cursos, na construçãoda casa própria e na qualidadedos alimentos produzidos econsumidos pela família.

A passagem da condi-ção de meeiros e trabalhadores ru-rais para pequenos proprietáriosmodifica não apenas as alternati-vas de organização produtiva, mo-radia e segurança alimentar, mastambém reforça o auto-respeitodos agricultores. Mesmo para osque são meeiros, o fato de possuirterra está diretamente ligado à con-quista de liberdade, que foi e aindaé uma das principais motivaçõesque leva os criadores da experiên-cia a desejarem sua ampliação paraabranger um maior número demeeiros e trabalhadores rurais semterra. Segundo seu Neném, “Oproblema de ser meeiro não é aquestão de trabalhar, é a falta deliberdade mesmo. Até para falar apessoa é proibida às vezes de ex-pressar aquilo que sente, ele é proi-bido.”

Às vezes, o valor atribuído à liberdade – parafazer o que quiser, poder ir onde quiser e sair à hora quequiser, os filhos poderem ir à escola, os pais poderem par-ticipar do movimento – é maior do que o da própria terra:

"A conquista significou um crescimento não simplesmente dequestões financeiras, mas um crescimento social, para a gente

gerenciar a terra que é da gente... Uma autonomia... liberta-ção. A realização de um sonho também. Até quebrou, assim,um pouco, a tradição dos filhos de só adquirir terras por he-

rança ou doação (...)"(Benjamim, 37 anos, agricultor e pequeno proprietário)

A posse da terra também permitiu aos peque-nos proprietários decidirem a forma como querem con-

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Rafael e Sandrinha cuidando da horta na terra conquistada

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Afonso, Aparecida e filhos: família que conquistou a sua terra

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duzir o manejo e os processos de trabalho na proprieda-de. Do total das 79 famílias entrevistadas em pesquisarealizada em 2005 , 62 (78%) afirmaram que, ao possu-írem terra própria, obtiveram melhoria na qualidade devida, liberdade para plantar o que desejar, fazer o seuhorário, não usar agrotóxicos e usar menos adubos quí-micos, usar adubo orgânico, ter lavoura orgânica, diver-sificar a produção e ainda a possibilidade de ter peque-nas criações, horta e pomar. Outra característica impor-tante é o fato de quase não precisarem comprar produ-tos industrializados.

"Tocava a lavoura à meia, em parceria. Era longe, levavauma hora e meia para ir e voltar. Hoje a gente trabalha comoutra dimensão, trabalha no que é nosso. O jeito mudou, aqualidade é melhor. Aqui pode plantar de tudo e com maiscuidado e qualidade. Aqui é orgânico e pode plantar junto,

café com feijão."(João, 30 anos, agricultor e pequeno proprietário).

No caso das mulheres, as que trabalhavam comomeeiras juntamente com os maridos ou com os pais tam-bém relatam que as principais mudanças foram a substi-tuição do uso de agrotóxicos por práticas menos agressi-vas ao solo e à saúde dos agricultores, assim como a maiordisponibilidade de tempo para se dedicar aos filhos, à casa,às criações e poderem ter uma horta. Vale destacar que aênfase nas práticas agroecológicas nas propriedades mos-tra o resultado do trabalho do CTA-ZM junto aos agricul-tores e agricultoras:

"Eu era empregado, trabalhava das 7 às 17 horas. Trabalha-va no pomar de pêssego, morango, cultura de baroa e

capineira para gado. Depois passou tudo para cultura do café.Todas as culturas usavam veneno, Butox, Round-up, Bidrin.

Hoje não uso adubo químico e nem veneno."(Sebastião, 42 anos, agricultor e pequeno proprietário)

Outro item importante relatado pelos agricul-tores, e comprovado pelas visitas feitas às famílias, é emrelação à moradia. Nos depoimentos, ela também é fre-quentemente relacionada à tão sonhada liberdade. Por-tanto, a maioria das famílias sente orgulho por ter maiorliberdade para plantar o que quiser e morar na própria casa.

A iniciativa da família Lopes foi fun-damental para realizar a conquista deterras em conjunto, mas a consolida-ção dessa experiência também se deveem parte ao trabalho desenvolvido peloCTA-ZM, que, embora não se dirigisseaos problemas de posse e propriedadeda terra, ampliou os recursos organi-zacionais e o acesso às redes externasde agricultores, além de oferecer umanova visão da agricultura e suas possi-bilidades. Foi a partir da experiênciacom Agroecologia que os(as) agricul-tores(as) viram que só seria possívelfazer o manejo da lavoura de modo

autônomo e sem uso de agrotóxicos setivessem a sua própria terra.

Dessa forma, tanto as aspirações por maior li-berdade e autonomia, que emergem dos depoimentos,quanto a melhora geral na qualidade de vida, estão pre-sentes como resultados da conquista de terras em conjun-to. Os agricultores que deixaram de ser meeiros e traba-lhadores rurais para se transformarem em pequenos pro-prietários reduziram significativamente a vulnerabilidadea que estavam submetidos, garantindo melhores condi-ções de reprodução da unidade familiar.

Ana Paula Teixeira de Camposmestre em Extensão Rural pela

Universidade Federal de Viçosa (MG)[email protected]

Eugênio Alvarenga Ferrariengenheiro agrônomo colaborador do CTA-ZM e

mestrando em Extensão Rural pelaUniversidade Federal de Viçosa (MG)

[email protected]

Referências bibliográficas:CAMPOS, Ana Paula Teixeira de. A conquista de

terras em conjunto: redes sociais e confiança– a experiência dos agricultores e agricultorasfamiliares de Araponga (MG). 2006. 102 f.Dissertação (Mestrado) – Universidade Fede-ral de Viçosa, Viçosa.

CONQUISTA da terra em conjunto. Direção deTânia Calliari. Viçosa, Centro de TecnologiasAlternativas da Zona da Mata, 2000, fita vídeo(33 min.), VHS, som, color.

GEERTZ, Clifford. The Rotating CreditAssociation: a “middle rung” in development.Economic Development and Cultural Change,v. 10, n. 3, p. 241-263, April 1962.

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SANTOS, A. D.; FLORISBELO, G. R. Desenvol-vimento territorial e combate à pobreza: siste-matização de três experiências no estado deMinas Gerais, Brasil. Centro de TecnologiasAlternativas (CTA- ZM), 2004.

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Agriculturas - v. 5 - no 4 - dezembro de 2008 13

Notas sobre projetosde geração de renda

e experiênciaseconômicas coletivas em

comunidades e assentamentosrurais de Minas Gerais1

Ana Paula Gomes de MeloEduardo Magalhães Ribeiro

Flávia Maria Galizoni

comercializaçãona agricultura fa-miliar é um as-

sunto importante para pesquisa eextensão rural desde os anos 1970.Nessa época o associativismo já eraindicado para enfrentar vários pro-blemas, pois atuando em conjuntoas famílias venderiam mais, capta-riam recursos com mais facilidade,criariam canais para acessar a exten-são rural e programas de crédito.Sindicatos de trabalhadores rurais,agências públicas e organizações demediação animaram experiênciasassociativas, sobretudo com peque-nos projetos comunitários, que setornaram o principal meio de apoiara comercialização. Elas se expandi-ram desde então, receberam recur-sos e fizeram parte dos objetivos demuitos programas.

A partir dos anos 1990, os pequenos projetoscoletivos de geração de renda foram postos em novo qua-dro. Movimentos sociais e das organizações não-governa-mentais assumiram participação cada vez mais ativa nacriação de programas de desenvolvimento e estimularamexperiências associativas de geração de ocupação e rendapor meio de pequenos projetos. Isso era comum tambémentre agências públicas e de cooperação internacional,que incentivaram iniciativas, mesmo informais e muito lo-calizadas, para ampliar os canais de comercialização e ele-var a renda de famílias rurais. Com o tempo, alguns enfo-ques foram se destacando nesses pequenos projetos: mo-dificar mentalidades, relações de troca, que deveriam sermais solidárias; subordinar os valores individualistas aosda coletividade; cooperar, em vez de participar da compe-tição imposta pelos mercados. Esses são os princípios daeconomia solidária, cujo grande desafio tem sido conciliaros fundamentos éticos da proposta e o ganho de vanta-gens individuais pelos participantes.

Pequenos projetos associativos alcançaramgraus variados de sucesso quando seus resultados econô-micos foram avaliados a partir dos seguintes critérios: ocu-

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1 Artigo apoiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico(CNPq), Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig),Centro de Agricultura Alternativa Vicente Nica (CAV), Associação Regional Mucuride Cooperação de Pequenos Agricultores (Armicopa) e Cáritas de Paracatu.

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pações criadas, renda adicionada, mais valor agregado.Ocorre, porém, que populações rurais engajadas nessasexperiências associativas nem sempre priorizaram apenasresultados materiais. Foram além da aspiração de ganhosem dinheiro e, para desespero de alguns avaliadores, mui-tas vezes privilegiaram outros benefícios, como o aumen-to da autoestima do grupo, o acesso à capacitação, a par-ticipação na política, o engajamento de mulheres em no-vas atividades não-domésticas e a abertura de novas redesde contato social.

Partindo de experiências de lavradores compequenos projetos associativos, este artigo analisa e bus-ca compreender a amplitude dos resultados, mostrandoque, ainda que sejam importantes os produtos materiais,muitas vezes os excelentes resultados não-materiais sãodesconsiderados.

Experiências associativas

Dentre as muitas experiências de estímulo aoassociativismo rural de Minas Gerais, algumas se desta-cam pela duração e maturidade dos resultados para as fa-mílias e organizações mediadoras rurais. Este artigo é ba-seado em iniciativas localizadas nas regiões do Alto Valedo Jequitinhonha, Vale do Mucuri e Noroeste do estado,áreas de atuação do Centro de Agricultura AlternativaVicente Nica (CAV), da Associação Regional Mucuri deCooperação de Pequenos Agricultores (Armicopa) e daCáritas Diocesana de Paracatu, respectivamente.

Nessas organizações e regiões foram pesquisa-das as seguintes experiências:a) Noroeste/Cáritas de Paracatu: Grupo de Doceiras

do Projeto Assentamento Saco do Rio Preto; Grupode Doceiras do Projeto de Assentamento FrutaD’anta; Grupo de Feirantes e Grupo de Horticultoresda comunidade Santa Rita;

b) Nordeste/Vale do Mucuri/Armicopa: Associação dosPequenos Produtores de Misterioso (APPRM), As-sociação Solidariedade do Povoado de Limeira(Aspel), Associação Comunitária do Projeto de As-sentamento Fazendo Aruega (Ascopafa) e Grupo deMulheres da Padaria Comunitária, também do Proje-to de Assentamento Aruega;

c) Nordeste/Vale do Jequitinhonha/CAV: Associaçãodos Apicultores do Alto Vale do Jequitinhonha(Aapivaje), Grupo de Trabalho (GT) Derivados daCana, GT Agroindústria de Cana-de-açúcar da co-munidade Morro Redondo e GT Feira.

Essas organizações atuam nas regiões desde,pelo menos, metade da década de 1990. Dedicam-se aodesenvolvimento rural, à busca de espaços para a partici-pação política e, mais recentemente, fomentam a econo-mia solidária. Cada uma delas, porém, tem característicasparticulares, que se refletem em metodologias diferentesde trabalho e, consequentemente, na articulação de for-ças distintas para alcançar seus objetivos.

A Cáritas Diocesana de Paracatu é uma agên-cia de origem católica que apóia comunidades e assenta-

Cajuí, o caju do Cerrado, fruto coletado e beneficiado por muitas associações de agricultores

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mentos do Noroeste de Minas Gerais a partir de demandasque lhe são propostas, delimitando seu público-alvo den-tro de especificidades sociais e religiosas. A Armicopa éuma federação que envolve 12 associações locais ou micro-territoriais de sete municípios dos Vales do Mucuri e doJequitinhonha e atua por meio das organizações comuni-tárias que compõem sua base, todas relacionadas à agri-cultura familiar. O CAV delimita política e espacialmen-te sua área de atuação ao conjunto de municípios ondeatuam as organizações e sindicatos de trabalhadores ru-rais parceiros, adotando a estratégia de grupos de traba-lho (GTs) formados de acordo com temas de interesse deseu público.

Todas essas organizações exercem um papelrelevante na trajetória das famílias rurais ao estimularempequenos projetos associativos comunitários, considera-dos pelas comunidades como um meio para realizar con-quistas importantes: seja o equipamento de beneficia-mento da mandioca ou a colocação da rapadura em mer-cados distantes, seja a geração de renda por meio do arte-sanato ou a melhoria da alimentação do rebanho. Os agri-cultores identificam, portanto, saldos positivos nessas

experiências coletivas e reconhecem a importância da atu-ação das organizações mediadoras para a obtenção dessesresultados, sempre destacados como vitórias alcançadasna luta pela melhoria da vida.

No entanto, analisando de forma comparativa,percebe-se que os resultados alcançados pelas ações deorganizações mediadoras e grupos locais dependem mui-to da metodologia de trabalho utilizada. Nos casos emque há contatos mais frequentes, em que se privilegia odebate e a tomada de decisões de forma coletiva eparticipativa, percebe-se maior segurança por parte dosagricultores, que enumeram tanto as vantagens e os resul-tados da experiência associativa da qual participam quan-to os obstáculos enfrentados e as formas como foram su-perados. Mas eles enfatizam também, e com muito maisclareza, as dificuldades estruturais encontradas. Consta-ta-se, portanto, que os projetos que favorecem a inte-gração efetiva dos agricultores permitem que eles avaliema trajetória da experiência e tracem novos caminhos, coma segurança de quem constrói um futuro em parceria. Asexperiências mais democráticas não resultam apenas emmais participação: trazem, igualmente, a corresponsa-bilização e uma análise muito lúcida dos limites e possibi-lidades efetivas do projeto.

O contrário costuma ocorrer quando os proje-tos são dirigidos e controlados mais pelas organizaçõesmediadoras. Nesses casos, os participantes ficam cons-trangidos para avaliar a experiência e tendem quase sem-pre a considerá-la uma doação, algo externo à vida deles,que, portanto, merece pouco zelo e atenção. Assim, em-bora a atuação das organizações mediadoras se revelepotencializadora das experiências associativas, ela pode,às vezes, não motivar realmente os agricultores. Isso acon-tece quando os projetos são pensados a partir de deman-das que são estranhas aos grupos sociais locais, ou quan-do a ênfase da proposta recai exclusivamente sobre osbenefícios materiais. Nesses casos, os pequenos projetossurgem de aportes oferecidos por editais que carregamconsigo um quadro de requisitos pré-estabelecidos. E,então, questões como prazos, atividade principal, exigên-cia de parâmetros de desempenho e de eficiência de ges-tão financeira se transformam em prioridades. Já o debatesobre objetivos comuns, a definição de normas de uso eoutros aspectos, ao mesmo tempo subjetivos e opera-cionais para o grupo de agricultores, ficam em segundoplano.

