Susan Squires - O Segredo Dos Imortais (Bianca 898)

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O Segredo dos Imortais Time For Eternity Susan Squires França, 1794 Existem mistérios que só o tempo pode revelar. No passado, Francis Suchet amou Henri Foucault, e isso lhe custou o que possuía de mais sagrado: sua existência mortal. Durante dois séculos, ela jurara se vingar de Henri, o francês que, depois de transformá-la em vampira, desapareceu para sempre de sua vida. Agora, numa reviravolta do destino, Francis tem a chance de se vingar de Henri por todo o mal que ele lhe causou. Mas tornar-se outra vez a doce "Françoise", sua antiga personalidade, pode significar esquecer-se do perigo que Henri representa para o seu passado, presente... e futuro. E, em sua interminável busca por respostas e vingança, Francis descobre que há muito mais por trás da aparência irresistível de Henri do que ela havia imaginado nos últimos séculos. Só então ela

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O Segredo dos ImortaisTime For Eternity

Susan Squires

França, 1794

Existem mistérios que só o tempo pode revelar.No passado, Francis Suchet amou Henri Foucault, e isso lhe custou o que

possuía de mais sagrado: sua existência mortal. Durante dois séculos, ela jurara se vingar de Henri, o francês que, depois de transformá-la em vampira, desapareceu para sempre de sua vida.

Agora, numa reviravolta do destino, Francis tem a chance de se vingar de Henri por todo o mal que ele lhe causou. Mas tornar-se outra vez a doce "Françoise", sua antiga personalidade, pode significar esquecer-se do perigo que Henri representa para o seu passado, presente... e futuro. E, em sua interminável busca por respostas e vingança, Francis descobre que há muito mais por trás da aparência irresistível de Henri do que ela havia imaginado nos últimos séculos. Só então ela se dá conta de que, para fazer as pazes com o destino e encontrar a felicidade, terá de desvendar o segredo dos imortais, em especial, o segredo de um imortal que faz seu coração bater descompassado.

Digitalização e Revisão:Crysty

Susan Squires - O Segredo dos Imortais (Bianca 898)

Querida leitora,O Segredo dos Imortais é um livro que retrata a Paris da época da Revolução Francesa.A história começa na São Francisco dos dias atuais, apresentando-nos Francis Suchet, uma heroína vampira, que trabalha em uma famosa boate de São Francisco. Ao longo dos séculos, Francis sempre amaldiçoara o charmoso duque que a tinha transformado em vampira; Então, em uma noite inesperada, ela tem a oportunidade de voltar no tempo e mudar toda a sua história. Mas será que estava preparada para enfrentar Henri Foucault outra vez?Aquele era um homem que nem mesmo em dois séculos alguém seria capaz de esquecer...Seria preciso mais do que o desejo de voltar a ser humana para fazê-la desvendar o segredo dos imortais e resistir às batidas aceleradas de seu coração quando estava diante do charmoso Henri...Leonice Pompônio Editora

Copyright ©2009 para Susan SquiresOriginalmente publicado em 2009, por St. Martin's Paperbacks.

PUBLICADO SOB ACORDO COM ST. MARTIN'S PAPERBACKS.NY,NY-USA

Todos os direitos reservados.Todos os personagens desta obra são fictícios. Qualquer semelhança com pessoas vivas ou

mortas terá sido mera coincidência.

TÍTULO ORIGINAL: TIME FOR ETERNITY

EDITORALeonice Pompônio

ASSISTENTES EDITORIAISMaiza Prande Bernardello

Patrícia ChavesVânia Canto Buchala

EDIÇÃO/TEXTOTradução: Marcia Maria Men

ARTEMônica Maldonado

MARKETING/COMERCIALAndréa Riccelli

PRODUÇÃO GRÁFICASônia Sassi

PAGINAÇÃOAna Beatriz Pádua

Copyright © 2009 Editora Nova Cultural Ltda.Rua Paes Leme, 524 — 10 andar — CEP 05424-010 — São Paulo - SP

www.novacultural.com.brImpressão e acabamento: RR Donnelley

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Capítulo I

Bartender não era uma profissão ruim para uma vampira. Trabalho noturno, vagas em qualquer lugar... Ainda mais para uma aparentando vinte e cinco anos, com aquela energia vampírica que a fazia parecer mais viva do que qualquer um ao seu redor.

O Ozone era um dos bares mais agitados de São Francisco, e o turno de Francis estava atraindo muitos turistas. Isso e o sotaque francês de que ela parecia não conseguir se livrar. Os americanos adoravam sotaque. Talvez fosse hora de se mudar; aquela cidade tinha muita neblina mesmo. Limpou o balcão de aço escovado. Atrás, as garrafas nas prateleiras eram iluminadas por um grande painel de vidro que mudava de cor exibindo todos os matizes do arco-íris.

— Até mais, Francis. — Um cliente assíduo... Como era mesmo o nome? Jason? Josh?... Não importava, o que importava é que havia deixado uma nota de cem dólares no bar.

Ela agradeceu e limpou o copo. Suzie, a garçonete, acenou avisando Francis de que estava saindo meia hora mais cedo. Tinha um namorado esperando-a em casa. Isso às vezes deixava Francis louca, imaginar o que estariam fazendo na hora em que ela estivesse fechando o bar e voltando para sua casa em Holt.

Ótimo. Poderia sair bem na hora. Como se tivesse algum lugar para ir ou alguém esperando... O peso em seu peito parecia natural, depois de dois séculos. A eternidade se estendia à frente, vazia de relacionamentos verdadeiros. Não era possível deixar as pessoas se aproximar quando se tinha algo a esconder. Não podia nem mesmo fugir ao seu destino. A coisa em seu sangue amava a vida. Muito! Regenerava células para manter jovem o corpo do hospedeiro, e uma vez que estivesse em você, era impossível cometer suicídio, não importando o quanto tentasse. E como havia tentado...

Pela milionésima vez, pensou no momento em que fora infectada. Um arranhãozinho estúpido. Como podia saber que ele era um vampiro? Ou que seria infectada por apenas uma molécula do seu sangue? Ele sabia o que era. E deveria ter sido mais cuidadoso. Mas Henri não se importava com nada, nem com ninguém. O sangue dela fervia só de pensar nisso.

Maldito seja você, Henri Foucault...

Colocou os copos para secar. Se me concedessem um único desejo, eu voltaria e faria diferente. Não tocaria a mão sangrenta de Henri. O destino e suas trapaças... Era um tipo de jogo. Então, Francis jogaria. Afinal, como fazer com que seu desejo funcione como você quer, se o universo existe só para enganar? Deseje perder peso, e poderá terminar perdendo uma perna. Quer dinheiro? E que tal se acharem que você roubou e ser preso por isso? Não, o desejo tem de ser feito do jeito certo, em detalhes. Não tocar a mão de Henri não era o suficiente. Poderia ser infectada em outra ocasião. Vivera na casa dele e acreditara estar apaixonada pelo "duque pervertido". Paixonite adolescente. Seu antigo eu jamais o teria deixado. Henri não era apenas um homem lindo, mas também possuía aquela irresistível

vitalidade dos vampiros. Mais cedo ou mais tarde, seria transformada.

Seguia o caminho tortuoso que fantasiara tantas vezes antes. A horrível conclusão não parece tão horrível assim após milhares de repetições.

A única maneira correta de evitar sua transformação em vampira era matando Henri.

Levou um tempo para aceitar este fato, embora ele fosse um traidor. Não era uma assassina, mesmo agora. As pessoas que matara antes de saber como tirar sangue sem maiores prejuízos ainda a assombravam. Por décadas, buscou maneiras de assegurar-se de que sua antiga e ingênua personalidade não se apaixonasse por Henri. Mas só havia uma maneira de ter certeza. E o que importaria se ele morresse? Ele era um monstro, no sentido mais estrito do termo.

A questão era, como uma garota de vinte e um anos poderia decapitar um vampiro com força sobre-humana? Eles se regeneravam de qualquer coisa menos drástica. Sabia disso pessoalmente. E também sabia que a decapitação era o modo certo de matar, pois fora o que dois vampiros haviam tentado fazer com ela quando descobriram que tinha sido transformada por outro vampiro, e não nascido com o sangue.

Encontrara a resposta para o seu problema durante sua fase viciada, na Paris do fin de siecle. Com morfina suficiente, vampiros podem ser drogados. Era necessário muita. O bastante para matar um humano. Mas se pudesse drogar Henri, então...

A porta se abriu. Merde! Olhou para o relógio azul brilhando nos fundos. Vinte minutos para fechar. Por que aqueles idiotas não podiam ficar em casa em uma noite como esta?

Foi quando sentiu as vibrações, tão poderosas que existiam apenas às margens da consciência, e sentiu o cheiro de canela e âmbar. Merde!

A mulher parecia prestes a ir para alguma festa vip. Cabelos pretos presos em um penteado elaborado, olhos tão escuros que poderiam ser negros, ombros brancos embrulhados em ondas de um tecido transparente, cobre com detalhes dourados. O vestido era longo, de cetim cobre. A idade, indefinível.

Literalmente...

Francis prendeu a respiração. Vampira! E isso significava problema.

— Senti suas vibrações desde a rua — disse a mulher com um leve sotaque italiano. Ela deslizou para um banco do bar.

— O que você quer? — perguntou Francis, a voz monótona.

— Um Martini Bombay Sapphire, puro, com duas azeitonas.

Como se fosse isso o que Francis estava perguntando. A mulher levantou as sobrancelhas.

— E use vermute. Tantos bartenders hoje em dia não usam... Isso dá uma dose de gim com uma azeitona, não um Martini.

A vampira podia estar se preparando para matá-la, mas pelo menos sabia beber. Francis encheu um copo de Martini com gelo para ganhar tempo. Conseguiria chegar até a porta? As vibrações diziam que aquela era uma criatura antiga e forte.

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Francis queria mesmo escapar? Talvez a morte fosse um alívio, mas a coisa em seu sangue estremeceu. Pegou a garrafa azul e quadrada de Noilly Pratt e jogou mais gelo no misturador.

— Não me lembro de você. Suponho que tenha sido transformada.

Francis parou de bater o drinque.

— Olha, se vai me matar, faça isso logo.

— Matá-la porque você foi transformada? — A risada da mulher foi rouca e profunda. — Sou a última que pode acusar alguém. Transformei meu marido.

— Você o transformou em vampiro?

Uau! Seria alguma vingança horrível depois do divórcio?!

O sorriso da mulher só poderia ser descrito como afetuoso.

— No ano de 41 depois de Cristo. Espero que ele consiga chegar aqui antes que fechem, pois está recepcionando após a ópera. Acho multidões difíceis hoje em dia.

Francis estava chocada por vários motivos. Com a idade da mulher. Com o fato de que ela estava com o mesmo homem por tanto tempo. E que ainda falasse dele com tanto carinho.

— Ele não a odeia por tê-lo transformado na... naquilo que é?

Como não odiaria?

Ela balançou a cabeça, ainda sorrindo.

— Isso nos deu a eternidade. Você não foi transformada por um amante?

Francis pigarreou.

— Eu pensei que o amava. — Colocou o Martini no balcão. — Mas fui apenas um incômodo. Ele só fez isso para me punir. — Queria chocar aquela mulher que acreditava o bastante no amor para ficar com um homem por quase dois milênios.

A desconhecida franziu as sobrancelhas.

— Você é francesa?

Francis assentiu.

— Há quanto tempo foi transformada? Ela encolheu os ombros.

— Dois séculos, um pouco mais.

— Francesa, época próxima à da Revolução. — A mulher tamborilava o queixo. — Teria sido Henri Foucault?

— O próprio. — A voz de Francis era leve, como se não se importasse.

— Ele era um bom homem — murmurou ela. — Não teria quebrado as regras de nossa espécie por uma vingança mesquinha. É um pecado mortal criar outro vampiro. A pessoa pode ser rejeitada pela sociedade dos vampiros se os Anciões descobrirem, nunca receber o consolo da compreensão. É um compromisso eterno com a pessoa transformada. Ele deve tê-la amado muito.

Um bom homem? Francis bufou.

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— Henri não amava ninguém. Deve ter sido um acidente. É o melhor que posso imaginar.

— Criar um vampiro nunca é acidental. O humano precisa receber várias vezes o sangue de um vampiro para adquirir imunidade ao Companheiro e sobreviver à infecção.

O Companheiro. Era como Henri chamava o parasita, também.

— Ah, ele me fez beber seu sangue, tudo bem. Aí, me abandonou sem nenhuma explicação.

A mulher refletiu sobre o assunto por um momento.

— Você o odeia.

— Bingo. E odeio o que sou, e daria qualquer coisa para mudar aquele instante em que o sangue dele entrou naquele estúpido arranhão em minha mão. — Francis a encarou. — Qualquer coisa.

— Ahhh! — Suspirou a desconhecida. — Séculos de arrependimento e raiva podem envenenar sua alma.