Por isso os técnicos das organizaçõescitadas neste artigo optaram por esta-belecer um contato próximo com osagricultores. Ouvi-los e incentivá-los,principalmente no que diz respeito àformação política, é mais do que umavalorização do espírito associativo, é aprópria garantia de que a organização

Visita técnica de agricultores à lavoura comunitária

Beneficiamento de farinha em Minas Novas

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terá uma entrada privilegiada naquelacomunidade por ser portadora de umamensagem diferente, mais crítica etambém mais parceira. Assim, à me-dida que os objetivos comuns vão sen-do definidos, são criados métodos paraalcançá-los. Foi dessa forma que sur-giram os GTs assessorados pelo CAV,que obtiveram resultados consistentesem termos de abertura de mercados eaumento do número de participantes.Foi também por meio da participaçãoe corresponsabilização que a Cáritas deParacatu conseguiu superar a decepçãode um grupo de agricultores quando aexperiência de comercialização não al-cançou os objetivos propostos.

Obstáculos comuns a pequenosprojetos associativos

Ao analisar o conjunto das iniciativas de pe-quenos projetos podemos verificar que alguns problemaseconômicos se repetem com grande freqüência, consti-tuindo quase um padrão: (a) a entrada no mercado ficaimpossibilitada pela competição com outros agentes eco-nômicos e/ou por não alcançar economias de escala; (b)não se consegue a participação ampla e constante da co-munidade, sempre limitada e conflituosa; (c) as rendasfamiliares não se elevam porque a inserção da associaçãonos mercados é ocasional; (d) os níveis técnicos que ga-rantem qualidade aos produtos não são alcançados; (e) osbenefícios ficam concentrados num grupo reduzido defamílias que controlam a associação; (f) há exigência cons-tante de mais recursos para alcançar uma escala ótima; (g)o grupo alcança o equilíbrio na estagnação, pois não con-segue melhorar a qualidade da produção e da entrada nosmercados e, ao mesmo tempo, não tem coragem de desis-tir da experiência, que já lhe custou tantos sacrifícios.

Apesar de aparecem com grande freqüência,esses problemas não estão exatamente relacionados aocaráter dos grupos, dos pequenos projetos, das organiza-ções de mediação, nem da sua lógica própria de gerir osrecursos. Os problemas com o sucesso econômico exis-tem, mas são multiplicados pela perspectiva imposta pelomercado e, às vezes, pela assessoria ao pequeno projetoeconômico comunitário.

Outro modo de ver as coisas

Além do caráter propriamente econômico, asexperiências conjuntas com pequenos projetos e gruposlocais revelaram diversos aspectos positivos. Um primeiroaspecto diz respeito ao caráter não-paternalista dessesprojetos, que foram gestados e construídos na perspecti-va de promoção humana, responsabilidade e solidarieda-de social dos beneficiários. Associado a isso, destaca-se origor no uso e aprendizado de controle dos recursos: oempenho na correta aplicação, na oferta de benefíciosregrados, no controle coletivo dos investimentos e dosseus resultados. Outro ponto que se destacou como mui-to positivo foram os resultados subjetivos alcançados jun-to à população beneficiária, principalmente para as mu-lheres, no que diz respeito ao ganho em autoestima, naampliação de espaços de atuação na comunidade, na fa-mília, na vida pública e nos mercados. Essas experiênciasfavoreceram a criação de redes de sociabilização queextrapolaram a família e o doméstico. Nesse sentido, são aoportunidade para mulheres, que muitas vezes se dizem“esquecidas pelo mundo”, de dominarem códigos de no-vas condutas e de novas possibilidades.

Deve ser ressaltado também que essas organi-zações sempre colocam um pequeno volume de recursosnos projetos. Dessa forma, mesmo que o sucesso econô-mico não exista, seu custo é muito reduzido para a socie-dade. É, afinal, o custo da experimentação e do aprendi-zado para o enfrentamento autônomo dos grandes pro-blemas do grupo. Além disso, o pequeno volume dos re-cursos aplicados nos projetos diminui a distância entre osbeneficiários e o projeto, torna mais fácil seu manuseio e

Capacitação de jovens agricultores da Associação Mineira deEscolas Família Agrícolas, Itaobim (MG) Feira de produtos do artesanato do Jequitinhonha

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ensina as comunidades rurais a não quererem beneficiar, compoucos recursos, um número muito grande de pessoas. Pou-cos recursos também facilitam a repartição de benefícios,desestimulam o controle pessoal do projeto, incentivam ogrupo a se empenhar no sucesso da iniciativa e favorecem odebate de ideias sobre objetivos e alternativas porque todosos participantes dominam o assunto. Assim, as comunida-des rurais agregam novos valores aos ganhos, os quais, acre-ditava-se, deveriam ser apenas quantitativos.

Nesse sentido, os pequenos projetos de gera-ção de renda, apesar de concebidos principalmente comoprojetos econômicos, precisam ser entendidos tambémcomo processos formativos, políticos, sociais, festivos,experimentais, distributivos – porque costumam distribuirprincipalmente esperança e cidadania. Mesmo que envol-vam apenas recursos para uma lavoura comunitária, mes-mo que sirvam apenas para consertar um triturador, mes-mo que apenas transfiram recursos para um grupo de mu-lheres adquirir açúcar para fazer doces em conjunto. Essesprojetos atingem resultados que as técnicas costumeirasde avaliação não conseguem captar, porque são baseadasem análise de custo-benefício, de retornos do capital in-vestido, de aumentos de renda monetária, de nível de bem-estar material, de toneladas produzidas. Entretanto, quan-do restritos ao aspecto econômico, os grupos acabamaprendendo mais sobre os obstáculos do mercado que sobretécnicas de vendas; mais sobre as dificuldades do créditoque sobre suas potencialidades; mais sobre barreiras à en-trada que sobre o caminho para as economias de escala.Ou seja, aprendem sobre as suas impossibilidades. Por isso,nos pequenos projetos econômicos, é comum criticar oque se vê e não perceber seu outro lado, oculto e valioso.Essa face oculta só aparece num olhar menos focado no

objetivo, mais voltado ao conjunto, à trajetória, à cami-nhada. Só então é que se enxerga além do imediatamenteeconômico. E esse aprendizado, quase sempre, é a porçãomais rica desses projetos.

Por fim, é possível afirmar que os pequenos pro-jetos de geração de renda atuam também, e talvez principal-mente, sobre procedimentos, sobre mentalidades, sobreculturas e práticas. E isso tem efeitos inclusive sobre o eco-nômico, embora não sejam imediatos nem possam ser medi-dos com facilidade. Assim, pequenos projetos são o experi-mentalismo possível no campo do econômico. Direcionampara o aprendizado conjunto e a prática solidária e, dessaforma, permitem que muitos grupos excluídos se apropriemde recursos materiais e simbólicos para organizar sua atua-ção no mundo, para consolidar seus caminhos e para cons-truir novas causas, próprias e independentes.

Ana Paula Gomes de Meloadministradora, mestre do Núcleo de Pesquisa e Apoio à

Agricultura Familiar da Universidade Federal de Lavras(NPPJ/UFLA), professora da Universidade Presidente

Antônio Carlos – Campus Bom Despacho (MG)[email protected]

Eduardo Magalhães Ribeiroeconomista do NPPJ/UFLA,

professor da UFLA, pesquisador do [email protected].

Flávia Maria Galizoniantropóloga, professora da Universidade Federal dos

Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM) edo NPPJ/UFLA

[email protected]

Referências bibliográficas:BERTUCCI, A. de A.; SILVA, R. M. A. (Org.). 20

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RIBEIRO, E.M. Fé, produção e política – experiên-cias associativas de camponeses de Minas Ge-rais. São Paulo: Edições Loyola, 1993.

SINGER, P. Introdução à economia solidária. SãoPaulo: Editora Fundação Perseu Abramo,2002.

Reunião de dirigentes de organizações de agricultores do AltoJequitinhonha

Artesanato do Jequitinhonha

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Caminhos da inclusão social noAgreste da Paraíba

Sílvio Gomes de Almeida, Paulo Petersen,Adriana Galvão Freire e Luciano Silveira

O Agreste da Pa-raíba é uma re-gião ambiental-

mente heterogênea marcada por di-ferentes graus de semi-aridez, ins-tabilidade climática e longos perío-dos de seca. Essas característicasambientais incidem diretamente nacomposição de diversificados siste-mas de produção que combinampoliculturas com criações.

Embora a região apresente um predomínioquantitativo de unidades familiares, que correspondem a95% dos estabelecimentos rurais (ou aproximadamente14 mil unidades), elas ocupam somente 52% do territó-rio (IBGE: Censo 95/96). Com pouca disponibilidade deterra, as famílias são levadas a intensificar o uso do solo e

da vegetação, o que gera uma incapacidade de regenera-ção da fertilidade do ecossistema, alimentando, dessaforma, um círculo vicioso de insustentabilidade ambiental,econômica e social. Do total das unidades familiares pre-sentes, 61% são consideradas como “quase sem renda”(IBGE, 1995), o que define um universo significativo demuita pobreza e exclusão social.

Desde 1993, a AS-PTA – Assessoria e Serviçosa Projetos em Agricultura Alternativa mantém um pro-grama voltado à promoção do desenvolvimento rural noAgreste da Paraíba em estreita articulação com organiza-ções locais da agricultura familiar. O programa centra suasações no estímulo à geração, adaptação e difusão de ino-vações técnicas e sócio-organizativas voltadas para a con-versão agroecológica dos sistemas de produção. A hipó-tese que orienta o programa é a de que a superação docírculo vicioso de pobreza passa pela conversão agroeco-lógica das propriedades de forma a permitir a conserva-ção da base física e biológica dos ecossistemas, bem comoo incremento da renda.

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As ações do programa, que inicialmente atin-giam poucas comunidades em três municípios, abrangematualmente o conjunto de 16 municípios envolvendo 5mil famílias agricultoras. Embora seja notável o aumentoda escala geográfica e do alcance social do programa, suaevolução colocou para a AS-PTA e as organizações par-ceiras questionamentos sobre a capacidade das ações deinserirem as famílias mais empobrecidas nas dinâmicas deinovação agroecológica.

Para avaliar essa questão e dar pistas para oaprimoramento estratégico do programa, decidiu-se pelarealização de um estudo específico em três comunidadessituadas em área de forte concentração de ações do pro-grama e de presença de número expressivo de famílias emsituação de extrema pobreza. Este artigo apresenta asprincipais conclusões do estudo, realizado em 2002, lan-çando um olhar também sobre as evoluções mais signifi-cativas ocorridas desde então.

O estudo

Construindo o conceito de pobreza

O estudo iniciou-se por um debate que envol-veu a assessoria, lideranças de agricultores e representan-tes comunitários da região, buscando aproximar e com-partilhar as diferentes visões sobre o conceito de pobre-za. O debate teve como referência situações concretasvivenciadas localmente e as distintas percepções sobreessa realidade. Esse esforço inicial permitiu traduzir asdiversas concepções num conjunto organizado de carac-terísticas determinantes da pobreza e das privações quelimitam o exercício e a expansão das capacidades indivi-duais e coletivas.

Com esse enfoque, o estudo revelou que,nas condições locais, a pobreza se ex-pressa em um conjunto de caracterís-ticas: privação do acesso ou acesso pre-cário à terra, à água e à biodiversidade;fome e insegurança alimentar; margi-nalização nas relações com os merca-dos; privação do acesso aos serviçosbásicos e aos benefícios das políticaspúblicas; dependência política e sujei-ção nas relações de trabalho; e não-in-clusão nos processos locais de desen-volvimento.

A identificação dessas características que secombinam de variadas formas nos permitiu abordar obje-tivamente a pobreza como a expressão de um conjuntocomplexo e interdependente de dimensões. Em primeirolugar, a pobreza não se restringe à dimensão econômica eà privação dos bens materiais que constituem sua expres-

são mais explícita. Ela envolve também uma dimensãopolítica e cultural. Em segundo lugar, a pobreza se mani-festa de forma irregular no tempo e no espaço. A ocorrên-cia de períodos de seca, por exemplo, exacerba a pobrezae amplia o contingente de pobres, ocorrendo uma ten-dência ao nivelamento por baixo dos distintos níveis depobreza. Ao mesmo tempo, ao tomar as famílias pobrescomo unidade de referência, não podemos desconsiderara existência de níveis diferenciados de privações dentrodos núcleos familiares, que atingem de forma desigualhomens, mulheres, jovens e idosos.

Quem são os mais pobres?

Os dados iniciais da realidade levantados e or-ganizados levaram à identificação da privação do acessoà terra como o elemento estruturador do conjunto dasprivações que define a categoria das famílias mais pobres.São elas que apresentam maiores dificuldades para se in-tegrarem às dinâmicas sociais locais de promoção daAgroecologia. Essa categoria é composta pelos sem-ter-ra, pelas famílias com muito pouca terra e por aquelas quevivem em terras de parentes.

Outra forma de manifestação de privações so-ciais e materiais foi identificada no âmbito dos núcleosfamiliares. De forma quase indiferenciada entre as famíliasda comunidade, são as mulheres e os jovens e, principal-mente, as mulheres jovens, que se deparam com sériosbloqueios culturais para participarem dos processosdecisórios sobre a gestão econômica das propriedades ese beneficiarem dos frutos do trabalho familiar em condi-ções de igualdade com os homens adultos.

Formas de expressão da pobreza

O estudo identificou que a condição de maispobre se expressa em quatro campos principais que repre-sentam obstáculos para o acesso às inovações e para a inclu-são nos processos sociais de desenvolvimento: o acesso aosrecursos materiais básicos, aos benefícios das políticas pú-blicas, aos mercados e às organizações da sociedade civil.

No quadro das principais privações materiais,encontramos os obstáculos para o acesso à água, à alimen-tação, à renda e, sobretudo, à terra, fator decisivo. A ex-clusão da posse da terra ou as condições precárias de seuuso atingiam 64% dos mais pobres. Essa situação adversaresultava no estabelecimento de relações de dependênciaeconômica e política para o uso da terra de terceiros, o quetornava inviável ou desestimulava a incorporação de ino-vações voltadas para a estruturação progressiva dos siste-mas agrícolas em termos técnicos e econômicos.

Além disso, quase 70% das famílias nas comuni-dades estudadas não dispunham de infra-estrutura própriade captação e armazenamento de água e eram obrigadas arecorrer a fontes externas, tanto comunitárias como priva-das, freqüentemente situadas a grandes distâncias.