— Tento não pensar nisso. — Começou a colocar as bandejas no refrigerador.

— Mas pensa, o tempo todo. — A voz da mulher denotava compaixão.

Como ela poderia ser forte o suficiente para não pensar?

— Ah, só quando tenho de beber o sangue de alguém para saciar a vontade, ou de esconder minha força física, ou ignorar um ferimento que se cura sozinho, ou enxergo no escuro. Esse tipo de coisa. — Ela soou amarga, até para si mesma. — Aí, sim, penso a respeito.

— Sinto muito. — A mulher tomou um longo gole de sua bebida. — Sei o que é o arrependimento.

Francis fechou a porta do refrigerador.

— Só quero ser normal. Com relacionamentos normais e uma vida normal... Sabe... Normal? — Encolheu os ombros. — De qualquer maneira, não quero passar a eternidade servindo às necessidades dessa coisa em meu sangue.

— Henri... — A voz da desconhecida estava hesitante. — Henri foi guilhotinado. Você sabia?

Francis deu um pulo. Henri, morto? Pensava que ele estava em algum lugar, vivo, insensível, entediado com o mundo, mas fazendo o que queria, sempre. Sonhara em confrontá-lo, até o procurara algumas vezes em Paris ao longo dos anos. A idéia de que todo aquele tempo ele estivera morto parecia... errada. Então começou a gargalhar. O maldito, inútil e cruel tinha escapado de ser responsabi-lizado pelos seus atos.

Levou um tempo até que Francis se controlasse e desse de ombros.

— O demônio teve... Teve o que merecia.

A mulher ergueu as sobrancelhas enquanto Francis, sem sutileza, afastava a garrafa de gim e limpava o balcão. Merde! Suas mãos tremiam. Como um vampiro poderia ser guilhotinado? Por que não desaparecera antes, como ela o vira fazer

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muitas vezes? Olhou para a outra... Que parecia ter lido sua mente.

— Talvez estivesse machucado demais para se transportar. Ou enfraquecido pelo sol...

Francis ficou imóvel, pensando sobre aquilo. Henri tão machucado que não podia fugir, ou empolado pelo sol até ficar quase irreconhecível...

— Sou Donna Poliziano — apresentou-se a desconhecida. — Se meu marido ou eu pudermos fazer alguma coisa por você, procure-nos na Nob Hill, 430.

Francis parou de esfregar.

— Claro. Como se fossem fazer algo por mim.

— Mas faríamos — insistiu a vampira. — São Francisco é a nossa cidade. Cuidamos daqui. Saberíamos se estivesse matando para saciar suas necessidades, mas a polícia não encontrou nenhum corpo exangue. Logo, você tem uma alma. Não enlouqueceu, apesar das dificuldades.

— Só me deixe em paz! — Francis limpou a mesma área do bar de novo.

— Ah, é mesmo? — A mulher girava o copo, pensativa. Enfim, pegou a bolsa que usava e tirou dali um pequeno telefone celular. Sua face se suavizou enquanto dizia. — Jergan, é Donna. Mudança de planos. Pode me encontrar em casa? Sorriu enquanto ouvia a resposta. — Você também. — Desligou e levantou-se. — Chiao, minha amiga vampira.

E se foi.

Havia deixado Francis... nervosa. Que direito tinha Donna, seja lá quem fosse, vampira, ou não, de entrar valsando ali, gabando-se do fato de gostar tanto de ser um monstro? E se Henri tivesse morrido havia duzentos anos, não tinha nada que pudesse fazer. O pior era que nunca poderia lhe dizer o quanto o odiava. Sentia-se traída. E... ele poderia ter morrido, não do modo que a guilhotina deve funcionar, rapidamente, apesar de ser uma morte horrível, mas devagar, queimado pelo sol, ou machucado. Talvez estivesse com raiva de si mesma pela pontada de pena que sentia.

Francis chacoalhou a cabeça para banir tais pensamentos. O tempo não curava todas as feridas. Mas de maneira alguma desistiria da insensibilidade que desenvolvera para se proteger. Era a única coisa que a mantinha sã.

Levantou a parte do balcão destinada à saída de funcionários e caminhou até a sala dos fundos. Para o inferno com a limpeza, Steve que a despedisse.

Na noite seguinte, Francis tirou sua parca e a colocou no cabideiro dos funcionários, atrás da pequena cozinha do Ozone. Não havia dormido o dia todo, pensando sobre Henri e a vampira que amava o marido por mais de dois mil anos e parecia... sábia e... feliz.

Maldita!

E aquilo a levou de volta a Henri. Que a tal Donna achasse que ele era um bom homem era intrigante. Talvez fosse tão má e cruel quanto Henri. Afinal, também era um monstro.

Francis estava vestida como sempre, com calça preta e botas de salto alto e um suéter básico. Aquele era seu uniforme para enfrentar as longas horas atrás do

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balcão. Estava na moda ter pele alva e ser pálida. E quem poderia ser mais pálida do que uma vampira? Seu cabelo loiro era ondulado e longo. Era magra, mas as curvas eram generosas e seus olhos azuis contrastavam com o tom de vermelho intenso dos lábios.

— Francis, alguém deixou um pacote para você. — Steve, o gerente, também se vestia a caráter. Terno caro cobrindo um corpo magro e uma gravata estreita e antiga que voltara à moda.

— Ótimo. — Ela forçou sua passagem através do caos da cozinha. As pessoas lhe deixavam passar, como sempre. Era a aura de vampiro. Aquela parte era bem útil.

Steve a seguiu.

— Você poderia avisar aos seus amigos que há serviço de correio em São Francisco.

— Claro, claro. — Quem poderia ter deixado um pacote para ela no Ozone? Nunca recebia nada do correio, além de catálogos e ofertas de cartão de crédito.

Entrou no salão principal. O pessoal do turno da noite já estava a todo vapor.

— Ei, Francis, você tem uma encomenda. Está embaixo do balcão. — Ricardo tinha um corpo maravilhoso. Pena que não se permitisse misturar lazer ao trabalho.

— Já ouvi. — Começou a preparar seu local de trabalho, certificando-se de que tudo estava do seu jeito.

— Você não quer saber o que é?

— Não agora.

— Droga, Francis, a curiosidade está me matando... Foi entregue por um mensageiro!

— Aprenda a viver com isso — gracejou Suzie, uma das garçonetes.

A noite já tinha começado. Porcaria! As pessoas não sabiam pedir mais nada além de Martini de maçã e Cosmopolitan?

O balcão estava vazio. Francis havia terminado de limpá-lo. Fez um ótimo serviço para compensar a noite anterior. Ou talvez, apenas para adiar a abertura do pacote. Tinha o tamanho de um álbum grande de fotos, embrulhado em um grosso papel encerado marrom, selado com seu nome, em uma caligrafia elaborada. Hesitou, depois o pegou e colocou-o no balcão.

Era pesado. Serviu-se de uma taça de vinho Chardonnay e dirigiu-se a um reservado nos fundos, com o pacote sob o braço. Podia muito bem relaxar e olhar as fotos.

Ajeitou-se e rasgou o embrulho. Sentia o cheiro da encadernação de couro. Um envelope deslizou para a mesa. Abra-me primeiro, ordenava na mesma caligrafia. Que estranho! Tudo bem, morderia a isca. Acendeu a pequena luminária sobre a mesa e viu a luz espalhar-se sobre a carta. O envelope era de papel pesado, do tipo feito com tecido, em vez de polpa de árvores, como nos velhos tempos. Caro. Ela o rasgou e espalhou as folhas de papel. Estava assinada por Donnatela di Poliziano. A mulher da noite anterior? Ficou séria.

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Querida srta. Suchet começava a carta. Como a mulher sabia o nome dela? Sinistro.

Sei que não irá procurar minha ajuda. Por isso, deixei este livro para você como uma espécie de desafio. Por favor, não decida nada até ter lido meu recado até o fim e olhado o livro. Este não é um presente que dou sem motivo. Você é a primeira pessoa com quem divido meu segredo em quase duzentos anos. Deve estar se perguntando, que segredo? Comecemos com o fato de que o tempo não é linear, mas um vórtice, ou uma espécie de espiral se preferir. É possível pular de uma parte do vórtice para outra. (Lembre-se de deixar a decisão para o fim.) Meu amigo Leonardo construiu uma máquina para mim. Com o poder de um vampiro e seu gênio, é possível ir para outra época. Voltei e mudei uma decisão de que me arrependia.

Você também pode alterar o que aconteceu, srta. Suchet. A máquina está em Florença, abaixo do Batistério de Duomo. Deveríamos tê-la destruído, mas teria sido como destruir uma parte de Leonardo. Na folha anexa você encontrará instruções.

Esteja alerta. Haverá dificuldades. Esta aventura será diferente de qualquer coisa que já fez. Mas que escolha você tem? Este é o único modo de descobrir o que você deseja e reclamá-lo para si.

Não deixe que o arrependimento-a envenene, criança. Tenha a coragem de mudar seu destino como eu mudei o meu. Desejo, do fundo do coração, que tudo dê certo.

Donnatela di Poliziano

As emoções misturavam-se no interior de Francis. Máquina do tempo?! A mulher era louca!

Ainda assim, havia mesmo vampiros no mundo. Quantos pensariam que aquilo também era loucura?

Seu coração começou a bater descompassado no peito. E se fosse possível mudar as coisas, como fantasiara por tantos anos? Se não precisasse ser uma vampira?

Abriu o livro. O couro era suave e tratado, as páginas, de papel vellum. Isso tinha de significar que ele era, de fato, antigo. Seu latim estava um pouco enferrujado, mas havia um bilhete para Donnatela e aquela assinatura não passaria despercebida a ninguém. Leonardo Da Vinci.

O amigo de Donna era Da Vinci?

Bem possível, se ela estava viva desde a Roma Antiga. Claro, a assinatura poderia ser falsa. A nota dizia que o tempo era um vórtice... Pulou algumas partes... E que alguém poderia pensar em outra época e a máquina o levaria para lá. Sim, claro, e como faria isso? A máquina não poderia ficar na época escolhida para sempre. Voltaria ao seu ponto de origem sozinha.

Ela folheou as páginas. Muitos diagramas e notas rabiscadas, indecifráveis. Tudo parecia ter sido escrito da direita para a esquerda, como se fosse para ler em um espelho.

Aquilo era besteira, era óbvio!

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Seus olhos voltaram para a assinatura. Da Vinci. Ele inventara uma máquina voadora quatro séculos antes dos irmãos Wright... Se alguém poderia ter inventado uma máquina do tempo, não seria ele?

Aquela era sua chance de realizar sua fantasia. O universo estava lhe concedendo seu único desejo.

Ok, precisava confirmar a autenticidade do livro. Se fosse real...

Teria uma decisão a tomar.

Francis olhou para o xadrez em mármore verde e branco do piso da catedral chamada Domo de Florença, brilhando à luz dos postes. As Vésperas estavam terminando. Fiéis saíam pelas grandes portas. Dos dois lados da rua, turistas jantavam nas cantinas lotadas. Francis ainda não conseguia acreditar que estava na Itália. Havia tomado o voo noturno de São Francisco para Nova York, seguido de outro para Paris na noite posterior, e dali para Florença na terceira noite. Não pôde evitar a luz do dia, ainda mais com as mudanças de fuso horário. A luz do sol a queimava, embora não o suficiente para matá-la. Por isso, cobrira-se como uma muçulmana, o que atraía ainda mais atenção de todos. Mas ao menos sua viagem foi apenas desconfortável, e não dolorosa. Odiava admitir que queria muito que a fantasia se tornasse real.

Você só vai olhar e ver se está lá.

De maneira alguma iria encontrar uma máquina do tempo construída por Leonardo Da Vinci nas criptas sob o Batistério. Assim, tudo era apenas esforço perdido.

A jovem naquela pequena loja na Market Street não parecia uma especialista em livros antigos. Mas o professor de Berkeley, que freqüentava o Ozone, afirmara que era. A garota havia confirmado que o livro era real e escrito por Da Vinci. Dizer em voz alta foi quase desnecessário. A reverência em sua voz após ter comparado a assinatura a autógrafos reconhecidos de Da Vinci, examinado o papel, e testado uma mancha de tinta, já eram uma confirmação. A garota também dissera que escrever da direita para a esquerda era uma característica dele, que era canhoto, e traduzira trechos da teoria do funcionamento da máquina com mais precisão. E sua nota a Donna, como uma espécie de prefácio. O bilhete dizia que ele nunca encontrara poder suficiente para colocar a máquina em funcionamento. Mas acreditava que Donna conseguiria. Decerto, porque sabia o que ela era.