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A insegurança alimentar, com eventuais perío-dos de fome, era outro componente permanente da vidadessas famílias. Submetidas a condições socioeco-nômicas, técnicas e ambientais de produção extremamen-te desfavoráveis e erráticas, elas não conseguiam proverautonomamente as suas necessidades de consumo entreas safras, nem mesmo dispor de sementes para o plantiono período subseqüente.

Para assegurar uma renda mínima, os membrosdas famílias mais pobres buscam trabalho nas mais diver-sas atividades como diaristas, puxadores de agave, em ser-viços domésticos e outros. Além de incertas, essas ocupa-ções não geram renda monetária fixa. Em alguns casos arenda dessas famílias é complementada por remessas defamiliares que migraram, pela aposentadoria de algummembro ou pelo acesso a programas governamentais com-pensatórios.

O precário acesso aos mercados, sejapara a venda de seus produtos ou paraa compra de bens necessários, consti-tui outro campo de exclusão das famí-lias mais pobres. Não dispondo de re-cursos para o transporte, raramenteparticipam das feiras, tendo que ven-der suas mercadorias ou se abastecerem condições desfavoráveis, sujeitan-do-se aos preços dos bodegueiros eatravessadores. O isolamento, a faltade recursos para colocar diretamenteos produtos nas feiras, o desconheci-mento dos preços, a urgência para ven-der a produção para o pagamento dedívidas fazem com que suas produçõessejam sempre desvalorizadas. Mesmonas poucas ocasiões em que compare-cem às feiras, seus produtos, em peque-na quantidade e expostos no chão, aca-bam desprezados pelos compradores.

Também no acesso aos benefícios das políti-cas públicas as famílias mais pobres são penalizadas. Nascomunidades estudadas, a educação formal, a saúde pú-blica e os serviços de transporte eram precários. A meren-da escolar sofria longas interrupções. Não havia progra-mas de saneamento básico na zona rural. A rede de ener-gia elétrica passava ao lado das casas e as famílias tambémnão dispunham de condições para o pagamento desseserviço. Embora constituíssem um importante aporte derenda para um número razoável de famílias, os programassociais do governo existentes na época (Bolsa Renda, Bol-sa Escola e Vale Gás) eram irregulares e sujeitos a desviode finalidade em função de relações clientelistas, deixan-do à margem grande parte de seu público-alvo, justamen-te os mais pobres. As modalidades de crédito oficial tam-

bém eram inadequadas às condições dos mais pobres.Além das dificuldades institucionais de acesso, quandoconcedido, o crédito transformava-se freqüentemente eminstrumento de desestruturação e não de fortalecimentodos sistemas produtivos.

A fraca participação das famílias mais pobresem espaços de organização da sociedade também foiidentificada como um fator agravante da exclusão so-cial. Essa condição se reproduzia por duas razões prin-cipais: de um lado, pela existência de limitantes econô-micos para o pagamento de transporte e para a comprade roupas mais cuidadas para ir às reuniões. De outro,pela ausência de propostas das organizações sociaisdirigidas ao enfrentamento das questões específicas des-se segmento.

Os aprendizados e osdesdobramentos do estudo

Ao identificar as formas locais de manifesta-ção da pobreza, o estudo permitiu desvelar estratégias deação capazes de enfrentar os mecanismos de reproduçãoda exclusão sociocultural que atinge considerável parteda população rural. O primeiro e mais significativo ensi-namento nesse sentido veio do reconhecimento de que,para contornar as privações a que estão submetidas, asfamílias mais pobres implementam estratégias próprias desobrevivência. Fortemente marcadas pela necessidade degarantir, no curto prazo, as condições mínimas de repro-dução biológica, essas estratégias não chegam a rompero círculo vicioso da pobreza. Por outro lado, elas revelamas capacidades criativas dessas famílias de manejar, deforma individual ou coletiva, as limitadas margens demanobra que possuem para atenuar as manifestações maisagudas da pobreza.

Exemplo disso são os mecanismos de recipro-cidade exercitados no cotidiano das comunidades, quefuncionam como dispositivos atenuadores da privação ex-trema. Os mutirões, o empréstimo e/ou doação de se-mentes, água e alimentos são procedimentos locais que

Forma tradicional de abastecimento de água

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permitem a redistribuição dos parcos recursos exceden-tes na comunidade em benefício dos mais pobres. Essesmecanismos perdem vigência nos anos de seca, quandoos sistemas produtivos não são capazes de prover exce-dentes a serem socializados na comunidade. Nessas cir-cunstâncias, a migração, ainda que temporária, é a prin-cipal alternativa que resta para os mais pobres.

Além dos mecanismos coletivos de re-sistência às privações extremas, mani-festam-se estratégias individuais pormeio das quais as famílias asseguram oacesso a recursos essenciais à sua repro-dução. Essas estratégias operam atra-vés de diversificadas modalidades de par-cerias desiguais, como a cessão de áreasde cultivo em troca de trabalho, mea-ções, compensações, créditos informaispara compra de alimentos, entre outras.Elas se confundem muitas vezes com amanutenção de relações de sujeição edependência econômica e política esta-belecidas com proprietários de terra,comerciantes e políticos locais e, aomesmo tempo, demonstram a baixa ca-pacidade desse segmento mais empobre-cido para desvincular suas formas de so-brevivência dos mecanismos repro-dutores de sua pobreza.

Ao trazer à luz essas estratégias de sobrevi-vência, o estudo chamou a atenção para a necessidadede reorientar propostas e metodologias do programade forma a potencializar as capacidades de iniciativaespontânea dos setores mais pobres para acessar emanejar recursos produtivos autonomamente. De fato,essa necessidade de reorientação estratégica foi con-firmada pela análise dos impactos das ações anteriores doprograma sobre a realidade dos mais pobres nas três co-

munidades estudadas. Embora houvesse alto nível departicipação das famílias mais pobres nos bancos de se-mentes comunitários (69% dos sem-terra, 58% dos mo-radores em casa de parentes e 48% dos proprietários commuito pouca terra), ocorria limitada integração dessasmesmas famílias nos fundos rotativos solidários destina-dos ao financiamento de infra-estruturas hídricas para oabastecimento doméstico. Além disso, ainda que muitasvezes correspondessem às suas demandas e carências,outras propostas inovadoras também não foram incorpo-radas por essas famílias pelo fato de não serem adequadasàs suas condições precárias de posse da terra. Entre essasinovações, destacam-se a rearborização dos sistemas pro-dutivos, o aprimoramento do sistema pecuário, a cons-trução de instalações, as práticas de fertilização orgânicados solos, etc.

Caminhos para o empoderamentodos mais pobres

Após cinco anos da realização do estudo nastrês comunidades, as condições de vida das famílias maispobres sinalizam mudanças significativas que, em essên-cia, revelam a instauração de trajetórias de ruptura com ocírculo vicioso da pobreza, resultantes de dois fatorescombinados: de um lado, os métodos de ação do progra-ma foram ajustados de forma a estimular a interação dasfamílias mais pobres nas dinâmicas locais de inovaçãoagroecológica, possibilitando melhores condições paraque elas se apropriassem de propostas inovadorasamadurecidas localmente. De outro, o maior envolvi-mento dessas famílias nos processos comunitários crioucondições propícias para que elas pudessem tirar partidodas políticas governamentais, sobretudo aquelas volta-das para garantir o acesso e o uso autônomo da terra.

Entre os ajustes nos métodos do programa,destacam-se:• Diversificação dos itens financiáveis pelos Fundos

Rotativos Solidários (FRS): até 2002, os FRS eram

Mutirão para reforma de barreiro Mutirão para plantio de roçado

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exclusivamente orientados para o financiamento decisternas para estocagem de água de uso domésti-co. Desde então, passaram a financiar outros itens,como esterco, pequenos animais, telas para a con-fecção de cercas para a contenção de pequenoscriatórios, embalagens para a comercialização deprodutos, entre outros.

• Diversificação e melhoramento de infra-estruturashídricas para captação e armazenamento de águapara uso doméstico e na agricultura: essa iniciativafoi desencadeada pela revitalização dos mutirões co-munitários a partir da ação da Catequese Familiar,grupo pastoral com forte atuação local. Destaca-setambém a implantação da técnica das bombas po-pulares destinadas à captação de água de poços parao consumo animal. Essa inovação possibilitou queos mais pobres não sejam obrigados a vender seusanimais nos períodos de seca.

• Melhoria dos arredores de casa: iniciativa tambémpolarizada pela Catequese Familiar e voltada para aintensificação produtiva dos quintais domésticos.Ao mesmo tempo em que vem impactando positiva-mente as condições de segurança alimentar das fa-mílias mais pobres, essa linha de ação tem criado umambiente social favorável ao empoderamento dasmulheres, que nesses espaços têm seus trabalhos so-cialmente reconhecidos.

Um grupo de 30 famílias sem-terra residentesnas três comunidades estudadas se organizou para se be-neficiar de programa do governo federal de acesso a terra.Ao romper com o principal limitante para o ingresso nasdinâmicas comunitárias de inovação agroecológica, es-sas famílias lograram mudanças qualitativas de grande al-cance em suas condições de vida e trabalho, bem comoem sua inserção social. Tendo constituído um assenta-mento que assegurou a posse de 17 hectares para cadafamília, além de uma área comunitária de cinco hectares,essas famílias puderam se apropriar do leque mais amplode inovações promovidas pelo programa, rompendo coma marginalização a que estavam até então confrontadas.Passaram assim a gerir seus próprios sistemas produtivosgeradores de renda e de segurança alimentar e hídrica, epuderam se desvincular das relações de subordinação po-lítica e econômica com os latifundiários em cujas terrashabitavam em troca de trabalho. Ao mesmo tempo, elascomeçaram a participar dos eventos de formação do pro-grama, buscando incorporar progressivamente novos co-nhecimentos técnicos e se inserir nas organizações da agri-cultura familiar da região. Em 2007, por ocasião do DiaMundial da Água, essas famílias sediaram um evento deâmbito regional, no qual puderam apresentar para agri-cultores de vários municípios suas experiências familiarese coletivas de gestão de recursos hídricos.

Lições e desafiosA realização do estudo e os seus desdobramen-

tos chamam a atenção para dois desafios recorrentes colo-cados para programas de desenvolvimento rural:1 – Identificar as estratégias de sobrevivência fundadas em

mecanismos de reciprocidade e na valorização dos re-cursos locais em comunidades rurais pobres e, a partirdisso, adotar enfoques de desenvolvimento rural quepotencializem essas estratégias. Nesse sentido, cons-tatamos que o enfoque agroecológico foi capaz de im-pulsionar processos sociais que permitiram a traduçãodessas estratégias de sobrevivência em um projeto co-letivo de desenvolvimento local ao atuar em diversasfrentes para superar o círculo vicioso da pobreza quemantém um contingente significativo de famílias ex-cluído dos benefícios da produção social de riquezas eda vida cultural.

2 – Estimular a capacidade das famílias agricultoras maispobres para construir seus próprios projetos de inser-ção social, condição essencial para que elas tirem parti-do das políticas públicas como instrumentos de supe-ração das amarras que as prendem aos mecanismos so-ciais de reprodução da pobreza. As políticas de caráterassistencialista são ineficazes para romper essas amar-ras, em que pese o fato de serem necessárias para oenfrentamento de situações de emergência social. Aspolíticas de desenvolvimento econômico têm igual-mente se mostrado incapazes de romper com os ciclosde pobreza, na medida em que são formatadas segun-do uma concepção técnica e econômica que não seadequa às vivências e expectativas das famílias maispobres. Portanto, para serem efetivas na inclusão daspopulações rurais que vivenciam a pobreza extremanos processos de desenvolvimento, essas políticas pú-blicas devem ser capazes de promover a integração dasdimensões sociocultural e econômica por meio deenfoques que assegurem o empoderamento desses ato-res marginalizados nas dinâmicas sociais.

Sílvio Gomes de Almeidadiretor executivo da AS-PTA

[email protected]

Paulo Petersendiretor executivo da AS-PTA

[email protected]

Adriana Galvão Freireassessora técnica da AS-PTA

[email protected]

Luciano Silveiracoordenador do Programa de Desenvolvimento Local

do Agreste da Paraíba da [email protected]

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Combate à pobrezarural e sustentabilidade

no semiáridonordestino: a experiência do

projeto Dom Helder Camara1

Pablo Sidersky, Felipe Jalfim eEspedito Rufino

período colonialdeu início às po-líticas públicas

para o meio rural brasileiro, com amarca da exclusão social e orienta-ção para o apoio às lavouras senho-riais, sendo o melhor exemplo dissoo cultivo da cana-de-açúcar. Emmeados dos anos 1980, com o fimda ditadura militar e a partir do cla-mor popular, a pobreza no meio ru-ral entrou no rol das pautas dos go-vernos. Data dessa época a primei-ra geração de políticas que tinhamcomo objetivo a diminuição da po-breza, como o Programa de Apoio àPequena Produção (PAPP), umainiciativa que contou com o finan-ciamento do Governo Federal e doBanco Mundial. No entanto, apesarde o discurso desses programas fa-zer referência à necessidade de par-ticipação das populações-alvo, elestiveram pouco êxito na empreitadade reduzir a pobreza no meio rural.

ONo final dos anos 1990, depois de ampla pres-

são dos movimentos sindicais e sociais do campo, foiinstitucionalizado o Programa Nacional de Apoio à Agri-cultura Familiar (Pronaf), no qual se destaca a concessãode crédito2. Depois de 2000, outras iniciativas importan-tes vieram se somar ao Pronaf. Apesar do advento dessesnovos programas, nas regiões mais pobres (como o Nortee o Nordeste), foi constatado que as famílias continua-vam numa situação praticamente idêntica àquela do pas-sado. Estudos realizados sobre o Pronaf indicaram quemuitas dessas famílias não tinham acesso às políticas emquestão. Em outros casos, o acesso acontecia, mas osresultados eram deficientes (MDA/FAO/UFSM, 2004).

Foi nesse contexto que o Projeto Dom HelderCamara (PDHC) se iniciou. O projeto nasce como umadas respostas governamentais à ampla e históricamobilização dos movimentos sindicais e sociais, ONGs,Igrejas, especialmente da região semiárida nordestina, porações permanentes para o desenvolvimento da agricultu-ra familiar dessa região. Este texto apresenta a forma de1Projeto do Ministério do Desenvolvimento Agrário/Secretaria de DesenvolvimentoTerritorial (MDA/SDT), a partir de um acordo de empréstimo com o Fundo In-ternacional para o Desenvolvimento da Agricultura (Fida), cuja missão é a de criarreferenciais para as políticas públicas de combate à pobreza em áreas de agriculturafamiliar e reforma agrária na região semiárida nordestina.2Um marco dessa mobilização ocorreu durante a grande seca de 1993. Naqueleano, o Movimento Sindical dos(as) Trabalhadores(as) Rurais do Nordeste ocu-pou a sede da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) emanteve uma dura negociação com o Governo Federal para que houvesse umatransição das Frentes de Emergência para a adoção de Programas Permanentes deConvivência com o Semiárido. Desse evento nasceu o Fórum Pernambucano deEnfrentamento aos Efeitos da Seca (Fórum Seca), o qual foi fonte de inspiraçãopara o surgimento de várias outras articulações estaduais sobre o tema, culminandoem 1999 com a fundação da Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA-Brasil).