Aquilo deixou Francis arrepiada. Depois de algumas experiências hesitantes no início, ela nunca havia usado seu poder exceto para expor seus caninos, para então evitar usá-los, ao menos até aquela semana. Mas ela já tinha visto Henri invocar o poder para criar um vórtice negro e... desaparecer. Era o modo como vampiros se moviam sem serem vistos. Bem útil para seus planos em Florença. E, sem dúvida, a fonte do mito do morcego. Quem saberia a fonte de outros mitos. Prata, água-benta, problemas com lobos? Graças a Deus por serem mitos. Gostava de jóias de prata. E quem gosta de pizza sem alho?

Ela surpreendeu a garota deixando-lhe o livro de presente, levando consigo apenas o bilhete de Donna e suas instruções. E aqui estava, em Florença, só para ver se tudo era verdade. Não que fosse real. E não que faria alguma coisa, se fosse. A quem estava enganando? Se não pretendesse usar a máquina, caso a encontrasse, porque havia usado seu poder para desaparecer e reaparecer dentro

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do almoxarifado de um hospital, roubando morfina suficiente para matar um cavalo? E por que havia comprado roupas que se confundiriam com as usadas em 1794? Saia acinturada e longa no tom de azul da Revolução Francesa, sapatos baixos de couro e uma blusa vermelha com elástico nos ombros, além de uma echarpe branca que lembrava muito um fichu, o xale da época. Sem mencionar que deixara seu cabelo loiro voltar ao natural, sem tintura ou cachos frisados. Seu penteado poderia muito bem ser confundido com o cabelo da l'enfant, como usava havia tanto tempo.

Não deveria mentir para si mesma. Comprara uma réplica de espada de gladiador, e ela estava embrulhada com uma muda de roupas, em uma bolsa esportiva de couro que lhe custara uma fortuna em uma loja da Hermes. A própria ideia de usá-la em Henri lhe dava calafrios. Conseguiria mesmo? Mordeu o lábio inferior. Não teria de fazer coisa alguma, não havia máquina do tempo sob o Batistério.

Mesmo assim, comprara moedas de ouro, pois precisaria de capital válido em 1794, e nada mais fácil de negociar do que ouro.

Não, não havia dúvida sobre o que faria se encontrasse a tal máquina sob o Batistério de Duomo. Ou sobre o quando queria encontrá-la. Moveu-se no meio do fluxo de fiéis até o piso de pedra exterior à catedral. Do outro lado da praça aberta, erguia-se o Batistério. Deslizou pelas grandes portas douradas e seguiu por detrás das sombras de uma das colunas de mármore. Padres moviam-se silenciosos por ali, apagando as velas, sinalizando aos visitantes que era hora de sair logo, as únicas a lançar sua luz eram aquelas à direita do altar. Para os outros, o espantoso domo pintado na glória medieval e coberto de ouro estaria oculto pelas sombras. Mas Francis podia vê-lo, assim como a fila de estátuas na galeria superior, cujas bases guardavam relíquias de santos. O último padre olhou em volta e, acreditando que a igreja estivesse vazia, saiu por uma porta lateral.

Francis soltou o ar. Tudo bem, ela conseguiria. Não precisava nem olhar para o bilhete de Donna, já o havia memorizado. Cruzou o mosaico de mármore do piso e deu uma olhada para trás.

Merde! Hum, talvez não devesse dizer aquilo ali. Ou mesmo pensar, não importava quão surpresa ficara ao ver a pequena abertura aos seus pés. Donna estava correta; uma escada conduzia à parte inferior. Francis estava tendo difi-culdades para respirar, e não porque o Batistério fosse asfixiante. Respirou três vezes. Certo. Começou a descer para a escuridão. O ar vindo de baixo era mais frio. Um brilho morno e fraco aumentava durante a descida. Abaixando-se para enxergar, viu uma sala grande e vazia, iluminada apenas por uma vela, que ficava em um tipo de altar ao centro. Donna dissera que sempre havia uma ali. Caixões de mármore ladeavam a saia, os perfis de seus donos esculpidos em pedra. O piso era de grossas placas de pedra com inscrições gastas. O lugar cheirava a porão, mas tam-bém havia um aroma de poeira e pedra que de algum modo sugeria antigüidade.

Uma placa não estava encaixada. Francis mordeu os lábios. Era exatamente como Donna descrevera.

Sob ela, ficavam as catacumbas. Droga! Seria capaz?

Era impossível desfazer o que havia lhe acontecido. Mesmo que a máquina do tempo estivesse lá, e que a levasse de volta, poderia ser incapaz de se forçar a matar Henri, ou ele mesmo poderia matá-la. Mas, se não tentasse, viveria eternamente uma vida pela metade, isolada e arrependida, odiando o que era...

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Tinha de tentar.

Uma risada nervosa escapou de seus lábios e ecoou contra os sarcófagos. Do que ela estava com medo? Era uma vampira, pelo amor de Deus!

Atravessou o piso para pegar a vela e colocou-a próxima à placa de pedra. Abaixou-se e empurrou-a para o lado. Ecos reverberaram dos arcos quando a pedra tocou o chão. O buraco aberto revelava apenas escuridão. Mesmo assim, ela apanhou a lanterna e desceu pelos degraus gastos. As paredes da escadaria estavam secas e, quando chegou ao fundo, os nichos sombrios que a cercavam pareciam conter apenas poeira. Não era tão ruim... Ela levantou a luz para encarar seus medos. Apenas poeira e alguns ossos esfarelados. Tudo bem, havia um com o crânio ainda quase intacto. E aqui e ali alguns crucifixos primitivos. Uma sensação de plenitude e... eternidade pairava no ar.

Abriu o pequeno mapa que Donna havia desenhado. As catacumbas eram um labirinto, e teria que chegar ao outro lado. Parecia com os primeiros jogos de computador que jogara. Tomara que não encontrasse nenhum fantasma assustador... Francis murmurava instruções enquanto fazia as curvas. Chegou a um corredor estreito.

Bingo! Caminhou entre os nichos armazenados em quatro filas de altura na parede mais distante. Ajoelhou-se. Décimo tijolo a partir da base. Empurrou.

Não conseguia decidir se estava surpresa ou não pela abertura de uma passagem. Talvez isso fosse apenas uma pegadinha para ver até aonde ela iria. Talvez alguém estivesse esperando na escuridão para pular e dizer que era uma pegadinha.

Uma boa medida para seu desespero era o fato de não se importar com tal possibilidade. Resoluta, passou pela porta e entrou.

Sua respiração soou alta, contrastando com o silêncio do aposento.

Uma máquina enorme erguia-se diante dela. Engrenagens gigantes e alavancas se combinavam em um louco padrão que era... Bem, belo. O metal dourado brilhava. Em alguns pontos do mecanismo surgiam o que parecia ser pedras preciosas do tamanho de seu pulso, vermelhas, verdes e azuis. Aquilo não poderia ser de verdade! Ou poderia? Do centro da máquina erguia-se uma barra com cerca de um metro de altura, no alto da qual havia uma pedra transparente e brilhante.

Merde! Era um diamante!

Francis congelou. Lentamente, começou a digerir os fatos. Estava em uma sala secreta, escondida nas catacumbas abaixo de uma catedral de Florença, olhando para uma máquina do tempo construída por Leonardo Da Vinci, que só poderia ser ativada por... uma vampira.

Era tudo tão irreal que era inegável. Ela era uma vampira que não deveria existir, mas existia. Então, por que não haveria uma máquina do tempo para levá-la de volta e corrigir o incidente que a tinha transformado naquilo que era?

Opa! Má idéia! E se mudasse o mundo atual com sua volta ao passado?

Se nunca houvesse sido transformada em vampira, a Francis que vivera dois séculos atrás deixaria de existir.

Projeto Revisoras 12

Mas também, nunca fizera nada de importante. Sempre deslizara pelas sombras da vida, tentando não ser notada. Ninguém sentiria sua falta se fosse bem-sucedida e morresse em seu devido tempo. Apenas abreviaria a vida de Henri em algumas semanas ou meses, já que ele seria guilhotinado de qualquer maneira. E quem sentiria falta de um falso como ele? Além disso, Donna voltara e corrigira seu erro e o mundo não tinha acabado.

Ficou ali, respirando com dificuldade. Sentiu-se inundada pela antiga vida que levara no século dezoito. Não era tão boa assim. As saias estruturadas e pesadas, as restrições que as mulheres enfrentavam... Odiava aquela parte. Filha bastarda do visconde d'Evron com uma dançarina de ópera, nunca conhecera a mãe, e não pertencia ao mundo do pai. Aos vinte e um anos, não tinha perspectivas, e vivia em requintada pobreza, auxiliar e dependente de uma bondosa senhora, também sem perspectivas. Já era uma pária antes de tornar-se um monstro. Revoltas populares, fome. E o Reinado do Terror, claro. Madame LaFleur e ela viviam com medo.

Quando Henri a salvara da multidão, parecera um milagre. Não era de se espantar que sua paixonite adolescente por ele houvesse se aprofundado. Henri podia ser insensível e despreocupado, mas também era destemido. E isso era atraente para alguém que se sentia impotente.

Mas ela era inocente na época. Agora teria acumulado duzentos anos de experiência. O século dezoito seria moleza. Não pensaria mais nos detalhes. Era o preço para salvar sua alma. A morte de Henri a redimiria. Mas aí não teria o poder para ativar a máquina do tempo. Então, o mundo moderno estaria perdido para sempre, a menos que conseguisse pegar uma carona quando ela retornasse ao pre-sente. Século dezoito ou vinte e um? Não importava. Seria humana de novo.

Francis já estava pensando como se voltar no tempo fosse impossível. Bem, aquela era a hora de descobrir. Apenas faça, garota! Adiantou-se e agarrou o diamante. Puxou-o.

Nada aconteceu.

Ah, sim, a parte do poder. Empurrou a alavanca para cima. Companheiro!, chamou, como se precisasse das presas. O poder agitou-se em suas veias como um desejo pulsante. Uma membrana vermelha desceu sobre seu campo de visão. Para um observador externo, seus olhos teriam se tornado vermelhos. Companheiro, preciso de mais! A pulsação tornou-se quase implacável. Uma espiral negra começou a se formar ao redor de seus pés. Ah, não! Ela queria poder para voltar no tempo, não para desaparecer. Afastou a escuridão e concentrou-se na máquina. Seu corpo enrijeceu. Empurrou a alavanca. Além do pulsar do poder em seus ouvidos, escutou o guincho do equipamento.

E mesmo assim, nada aconteceu.

Isso ia requerer esforço. Invocou mais poder, focando toda a atenção na máquina. A gigantesca engrenagem central começou a girar, colocando todas as rodas menores em movimento frenético.

Companheiro! Seu corpo arqueou enquanto o poder cantava em suas veias, e a música gritava escala acima. As engrenagens zumbiam tão rápido que estavam quase invisíveis. Devia pensar no instante ao qual queria retornar. Antes de Henri se cortar naquele copo idiota. No momento em que fora admitida na casa dele, assim teria fácil acesso...

Projeto Revisoras 13

Deus! Um brilho começou a emanar de seu corpo, formando um halo branco. Nunca soubera possuir tanto poder. A tensão em seus membros, o grito, o pulsar em suas veias era quase insuportável. Sobreviveria?

Então o movimento ficou mais lento. Tudo desacelerou, inclusive seus pensamentos.

Teria falhado?

O poder ainda zumbia no ar. Cheirava a ozônio. Forçou um sorriso. Não conseguia fugir do ozônio nem ali. Invocou mais poder.

Não importava. Todas as engrenagens pararam.

Ela falhara. Fez um esforço para se mover em direção ao século dezoito, tentando imaginá-lo, as ruas sujas, as multidões de Paris. Pobreza, sofrimento, lixo. Que contraste com o luxo de Versalhes que Henri havia lhe mostrado...

Tudo voltou a se mover e Francis se sentiu catapultada a outra época. As pedras preciosas se acenderam, ampliando o poder em raios coloridos que se cruzavam, em arcos, no teto de pedra.

Então veio a escuridão.

Francis levantou a cabeça e se arrependeu.

— Droga — gemeu. Vampiros não ficavam bêbados. Como conseguira uma ressaca? Algo duro atingiu seu ombro. Não estava onde esperava estar. A menos que tivesse pedras na cama.

Abriu um dos olhos.

Merde, merde, merde! Acima dela, na escuridão, assomava a grande máquina dourada, suas engrenagens paradas e silenciosas contra o teto de rocha desigual.

Estava em algum tipo de caverna.

Levantou-se em um cotovelo, gemendo, e piscou para clarear a visão. A luz avermelhada do entardecer filtrava-se através da entrada da caverna. Do lado de fora, árvores agitavam as folhas das árvores. Seria mesmo uma caverna? Uma parte das paredes mesclava-se a tijolos. Onde, diabos, ela estava? E quando?

Apoiou-se nos joelhos e nas mãos, e puxou as saias acima das coxas. Não acreditava poder ficar de pé, ainda. Engatinhou até a entrada, parcialmente bloqueada por uma enorme estátua de mármore. Parecia ser um homem nu, cercado por seis ninfas.

Ela arfou. Conhecia aquele lugar! Era a gruta construída para a estátua de Apolo nos jardins de Versalhes, desaparecida no século vinte e um.

Lágrimas chegaram-lhe aos olhos enquanto lutava para respirar. A maldita máquina funcionara! Piscou para afastar as lágrimas de choque e surpresa. Poderia mesmo ser verdade? Estaria mesmo em 1794? Não parecia possível.

A primeira vez que tinha visto aquela estátua e as representações dos cavalos de Apolo fora quando estivera em Versalhes com Henri. Uma cascata de imagens daquela noite ameaçou engolfá-la. As sensações de sua pele, o brilho da paixão em seus olhos pareciam tão reais! Aquela noite havia sido sua perdição. Deveria evitar isso desta vez.

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Ela não voltara para Paris. A máquina deveria ter se confundido, de algum modo. Seria o verão de 1794? Ou a máquina tinha se enganado nisso também?

Talvez não fosse um erro. Correu as mãos pelos cabelos e tentou pensar. No último minuto, bem quando perdera a esperança de que a máquina se movesse, pensara em Versalhes.

Tudo bem, tudo bem! Aquilo não era um desastre, e uma de suas moedas de ouro compraria uma centena de passagens em uma carruagem até Paris. A aldeia de Versalhes costumava apoiar a corte de Luís XV. Com certeza, conseguiria trocar lá suas moedas por dinheiro que pudesse usar.

Sentiu o sol se pôr, como sua espécie sempre sentia. Deveria agir rapidamente no crepúsculo. Juntou sua bolsa de couro, saiu para o bosque ao redor da gruta e desceu a pequena rampa, passando pelos maravilhosos cavalos de mármore que pareciam prestes a disparar para o belo jardim, bem à frente. A grande fachada do palácio não estava muito distante. A rocha austera e a verdadeira fortuna em janelas envidraçadas prendiam o sol nos andares superiores. Circulando pelos jardins, os membros da Guarda em seus uniformes azuis guiavam as pessoas para os portões principais. Desde que a corte fora forçada a se mudar para Paris para que pudesse prestar contas ao povo, o local estava aberto ao público. A massa vestia-se de acordo com a moda para trabalhadores em 1794. Os homens com calças largas e botas malfeitas, as mulheres em aventais, chapéus e fichus rústicos jogados sobre os ombros. Mas não seria necessário ver as roupas para saber que não estava mais no século vinte e um. Afinal, não havia cheiro de diesel dos ônibus de turismo no ar ou o asfalto quente dos estacionamentos. A multidão conversava e ria. Crianças gritavam por estarem cansadas, mas não se ouvia toques de celulares chamando a atenção, nem buzinas de automóveis.

Francis respirou fundo, piscando. Conseguira! Ou melhor, a máquina de Leonardo conseguira. Estava em 1794!

Francis quase foi jogada para fora da diligência, levada por uma onda de outros corpos e respirou fundo. O odor de Paris podia ser ruim, mas qualquer coisa seria melhor que o odor corporal que reinava dentro da carruagem. Poderia se reacostumar a isso? A carruagem levava oito pessoas confortavelmente, mas havia doze dentro e vinte pendurados lá fora. Francis se viu esmagada entre uma mulher com uma criança chorando no colo e um homem com mãos bobas. Só quando ela agarrou-lhe o pulso com força bastante para deixar hematomas e depositou a mão de volta no colo foi que ele desistiu, cuspindo em protesto. Jovens respeitáveis não viajavam sozinhas. Aquele pensamento fez Francis sorrir com raiva. Se o homem soubesse o quanto ela não era respeitável, ficaria chocado.

Olhou pelo pátio lotado da estalagem. Carruagens faziam ruídos enquanto rodavam por ali, competindo pelo melhor lugar, enquanto os cavalos resfolegavam e reclamavam. O ar cheirava à ferrugem e sujeira noturna. Pessoas gritavam por café e torradas. Ela estava próxima agora. Se ao menos soubesse para qual momento de sua vida pregressa voltara... Se tivesse chegado muito tarde, se neste momento, no subúrbio da cidade, no bairro de Marais, ele a estivesse infectando, todo o esforço teria sido em vão. Se chegara a tempo, poderia inclusive salvar sua patroa e amiga, Madame LaFleur, da prisão. Forçaria a idosa senhora a deixar Paris antes que Robespierre a alcançasse.

De algum modo, teria de evitar seu antigo eu, a que estava vivendo nesta

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bagunça perigosa pela primeira vez. As histórias de viagem no tempo sempre diziam que se encontrar era algo ruim. Se conseguisse matar Henri, provavelmente deixaria de existir como vampira. Talvez ela apenas sumisse, e restasse só a garota inocente que havia sido. Recusou-se a embarcar no enigma "do como", do tipo que cogitava "como ela poderia estar no século vinte e um e ali ao mesmo tempo para usar a máquina do tempo de Donna e voltar no tempo para evitar sua transformação". Era o que odiava nas histórias de viagem no tempo: não se pode evitar a lógica circular.

Pegou sua bolsa de couro, jogou uma moedinha para um vendedor em troca de uma torta de carne e moveu-se pela noite quente, saboreando-a. Apressou-se a seguir pelos cafés onde homens gritavam suas opiniões políticas acima do zumbido de vozes risonhas. Paris nunca dormira cedo.

Apesar de ter pensado várias vezes em matar Henri, a perspectiva de realmente fazê-lo era muito diferente. Cerrou os lábios e correu sobre a Pont Neuf, seguindo em direção ao Marais, o coração batendo forte. Só Deus sabia por que Henri continuara vivendo no Marais. No século dezessete, o local estivera muito em voga, mas a aristocracia agora vivia do outro lado do Sena, no Fauburg St. Germain. Ele era controverso o bastante para ir contra a moda. Ou, por ser uma criatura tão antiga, para ater-se à tradição. Qualquer que fosse o motivo, sabia que o encontraria em Marais, o único lugar que madame LaFleur podia pagar.

Sentiu cheiro de fumaça e seu coração disparou. Um brilho alaranjado sobre a Place Royale lhe dizia que chegara na noite exata em que havia entrado para a casa do duque pervertido. Uma parte sua estava aliviada; era talvez uma semana antes do instante fatal em que se tornara vampira. Teria tempo para matá-lo. Mas seria capaz de também salvar madame LaFleur? Chegara à enorme praça aberta. A bela fachada das casas do outro lado do parque estava em chamas. Ou melhor, de uma delas... Começou a correr, a pesada bolsa de couro batendo em seu quadril. Uma multidão furiosa jogava pedras nas chamas, em vez de baldes de água.

Vacilou, parando. Madame LaFleur já estava sendo levada para uma carruagem negra como um besouro, com barras nas janelas, por guardas do Comitê de Segurança Pública. Estava atrasada! Uma mulher subiu em uma caixa disposta sob os arcos da fachada do andar térreo, e de lá gritava, excitando a turba. Era madame Croute!

Francis não podia ouvir, mas sabia o conteúdo daquele discurso. Madame LaFleur era uma católica devota, apesar da ilegalidade imposta a igrejas e padres. Nunca poderia se forçar a freqüentar as novas igrejas criadas pelo governo. Talvez fosse este o motivo que trouxera até ali madame Croute e sua corja de sans culottes, os mais raivosos revolucionários do Terceiro Estado, que espionavam para Robespierre e seu comitê.

Robespierre, primeiro membro do Comitê de Segurança Pública, observava enquanto a multidão empurrava os vasos de pedra sob a arcada, gritando. Um leve sorriso iluminava sua face. Chamas ondulavam pelas janelas como lençóis batendo ao vento.

À medida que se aproximava da cena, Francis reduzia o passo. Não pudera fazer nada da primeira vez em que aquilo acontecera, nem poderia mudar nada agora. A vida de madame LaFleur fora ceifada na guilhotina. Isso lhe doeu mais do que esperava. De alguma maneira, pensava que dois séculos de experiência dos males mundanos diminuiriam a dor pela morte de uma simples mulher.

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A carroça do carcereiro moveu-se. O que significava que em um instante...

Ela virou-se. Bingo! Uma carruagem com um brasão elaborado nas portas trotava rua acima em direção às chamas. Quatro cavalos negros, aos pares, hesitavam sob os arreios, nervosos por causa da fumaça. O cocheiro, em libré preta e dourada, parou a carruagem distante da aglomeração. Um criado, igualmente vestido, saltou e abriu a porta do veículo.

Henri desceu. Ficou de pé, analisando o caos com um monóculo, sua expressão entediada e desdenhosa como sempre.

A multidão furiosa, o crepitar das chamas, a fumaça...

Francis olhava, paralisada.

Ele era ainda mais belo do que se lembrava. Parecia ter entre trinta e cinco e quarenta anos, embora soubesse que era séculos mais velho. Seu cabelo era negro e escovado para trás, preso em uma longa trança. Não usava peruca. Quem usaria, se tivesse aquele cabelo grosso e brilhante? Seus olhos eram tão escuros que pareciam negros. Seu olhar, que vagava pela turba, era de desprezo. Ele era alto e musculoso; vestia-se de negro, sua única concessão à austera moda revolucionária. Ou talvez já se vestisse assim, mesmo quando a moda era colorida. Certamente combinava com ele. Parecia, e era, a essência de um aristocrata. Como podia desafiar a tirania da plebe tão abertamente?

Talvez apenas por demonstrar não se importar com isso.

Ela aproximou-se pela da multidão, atraída pela cena.

— O que temos aqui? — murmurou ele. Ouviu-o com clareza, graças a sua audição vampírica.

A curva dos lábios carnudos era de tranqüila condescendência. Passeou à frente da plebe, analisando a aglomeração de sans culottes.

— Monsieur, certamente pode nos ajudar!

Francis virou-se ao som da própria voz. Arfou. Ali estava ela, como fora, Françoise Suchet, não Francis, sua face uma máscara da inocência aflita, um guarda em cada cotovelo. Era o rosto que Francis ainda via no espelho todos os dias, apenas com uma camada de fuligem a mais. Seu cabelo loiro tinha um brilho cor de cobre à luz das chamas que lambiam o exterior das janelas acima dela. Francis sabia que não tinha mudado muito com os anos, mas entender que aquela não era uma imagem refletida no espelho, e sim uma que vivera havia duzentos anos, desafiava sua sanidade e compreensão.

Françoise estendeu seus braços o máximo que pôde na direção de Henri, num gesto de súplica. Garota tola. A última coisa de que precisava era Henri Foucault. O caminho para o vampirismo.

De repente, Françoise imobilizou-se, a cabeça virou-se lentamente... Seus olhos encontraram os de Francis. Foi então que ela viu os olhos que, na verdade, eram os seus, azuis e inocentes, mas muitos anos mais jovens, se arregalarem.

Francis não conseguia respirar. Françoise parecia cada vez mais próxima, mesmo enquanto a multidão atrás dela recuava. Apavorada, Francis largou a bolsa, arfando, e dobrou-se, tentando conter a dor em sua barriga. Aquilo era ruim, muito ruim! Nunca deveria ter se visto. Sentia-se como se estivesse quebrando. Um grito

Projeto Revisoras 17

agudo escapou de seus lábios. Todos aqueles livros sobre viagem no tempo estavam certos, pensou.

E então chocou-se com Françoise. Sentiu-se desintegrar em uma névoa.

E mais nada.

Françoise chacoalhou a cabeça para clarear a visão. Tinha visto uma mulher no meio da multidão. A desconhecida era parecida com ela, embora estivesse vestida de maneira estranha.

Mas não havia ninguém lá agora. Sentia-se... cheia. Sua cabeça parecia apertada e seu peito quase explodindo com algo estranho. Olhou em volta, atordoada. Houvera mesmo uma mulher... ou não? Não se lembrava. Deveria estar louca para ficar fantasiando em um momento como aquele. Tudo o que possuía estava na casa incendiada. O povo parecia decidido a acabar com o que restara, tijolo a tijolo. Robespierre ordenara a prisão de madame LaFleur e Françoise estava prestes a ter o mesmo destino.

Olhou para a aglomeração de pessoas. Havia visto algo ali, não? Algo que a deixara inquieta, mas não sabia exatamente o quê. Sentia-se de algum modo anestesiada. Não conseguia ver tão bem quanto esperava, ouvir como deveria. Algo dentro dela estava... desapontado.

Bastava! Virou-separa o duque d'Avignon, vindo de sua carruagem, monóculo em riste para mapear a multidão e a casa incendiada que dividia o muro com sua própria moradia, muito maior. Deveria estar louca para pedir ajuda a ele. O duque pervertido não faria nada por ela. Mas depois que fosse presa ninguém poderia ajudá-la, então, era sua única esperança.

— Por favor, ajude-me, monsieur!