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atuar do Projeto Dom Helder, tomando como ilustração asua interação e os seus efeitos sobre a trajetória dosagroecossistemas do assentamento Moacir Lucena, locali-zado no município do Apodi, semiárido do Rio Grande doNorte. Nas conclusões, resgatamos algumas lições, buscan-do identificar elementos centrais para a elaboração de políti-cas que tenham uma real contribuição para a superação dapobreza rural, pautados na perspectiva agroecológica.

Os agroecossistemas noassentamento Moacir Lucena

Em termos gerais, o desenho dos agroecos-sistemas de gestão familiar do assentamento Moacir Lucenasegue o formato tradicional da região, que comporta acombinação de culturas anuais (os roçados) com criaçãoanimal. Agregam-se a isso um pomar de caju de um hec-tare, além de um quintal onde se encontram algumas fru-teiras e as criações características desse espaço (princi-palmente aves). Porém, com suas parcelas de 20 hecta-res, mais o pomar de caju e o roçado na área coletiva,esses sistemas demonstram ser pequenos para o semiárido.Como tantas outras famílias da região, os assentados deMoacir Lucena estão confrontados pela necessidade deintensificar a produção vegetal e animal. Assim, eles bus-cam diversas inovações para reforçar a produção global,sem perder de vista a sustentabilidade ambiental. Veja-mos a seguir com mais detalhes como se dá essa buscapor inovações.

As mudanças no roçado

A principal novidade dos roçados se refere asua integração com a criação animal. Atualmente a maiorparte do milho e todo o sorgo são plantados com o obje-tivo de fornecer ração para os animais, que é quase todaarmazenada na forma de silagem e feno. Essa opção porplantar para produzir ração representa uma diferença im-portante em relação ao roçado tradicional. Embora a pa-

lha do milho sempre tenha sido usada como alimentaçãopara os animais, esse nunca havia sido o objetivo central.Por outro lado, a prática de plantar para produzir raçãomudou também a forma com que essas culturas são usa-das. Antes o restolho era pastejado diretamente pelosanimais, e agora o milho e o sorgo são colhidos e armaze-nados, sendo fornecidos aos animais no cocho. Essa mu-dança no foco do roçado foi fruto de intercâmbios entreagricultores de Moacir Lucena e as Unidades Demonstra-tivas (UDs) de criação de caprinos implantadas em outrosassentamentos do território do Apodi com o apoio doprojeto Dom Helder (Quadro 1).

A volta do algodão

Nos anos 1980, o bicudo-do-algodoeiro pare-ceu dar o tiro de misericórdia numa cultura que foi duran-te muito tempo a principal fonte de renda dos sertõesnordestinos. No final do século passado, o algodão esta-va praticamente extinto em toda a região. Na região doApodi não foi diferente. Mas a situação em Moacir Lucenacontradiz esse quadro, já que metade da área cultivadano assentamento (60 hectares) é ocupada pelo plantiodo algodão.

Segundo explicação de um assentado: “Assimcomo é necessário aprender a conviver com o semiáridoem lugar de lutar contra a seca, também é necessário apren-der a conviver com o bicudo.” O segredo que está permi-tindo essa convivência se baseia em duas estratégias: noplantio na mesma data por todos os agricultores que plan-tam algodão; e no plantio precoce, após as primeiras chu-vas. Essas duas técnicas, em uso há três anos, têm conse-guido estabelecer a convivência com o bicudo, garantin-do uma colheita e uma renda muito bem-vinda.

O reforço da criação animal

A novidade na criação de animais em MoacirLucena é o fato de que parte da produção de leite decabra vem sendo comercializada in natura para uma

A Unidade Demonstrativa (UD) é umespaço de experimentação de propostas técni-cas e/ou organizativas promissoras para a so-lução de problemas e/ou para o melhor apro-veitamento de potencialidades (PDHC, 2004).Sendo necessário, o PDHC pode financiar essaexperimentação, que é desenhada pelas famí-lias em parceria com a Assessoria Técnica pormeio da formulação de um projeto.

O Fundo de Investimento Social e Pro-dutivo (Fisp) é um fundo de financiamento deprojetos administrado pelo PDHC. Ele tem opropósito de efetuar investimentos, não-reem-bolsáveis, visando melhorar as condições de vidadas famílias atendidas pelo PDHC. São investi-mentos de pequena monta de infraestruturasocial e produtiva focados no aprendizado deelaboração e gestão participativa de projetos.

Quadro 1. Projetos de UDs e Fisp como instrumentos de aprendizagem

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empresa local. Além disso, o rebanho caprino disponi-biliza carne e leite para o autoconsumo, assim comopara venda na vizinhança e na feira local. Mas o assen-tamento planejou também a implantação de uma uni-dade de beneficiamento do leite para fabricação dequeijo (tipo coalho e ricota) e doce de leite (Quadro2). Agora as famílias já pensam em como melhorar essaunidade para conseguir a certificação de inspeção, pelomenos, municipal.

Aprendendo a manejar a caatinga de formadiferente

Tradicionalmente, a caatinga não é manejada,no sentido mais estrito da palavra. Ela é pastoreada pelosanimais em sua forma natural, é derrubada para abrir aárea para o roçado, e depois a capoeira é usada comofonte de forragem para os animais. Uma das iniciativasinovadoras que aconteceram nesse assentamento foi ainstalação de uma Unidade Demonstrativa de manejo decaatinga. Essa UD, implantada no lote de um assentado,já tem cerca de quatro anos de idade. Inicialmente, foramfeitas as principais ações de manejo – o raleamento e orebaixamento – em um hectare de caatinga. Além dessasações, vale ressaltar que o agricultor em cuja parcela foiinstalada a experiência tem muito cuidado com o uso daárea. Ele só permite a entrada de animais a partir do ter-ceiro ano. Por isso ele tem uma cerca que separa a áreamanejada mais antiga das mais recentes.

Pouco a pouco, o dono da parcela expandiua área para cerca de quatro hectares. Ao manejo inicial eleacrescentou o enriquecimento, plantando espécies maisdesejadas (cajarana, sabiá, aroeira, cunhã, etc). A formade implantação foi evoluindo com o tempo: enquantoque a primeira área foi integralmente manejada, nassubsequentes o agricultor fez o manejo por faixas, dei-xando áreas de caatinga sem manejar entre as áreas ma-nejadas.

O assentado que assumiu a UD, um verdadeiroentusiasta dessa forma de manejo da caatinga, apontavários resultados interessantes. Em primeiro lugar, tem arecuperação da caatinga e, ao mesmo tempo, um signifi-cativo incremento na produção de forragem. O segundoresultado importante é o pasto apícola, que é aproveita-do pela criação de abelhas que o agricultor mantém nessaárea. Por último, ele destacou um terceiro produto quetambém vai ser uma fonte de renda: a madeira (pau bran-co e estacas de sabiá). Embora vários desses resultadossejam relevantes e tenham significado um acréscimo naprodução e na renda familiar, o que mais chama a atençãodessa experiência é que ela não ficou restrita à proprieda-de da família do experimentador. Atualmente, das 20 par-celas familiares do assentamento, 18 têm uma área decaatinga manejada.

A apicultura

Essa atividade não era tradicional na região,mas se iniciou no assentamento com os primeiros proje-

O Fisp das mulheres financiou 60 ma-trizes e cinco reprodutores. A idéia principalnesse caso foi buscar a melhoria da aptidãoleiteira do rebanho. O segundo Fisp finan-ciou uma unidade de beneficiamento de di-versos produtos (que incluem leite, principal-

mente de cabra, e polpa de fruta). Esse projetotambém permitiu a compra de mais 40 matri-zes caprinas. A compra dos animais dos proje-tos Fisp provocou uma intensa mobilização dasfamílias desde a elaboração do projeto até aimplantação.

Quadro 2. Fortalecendo a criação de cabras leiteiras via projeto Fisp

Parcela de manejo da caatinga de agricultor-experimentador Apiário familiar dentro de uma área de caatinga manejada

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tos Pronaf A, por meio da introdução de 10 caixas deabelhas e uma casa do mel. Além de contar com assesso-ria técnica permanente, as famílias do assentamento par-ticiparam de uma capacitação e de visitas de intercâmbiosobre o assunto (promovidas no âmbito do Projeto DomHelder), o que certamente teve um papel importante naconsolidação dessa atividade no local. Atualmente, to-das as famílias assentadas têm caixas de abelhas. As quetêm menos possuem 20 caixas, mas algumas têm até 100caixas. A apicultura tem permitido a obtenção de umarenda interessante, com um custo pequeno.

As lições sugeridas pelo casoapresentadoOs resultados: a consolidação doassentamento

Na entrada do novo milênio, o Assentamen-to Moacir Lucena estava engatinhando, e as famíliassobreviviam com dificuldade. Hoje, as famílias assen-tadas expressam com clareza um sentimento de satis-fação. De lá para cá, elas tiveram acesso a uma moradiae a infraestruturas de captação e armazenamento deágua. A organização local se fortaleceu. Mas cabe assi-nalar também que, durante esse período, foram implan-tadas vinte unidades familiares bastante produtivasque, ao mesmo tempo, buscam conservar a base derecursos da qual dependem.

O que chama a atenção no assentamento éque a consolidação dos agroecossistemas de gestão fami-

liar não está se dando prioritariamente pela introduçãode novos componentes, mas sim pela evolução de umagroecossistema que poderíamos chamar de tradicional.Observa-se que a criação de caprinos é o carro chefe daagricultura tradicional na região, mas em Moacir Lucenahouve um conjunto de inovações nessa atividade que apotencializaram, tais como: o melhoramento genético dorebanho; mudanças na produção de ração, com a intro-dução da silagem e o feno; aprimoramento do manejo dacaatinga, que permite aumentar a produção de forrageme, ao mesmo tempo, conservar a própria caatinga. Estaúltima inovação favoreceu ainda a difusão de uma ativi-dade produtiva nova integrada à caatinga: a apicultura.Finalmente, com a implantação da unidade de beneficia-

Cabras leiteiras do assentamento Moacir Lucena

O que chama a atençãono assentamento é que

a consolidação dos agro-ecossistemas de gestão familiar

não está se dando prioritariamente pelaintrodução de novos componentes,mas sim pela evolução de um agro-ecossistema que poderíamos chamarde tradicional.

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mento do leite, a comunidade busca agregar mais valorao seu principal produto.

Embora ainda existam desafios a seremsuperados, não há dúvida de que essesagroecossistemas tradicionais estão numprocesso de evolução bastante forte, nosentido de fazer crescer produção e ren-da. Ao mesmo tempo, essas mudançasbuscam não somente manter, mas tam-bém aprimorar a base de recursos natu-rais. O Assentamento Moacir Lucenapode ser visto, portanto, como exemplo,em se tratando da construção de meiosde vida mais sustentáveis para um con-junto de famílias do semiárido brasileiro.E é justamente por isso que interessa iden-tificar quais foram os fatores que expli-cam essa trajetória positiva.

Os fatores que ajudaram

Não há dúvida de que a história desse assenta-mento é, em primeiro lugar, a história de um grupo defamílias corajosas e decididas. Elas são originárias do lu-gar, sendo “praticamente uma família só”, nas palavrasde um assentado. O processo de ocupação da fazendapermitiu o surgimento de uma organização local que per-dura e que potencializa a iniciativa das famílias.

No início da vida produtiva do assentamento,também foi fundamental o aporte de outras iniciativas,como os recursos do Instituto Nacional de Colonizaçãoe Reforma Agrária (Incra) e, em menor medida, do Pro-grama Um Milhão de Cisternas (P1MC), que permitirammontar a infraestrutura social (moradia, água, etc). Ocrédito do Pronaf A também teve um papel importantena estruturação dos sistemas produtivos (cercas, reba-nho, pomar de caju, apiário, etc.). Cabe mencionar ain-da os projetos Fisp, financiados pelo Projeto Dom Helder,que foram responsáveis pela ampliação dos rebanhos,pela instalação de uma unidade de beneficiamento deleite e por investimentos no campo do lazer comunitá-rio (quadra de esportes).

Entretanto, outros assentamentos recebem re-cursos de diversas fontes, seja para investimento em mora-dia ou em atividades produtivas, mas não tiveram uma tra-jetória bem-sucedida. Em Moacir Lucena, além das carac-terísticas do grupo já mencionadas, existe uma AssessoriaTécnica Permanente (ATP) dotada de um conjunto de

instrumentos de aprendizagem e balizada por uma pers-pectiva agroecológica e por uma estratégia de desenvolvi-mento territorial, interagindo com as famílias.3

As principais características do Projeto DomHelder Camara

Partindo da constatação de que a pobreza temvárias dimensões e, portanto, que a solução da mesmanão se dá apenas com um incremento da produção agro-pecuária, o PDHC busca superar o viés da AssistênciaTécnica e Extensão Rural (Ater) convencional. Para tan-to, define o escopo do seu trabalho de forma abrangente:a assessoria técnica deve trabalhar não somente com otema da produção, mas deve dar atenção também às váriasdimensões da vida das famílias assentadas, tais como ofortalecimento das organizações, o acesso às políticaspúblicas, além da promoção de uma maior igualdade degênero e protagonismo da juventude.

Além de propor uma assessoria de espectroamplo, o Projeto Dom Helder busca inovar no que se refe-re aos métodos de trabalho, ao favorecer uma abordagemparticipativa no planejamento das atividades, garantin-do assim uma maior compreensão dos anseios das famíli-as. Esse enfoque metodológico é complementado pelautilização de ferramentas adequadas, tais como as Uni-dades Demonstrativas (PDHC, 2004), os projetos Fisp eos intercâmbios entre agricultores.

Cabe destacar que, em lugar de buscar promo-ver a modernização dos agroecossistemas de gestão fa-miliar com base principalmente na matriz técnica clássicada Revolução Verde, o Projeto Dom Helder se apóia naAgroecologia para sugerir inovações que sejam mais pro-dutivas em termos econômicos e ao mesmo tempo maissustentáveis do ponto de vista social e ambiental.