O monóculo voltou-se para ela e os dois guardas que a escoltavam, ampliando o olho dele até que se parecesse com um monstro. Aquela era a primeira vez que o duque a notava em todos os meses que fora seu vizinho. Françoise corou, consciente de que sua saia estava rasgada e coberta de fuligem.

— Você deveria chamá-lo de "cidadão", não? — falou madame Croute entre os dentes. — Entre nós não há mais tratamentos respeitosos para a nobreza, A França pertence ao povo!

O monóculo agora focava-se em madame Croute. O duque franziu as sobrancelhas, depois inspecionou o prédio em chamas.

— De fato, isso já passou dos limites.

Sua voz era baixa, entretanto, de algum modo, a multidão ao seu redor acalmara-se; apenas o rugir das chamas enchia o ar noturno. Devia ser uma reação à eletricidade que ele parecia espalhar ao seu redor.

Françoise havia observado as saídas noturnas do charmoso vizinho. Ninguém poderia evitar uma fixação por Henri Foucault. Era um belo demônio. Ostentava sua riqueza e bom gosto na cara dos revolucionários como se não sentisse medo.

Ele lançou o olhar sobre a turba.

— Vocês vão queimar o Marais, e mais importante, a minha casa, com sua insensatez. — Seus olhos negros pareceram brilhar vermelhos à luz das chamas. — Apaguem isso! — A voz ecoou na noite escura como se fosse um estrondoso trovão.

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Para a surpresa dela, os quatro homens mais próximos começaram a exortar a massa a apagar o incêndio. O povo moveu-se com incerteza, para então ganhar um propósito.

— Aos estábulos! Lá haverá baldes.

— Levem-nos às fontes!

A multidão dividiu-se em filas organizadas, o que irou madame Croute.

— Cidadãos! — gritou ela. — Este refúgio de sentimentos contrários à Revolução deve ser demolido! Mas o povo já não lhe dava atenção. Ela virou-se para Robespierre. Era uma mulher bonita, de figura delicada, apesar de ter um rosto comprido e olhos pequenos. Vestia-se no estilo da massa, com avental e touca, mas os tecidos eram caros e muito limpos, ao contrário dos de suas seguidoras.

— Cidadão — ela interpelava Robespierre —, faça alguma coisa!

O duque olhou por sobre os ombros dela.

— Ah, querido Robespierre, o que o traz a esta cena sórdida? — Virou-se para madame Croute. — Bem como a sua protegida.

A mulher o fitou, indignada.

— Vim para livrar-nos dos traidores — disse o pequeno homem, com afetação. Vestia-se com muita propriedade em um tom sóbrio de negro, seu cabelo escondido por uma peruca simples com apenas dois rolos acima de cada orelha. Usava uma fita na lapela com as cores da revolução.

— Pergunto-me — começou a dizer duque num tom baixo — se o Comitê de Segurança Pública deveria estar envolvido com inícios de incêndios. Parece-me contraditório.

O homem baixinho endireitou-se, muito sério.

— Você faz troça de nosso dever sagrado, cidadão Foucault. A causa da liberdade deve ser protegida a qualquer custo.

— Foi o que ouvi dizer; — Os olhos escuros passaram por Françoise e desviaram-se. — E uma idosa é um alvo digno de sua ira, claro. Estremeço só em pensar que fui vizinho de uma pessoa tão perigosa.

Seria sua situação que fazia seus joelhos tremerem?, Françoise questionou-se. Ou a misteriosa estranha que vira no meio da multidão? Balançou a cabeça, confusa. Não conseguia se lembrar do que vira. Mas sentia que já passara por tudo aquilo antes, talvez em sonho.

— Mas o que minha protegida tem a ver com tudo isso? — indagou o duque, de repente.

Teria ouvido direito? Que protegida? O duque vivia sozinho na casa ao lado, se é que se podia dizer que alguém que tinha vinte criados vivia sozinho.

Olhou ao redor.

Robespierre ficou carrancudo.

— A quem se refere, cidadão? O duque apontou para ela.

— Esta garota. Pertence a mim. Difícil crer, ainda mais com essa aparência.

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Françoise sentiu o queixo cair. Apenas a surpresa a impediu de protestar.

— Ela foi encontrada na casa com a velha — respondeu Robespierre.

— Os cidadãos relataram que ela mora ali — acrescentou madame Croute, desferindo o golpe de misericórdia.

O duque arqueou uma sobrancelha.

— Estranho que eu tenha que me justificar para vocês. — Suspirou, resignado. — Ela jogava cartas com a velha de tempos em tempos, por bondade. Tentei avisá-la sobre o perigo disso, de ser bondosa. Mas desisti há muito tempo, pois seu coração é bom demais para entender os perigos que corre.

Robespierre nunca acreditaria que era uma protegida do charmoso duque, Henri Foucault era rico e poderoso demais para dar atenção a um pobre alma como ela.

No entanto, por alguma estranha razão, o argumento pareceu funcionar.

— Muito bem, cidadão Foucault. — O sorriso de Robespierre era tão afável a ponto de assustar. — Não sonharia em ameaçar sua... propriedade. — Acenou com a cabeça para os guardas, que soltaram Françoise no mesmo instante.

— O que você está fazendo? — esbravejou madame Croute.

Robespierre não respondeu.

— Silêncio, mulher!

— Você não precisa pedir desculpas? — o duque murmurou sua pergunta.

O advogado pareceu sufocar. Respirou fundo.

— Minhas desculpas, cidadão.

O duque balançou a cabeça, sorrindo.

— Não, meu bom homem. Não para mim. Para a dama.

Françoise sentiu-se corar. Que audácia!

O outro assentiu levemente em sua direção.

— Perdoe-me, mademoiselle.

— Você vai permitir que esse... esse aristo... frustre o desejo do povo? — insistiu madame Croute.

Robespierre não respondeu, virou-se e abriu caminho pela multidão que passava baldes de água da fonte para apagar o incêndio.

Françoise olhou à sua volta, desconcertada. Que resultado surpreendente! Por que Robespierre recuara? E ainda assim, percebia que tal atitude não era nenhuma surpresa. Se parasse para pensar, teria que admitir que uma parte dela já esperava por isso. Piscando, voltou-se para o duque. Por que ele a salvara? Havia algo que ela deveria fazer, insistiu um comichão em sua mente... Sim, uma Voz vinda do fundo de sua alma insistia que deveria temê-lo.

Françoise entrou no elegante vestíbulo. O ladrilho branco e preto avançava pelo vestíbulo e ao longo do par de escadas que se encontrava a meio caminho do primeiro andar, onde havia um enorme salão de baile. Ela nunca se sentira tão deslocada, com suas roupas baratas e manchadas de fuligem. Mais absurdo,

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desejava ter usado um pouco do parco salário que recebia de madame LaFleur para comprar um vestido mais moderno.

Seu anfitrião parecia tê-la esquecido. Ele caminhava pelo hall, com Gaston, o criado, em sua esteira.

Muito bem. Ficaria ali aquela noite, mas no dia seguinte procuraria outro emprego. E diria isso a monsieur Le duc. Atravessou o vestíbulo, os sapatos estalando no piso de mármore. A sala de estar era muito mais aconchegante do que imaginara. Era forrada do chão ao teto, de dois lados, de estantes com livros. Duas poltronas de aparência confortável ficavam em frente à lareira, com uma mesinha entre elas. Um fogo queimava baixo, e embora fosse verão, o crepitar era bem-vindo. Essas casas antigas sempre ficavam um pouco úmidas à noite. De um lado estava uma grande escrivaninha, inexplicavelmente coberta de papéis. Ela não podia imaginar o duque fazendo nada que exigisse uma escrivaninha. Com certeza tinha criados para pagar as contas do alfaiate e da manutenção da casa.

O duque desabou em uma das poltronas, esticando um pé à sua frente. Gaston serviu o brandy, murmurando:

— Jantar no horário usual, Vossa Graça?

O duque podia dar-se o luxo de beber um brandy, mesmo com os impostos cobrados por isso. Ninguém mais tomava a bebida, atualmente.

— Mas claro! E cuide para que coloquem outro lugar à mesa.

Ora, pelo menos ele se lembrava de sua existência. Não que Françoise fosse tocar em qualquer comida na toca do diabo. Após a saída do criado, seu anfitrião voltou-se para ela.

— Bem, vai se sentar ou pretende ficar aí de pé como uma estátua de sal?

Envergonhada, ela adiantou-se e parou perto da outra poltrona.

— Isso não faria desta casa Sodoma e Gomorra?

De onde tirara aquilo? Nunca pensara que teria a coragem de responder ao diabo daquele modo...

Aparentemente, ele também não pensara, pois arqueou as sobrancelhas e a esquadrinhou com olhos sagazes.

— Muitos pensam assim. — Gesticulou para que se sentasse.

Françoise limpou a garganta.

— Eu... eu agradeço pelo gesto gentil e... lhe asseguro de que não abusarei da sua hospitalidade por mais do que uma noite.

— Estou aliviado. — Esticou um pouco mais as pernas longas e musculosas. — Você tem algum parente em Paris, além daquela senhora?

— Madame não é minha parenta. Só me contratou como acompanhante. — O duque a desprezaria por aquilo. Ainda assim, levantou o queixo, empertigada.

— Ah... — Henri Foucault a examinou criticamente.

Françoise sentiu um vago cheiro de... canela no ar. E mais alguma coisa... Algo doce. Um cheiro exótico para um homem. Eles sempre preferiam sândalo ou algo assim segundo sua experiência, embora esta fosse bem limitada. E a despeito

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de seus modos lânguidos, tinha uma aura forte e viril. Isso, somado a outros encantos pessoais, nada desprezíveis, resultava em uma combinação quase fatal para uma jovem. Para ela, havia sido. Fantasiara sobre o duque pervertido desde que este se tornara seu vizinho.

— Você não é como os outros. Não parece fazer parte da massa — ele observou.

Como sabia? Não pelo seu vestido, é claro. De qualquer forma, não queria lhe contar que era filha bastarda do marquês d'Evron com uma dançarina do coro da ópera.

— Poderia muito bem ser. — Não pôde evitar uma nota de desafio na voz modulada. O que havia naquele homem que lhe dava nos nervos? — Vou procurar outro emprego amanhã.

Depois de ter feito o que devo fazer. O quê? De onde viera aquele pensamento? O que deveria fazer? Françoise sentiu-se aturdida.

— Você não deve ter família, se tivesse, não permitiriam que decaísse tanto.

O duque, pelo visto, não era alguém que media as palavras.

— Não decaí — falou, empinando o queixo.

— Situação angustiante. — Não havia compaixão alguma em sua voz.

O que ela esperava? Se não pudesse encontrar um lugar imediatamente... Bem, não queria nem pensar.

Uma batida soou à porta, e sem esperar por um convite, Gaston entrou no aposento. Levava uma pesada bandeja de prata na qual se equilibrava uma única taça com outra garrafa de cristal lapidado, contendo um vinho rosado.

O duque arqueou as sobrancelhas muito negras.

— Não me lembro de ter solicitado nada, Gaston. — A voz era profunda e aveludada, mas havia certa impaciência nela.

— Tenho certeza, Vossa Graça, de que o senhor se esqueceu de solicitar ratafia para a jovem, devido à confusão.

Françoise, que ainda estava em pé, viu o duque apertar os lábios.

— Obrigado por me lembrar dos meus modos.

Decerto, era um péssimo patrão. Esperava que não se vingasse de Gaston mais tarde.

No entanto, o mordomo parecia imperturbável. Ajeitou a garrafa e a taça, serviu uma boa dose de ratafia, fez uma reverência e retirou-se.

— Já que meus criados, sem dúvida, irão me questionar se você ainda estiver de pé na próxima vez que alguém entrar, peço que se sente, se não por você, por mim.

Françoise surpreendeu-se com o tom irônico, mas obedeceu. Sentou-se na beirada da poltrona. Ele indicou a taça.

A bebida seria bem-vinda após todo o ocorrido. O duque esperou, bebericando o brandy que Gaston havia servido anteriormente.

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Françoise olhava para o brilho das brasas e as centelhas aleatórias que restavam do fogo. Estranho como o fogo podia parecer tão ameaçador em um momento e tão reconfortante em outro.

— Não posso evitar a sensação de que seus esforços para conseguir outro emprego podem não ser bem-sucedidos.

Nervosa, levantou o olhar, descobrindo que o duque a estivera observando, com os olhos escuros e semicerrados. O que ele dizia não era nenhuma novidade, mas não gostou do seu tom.

— Tenho certeza de que conseguirei algo apropriado.

— A maior parte da aristocracia deixou a França para escapar do Terror. Dos que restaram, uma boa porção está na prisão, ou logo estará. Para os poucos que ainda estão livres e que, por acaso, estejam contratando criadagem, você dificilmente será considerada apropriada.

Ela percebeu que corava. Era verdade. As outras três criadas de madame haviam planejado voltar para seus parentes no interior se algum dia a patroa não as pudesse manter.

— Você é muito jovem para ser governanta ou criada, muito refinada para dama de companhia... — Fez uma pausa, como se estivesse refletindo. Suas sobrancelhas se juntaram. — E como você conseguiu educação? Sua dicção e sua conduta não condizem com sua vestimenta nem com sua situação.

Ah! Então foi assim que soubera que ela não era da classe trabalhadora! Muito astuto. Apostava que Henri Foucault podia farejar uma mentira a distância. Decidiu não dar nenhuma resposta.

— Isso não é problema seu, Vossa Graça.

— Você, pelo menos, poderia tentar retribuir meus esforços em mantê-la fora do cárcere assegurando-me de que não estou abrigando uma assassina ou uma ladra.

— Não acredito que Vossa Graça teria medo de uma garota como eu.

A boca carnuda contraiu-se.

— Acha que não me deve nenhuma explicação?

Ah, céus. Ela estava em dúvida. Engoliu em seco, depois decidiu que seria útil outro gole de ratafia. Um grande gole, aliás. Henri Foucault estava certo. Pagaria sua dívida contando-lhe o que nunca admitira: era uma pária.

— Sou filha bastarda do marquês d'Evron com uma cantora de ópera, foi o que me disseram. — Empinou o queixo novamente. Ele poderia muito bem ouvir toda a história sórdida. Algo lhe dizia que não era importante ele saber de tudo, ao menos, não por muito tempo. — Minha mãe me deixou na porta da casa da minha família paterna. O marquês nunca me reconheceu, mas sua irmã donzela me criou e educou em sua propriedade na Provença. — Fitou o fogo com pesar. Amara lady Toumoult. — Ela morreu de tuberculose.

— Seu pai não cuidou de você? — A voz era cortante. — Se a irmã dele a criou, seu nascimento deve ter sido de conhecimento público.

Françoise suspirou.

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— Tenho certeza de que ele tinha outras coisas em mente.

O duque serviu-se de mais brandy.

— Agora me lembro de d'Evron. Nem tentou pedir moderação aos rebelados, simplesmente juntou a família e emigrou.

— E como eu não era membro oficial da família, fiquei para trás. — Françoise respirou fundo. Lembrava-se do quanto ficara apavorada ao ser abandonada em um país em pleno caos. Mas não tinha direito nenhum de ir com a família do pai. Não era legítima, nem mesmo sua serva. Não tinha a quem reivindicar nada. — Eu... tinha dezessete anos. Fiz o que pude. Madame LaFleur me contratou. — Seus olhos se encheram de lágrima. A senhora que a tratara mais como uma amiga do que como uma criada logo estaria a caminho da guilhotina. As duas mulheres a quem amara e que também a tinham amado haviam sido entregues à morte, uma vencida pela tuberculose, outra, prestes a ser guilhotinada. Talvez fosse sua culpa, de algum modo. Talvez trouxesse azar...

— Bem — disse o duque, como se tivesse resolvido algo —, acho que só tem uma solução. Você deve ir para a Inglaterra.

— Sem dinheiro, conhecidos, nem referências? Mesmo que eu tivesse dinheiro para a passagem, minha situação seria ainda pior lá.

Quando as famílias emigravam, levavam seu modo de vida com elas. Ainda que tudo o que alguém tivesse fosse um título, ao menos teria garantida a sua entrada para a sociedade. Ela não possuía relacionamentos nem era bem-nascida.

Isso o pegou desprevenido. Henri pareceu refletir sobre a situação por um instante, olhando seu brandy. Quando voltou a encará-la, parecia incerto.

— Discutiremos isso depois. Por enquanto, é melhor que fique aqui como minha protegida.

O que estava dizendo?, espantou-se Françoise. Mas então percebeu o significado do que ele acabara de fazer. Endireitou-se.

— Se o senhor acha que por ser uma bastarda não tenho moral, está enganado. Encontrarei um emprego.

Os olhos negros capturaram os dela.

— Não, não penso assim. Mas os outros pensam. Então, não conseguirá colocação. Nenhuma mulher a teria em sua casa, junto a seu marido e filhos. Teve sorte de encontrar uma senhora idosa que ainda tivesse dinheiro para contratar alguém.

Ela sentiu sua respiração acelerar.

— Trabalharei em uma loja ou uma fábrica. Henri sufocou uma risada.

— As lojas não estão contratando. A estrutura da economia está desmoronando, se não notou. A Assembléia Nacional entregou as fábricas ao povo.

— Deve haver alguma maneira de ganhar meu sustento! — Françoise odiava como sua voz soava débil.

Ele sentou-se mais à frente e segurou-lhe as mãos entre as suas. O toque morno na pele enviava pequenos choques.

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Françoise tentou se livrar, mas não pôde. Para mãos tão elegantes, elas eram bem fortes.

— Quem vai contratá-la para serviço pesado com estas mãos? — Abruptamente, ele a soltou. — Onde está seu cérebro, garota? Você não se encaixaria em uma fábrica, mesmo que convencesse alguém a lhe dar um emprego. Vai dizer que pode agir como eles, se misturar. Mas vai se trair! E daí eles a expulsariam ou mandariam prendê-la por esconder sua origem nobre, em um piscar de olhos. Só um bordel a aceitaria.

Ela tentava esconder as lágrimas.

— Conheço minhas chances. A despeito do que o senhor pense, não sou burra.

Ele tomou mais um gole.

— Então pare de agir como se fosse — murmurou. — Você fica aqui.

Não falou como se a quisesse ali. Mas isso não diminuía o perigo.

— Não posso ficar. — Demonstrava uma coragem que não possuía. Sentou-se e devolveu a taça vazia à bandeja. — Uma prostituta é uma prostituta, sirva ela a vários homens ou a um só. E eu não sou uma. — Levantou-se.

— Não vou atacar sua virtude, pelo amor de Deus! Disse que podia ficar como minha protegida.

— E quem acreditaria nisso, Vossa Graça? O senhor tem o quê, trinta e cinco, quarenta anos? Eu tenho vinte e um. O senhor não tem idade para que eu seja sua protegida.

Para sua surpresa, o duque chacoalhou a cabeça, exasperado.

— Ah, tenho idade mais que suficiente para ser seu guardião. — Estava determinado. — De qualquer modo, você não tem opção. E seja o que for que pensarem, vão aceitá-la porque eu assim o exijo.

Françoise não queria permanecer sob aquele teto mais do que uma noite. Apenas uma! E mesmo isso poderia ser perigoso. Tinha a sensação de que não deveria ficar próxima dele, ou terminaria fazendo algo terrível. E ainda assim, outra parte dela queria fazer aquilo. Por quê? Estaria com medo de cair em algum truque do perverso?

Sentia certa urgência em agir. Mas o que fazer? Sabia que aquela noite seria crucial para o seu destino, só não compreendia a razão disso. Tinha que sobreviver, fazer o que devia ser feito e se afastar. Talvez fosse sexto sentido ou algo misterioso, mas uma vozinha vinda de seu interior gritava que um homem tão atraente, tão perigoso quanto o duque poderia partir seu coração da pior maneira possível.

Tentou clarear a mente.

Não podia correr o risco de se apaixonar por monsieur Le Duc. Ele pertencia à nobreza, era do tipo que sempre desprezara, que fugia das conseqüências de seus atos, irresponsável. Levava a vida como se não houvesse o Reino do Terror a seu redor, sem se importar com o esmorecer da esperança nos ideais da Revolução.

Levantou o olhar e descobriu que ele a estivera observando o tempo todo.

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Resignada, sentou-se na poltrona.

— Muito bem, aceito sua bondosa oferta.

— Nunca sou bondoso. — O duque esticou-se em seu assento e balançou a sineta.

Gastou materializou-se ao seu lado.

— Sim, Vossa Graça?

— Leve mademoiselle... — Percebeu que ainda não sabia seu nome e olhou para ela.

— Suchet.

— Ah, sim. Leve mademoiselle Suchet a um quarto adequado, para que possa se refrescar antes do jantar. Um quarto no lado oeste, por gentileza. — Lançou um olhar cortante a Gaston. — Suponho que poderia procurar uma criada rapidamente?

O mordomo não demonstrou consternação pela estranha ordem. Na verdade, pareceu seguro e... contente.

— Por certo que sim, Vossa Graça.

— Ah... Nada fora de seu alcance. — Parecia desapontado.

— Não, Vossa Graça. — Fez uma reverência. — Se mademoiselle puder me acompanhar...

Como ele tentaria se passar por seu guardião quando até seus criados sabiam que ignorava o nome dela, Françoise não tinha idéia. Talvez eles fossem forçados à discrição por simples medo do patrão.

— E Gaston, chame Fanchon aqui amanhã à tarde para cuidar do necessário para a jovem. Gaston empalideceu.

— Ah, enfim uma tarefa digna de seus talentos, percebo! — O duque virou-se como se eles não existissem e terminou seu brandy de um só gole. Françoise seguiu o mordomo para fora do aposento, enquanto este parava para sussurrar algo ao jovem porteiro que os admitira na casa. O belo rapaz, com uma trança de cabelos vermelhos, assentiu e apressou-se para os fundos da casa.

Gaston fez-lhe uma reverência, seu rosto neutro.

— Mademoiselle! Então subiu a grande escadaria.

Françoise o acompanhou. Não tinha escolha. Estava prestes a tornar-se, pelo menos por uma noite, a protegida do duque d'Avignon.

Então, que Deus também a protegesse!... Só Ele poderia fazê-lo...

Henri Foucault, duque d'Avignon, encarava a porta fechada. Que diabos estava pensando? A jovem era uma inocente, pelo amor de Deus! E isso era uma receita para o desastre. Ela se apaixonaria por ele. As mulheres sempre faziam isso. Embora a moça fosse atraente, jamais flertava com inocentes. Olhou para a pintura sobre a lareira, representando uma caçada. Século quinze. Fora na época em que aquela pintura ainda estava úmida na tela que aprendera sua lição sobre inocentes...

Quando se casara com Cerise de Havilland, buscando alívio para seus dias de mercenário andarilho. Ele se encantara com a jovem, e fora correspondido;

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entretanto, na noite de núpcias, a moça se matara. Não suportara a idéia de conviver com um monstro, algo que não se encaixava em sua inocente visão do mundo. Num instante, apontava a faca para Henri; no seguinte, para si mesma, e ele não tivera tempo de agir para salvá-la.

Henri fechou os olhos, lutando contra as terríveis lembranças. Depois daquela tragédia, desistira de ir para a cama com inocentes. Também não ficava com uma mulher por tempo suficiente para que ela conhecesse seus segredos. Uma vida estável de amor e respeito mútuos era um sonho irrealizável para alguém como ele. Sua espécie não fora feita para laços eternos. Sua própria mãe o abandonara ainda na puberdade, quando seus poderes se revelaram. Filhos eram tão raros para sua espécie que eram quase um milagre e, mesmo assim, quando se desenvolviam completamente, os pais obedeciam à regra estabelecida pelos Anciãos que dizia que deveriam viver apenas um em cada cidade, e os abandonavam. Essa regra era a segunda mais importante, abaixo apenas da que proibia a transformação de humanos através da partilha do Companheiro. Afinal, se vampiros se juntassem em uma cidade, ou criassem outros de sua espécie, logo seriam descobertos pelos humanos, e o tênue equilíbrio entre os que bebiam sangue e aqueles que o cediam seria rompido.

Não que ele não cedesse a suas vontades. Mas se atinha a criaturas mundanas, viúvas, atrizes, mulheres que não esperavam mais do que estava disposto a dar dinheiro, prazer e a ilusão de que a beleza delas nunca desbotaria. E ele lhes dava prazer. Sabia como fazer isso. Sua realização não poderia mais ser chamada de prazer, mas mantinha seus demônios sexuais sob controle. E sempre, era Henri quem as deixava. Acreditava ser de sua natureza. Ou talvez estivesse se vingando do mundo pelo abandono materno. Era o carma de sua espécie. Não podia ignorar a mais dura lei dos vampiros, não importando quanta vontade sentisse de ter algo estável.

Não vinha ao caso.

O que importava era que não contaminaria o mundo mais do que fosse necessário. Não podia evitar mostrar a alguns a sua natureza. Era como fazia seu trabalho, afinal. Mas podia recusar-se a macular a inocência. Entretanto, agora tinha uma inocente em sua própria casa. Podia ouvi-la falando com a criada que Gaston havia contratado. Teria que achar algum jeito de se livrar dela. E rápido...

Capítulo II

Quando Gaston se retirou, Françoise estava não no luxuriante quarto que esperava encontrar, mas em um aposento elegante e confortável. Toques de dourado iluminavam as curvas intrincadas da mobília branca e delicada. Havia uma penteadeira em um canto do quarto, um grande guarda-roupa do outro lado. A cama tinha um cortinado transparente azul, e era coberta com uma colcha em brocado.