A estratégia de assessoria técnica pre-vê que ela esteja presente assidua-mente nas comunidades e assentamen-tos. Mas como o Projeto Dom Heldernão atua diretamente nas comunida-des, ele contrata organizações chama-das de Parceiras de ATP para fazer isso.Em geral, tratam-se de ONGs ou coo-perativas de técnicos, que se compro-metem então a ter equipes que pres-tam assessoria técnica nos assenta-mentos e comunidades. Para reforçaro trabalho dessas entidades, o ProjetoDom Helder dispõe de técnicos(as)com perfil de especialistas com atua-ção territorial (por exemplo: especia-lista em cajucultura, gênero ou gera-ção), os quais atuam em suas espe-

3É evidente que nem todas as comunidades e assentamentos envolvidos com o ProjetoDom Helder têm obtido os mesmos resultados que Moacir Lucena. Mas a experiênciadesse assentamento serve para mostrar o potencial que tem o enfoque adotado peloprojeto. Nesse sentido, trata-se de um exemplo muito comum de ser encontrado noâmbito de atuação do PDHC, estando longe de ser uma exceção ou fazer parte de umaminoria de casos bem-sucedidos.

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cificidades de conhecimentos de formaplanejada e integrada com os(as) téc-nicos(as) de ATP de perfil mais eclético,de assessoria geral às famílias.4 Alémdisso, o Projeto Dom Helder estimula eapóia os movimentos sindical e social aformarem grupos de Mobilizadores So-ciais, que atuam de forma integradaaos outros atores mencionados, porém,com uma contribuição específica na or-ganização social das famílias e no con-trole social dos serviços de ATP que sãoprestados pelas entidades contratadas.A estratégia, portanto, consiste em atu-ar em um território com uma equipe deespecialistas trabalhando em colabo-ração com as equipes locais de ATP eos Mobilizadores Sociais.

A atuação do PDHC em Moacir Lucena

A Parceira de ATP que trabalha em MoacirLucena é a Cooperativa de Assessoria e Serviços Múltiplosao Desenvolvimento Rural (Coopervida)5. O Projeto DomHelder estabeleceu com ela um contrato que tem comoreferências o marco teórico-metodológico e a estratégiado projeto, que refletem a própria experiência acumuladada entidade. A parceria que tem se formado entre os técni-cos e as famílias do assentamento no desenho de novossistemas produtivos mais sustentáveis tem sido importan-te para a experimentação e a adaptação da proposta demanejo de caatinga. A assessoria também favoreceu a di-fusão da apicultura, a melhoria do rebanho, etc. O enfoqueagroecológico orientou o desenho dos novos sistemas pro-dutivos, ao promover um melhor aproveitamento e preser-vação dos recursos da caatinga. A Agroecologia tambémorienta tecnicamente a retomada do plantio do algodãoem consórcio com espécies alimentares.

Essas experimentações, que tanto ajudaram amodelar os agroecossistemas e os espaços coletivos deprodução, foram cruciais para a elaboração de projetosde crédito do Pronaf A, Pronaf Infraestrutura e, mais re-centemente, dos projetos Fisp. Portanto, os projetos decrédito, que em muitos assentamentos são mais um pro-blema, em Moacir Lucena desempenharam um papel im-portante na consolidação das unidades familiares e dasações coletivas do assentamento.

Para terminar

A experiência do Projeto Dom Helder tem de-monstrado que a superação da pobreza rural no semiáridobrasileiro passa por uma abordagem conceitual holística esistêmica da agricultura familiar, rompendo com a tradicio-nal abordagem compartimentalizada da realidade rural. Paratanto, é necessário que os programas e projetos, por umlado, sejam direcionados aos anseios, potencialidades e pro-jetos de vida das famílias e suas comunidades e, por outro,considerem a multidimensionalidade da pobreza rural.Interagir com esses vários aspectos significa, portanto, avan-çar no conceito e na prática de uma assessoria técnica àsfamílias que de fato as faça desenvolver uma maior capacida-de de encontrar soluções para os problemas que estão aoseu alcance direto. Esse enfoque também busca ampliar ofortalecimento organizacional nos diversos níveis (local,municipal, territorial, estadual e nacional) para a elaboraçãoe acesso, cada vez maior e melhor, às políticas públicas vol-tadas para a agricultura familiar no Brasil.

Por fim, cumpre ressaltar que a aplicação doenfoque agroecológico em programas governamentais desuperação da pobreza rural, com ênfase na valorização dosaber popular, na troca de conhecimentos e nas meto-dologias participativas, é algo novo, ainda em constru-ção. Exige a quebra de velhos paradigmas e muito inves-timento em formação de quadros com outra concepçãode desenvolvimento e novas formas de compreender osprocessos que levam às transformações socioeconômicas,políticas e ambientais no meio rural. Exige ainda um re-pensar do tempo de vida necessário a um programa desuperação da pobreza rural, que considere os tempos deresposta dos agroecossistemas, das famílias e comunida-des envolvidas no programa.

Pablo Siderskyeconomista, mestre em Sociologia Rural

[email protected]

Felipe Jalfimveterinário, mestre em Agroecologia

[email protected]

Espedito Rufinoeconomista, doutor em Economia do Desenvolvimento

[email protected]

4Os(as) especialistas devem ter a Agroecologia como paradigma técnico/científico.Ou seja, sua atuação deve ser orientada a partir de todos os conceitos e metodologiasapresentados neste artigo.5A Coopervida é uma cooperativa de técnicos, com sede em Mossoró (RN), fundadaem 1999. Desde então, vem prestando assessoria técnica a assentamentos da ReformaAgrária. Atualmente, assessora diretamente 220 famílias assentadas nos municípiosdo Sertão do Apodi.

Referências bibliográficas:MDA/FAO/UFSM. Perfil dos serviços de Ater no

Brasil: análise crítica de relatórios. Brasília:MDA; FAO; UFSM, 2004. 102 p.

PDHC. Questões relacionadas à implantação deUnidades Demonstrativas no PDHC - Orien-tações para 2004. Recife: PDHC, 2004.

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Superando a pobrezarural a partir dasriquezas nativas:

a experiência da CooperativaGrande Sertão

Igor S.H. de Carvalho

A Cooperativa dosAgricultores Fa-miliares e Agro-

extrativistas Grande Sertão surgiu apartir do trabalho do Centro de Agri-cultura Alternativa do Norte de Mi-nas (CAA-NM) que, desde meadosda década de 1980, vem atuando emprol da organização, politização econquista dos direitos do campe-sinato norte-mineiro. Dada a neces-sidade de se encontrar alternativasprodutivas que, enraizadas nosagroecossistemas tradicionais daregião, promovessem inclusão soci-al, geração de renda e conservaçãodos recursos naturais, iniciou-se,em 1995, a produção de polpas defrutas congeladas que culminou nacriação da Grande Sertão.

De lá pra cá, mais de duas mil famílias já sebeneficiaram diretamente com a comercialização de pol-pas de frutas, mel, derivados da cana e outros produtosda agricultura sertaneja. Essas famílias estão espalhadaspor cerca de 350 comunidades rurais de 26 municípios.Os recursos financeiros gerados são bastante significati-vos, uma vez que as comunidades são de baixa renda.Contudo, o principal diferencial da geração de renda pro-

movida pela Grande Sertão é que ela se origina nas pró-prias estratégias de segurança alimentar e reproduçãosocial dos camponeses, refletidas na grande diversidade eautenticidade de seus produtos. Além disso, ela se baseiaem métodos produtivos que não dependem do empregode insumos químicos e que promovem a proteção e a re-cuperação dos ecossistemas. Alguns resultados concre-tos desse trabalho são analisados neste artigo.

As frutas e os frutos daCooperativa Grande Sertão

Sustentabilidade ambiental

Vivemos atualmente um período de crise eco-lógica, no qual os bens naturais estão cada vez mais es-cassos, degradados e poluídos. Nos anos recentes, têmsido dadas demonstrações irrefutáveis da insusten-tabilidade do modelo de exploração da natureza pratica-

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1Mesmo as espécies exóticas utilizadas estão plenamente adaptadas aos ecossistemasnativos, visto que são cultivadas em sistemas biodiversos e em geral são variedadesselecionadas pelos agricultores ao longo de gerações.2O PAA é uma política do governo federal coordenada pela Companhia Nacional deAbastecimento (Conab).

Nome popular Nome científico

Araçá Psidium araca RaddiCagaita Eugenia dysenterica DC.Coquinho-azedo ou coco-butiá Butia capitata (Mart.) BeccariMangaba Hancornia speciosa GómezMaracujás nativos Passiflora spp.Panã ou araticum Annona crassiflora Mart.Pequi Caryocar brasiliense Camb.

Umbu Spondias tuberosa (L.) Arr.Cam.Abacaxi Ananas comosus (L.) Merr.Acerola Malpighia emarginata DC.Cajá Spondias mombin L.Caju Anarcadium occidentale L.Goiaba Psidium guajava L.Jabuticaba Myrciaria cauliflora (DC.) O.Berg.Manga Mangifera indica J.KönigMaracujá Passiflora edulis SimsSeriguela Spondias purpurea L.

Tamarindo Tamarindus indica L.

Nativas

Exóticas

Quadro 1. Frutas comercializadas pela Cooperativa Grande Sertão

do pela nossa civilização. Uma delas, em especial, vemganhando destaque: o aquecimento global. A fixação decarbono atmosférico é a principal forma de combater acausa desse aquecimento, mas para realizar isso é neces-sário plantar árvores e proteger as que já existem.

A partir do momento em que frutas, nativasou dos quintais dos agricultores, adquirem um maior va-lor e passam a ser comercializadas em maior escala, suasárvores passam a ser mais protegidas e reproduzidas. Éisso que vem sendo verificado em diversas comunidadesligadas ao trabalho da Grande Sertão (Carvalho, 2007).Em locais como o Assentamento Americana, municípiode Grão Mogol, a comunidade de Abóboras, em MontesClaros, ou ainda em Vereda Funda, em Rio Pardo de Mi-nas, milhares de mudas e sementes de espécies nativasforam plantadas e já estão fixando toneladas de carbono,além de estarem contribuindo para a preservação dos re-cursos hídricos e da biodiversidade. Essa é uma tendênciacrescente em todas as comunidades que têm, na vendade frutas à Cooperativa, uma fonte de renda.

Uma outra contribuição à sustentabilidadeambiental é a preservação das áreas de vegetação nativaremanescente. Com a valorização dos frutos do Cerrado eda Caatinga, seus ecossistemas vêm sendo protegidospelas comunidades ligadas à Grande Sertão de diferentesformas: pela atuação junto aos proprietários de áreas decoleta; pela denúncia de desmatamentos ilegais; pelo com-bate ao fogo; e, principalmente, por meio da luta pelareconquista dos territórios tradicionais expropriados nasúltimas décadas (Mazzetto, 1999). Comunidades como

Roça do Mato, em Montezuma, e o Assentamento Tapera,em Riacho dos Machados, vêm batalhando pela criaçãode Reservas Extrativistas em suas localidades, tendo comoprincipal argumento a atividade extrativista que fazemnas áreas há séculos.

É importante ainda ressaltar a grande biodiver-sidade envolvida na produção da cooperativa. São 17 vari-edades de frutas utilizadas para a fabricação de polpas con-geladas, sendo sete espécies nativas e dez exóticas.1 Háainda o pequi, fruto símbolo do Cerrado, utilizado para aprodução de óleo e polpa envasada. O Quadro 1 mostratodas as espécies comercializadas pela Grande Sertão.

Conquista de mercadosDesde 2004, o principal destino dos produtos

da Grande Sertão é o mercado institucional: escolas, cre-ches, hospitais, restaurantes populares. Cerca de 80% daprodução recente da cooperativa foi absorvida por essemercado, seja via Programa de Aquisição de Alimentos(PAA)2 ou pela negociação direta com prefeituras. Con-forme Santos & Santa Rosa (2005):

Às escolas e demais consumidores, a coopera-tiva oferece alimentos de qualidade em substi-tuição àqueles com forte teor de insumos quí-

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micos e de origem duvidosa, revertendo grada-tivamente o consumo de açúcar cristal, refri-gerantes, suco em pó e óleo de soja por rapa-dura, mel, suco natural de frutas, polpa e óleode pequi.

Estima-se que mais de 100 mil pessoas, majori-tariamente crianças, são consumidoras dos alimentos pro-duzidos pela Grande Sertão – alimentos esses de inesti-mável valor nutricional (Almeida, 1998). Grande partedelas, inclusive, é oriunda das comunidades que forne-cem frutas e outros produtos para a cooperativa, o quereforça os laços culturais da região.

A Grande Sertão vem ainda se articulando comoutras organizações que atuam em propostas de econo-mia solidária, comércio justo, Agroecologia e agroextra-tivismo. Um dos resultados dessa articulação é a Centraldo Cerrado: “Uma iniciativa sem fins lucrativos estabelecidacom 21 organizações comunitárias que desenvolvem ativi-dades produtivas a partir do uso sustentável da biodi-versidade do Cerrado”.3

A participação em feiras também éuma importante estratégia levada acabo, pois dá visibilidade aos grupos epromove interessantes debates e con-tatos. Recentemente, a Grande Sertãoparticipou de feiras como a da Agricul-tura Familiar, organizada pelo Ministé-rio do Desenvolvimento Agrário (MDA),a Terra Madre 2006, em Turim, Itália,

e a ExpoSustentat 2007, só para citaralgumas.

Outras estratégias têm sido executadas, aindaque um pouco mais timidamente: a inserção dos produ-tos nos comércios locais; a criação do Empório do Ser-tão, espaço cultural das festas de Montes Claros; e mes-mo a possibilidade de exportação, cuja importância émenos comercial e mais no sentido de divulgar as rique-zas do Cerrado, da Caatinga e de seus povos.

Geração de renda

Na agricultura camponesa, a melhor estraté-gia de produção e comercialização é a diversidade. Quan-to mais opções para a geração de renda, maior segurançafinanceira o produtor terá, assim como também quantomais diversa for sua produção, maior segurança alimentare nutricional para sua família. Nessa perspectiva, a diver-sidade de produtos – frutas, rapadura, cachaça, mel –gera um leque de possibilidades de renda. E mais umaalternativa está agora sendo disponibilizada às comuni-dades: as sementes oleaginosas para produção de biodiesele outros óleos. Além disso, as comunidades rurais ligadasà Grande Sertão têm a possibilidade de comercializaremseus produtos diretamente – nas feiras livres e mercadoslocais – ou por meio da própria cooperativa, que viabilizavendas em maior escala, assumindo os custos de trans-

3www.centraldocerrado.org.br, acesso em 18 de setembro de 2008.

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Produtos da Cooperativa Grande Sertão: polpas congeladas, mel, pequi, cachaça, rapadurinha

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porte, beneficiamento e comercialização em mercadosmais exigentes.

A entrega de 1,1 mil toneladas de frutas para aGrande Sertão gerou, entre 1998 e 2008, R$ 415 mil reaispara aproximadamente dois mil agricultores. Em média, acooperativa paga R$ 0,46 pelo quilo de fruta entregue. Arenda obtida varia bastante de acordo com a dedicação doagricultor na coleta e entrega das frutas. Os mais empenha-dos vêm obtendo uma renda média anual de até R$ 1.000,00,enquanto um só agricultor chegou a receber R$ 2.857,40apenas entregando pequi na safra 2003/04.

Das cerca de 360 comunidades que jáforneceram frutas para a Grande Ser-tão, 26% vêm mantendo uma regula-ridade de entrega (em pelo menos trêssafras). Entretanto, de todos os agri-cultores que já entregaram, quase 74%o fizeram em somente uma safra. Issosuscita questões sobre a melhor estra-tégia para a cooperativa: comprar fru-tas de cada vez mais agricultores ecomunidades diferentes, com vistas a di-vulgar seu trabalho e se consolidar comoum empreendimento de ampla inser-ção regional; ou reforçar a relação comalgumas comunidades, de modo quehaja mais confiança mútua e seguran-ça econômica.

De todo modo, a Grande Sertão vem se esta-belecendo no Norte de Minas como uma alternativa con-creta e viável de geração de renda para milhares de famí-lias. No caso do extrativismo, as comunidades precisamsomente de organização e investir em seu trabalho nacoleta. Esse ganho econômico, mesmo quando peque-

no, acarreta uma série de outras mudanças e questõesque ampliam o leque de benefícios proporcionados.

Participação política e organizaçãosocial

A conquista da cidadania no meio rural vaimuito além das melhorias na renda per capita. Passa tam-bém pela efetivação dos direitos de participação nos es-paços políticos, que se dá principalmente pela organiza-ção social. Nesse sentido, a Grande Sertão pode ser con-siderada, também, uma porta para essa conquista.

A organização da Grande Sertão, em íntima as-sociação com o trabalho do CAA-NM e com as organiza-ções de base do Norte de Minas, vem dando origem ao quetem sido chamado de Rede Sócio-Técnica. Essa rede temcomo princípio fundamental o casamento dos saberes tra-dicionais com os saberes técnico-científicos, bem como avalorização dos agricultores enquanto multiplicadores depráticas e conhecimentos agroecológicos. A Rede Sócio-Técnica desdobra-se ainda na produção, constituindo uni-dades produtivas descentralizadas e compondo uma redede empreendimentos da agricultura familiar no Norte deMinas.

A participação social das famílias em um em-preendimento econômico é, por si só, um sinal de enfren-tamento da exclusão social. A valorização da cultura ser-taneja e dos produtos da biodiversidade também é a ma-nifestação de um movimento contrário à imposição cul-tural e à depredação ambiental, elementos típicos do ca-pitalismo. Assim, o empoderamento proporcionado pelaGrande Sertão não pode ser medido em termos puramen-te econômicos e deve ser considerado na amplitude desua estratégia para a superação da pobreza de campone-ses historicamente alijados pelo modelo de desenvolvi-mento predominante.

Gráfico 1. Evolução do volume de polpas produzidas pela Cooperativa Grande Sertão

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Safra

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Agriculturas - v. 5 - no 4 - dezembro de 2008 33

Superar a pobreza ou valorizar asriquezas?

A riqueza do Norte de Minas, formada pelo en-contro de diversos ecossistemas e culturas, tem sido his-toricamente ignorada pelos poderes público e econômi-co. Os biomas Caatinga e Cerrado, com sua incrível biodi-versidade e importância ecológica; as culturas tradicio-nais da região, como a geraizeira, catingueira, vazanteira,quilombola e xacriabá, dotadas de ricos saberes; a agro-biodiversidade cultivada e adaptada por gerações. Tudoisso está sendo cada vez mais massacrado pela lógica polí-tico-econômica global, que enxerga à sua frente somentelucros a curto prazo. O argumento da superação da po-breza é utilizado, inclusive, como justificativa para gran-des projetos econômicos – barragens, mineração, mono-culturas de eucalipto, soja, etc – que, na verdade, sóaprofundam o quadro de desigualdades sociais e degrada-ção ambiental.

Assim, não seria melhor falarmos em valoriza-ção das riquezas como estratégia de desenvolvimento re-gional? Afinal, foram essas riquezas que permitiram àspopulações do Norte de Minas viverem até hoje, com se-gurança alimentar e qualidade ambiental, e são exatamen-te elas que vêm sendo exauridas pelo modelo econômicoagroindustrial exportador. Mesmo sob tanta pressão, mi-lhares de famílias ainda têm, nas riquezas que as cercam,importante fonte de renda e qualidade de vida. A Coope-rativa Grande Sertão vem, portanto, valorizando tais ri-quezas, aproveitando seu potencial para além do bene-ficiamento artesanal e da comercialização local em peque-na escala. E demonstra, dessa forma, que outro desenvol-vimento para o meio rural não só é possível, como já acon-tece no Norte de Minas.

Igor S.H. de CarvalhoPesquisador e colaborador da Cooperativa Grande Sertão

[email protected]

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Referências bibliográficas:ALMEIDA, Semíramis P. Frutas nativas do Cerra-

do: caracterização físico-química e fonte po-tencial de nutrientes. In: SANO, Sueli. M.;ALMEIDA, Semíramis P. Cerrado: ambiente eflora. Planaltina: Embrapa-CPAC, 1998. p.247-285.

CARVALHO, Igor S.H. Potenciais e limitações douso sustentável da biodiversidade do Cerrado:um estudo de caso da Cooperativa Grande Ser-tão no Norte de Minas. 2007. 164 f. Disserta-ção (Mestrado) – CDS/UnB, Brasília.

MAZZETO, Carlos E.S. Cerrados e camponesesno Norte de Minas: um estudo sobre asustentabilidade dos ecossistemas e das po-pulações sertanejas. 1999. 250 f. Dissertação(Mestrado em Geografia) – Instituto deGeociências da Universidade Federal de MinasGerais, Belo Horizonte.

PNUD. Combater as alterações climáticas: solida-riedade humana num mundo dividido. Relató-rio de desenvolvimento humano 2007/2008.Nova York: Programa das Nações Unidas parao Desenvolvimento, 2008.

SANTOS, Breno G.; SANTA ROSA, Helen. Coo-perativa Grande Sertão: articulando popula-ções e diversidades do Norte de Minas Gerais.Revista Agriculturas: experiências em agro-ecologia, v. 2, n. 2, junho de 2005.

Agriculturas na redeAcesse: www.agriculturas.leisa.info

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34 Agriculturas - v. 5 - no 4 - dezembro de 2008

FundosSolidários:alternativa para

construção deautonomia e

empoderamentodas mulheres

ruraisCélia Santos Firmo

semiárido brasilei-ro abrange umaárea geográfica

de 974.752 Km² e possui uma po-pulação aproximada de 21 milhõesde pessoas, sendo considerado umdos mais populosos do mundo. En-contram-se na região cerca de doismilhões de estabelecimentos fami-liares, que correspondem a 42% dototal nacional, embora ocupem ape-nas 4,2% do total da área. Subme-tida a uma estrutura fundiária alta-mente concentrada e a programaspúblicos que historicamente refor-çaram estruturas econômicas quereproduzem as enormes desigualda-des sociais, a agricultura familiar nosemiárido vivencia graves privaçõesde suas necessidades mais elemen-tares a cada novo período de seca

prolongada. A combinação dessesfatores explica por que cerca de doisterços dos pobres rurais brasileirosse encontram nessa região.

Nesse quadro geral de concentração de po-breza, cumpre ressaltar que a exclusão social se manifestade forma diferenciada quando é enfocada a partir de umaperspectiva de gênero. Indicadores sociais apontam o cres-cimento da feminização da pobreza, especialmente devi-do a elementos como a divisão sexual do trabalho.1

Das maneiras mais variadas, costumes, pos-turas e normas sociais funcionam como mecanismos dedominação masculina sobre as mulheres. Lutas históri-cas se travam há décadas contra esse processo, maisfoi a partir dos anos 1980, com a institucionalizaçãoda Década da Mulher pela Organização das NaçõesUnidas (ONU), que o debate sobre as desigualdadessociais de gênero se tornou mais presente em diferen-tes instituições da sociedade.

1Retrato das desigualdades de gênero e raça – 3ª edição. Publicado pela SecretariaEspecial de Políticas para as Mulheres (SEPM), Instituto de Pesquisa EconômicaAplicada (Ipea) e Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher(Unifem).

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Artesanato produzido por grupos de mulheres

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Uma das desigualdades de gênero maismarcantes reside no campo do acessoa oportunidades de geração de traba-lho e renda. O pequeno número e a ine-ficiência de ações afirmativas para ainclusão das mulheres em atividadeseconômicas é uma característica cons-tante nas políticas públicas.As mulheres rurais do semiárido nãofogem a essa regra geral, já que viven-ciam condições marcadas pelo traba-lho duro e mal ou não-remunerado, emuma situação claramente desfavorávelem relação aos homens.

Frente a esse quadro, os movimentos sociaistêm atuado para criar e implementar outra possibilidadehistórica em que as mulheres rurais se insiram como agen-tes protagonistas do desenvolvimento rural. Esse é umdesafio de grande complexidade, já que elas têm que en-frentar simultaneamente duas estruturas de opressão: asocioeconômica, que é reproduzida pelo modeloexcludente de desenvolvimento, e a sociocultural, sus-tentada por normas injustas de convivência entre homense mulheres.

A iniciativa dos Fundos Solidários apresenta-da neste artigo é um exemplo de alternativas de organiza-ção de empreendimentos solidários que impulsionam a

construção da autonomia política e econômica das mu-lheres rurais.

As mulheres rurais da regiãosemiárida da Bahia

A constituição de empreendimentos econômi-cos solidários (EES) formados exclusivamente por mu-lheres tem sido uma estratégia adotada por agricultorasda região semiárida da Bahia para complementar os pou-cos recursos financeiros provenientes da atividade rural.Esses empreendimentos têm se desenvolvido a partir de2002 e atuam em vários campos: produção artesanal empequena escala, segurança e soberania alimentar das fa-mílias agricultoras e venda local de produtos gerados apartir de práticas de convivência com o semiárido.

As mulheres vêm se valendo desses espaços daeconomia solidária para debater questões mais amplas li-gadas às relações sociais de gênero e à situação de pobre-za da população rural, especialmente a das mulheres. Coma evolução das iniciativas, optou-se pela constituição daRede de Produtoras da Bahia, por intermédio da qual asmulheres se articulam a outros fóruns da sociedade civil,influenciando os debates sobre políticas públicas com oobjetivo de assegurar melhorias em suas condições de vida.

Apesar de a maior parte dos empreendimentoseconômicos solidários já existirem há mais de três anos,ainda são diversos os desafios para a sua expansão e con-

Feira de troca solidária

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solidação. Dentre eles, destaca-se a dificuldade de acessoa créditos oficiais, já que esses recursos são essenciaispara dinamizar os empreendimentos, permitindo a cons-tituição de capital de giro para a produção e para a comer-cialização. A dificuldade e/ou bloqueio aos créditos ofi-ciais obrigam as mulheres a recorrerem a instituições fi-nanceiras privadas, o que implica em menores rentabili-dades das atividades uma vez que parte significativa darenda bruta é direcionada ao pagamento dos altos juroscobrados por essas instituições.

Frente a esses desafios, a Rede de Produtorasda Bahia vem resgatando práticas solidárias enraizadasna tradição cultural local com o objetivo de construir al-ternativas que viabilizem a dinamização dos EES. As Tro-cas Solidárias e os Fundos Solidários são dois mecanis-mos que vêm sendo colocados em prática nesse sentido.

As Trocas Solidárias

As trocas solidárias surgiram por duas influên-cias: de um lado, pela experiência da própria rede, a partirda criação do Fundo Solidário, no qual cada grupo doavaalguns de seus produtos e serviços para a formação dofundo; e, de outro, por meio do resgate da cultura daregião de troca de alimentos, serviços e outros recursos.

Assim, orientadas pelos princípios daintercooperação e da ajuda mútua, asmulheres praticam a solidariedade pormeio do intercâmbio de seus produtose/ou serviços com outros EES. Inicial-mente, as trocas aconteciam nas Fei-ras Regionais de Produtos, nas quaiseram criados espaços específicos paraessa prática. Bolsas de palha sãotrocadas por roupas, e aipim é trocadopor mel, sem que para isso haja umareferência diretamente relacionada aovalor desses produtos nos mercadosconvencionais.

Com o passar do tempo, as trocas viraramrotina na vida das mulheres, tornando-se comuns tam-bém nas suas reuniões e em outras oportunidades quan-do agricultoras de um empreendimento visitam as deoutro. Com o avanço dessas práticas, as trocas solidá-rias extrapolaram o intercâmbio entre EES e começama acontecer até em escolas, onde as agricultoras sãoconvidadas para expor e trocar seus produtos comprofessoras(es) e crianças.

“A Troca Solidária é muito importante, poisestamos resgatando a cultura da nossa região.

O que os nossos avôs faziam trocando os ali-mentos, achamos importante que os mais novosconheçam e pratiquem também. Nos grupos,muitas vezes queremos comprar alguns produ-tos, mas não temos recursos. Com a troca con-versamos com outras produtoras e trocamos osnossos produtos pelos delas. Já trocamos nos-sas bolsas de palhas por roupas. Isso é muitoimportante para fortalecer a solidariedade entreas mulheres...”Valmira Lopes, produtora do Grupo Mulheres deFibra, Santa Luz (BA)

O Fundo Solidário

Diante da inexperiência das mulheres produ-toras integrantes dos EES no acesso e gestão de crédi-tos direcionados para as atividades coletivas, a Redede Produtoras da Bahia criou o Fundo Rotativo Soli-dário. Inicialmente, o fundo foi constituído por meioda doação de produtos por parte dos grupos filiados àrede. Em seguida, buscou-se obter doações externas,por intermédio de projetos específicos.2

O Fundo Solidário é gerido pela Rede de Pro-dutoras da Bahia e os EES filiados, por meio de umacomissão responsável que divulga a iniciativa para asmulheres e ao mesmo tempo reúne e avalia as propos-tas apresentadas pelos EES.

A Comissão Gestora se reúne mensalmentepara socializar informações sobre o funcionamento dofundo para o conjunto da coordenação da Rede deProdutoras da Bahia. Além disso, a prestação de con-tas é realizada trimestralmente ao Coletivo Regional,espaço composto por mulheres representantes dos 47EES que integram a rede.

Para regular o acesso aos recursos e ofuncionamento do fundo, foi criado umregimento interno, a partir das vivên-cias das mulheres e do conhecimentode experiências similares. Para acessaro fundo, um EES deve elaborar um pe-queno projeto, no qual a solicitação doempréstimo é justificada, assim comoé demonstrado um plano para o desen-volvimento da atividade econômica eo seu retorno financeiro.