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Dúzias de travesseiros subiam em uma pilha alta contra a cabeceira. Os tecidos eram em azul-claro, e os grossos tapetes em tons de azul e cinza. Tudo parecia muito... feminino.

Françoise sentia-se indesejada. O que todos deveriam estar pensando dela? Vagou da cama para a penteadeira, tocando escovas em prata e pequenos vidros coloridos que cheiravam a perfume caro. Seus sentidos estavam um pouco amortecidos com tudo o que ocorrera. Sentia como se o mundo tivesse perdido as cores, de algum modo, ou o sabor.

Uma batida soou à porta, trazendo-a de volta á realidade.

Françoise estremeceu e disse.

— Entre!

Uma jovem surgiu no aposento, fazendo-lhe uma reverência.

— Annette, ao seu dispor, madame — apresentou-se, ofegante. — Devo ajudá-la a vestir-se para o jantar.

Era ruiva, rosto redondo com cílios claros e queixo também arredondado.

Françoise sorriu melancolicamente.

— Acho que será um trabalho rápido. Minhas outras roupas foram destruídas no incêndio. — Os criados deviam saber que morava na casa ao lado, que acabara de ser incendiada.

A garota sorriu, bondosamente.

— Não se preocupe com isso, madame. Seu banho está sendo preparado, e antes que esteja seca, terei todo o necessário arrumado. Esta não é minha especialidade, mas espero poder ajudá-la.

— Não sou uma nobre, Annette! — Apenas alguém sem outro lugar para ir! — Não me precisa me tratar com tanta deferência.

Annette abriu o guarda-roupa, mostrando o interior repleto de trajes elegantes.

— Tenho certeza de que será perfeita. Você é uma criada aqui? — Parecia a explicação mais plausível para sua súbita aparição.

— Não, não, mademoisellel O duque não possui criadas. Trabalho em uma casa próxima daqui. Ou trabalhava, até alguns minutos atrás.

Françoise piscou, sem saber o que perguntar primeiro.

— Então você... se demitiu, sem avisar nada? Annette riu.

— Não acredito nem que a madame tenha percebido que eu saí. Mas quando meu irmão me disse que o salário seria o triplo se eu estivesse aqui em cinco minutos, não perguntei mais nada.

— Seu irmão?

— O porteiro daqui — declarou Annette, orgulhosa. — Seu nome é Jean. Está com o duque há quase três anos, e todos sabem que ele contrata apenas os melhores.

Então foi assim que Gaston contratou uma criada em tão curto prazo. Não era

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de espantar que Avignon achasse uma tarefa difícil contratar uma criada, uma vez que ele mesmo não possuía nenhuma

— Você não tem medo de servir aqui?

— Bem... — Annette pareceu em dúvida por um momento, depois deu de ombros. — Jean diz que o diabo, digo, Sua Graça, não me importunará enquanto a senhorita estiver aqui.

Que bom, isso a fazia se sentir bem melhor! Françoise ironizou em pensamento.

Mas suas divagações foram interrompidas quando a porta se abriu, e dois criados entraram com uma banheira imensa, colocando-a próxima à lareira. Seguiu-se uma fila de criados carregando baldes de água. O quarto se encheu de atividade, depois se esvaziou. Antes que percebesse, só haviam restado Annette e a banheira fumegante, sabonetes de lavanda e toalhas grossas.

— Agora, deixe-me ajudá-la a tirar este vestido repugnante — reclamou Annette, desabotoando e desamarrando o traje coberto de fuligem.

Françoise obedeceu e, uma vez livre das roupas, entrou na água fumegante.

— Obrigada. — Suspirou, afundando até a nuca. Era o Paraíso! Seu cabelo ainda cheiraria a fumaça, tinha certeza, mas o restante estaria limpo e perfumado.

Françoise deixou-se ficar na água tépida o máximo que pôde e só saiu quando começou a esfriar.

Annette estava escolhendo uma roupa do armário.

— Este parece que vai servir na senhora. — Levantou um vestido vaporoso em azul-celeste, com laço no decote. Françoise piscou. Nunca possuíra um vestido tão caro na vida. Aquele modelo não pertencia à moda severa da Revolução. Apesar de não ser atual, também não fazia parte dos excessos pré-revolucionários. Não havia tecido sobrando, ou mangas na altura dos cotovelos com franzidos. O decote era quadrado, com mangas longas e translúcidas e punhos justos, Era um visual original e belo. Nunca vira nada assim.

Apesar disso, parecia-lhe familiar. Esticou a mão para tocá-lo.

— Ah, céus! — O tecido era seda. O que um vestido como aquele estava fazendo na casa de um homem solteiro?

Puxou a mão de volta. Só havia uma resposta. Olhou à sua volta, para a decoração feminina e os vidros de perfume de cristal lapidado. Que estúpida ela era!

— Meu vestido será suficiente. — Doeu-lhe dizer aquilo.

Annette arregalou os olhos.

— A senhora não pode usar aquela coisa imunda para o jantar!

— Eu... eu não quero usar as roupas que ele mantém para suas... companhias. — Soou preconceituosa até para si mesma.

— Pois eu daria meu braço direito para usar um vestido desses, tanto faz de onde ele viesse. — As mãos de Annette acariciavam as mangas quase transparentes. — E Sua Graça item um gosto impecável — continuou ela. — Não é aconselhável estragar seu jantar aparecendo naquele vestido sujo.

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— Jantarei no quarto. Annette a fitou estupefata, mas aquiesceu.

— Por certo, madame. Direi a Sua Graça que não aproveitará sua generosa oferta para jantar com ele, que, segundo Jean, janta sozinho tantas vezes... Bem, espero que esteja acostumado.

O duque pervertido, jantando sozinho? Não era possível. Mesmo assim, seria rude recusar seu convite, ainda que, como ele afirmara, não o tivesse feito para ser gentil. De qualquer modo, salvara-a de Robespierre e de madame Croute.

Poderia ele fazer o mesmo por madame LaFleur? A idéia surgiu em sua mente. Por que não? Ninguém mais o conseguiria. Todos diziam que o duque não se importava com quem quer que fosse, porém ele intercedera a seu favor...

No entanto, o bom-senso lhe dizia que deveria ser cautelosa. Precisava descobrir por que ele dera ouvido à sua súplica. Se soubesse a razão, talvez o convencesse a fazer o mesmo por sua amiga.

— Annette, você está certa. Ajude-me com o vestido, jantarei com o duque.

Henri pôs um pé sobre o bastidor da lareira, na sala de jantar. Ele a enviaria para a Inglaterra; só deveria esperar até o fim de semana para embarcá-la com os outros. Não confiava que Robespierre não a levaria presa no caminho para Le Havre apenas para contrariá-lo, se a mandasse antes, por sua própria conta.

Contudo, ela estava correta quanto à Inglaterra. Sem conexões ou emprego, emigrar era um negócio arriscado, ainda mais para uma mulher sozinha...

Bebericou o vinho, perturbado. O relógio d'água colocado sobre a moldura da lareira badalara havia cinco minutos. Gostava de jantar pontualmente às nove. E naquela noite ainda teria muito o que fazer.

Bem, daria algum dinheiro à moça. O que mais poderia fazer? Tinha evitado que ela perdesse a cabeça na Place de Ia Revolution. Dali por diante, ela é quem teria de se cuidar.

Tamborilou o dedo na moldura. O jantar prometia ser maçante, apesar de ela tê-lo surpreendido com a língua afiada. Perderia o ânimo e a fala em breve, assim que fosse hipnotizada por seu magnetismo. As mulheres sempre perdiam.

O inferno era que, com ela por perto, nem mesmo o jantar seria um refúgio. Ao longo dos anos, apesar de sentir-se solitário, começara a apreciar sua privacidade às refeições. Contrastava bem com a solidão nefasta e disfarçada que sentia ao mesclar-se à multidão de festeiros entediados e inúteis. Os criados julgavam-no louco por comer sozinho. Pois que achassem.

Uma criatura como ele estava além do medo. Seria fiel ao caminho que escolhera. Era uma questão de disciplina, e isso Henri ainda tinha. Mas a esperança desaparecera havia séculos. Vira muitas coisas em sua longa existência, e tudo terminava sempre do mesmo jeito, não importava o que a pessoas fizessem. Então, perdera a esperança de que o Bem triunfaria sobre o Mal de qualquer natureza. O que mais havia a fazer, a não ser ficar louco?

De súbito, a porta à sua direita foi aberta, trazendo-o ao presente.

Um dos criados conduzia a jovem mais bela e surpreendente que vira em toda a sua existência secular. Céus, havia quanto tempo não se surpreendia?

Passava apenas alguns minutos das nove quando Françoise desceu as

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escadas curvas da mansão do duque, seguindo Jean. Sentia-se como outra pessoa naquele vestido, ainda mais porque Annette não encontrara um fichu para cobrir seu decote. Ao menos, nenhum que combinasse. Não usava jóia, é claro, mas o vestido em si já lhe parecia uma preciosidade. Os sapatos que Annette conseguiu não serviam perfeitamente, mas um pequeno lenço colocado por dentro do cetim branco tinha resolvido o problema. Seu cabelo exibia outra vez os cachos anelados erguidos na frente e um pouco mais longos na nuca.

Ele não tem interesse em alguém como você, recitava para si mesma. Só está aqui para ver se há alguma chance de salvar madame.

O criado abriu-lhe a porta.

— A sala de jantar, mademoiselle.

De novo, a sala não era o que esperava. Pensara que o duque preferiria uma decoração grandiosa. Em vez disso, o recinto era aconchegante como a biblioteca. O teto era de madeira entalhada. Uma mesa redonda refletia o candelabro, no qual brilhavam seis velas, em vez de vinte ou trinta, como ela imaginara. Um bufê estava servido com várias bandejas de prata cobertas.

E, inclinado contra a lareira, o pé sobre a proteção da grade, estava o duque, taça de vinho nas mãos. Ele não era um leão. Parecia mais com uma pantera negra, insinuante e poderosa. Perigoso. A sala quase... estremecia com sua presença.

Cuidado! Não deixe que esse bonitão confunda você, preveniu-a a voz que agora teimava em ecoar em sua cabeça.

Enquanto se vestia, estava com uma sensação muito estranha. Que o duque era uma ameaça, estava óbvio. Mas não se tratava disso. Tudo parecia... familiar, de algum modo. Aquela estranha sensação de déjà vu que tinha às vezes costumava durar apenas um instante. Mas não conseguia se livrar da impressão de que conhecia aquele homem, e de já haver passado por tudo aquilo.

E que não terminava bem.

Henri Foucault observou sua entrada. Piscou uma, duas vezes.

— Bem, isso foi um progresso!

Françoise corou. Como podia? Tinha de parecer forte, não ingênua e vulnerável.

— Qualquer coisa seria um progresso. Outro criado juntou-se a Jean para descobrir as bandejas no buffett.

— Espero que não se importe com um jantar informal. Gosto de dispensar os criados, sempre que posso.

Seja educada. Faça-o falar.

— Estou abusando de sua hospitalidade. O modo que preferir está ótimo para mim.

Avignon pareceu... Magoado? Bem, talvez tivesse soado falsa.

— Muito bem. Prefiro mesmo a informalidade. — Respirou fundo e sorriu. — Essa era uma das melhores partes de morar com madame LaFleur. Ela me tratava como uma amiga. Então, com freqüência, jantávamos informalmente. Acho confortável. — Mentirosa. Como alguém poderia estar confortável com um demônio

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atraente como Avignon pronto a roubar ..sua alma?

Agora quem estava sendo dramática? Roubar almas. Os pensamentos pareciam estranhos a ela. Henri manteve os planos, mas o semblante magoado foi substituído por outro... Curioso, talvez? Os criados retiraram-se com as coberturas das bandejas, após servirem vinho branco em duas taças e tinto em outras duas, deixando para trás as garrafas. O duque pegou um prato e começou a se servir de pequenos bocados. Ela o imitou.

Ele a olhou carrancudo, pegou o prato e colocou-o de volta à mesa.

— Permita-me — disse com firmeza.

O duque iria servir? Que estranho. Não lhe perguntou o que ela gostaria de comer, escolheu por ela. Isso combinava com ele. O buffett ostentava pratos de ostras em vinagre com ervas, frango à Dijon, filé, entre uma dúzia de outras coisas.

Françoise não via tanta comida em um só lugar fazia muito anos. E havia uma vasilha de sal.

— O senhor... fez um belo arranjo — murmurou, buscando palavras. Sal era valioso naqueles dias. Começou a salivar de antecipação.

— Ah, vejo que está admirando minha pequena importação. É sempre bom ter do melhor.

— Sal, brandy, água de poço. Como o senhor consegue esses luxos?

— Bem, a água é fácil. O sistema de poços me pertence, ao menos até que sejam nacionalizados.

Verdade? Aquilo foi surpreendente. Ele os comprara, ou havia perfurado?