A constituição de uma poupança no valormínimo de 10% do montante solicitado ao fundo é umdos mecanismos adotados no sistema. Essa poupançafunciona como uma reserva que pode ser empregadapara o pagamento de parcela, caso o EES encontredificuldades para efetuar a devolução, ou para a cons-tituição de capital de giro após a devolução integral doempréstimo. Essa reserva é constituída ora pela cotiza-ção entre as agricultoras do EES, ora via venda de pro-dução do grupo.

2O primeiro projeto que doou recursos para o fundo solidário das mulheres rurais foio Mãos que Trabalham, fruto de convênio do Movimento de Organização Comuni-tária (MOC) e a Petrobras.

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Com o uso dos recursos do fundo, as mulhe-res vêm implantando e fortalecendo suas atividades pro-dutivas, além de exercitarem a gestão coletiva de pro-jetos de financiamento, construindo novas capacida-des para o acesso e a gestão do crédito rural oficial.

Dentre os projetos apoiados pelo fundo soli-dário, destacam-se: a constituição de capital de giropara aquisição de matérias-primas (como feijão, fari-nha, carne caprina, galinha caipira, ovos caipiras), to-das utilizadas para formação de estoque; a prestaçãode serviços, no qual trabalham diretamente cinco EES;a constituição de capital de giro para aquisição defreezer com finalidade de armazenar insumos para aprodução de alimentos comercializados via Programade Aquisição de Alimentos (PAA) da Companhia Naci-onal de Abastecimento (Conab); a compra de matéria-prima para confecção de produtos a serem comer-cializados nas Feiras Estadual e Regionais.

“Ao longo do tempo lutamos pela geração derenda, mas sempre paramos quando o assuntoera dinheiro. Primeiro pela dificuldade de acessaro crédito, mas também pelo medo e a falta dedocumentos, já que na maioria das vezes a terraé no nome do marido. Quando se parte para ogrupo, ainda fica mais difícil acessar o crédito,já que os grupos são informais. Mas, com a cons-trução do fundo solidário, quebrou-se essa bar-reira, facilitando para nós produtoras chegar deforma mais confiante e com menos burocracia,até porque nós construímos todo o processo des-de o início, conhecendo todas as regras e a im-portância desse recurso, facilitando assim apli-car e devolver o recurso de forma correta, porqueentendemos que, se não devolvemos, estamos pre-judicando as outras companheiras.”

Patrícia Nascimento – coordenadora geral daRede de Produtoras da Bahia

“Eu vejo o fundo solidário como uma solução paraos grupos, porque nós queremos produzir, mas nãotemos dinheiro. Muitas vezes achamos onde ven-der nossos produtos, mas não produzimos porquenão podemos comprar os materiais. Agora, com ofundo, compramos os materiais que precisamospara produzir, vendemos os nossos produtos e nãopagamos os juros altos que o comércio e os bancoscobram.”

Maria Júlia Santana – produtora doGrupo Tecer Arte, Feira de Santana (BA).

As aprendizagens com o Fundo Solidário

Hoje, as mulheres criam e gerenciam autonoma-mente recursos coletivos, num exercício importante de soli-dariedade e responsabilidade. Dentre as aprendizagens des-sa experiência, podemos apontar os seguintes elementos:

a) A importância do sentimento de pertencimento, umavez que o fundo surge a partir da necessidade sentidae vivenciada por elas, assim como é formado por re-cursos captados por meio de projetos ou de doaçõesdas próprias mulheres.

b) A mudança na lógica de acesso a recursos, já que osempréstimos via fundo são acessíveis, desburo-cratizados, além de garantidos e comprometidos,dinamizando os empreendimentos econômicos soli-dários.

c) Crescimento do giro de recursos entre a parcela dasociedade mais excluída: as mulheres pobres rurais.

d) Melhora global na vida das famílias em função dasatividades econômicas desenvolvidas pelas mulheres.

e) Crescimento, entre as mulheres, da autonomia, li-berdade, autodeterminação e capacidade de se rela-cionar de igual para igual com seus companheiros,porque detêm o resultado do seu trabalho, digno evalorizado.

f) Desconstrução do sentimento de incapacidade deacesso e gestão de créditos, especialmente para ati-vidades coletivas gestadas exclusivamente por mu-lheres agricultoras.

Essas e outras conclusões estão claras nos de-poimentos das mulheres, que expressam seus sentimen-tos e suas vivências. Sinteticamente, podemos afirmarque o Fundo Solidário é um instrumento de desenvolvi-mento, de promoção de relações de gênero justas, deempoderamento e de facilitação no acesso a novas opor-tunidades de geração de renda e de melhoria de vida paraas famílias rurais.

Célia Santos Firmoadministradora de empresas, especializando-se em

Gestão Pública e Democracia Participativa,República e Movimentos Sociais.

coordenadora pedagógica da Equipe do Movimento deOrganização Comunitária (MOC)

[email protected]

Referências bibliográficas:AUAD, Daniela. Feminismo: que história é essa?

Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

BAPTISTA, Naidison de Quintela; DIAS, WilsonJosé Vasconcelos. Gestão social para o desen-volvimento local. Feira de Santana: MOC,2000.

CATTANI, Antônio David (Org.). A outra eco-nomia. Porto Alegre: Editora Veraz, 2003.

KRAYCHETE, Gabriel. Economia dos setorespopulares: entre a realidade e a utopia. Salva-dor: UCSAL, 2000.

MOVIMENTO DE ORGANIZAÇÃO COMUNI-TÁRIA. Relatório Anual 2007. Feira deSantana: MOC, 2008.

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Mulheres rompembarreiras no Mali

Jonas Wanvoeke, Rosaline Maiga Dacko,Kalifa Yattara e Paul Van Mele

odeada por coli-nas arredonda-das, Zamblara se

assemelha a muitas das vilas da re-gião semiárida do sudoeste do Mali,país situado no noroeste da África.A maioria de seus habitantes vive daagricultura. Durante a curta estaçãochuvosa, os homens plantam milho,sorgo, amendoim e outros cultivosnos terrenos mais elevados. As mu-lheres cultivam arroz nas áreas debaixio próximas às vilas e que ficamtemporariamente alagadas. Na lon-ga estação seca, homens e mulhe-res cultivam hortaliças nas terrasbaixas após a colheita do arroz.

Ainda que todos os agricultores se deparemcom várias dificuldades (falta de sementes, água, créditoe assistência técnica), as mulheres enfrentam barreiras eprivações adicionais. Nessa região do Mali, é muito difícilas mulheres terem o mesmo status social e econômicodos homens. Há preconceito de gênero em toda a socie-dade, e o meio rural não foge a essa regra. As mulheres,por exemplo, não podem herdar nem possuir sua própriaterra. Além disso, Zamblara, assim como a maioria dasvilas nessa região, é dividida em castas – algumas famíliasdetêm um status superior (de nobreza), enquanto as de-mais são agrupadas como descendentes de escravos. Aimplicação direta dessa separação é a divisão social detarefas na vila.

Há mais de dez anos, um grupo de mulheresdecidiu formar uma organização de produtoras de arrozcom o objetivo de aumentar a produção e a renda. Co-nhecido como Kotognogontala, ou “respeito mútuo”, ogrupo se uniu como forma de trocar conhecimentos so-bre práticas agrícolas sustentáveis na comunidade. Em2002, suas lideranças entraram em contato com o Centro

Rde Arroz da África (Warda), interessadas nas atividadesde capacitação do projeto Adaptação e DifusãoParticipativa de Tecnologias para Sistemas de Produçãode Arroz (Pads).

O projeto teve início em 2000 com atividades naCosta do Marfim, Gâmbia, Gana e Guiné. Desde 2002 estápresente também no Mali. Seu objetivo geral era contribuircom o aumento da produção do arroz, da diversificação deculturas e da geração de renda. Esses objetivos seriam atin-gidos por meio do desenvolvimento e adaptação de inova-ções apropriadas para um melhor manejo dos cultivos. Emsuma, o projeto visava melhorar o bem-estar dos agriculto-res pobres da África Ocidental. Para tirar o máximo proveitodos recursos de investimentos relativamente reduzidos, oPads orientou suas ações para os sistemas agrícolas dos va-les do interior em função de seu maior potencial produtivo.Apostou também que atividades voltadas aos temas relacio-nados às práticas da irrigação e da drenagem poderiam uniros agricultores em torno a um processo de aprendizadoconstruído de baixo para cima.

Primeiro em escala experimental, e em seguidaem todo o projeto, o Pads adotou a metodologia de Pes-quisa-Ação Participativa (Plar), descrita no quadro 1. Essametodologia incorpora algumas das ideias das Escolas Agrí-colas de Campo1, uma vez que estimula o aprendizadocom base em vivências. Além disso, emprega ferramentasde Diagnóstico Rural Participativo (DRP) que contribu-em para uma melhor visualização de processos e procedi-mentos, o que favorece a interação entre agricultores efacilitadores na construção compartilhada de conhecimen-tos sobre a agricultura local, seus limitantes e suas poten-cialidades.

Inovações locaisMesmo antes do projeto, a maioria dos produ-

tores adotava práticas tradicionais e as mulheres de

1Escola Agrícola de Campo é uma metodologia desenvolvida pela FAO – Organiza-ção para Agricultura e Alimentação das Organizações das Nações Unidas. Adota umapedagogia fundamentada no aprendizado pelo descobrimento, ou seja, pelo estímu-lo à experimentação por parte dos próprios alunos agricultores. Para saber mais arespeito, veja artigo na edição v.3, n.2 da Revista Agriculturas: experiências emagroecologia (nota do editor).

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Zamblara já usavam poucos agroquímicos, por serem ca-ros e nem sempre de fácil acesso. Além de estimular essaspráticas, o método Plar busca aprimorá-las, tendo em vis-ta a inadequação das tecnologias baseadas em alta depen-dência de insumos externos. Como uma das atividades decapacitação, as mulheres organizaram um experimentopara comparar o composto orgânico a fertilizantes quími-cos e a uma mistura (composto orgânico mais fertilizantesquímicos). Após observarem os resultados, elas optarampelo uso do composto misturado a pequenas doses deuréia e fosfato de rocha. Também desenvolveram suas pró-prias estratégias de controle de pragas, que incluem: usode pó de Nim (Azadirachta indica); mistura de detergentee querosene; ou simplesmente a capina das beiradas dasparcelas de arroz para eliminar os locais de oviposição dasmariposas, que dão origem a brocas-do-colmo.

A metodologia Plar ajudou a aumentar a pro-dução de arroz na vila e agora muitos vizinhos de mem-bros dos grupos começaram a se interessar pelas inova-ções técnicas desenvolvidas. Cada um dos quatro gruposformados em Zamblara tinha sua agricultora-facilitadora.Apesar de os módulos terem sido escritos em francês, elesforam (oralmente) traduzidos para a língua local, obambara. As mulheres adaptaram formas de transmissãodos conteúdos dos módulos ao compor músicas e poemassobre os métodos inovadores para a produção de arroz.

Hoje, além de as mulheres de Zamblara terem suaspróprias parcelas de arroz, o grupo também trabalha uma áreacoletiva de 1,5 hectare, cultivando arroz durante a estação de

chuvas e hortaliças na época seca. Quando as mulheres co-lhem o arroz dessa área, vendem uma parte e guardam o di-nheiro como um fundo de reserva do grupo. Do restante daprodução, uma parte é dividida entre elas e outra é usada nopreparo das refeições para as atividades em grupo.

Rompendo barreiras

Partindo de um grupo inicial de 27 pessoas, aassociação cresceu e hoje é composta por quatro grupos,reunindo 115 mulheres e dois homens. No Mali, a maioriados grupos de mulheres conta com pelo menos um ho-mem. Neste caso, o chefe da vila é o seu presidente dehonra e outro homem participa para acompanhar as ativi-dades. Todos avaliam que o grupo ajudou a melhorar asrelações entre homens e mulheres, pois oferece a elas umespaço onde podem conversar sobre seus problemas comos homens e trocar conselhos.

Há também o reconhecimento de como as mu-lheres estão menos receosas de falar em encontros da vila,participando deles mais ativamente e contribuindo todavez que é preciso tomar uma decisão. Ademais, os ho-mens da vila agora aceitam a associação, fato que é per-cebido pelo interesse deles em deixar terras para seremcultivadas pelas mulheres.

Além disso, a adoção da metodologia Plar aju-dou a minimizar a diferença entre categorias sociais. Nasatividades, todos realizam conjuntamente os experimen-tos, se alimentam juntos e cantam juntos, ignorando gê-

A abordagem Pesquisa-Ação Participativa(Plar, sigla em inglês) é uma metodologia de educa-ção de adultos que se vale das experiências dos mem-bros de um grupo. Trabalhando em grupos de cer-ca de 25 pessoas, diferentes sessões cobrem todo ociclo agrícola. As atividades, no caso apresentado,seguem o desenvolvimento da cultura do arroz (deacordo com um currículo especialmente desenvolvi-do para o plantio nos vales do interior). Os agricul-tores analisam suas próprias práticas, descobrem suaslimitações e buscam formas de contorná-las. O cur-rículo ensina novas práticas (por exemplo, transplan-te), mas, em vez de simplesmente transferir tecno-logias, os facilitadores estimulam os agricultores aintercambiar e refletir sobre suas experiências. Des-sa forma, eles podem encontrar soluções por contaprópria e experimentar novas ideias para desenvol-ver alternativas técnicas que sejam práticas e adap-tadas às condições locais.

No Plar os agricultores não são consideradoscomo potenciais receptores de novas tecnologias. A

Quadro 1. Valorizando as experiências locais

ideia básica é criar um processo que estimule o agri-cultor a inovar e promover descobertas por contaprópria, ao conduzir experimentos em sua proprie-dade. A cada semana, o método Plar apresentanovas ideias aos agricultores, sendo que eles são li-vres para testá-las ou não. A equipe de facilitadoresdo Plar frequentemente inclui um membro do servi-ço de extensão rural, um pesquisador ou um técnicode ONG, além de um agricultor. A sessão semanaldo Plar usa diferentes ferramentas de aprendiza-gem, tais como calendário de cultivos, mapas, dia-gramas e formulários de monitoramento e observa-ções em campo. Essas ferramentas ajudam avisualização, facilitando a interação e o aprendiza-do conjunto entre facilitadores e o grupo comunitá-rio. Em 28 sessões, as ferramentas de aprendiza-gem cobrem todos os aspectos do manejo integra-do dos cultivos, como preparo da terra, produçãode mudas, transplante, manejo da água, controlede plantas espontâneas e manejo de insetos-praga,pós-colheita e comercialização.

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Mulheres de Zamblara cantam música que compuseram so-bre as novas tecnologias para o arroz

nero ou casta. Os encontros semanais do Plar proporcio-naram um maior contato entre os moradores da vila, espe-cialmente entre mulheres de diferentes origens. O distan-ciamento entre as duas castas foi extinto. As mulheresestão unidas de tal forma que chegaram a construir umapequena casa de encontros. Elas mesmas a construíramcom materiais adquiridos com o dinheiro gerado pelo tra-balho na área coletiva. Com toda essa evolução, as mu-lheres se sentem menos solitárias e isoladas. Como umadelas disse: “As pessoas das castas altas e baixas são asmesmas desde o Plar.” Com o projeto Pads e a implemen-tação da abordagem Plar, essa estigmatização foi rompi-da e a união entre as pessoas foi fortalecida.

Essa nova coesão comunitária não se limita àspráticas agrícolas. O projeto Pads ajudou as mulheres aconduzirem uma análise do bem-estar (semelhante a umranking de riquezas). Quando as mulheres se deram con-ta de que algumas famílias vizinhas eram pobres a pontode não poderem fazer três refeições ao dia, começaram aajudar umas às outras com alimentos e trabalho.

Outro dado importante é que as sólidas parceriasque as mulheres criaram com ONGs e agências governamen-tais aumentaram seu poder de decisão na vila. Com umamelhor situação financeira e material, as mulheres estão seempoderando e derrubando as barreiras culturais dessa re-gião do Mali, onde até recentemente as decisões da vilaeram tomadas, em sua grande maioria, só por homens.

Atualmente, o grupo contribui para o desen-volvimento da infraestrutura e está se tornando um nú-cleo de influência na vila. Ele se mantém com fundos pró-prios advindos de contribuições das mulheres-membros,da venda da produção obtida na área coletiva e dos paga-mentos por serviços (especialmente quando essas mulhe-res trabalham em campos dos homens).

Reforçando relações sociais

A maioria das mulheres está feliz por produzirmais arroz e ter encontrado alternativas técnicas para ocontrole de insetos-praga pouco dependentes de insumosexternos. Porém, mais importante ainda, dizem elas, éque agora elas encontraram unidade. “O futuro pertenceàs pessoas que estão organizadas”, declara uma mulherde Zamblara. As mulheres de Zamblara afirmam que o Plarreforça as relações sociais e fortalece o capital humano.Apesar de a iniciativa ter vindo da própria comunidade, foipor meio da incorporação da análise das condições de vidaque a comunidade foi capaz de visualizar seu bem-estarindividual e coletivo e que a ação para a inclusão socialrecebeu um impulso. O projeto Pads já foi encerrado, masos grupos seguem trabalhando juntos.

Jonas Wanvoekepesquisador assistente do Africa Rice Center (Warda)

[email protected] Maiga Dacko

coordenadora do Pads no [email protected]

Kalifa Yattarapesquisador do Centro Regional de Pesquisas

Agronômicas (CRRA) de [email protected]

Paul Van Meleespecialista do Africa Rice Center (Warda)

[email protected]

Agradecimentos:Agradecemos ao Dr. Jeff Bentley pelas fotos,

discussões e pelos comentários a uma versão preliminardeste artigo. Este trabalho teve apoio do Fundo Interna-cional para o Desenvolvimento Agrícola (Fida) e gestãodo Centro do Arroz para a África (Warda).

Referências bibliográficas:DEFOER, T.; WOPEREIS, M.C.S.; IDINOBA, P.;

KADISHA, T.K.L.; DIACK, S.; GAYE, M.Manuel du facilitateur: curriculum d’appren-tissage participatif et recherche action (APRA)pour la gestion intégrée de la culture de riz debas-fonds (GIR) en Afrique sub-Saharienne.Benin: WARDA, CTA, IFDC, CGRAI, 2004.

Com o sucesso das atividades do grupo, as diferenças sociaisdeixaram de ser importantes. Aqui, mulheres conversam emfrente à casa que construíram.

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Agriculturas - v. 5 - no 4 - dezembro de 2008 41

Publicações

Desenvolvimento como liberdadeSEN, A. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 409 p.

Segundo Amartya Sen, Prêmio Nobel de Economia de1998, o desenvolvimento expressa a expansão das liber-dades reais que as pessoas de uma determinada sociedadedesfrutam para realizar seus projetos individuais e coleti-vos. Essa perspectiva contrasta com enfoques convencio-nais que associam o desenvolvimento ao crescimento eco-nômico, ao aumento da renda per capita, à industrializa-ção e à disseminação de avanços técnicos. Embora essaforma de medição do desenvolvimento aponte fatores quepodem eventualmente funcionar como meios para a ex-pansão das liberdades, não são eles em si que asseguramesse fim. Para o autor, “ver o desenvolvimento como ex-pansão de liberdades substantivas dirige a atenção para osfins que o tornam importante, em vez de restringi-lo aalguns dos meios que desempenham um papel relevanteno processo.” Essa análise fornece um referencial inova-dor para a concepção de programas de desenvolvimento,em particular aqueles explicitamente orientados para asuperação da pobreza. Nesse caso, a pobreza não é apre-

endida somente a partir da variável renda, mas consideratambém as margens de liberdade para que indivíduos, fa-mílias e comunidades inteiras se autodeterminem com basena valorização dos recursos naturais e culturais que têm àdisposição. Nesse sentido, a abordagem desenvolvimentocomo liberdade dialoga diretamente com a perspectivaagroecológica de desenvolvimento rural.

Gênero, segurança alimentar eAgroecologia no semi-árido brasileiro:as experiências do programa Meios deVida SustentáveisCASTELLO BRANCO, T. Recife: Oxfam, 2007.

A publicação apresenta um conjunto de sistematizaçõesde experiências de programas de desenvolvimento ruralconduzidos por ONGs do campo agroecológico no semi-árido brasileiro que têm como um dos eixos estratégicos apromoção de relações sociais de gênero mais justas e igua-litárias. O documento traz importantes pistas para oaprofundamento de questões práticas e teóricas que fo-mentem um maior diálogo e integração entre o movimen-to feminista e o movimento agroecológico, em particularao enfatizar a importância do enfoque de gênero nas es-tratégias de superação da pobreza rural.

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Publicações

Organic Farming: A contribution tosustainable poverty alleviation indeveloping countries?MAIER, JÜRGEN. Bonn: Forum Umwelt &Entwicklung, 2005. 44 p.

Documento resultante de dois eventos promovidos pororganizações alemãs em 2003 e 2004 que tiveram porobjetivo colocar em debate algumas questões-chave rela-cionadas ao papel que a agricultura orgânica pode desem-penhar na promoção da segurança alimentar nos países doSul, enfocando também a necessidade de ajustes nos sis-temas de certificação de qualidade para que pequenos pro-dutores possam se beneficiar do emergente mercado dosalimentos orgânicos. Uma das conclusões apresentadasno documento é que a definição normativa de agriculturaorgânica estabelecida pela União Européia não abre pers-pectivas para que a diversidade de práticas e enfoques daagricultura orgânica seja valorizada em estratégias de su-peração da pobreza com base no desenvolvimento demaiores graus de autonomia das comunidades empobre-cidas no mundo rural, podendo mesmo ajudar a acentuarprocessos de diferenciação social por meio do estímulo àprodução de mercadorias voltadas para mercados de ni-cho. Trata-se, nesse sentido, de um documento essencialpara subsidiar debates críticos acerca das políticas orien-tadas para a promoção do agronegócio orgânico.

Empoderamento e direitos no comba-te à pobrezaROMANO, J. O.; ANTUNES, M. Rio de Janeiro:ActionAid, 2003. 116 p.

Essa coletânea apresenta trabalhos que apontam para aimportância do uso da abordagem de empoderamento naAmérica Latina e que enfatizam a relevância e a complexi-dade das questões de relações de poder na região. Alémdisso, busca contribuir para o fortalecimento do diálogoentre esta abordagem e aquela fundamentada nos direi-tos, ao considerar que não basta lançar mão de uma sem aoutra. Afinal, ambas são necessárias e complementares,principalmente quando se tem como estratégia de com-

bate à pobreza os processos de luta pela cidadania e deconstrução de sujeitos sociais coletivos. Nesse sentido, éfundamental que tanto a abordagem de empoderamentoquanto a de direitos estejam presentes nas estratégias dasONGs que promovem um desenvolvimento alternativo,visando à superação da pobreza.

Agriculturas na rede

Acesse: www.agriculturas.leisa.info

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Agriculturas - v. 5 - no 4 - dezembro de 2008 43

Grupo de jovens daComunidade Lagoa dos Cavalos

Foto

: Cár

itas-

CE

história da comu-nidade Lagoa dosCavalos é marca-

da pela organização das famíliasagricultoras para a convivência como semiárido. Situada a 22 quilôme-tros de Russas, na região cearensedo Baixo Jaguaribe, a comunidadesurgiu há aproximadamente 70 anos,quando duas famílias se estabelece-ram no local.

Hoje, são 67 famílias vivendo e trabalhando emcomunidade. A associação comunitária foi criada em 1986,quando 22 agricultores se organizaram e conseguiram 700hectares de terra para o plantio comunitário. Juntos, ela-boraram um projeto de financiamento e com o dinheirocompraram arames, maquinários agrícolas, bois e carroça.Em 22 anos de existência, diversos be-nefícios foram obtidos: casa de semen-tes, casa de farinha, cisternas de placaspara armazenar água de qualidade,apiários, projetos de ovinocultura, bar-ragens subterrâneas, criação de aves depostura, dessalinizador de água, eletrifi-cação rural, escola primária. Além disso,atualmente a associação participa daRede Abelhas e da Rede de Intercâmbiode Sementes (RIS/CE). Enfim, diversasexperiências foram e são realizadas pelasfamílias, que trocam conhecimentos etécnicas de manejo e ensinam aos maisjovens a responsabilidade pelo futuro dacomunidade. Em 2004, os jovens fun-daram o Grupo Juventude Unida e pas-

A experiência de organizar,produzir e resistir da comunidade

de Lagoa dos CavalosA saram a assumir a formação de agricultores e agricultoras

para o gerenciamento dos recursos hídricos na comunida-de. Nos cursos, abordam ainda temas como cidadania,importância do voto popular, Estatuto do Idoso, o uso dedefensivos naturais e práticas de preservação do meio am-biente. O grupo também organiza o plantio de mudasnativas na comunidade, mas sua maior iniciativa é o traba-lho com apicultura. Começaram a se organizar com ape-nas uma colmeia e atualmente já trabalham com 80. Alémdo mel, garantem o sustento a partir da fabricação artesa-nal da cera alveolada. É dessa forma que a comunidadegarante a permanência do jovem no campo. Entretanto,atualmente a comunidade enfrenta um de seus maioresdesafios: a formação do Distrito Irrigado Tabuleiro deRussas, que ameaça desapropriar os moradores da região.A resistência das famílias de Lagoa dos Cavalos está fa-zendo com que a segunda etapa de implantação do pro-jeto permaneça parada. E é assim que continuarão: fir-mes na luta pelo direito de permanência nas terras con-quistadas.

Agroecologia em Rede

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Divulgue suas experiências nas revistas Leisa

Convidamos pessoas e organizações do campo agroecológico brasileiro a divulgarem suas experiências na RevistaAgriculturas: experiências em agroecologia (edição brasileira da Leisa Global), na Leisa Latino-americana (editadano Peru) e na Leisa Global (editada na Holanda).

Temas das revistas Leisa em 2009

No decorrer da História, as comunidades rurais semprebuscaram transformar seus sistemas agrícolas de forma aadaptá-los às mudanças ambientais, econômicas ou soci-ais que as colocavam em risco. A falha nesses mecanismosde adaptação significou para muitas civilizações agrícolasdo passado a inauguração de longos períodos de crise oumesmo o completo colapso. Atualmente, existe um amploconsenso científico de que atravessamos um momento demudanças climáticas globais que afetarão os padrões dechuva e elevarão as temperaturas médias em todo o planeta.O fenômeno vem sendo apresentado como a maior ameaçapara a humanidade e não há dúvidas de que serão as popu-lações mais empobrecidas, sobretudo as rurais, as que maissofrerão os seus efeitos caso medidas efetivas de prevençãoe de adaptação não sejam implantadas.Em algumas regiões as mudanças no clima poderão inten-sificar processos de degradação ambiental e repercutirnegativamente sobre a produção alimentar. Ironicamente,a agricultura é uma das atividades que mais contribui parao aquecimento global. O desmatamento para a aberturade novas fronteiras agrícolas e a agricultura baseada nospadrões técnicos da Revolução Verde fazem com que gran-des quantidades de carbono sejam lançadas na atmosfera.Além disso, a produção dos insumos essenciais para a agri-

cultura industrial emite grandes volumes de gases de efeitoestufa.Nesse contexto de impasse da civilização industrial, o enfoqueagroecológico pode exercer papel determinante como guia deprocessos de adaptação dos sistemas agrícolas com vistas àredução das iminentes ameaças das mudanças climáticas glo-bais. De fato, já são inúmeras as evidências de que famílias ecomunidades que mantêm seus sistemas produtivos funda-mentados nos princípios da Agroecologia têm conseguidoconviver melhor com as incertezas e com os extremos climáti-cos – representados pelo excesso de chuvas, de secas, de ven-tos, de frio e de calor, quando são comparadas com seus vizi-nhos convencionais.Como as mudanças no clima vêm sendo percebidas nas comu-nidades rurais? Como elas vêm lidando com os aumentos daincerteza climática e dos estresses ambientais? Que estratégiasde adaptação já podem ser visualizadas? Questões como essasestarão no centro de atenção da edição v.6, n.1 da RevistaAgriculturas que publicará artigos que retratam experiênciasdemonstrativas das possíveis contribuições da Agroecologiapara a mitigação das mudanças climáticas e de seus efeitos.

Data-limite para envio de artigos:15 de fevereiro de 2009

Acesse: www.agriculturas.leisa.info

Agricultura no contexto das mudanças climáticas globais (v.6, n. 1)

Diversidade dos sistemas agrícolas (v.6, n. 2)Data-limite para envio de artigos:15 de abril de 2009 (Revista Agriculturas)

Pluriatividade e formas da economia da família rural (v.6, n. 3)Data-limite para envio de artigos:01 de março (Revista Global e Latino-americana) • 15 de julho de 2009 (Revista Agriculturas)

Mulher, trabalho e agroecologia (v.6, n. 4)Data-limite para envio de artigos:01 de junho de 2009 (Revista Global e Latino-americana) • 15 de setembro de 2009 (Revista Agriculturas)

Instruções para elaboração de artigosOs artigos deverão descrever e analisar experiências con-cretas, procurando extrair ensinamentos que sirvam de ins-piração para grupos envolvidos com a promoção daAgroecologia. Os artigos devem ter até seis laudas de 2.100toques (30 linhas x 70 toques por linha). Os textos devem

vir acompanhados de duas ou três ilustrações (fotos, dese-nhos, gráficos), com a indicação dos seus autores e respec-tivas legendas. Os(as) autores(as) devem informar dadospara facilitar o contato de pessoas interessadas na experi-ência. Envie para [email protected].