— Que Deus proteja os ricos de beberem da água do Sena, como todo mundo.

Ele observou-a de soslaio, os olhos inescrutáveis.

— Aqueles que pagam pela água financiam poços para aqueles que não podem pagar. O mais recente a ser aberto fica acima do rio, próximo dos matadouros.

Françoise mordeu o lábio.

— Não achei que fosse tão generoso.

— Generoso? Não. Isso evita que vandalizem meus poços.

Ela deveria saber. Quando o prato estava cheio, ele colocou-o à mesa e puxou uma cadeira para que sentasse.

— Obrigada.

A mão nua roçando nos ombros dela enquanto Françoise se acomodava. A sensação correu até os ossos. Arrepios subiram-lhe pelo pescoço, viajando por todo o corpo. Nunca havia sentido nada parecido.

Henri voltou para o buffet, esfregando discretamente a mão que a tocara no casaco. Teria se sentido da mesma forma que ela? Seu casaco era de cetim, de um azul tão escuro que parecia preto. Era musculoso. Difícil não pensar no corpo que se movia debaixo das roupas enquanto ele enchia seu prato. Seus músculos não eram soltos, frouxos. Saltavam. Ela podia ver as veias que corriam pelo seu bíceps... A

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imagem a arrepiou.

De onde tirava pensamentos libidinosos como aquele? As únicas vezes em que vira homens sem camisa fora a distância, durante a colheita do feno, na propriedade da tia. Ainda assim, podia imaginar como os músculos de Avignon seriam, se pudesse vê-lo nu, é claro...

Pare com isso!, ralhou consigo mesma. Era como se já soubesse como ele seria, nu.

O duque sentou-se próximo a ela com seu próprio prato. Muito próximo, aliás. A energia contida nele zumbia e ecoava nas veias de Françoise. Ele trouxera a tigela de sal com sua pequena colher prateada.

— Fique à vontade — murmurou —, mas Pierre ficará desolado se não provar antes.

Ele não parecia do tipo que dava graças. O diabo não agradeceria a Deus, agradeceria? Então, Françoise proferiu um breve agradecimento em voz baixa e voltou a atenção para o próprio prato. Gomo não percebera que estava faminta? Tudo estava delicioso. Não havia motivo para adicionar sal. Depois de algum tempo, desacelerou o suficiente para notar que seu acompanhante apenas brincava com a comida. Ela pigarreou.

— Meus cumprimentos ao chef.

— Eu deveria chamá-lo, para ver o seu prazer.

Françoise deu de ombros.

— Com a Revolução, as coisas ficaram difíceis. Madame LaFleur tinha que controlar seu dinheiro com cuidado após a morte do marido.

— As coisas sempre ficam difíceis quando o homem comum enlouquece. Tudo desce ao mais baixo denominador comum.

— Tive tanta esperança, no princípio — confessou ela. — A situação era tão ruim, os impostos tão insanos, os padres tão venais... Pensei que se seguíssemos os princípios de Rousseau e Voltaire...

Ele fez uma careta e balançou a cabeça.

— Nunca funciona.

— Vossa Graça é monarquista, claro. — Devia ser, e com grandes propriedades sem dúvida confiscadas pelo povo.

— Os monarquistas são tão idiotas e ambiciosos quanto os nossos bons "cidadãos". Medo e ganância são as únicas verdades. — Ele bebericou o vinho, tentando ver se a tinha chocado.

— Um homem como o senhor acredita nisso, sem dúvida. — Era estranho, mas uma parte dela também acreditava.

— Ahhh! E o que sua... experiência lhe diz de homens como eu?

Françoise sentiu-se corar. Ele a importunava porque era jovem e inexperiente. Na verdade, nunca conhecera ninguém como o duque. Mas não lhe daria a satisfação de admitir isso.

— Sua reputação é bem conhecida.

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— Mas que oportunidade única — Henri observou, cortando um belo filé que sangrava em seu prato. — Por favor, conte-me o que o povo pensa a meu respeito.

— Não... não devo ser eu a lhe dizer. — Concentrou sua atenção nas ostras.

— Ora, senhorita, com certeza pode saciar minha curiosidade em troca de minha hospitalidade esta noite?

Ele tinha que ficar relembrando-a de suas obrigações? Bem, havia algumas coisas que ela podia deduzir.

— Nesse caso, seu o fizer, o senhor não poderá culpar o mensageiro.

— Muito justo.

— Bem... O senhor é tido como cruel.

— Verdade. — Isso não pareceu incomodá-lo.

— E um libertino, é claro. — Ele também não se irritou com aquilo. — Por causa das mulheres. — Françoise sentiu-se obrigada a explicar.

— Claro, por causa das mulheres.

— E a jogatina.

— Tem isso, também.

— E o fato de que nunca volta da boêmia antes do amanhecer.

— Puxa, as pessoas notaram isso? Estou lisonjeado!

De fato! Se o duque admitia tudo com tanta cordialidade e descaso, ela teria de ir mais fundo para que visse seus erros. Ganhou tempo comendo um pouco do espinafre ao creme.

— O senhor é chamado de "duque pervertido". — Aquilo já era maldade. Só ela o chamava assim.

— Já me disseram.

Ora, ele não podia ter ouvido aquilo. Estava brincando com ela; a expressão em seus olhos era quase um riso.

— As mães escondem suas filhas do senhor. — Madame também a tinha alertado.

— Um alívio.

— Até os homens, creio, têm um pouco de medo do senhor. — Robespierre, ao menos, parecia ter.

— Conveniente, de fato.

Françoise estava ficando nervosa.

— Então me pergunto, por que as pessoas o temem tanto? — Bateu o garfo vazio nos lábios. — Poderia ser algo que tenha feito no passado, tão horrível que ninguém fala sobre isso?

Ele a observava, cuidadoso agora.

— Ou... pode ser por o senhor parecer guardar muitos segredos. Segredos tanto atraem as pessoas quanto as assustam.

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Henri piscou duas vezes. Então, tomou um gole de vinho.

— Acho que as pessoas entediadas querem tanto que exista algum segredo, que criam um, se ele não existir.

Ora, aquela resposta não era o que se podia chamar de uma negação.

— O senhor afirma não ter segredos?

— Todos nós temos, criança. — Ele a examinava por sob os enormes cílios. — Todos os seres deste planeta mentem. Todos tentam conseguir o que desejam, sem revelar o que os move.

Françoise inspirou. Saberia o duque o que ela, de fato, desejava? Alguém tão cínico se esforçaria para ajudar madame? Não deveria ir muito rápido.

— Pergunto-me por que ficou na França. Por que não abandonar o país à própria insanidade? Em especial quando o perigo se deve à sua origem?

Ele baixou a taça.

— Não faça de mim uma figura romântica. Não corro perigo.

Sem sombra de dúvida, agia como se o Comitê e a multidão não o ameaçassem.

— Como pode ser isso, se o senhor não cede a nenhuma das regras do Comitê?

Ele ergueu as sobrancelhas, surpreso, não sabia se pelo fato de ela ousar fazer a pergunta ou por não saber a resposta.

— Por que deveria ceder?

— Como pode não fazê-lo, e continuar longe do cárcere?

— Ah! — Henri a estudou. — Talvez este seja o meu segredo.

— Sou capaz de apostar que não é o único.

— Parece-me que deveria ser grata, já que minha permanência... digamos, "encorajou" Robespierre a perder interesse em você hoje.

— Por quê? Por que ele me liberou?

— Ah, talvez porque sejamos velhos amigos, ele e eu.

Improvável. O pequeno advogado, minucioso, nunca deixara ninguém se aproximar em sua vida, nem mesmo Marta Croute, que diziam ser sua amante.

— Por que se incomodou comigo, hoje? — Françoise insistiu.

— Achei muito divertido roubá-la debaixo do nariz de Robespierre, quando ele sabe que você não é minha protegida. — Sorriu. — Devo convidá-lo, e àquela mulher, provocadora da turba... Como é mesmo o nome dela?

— Marta Croute.

Será que a salvara apenas para espicaçar Robespierre e madame Croute?

— Sim! Devo convidá-los à minha pequena recepção na quarta-feira, em que apresentarei você ao que restante da sociedade. — Fez uma pequena careta. — Minhas relações ficarão escandalizadas com eles, o que será divertido por si só.

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Era impiedoso. Françoise percebeu que ele nunca tentaria ajudar madame. Sentiu os olhos marejar.

Aquela impressão de urgência a tomou. Havia algo terrível que devia fazer. A dor atingiu sua cabeça. Levou os dedos às têmporas, incapaz de pensar.

E o que havia para pensar? Não poderia pedir ao duque perverso que salvasse sua amiga. Ele acabaria colocando-a para fora de sua casa no meio da noite pela ousadia. E deveria tentar, mesmo assim. Que outro modo haveria para ajudar madame?

— Não se sente bem, mademoiselle?

Olhou para cima, para descobri-lo encarando-a. O que apenas fez a cabeça doer mais.

— Eu... Estou com dor de cabeça. Ele suspirou, parecendo entediado.

— Talvez então seja melhor recolher-se a seu quarto. Estalou os dedos, e mesmo sem bater a sineta, a porta se abriu.

Jean colocou a cabeça para dentro.

— Sim, Vossa Graça?

— Acompanhe mademoiselle até o quarto. Talvez sua criada possa encontrar-lhe alguns sais.

Tudo o que ele queria era livrar-se dela. Nunca ajudaria madame.

Françoise se levantou, fez uma breve reverência e saiu rápido da sala, não conseguiria ficar nem um instante sequer perto daquele homem tão insensível.

* * *

Henri afastou-se da mesa. Em um momento de fraqueza, a salvara, e agora estava preso a ela até que pudesse se livrar. Que lhe servisse de lição. Uma dor de cabeça, a desculpa mais velha do mundo! Levou sua taça e a garrafa até a janela. A sala de jantar dava para um pequeno jardim com uma pereira no centro, cercada por gerânios.

Mas tinha de admitir que ela tivera um dia e tanto. A casa em que morava fora queimada. Podia inclusive considerá-la seu lar. Sua protetora, presa. Ela mesma quase fora para a prisão. O que eqüivalia a uma sentença de morte. Então, foi tomada como protegida por alguém que sabia muito bem não fazer o tipo benevolente. Talvez houvesse alguma desculpa plausível para ela recorrer à frase favorita das mulheres que não querem e não sabem lidar com a vida.

De fato, tinha esperado apenas a timidez irritante de uma moça muito jovem, que não sabia nada do mundo. Ela era inocente. Divertiu-se ao vê-la lutar para chocá-lo com sua reputação. Mas seu comentário sobre o segredo ser atraente fora estranhamente perceptivo.

Pena que passaria no mínimo uma semana até que pudesse embarcá-la no Maiden Voyage em La Havre. Podia apenas entregá-la agora a Jennings e deixar que ele a mantivesse no depósito próximo ao Sena. Mas... Jennings e sua equipe, apesar da lealdade, eram uma companhia rude para uma donzela de vinte e um anos. Ademais, ela tinha coragem o bastante para tentar fugir ao que acreditaria ser

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um seqüestro. Poderia ordenar que a prendessem por quase quinze dias?

Suspirou.

Estava mesmo preso a tal Françoise. E todo aquele drama fazia sua própria cabeça doer.

Sacre Dieu! Estava amarrado a uma moça indesejável em casa. Podia ouvi-la soluçar mesmo agora, com sua audição sobrenatural. Bem, não tinha tempo para mademoiselle Suchet. Tinha trabalho a fazer. E deveria ser feito antes das três, para que aparecesse em uma ou duas casas de jogos antes do amanhecer. Céus, mas eIa o levava ao limite. Talvez o que realmente precisava era se alimentar aquela noite.

Drummond o esperava com sua capa, chapéu, bengala e as luvas. Seu lacaio deu-lhe apenas uma olhada, e seu próprio semblante ficou neutro. Homem sábio. Henri conteve-se para andar vagarosamente, enquanto cruzava o aposento e os criados fechavam a porta atrás dele.

— O que é aquilo? — Françoise indagou, preparando-se para tirar o vestido.

— Ah, mademoiselle, Jean não lhe disse? Ele a viu deixando isso cair nos limites do parque, então trouxe para a senhorita. Devo abrir?

Estava prestes a dizer que não era sua, quando um arrepio de reconhecimento lhe desceu pela coluna. Talvez fosse.

— Não... não, obrigada. Eu mesma faço isso depois. Após ajudá-la a se trocar, a criada saiu, deixando-a sozinha.

Ela pegou um candelabro e o levou até a penteadeira. A valise era estranhamente confeccionada; não tinha um fecho de metal que a trancasse. Em vez disso, possuía uma longa fila do que pareciam ser dentes de metal interligados, cruzando a parte superior. Em um lado, havia uma placa de metal. Nunca vira nada como aquilo, mas as implicações pareciam claras. Segurou a placa e puxou alguns centímetros para baixo da linha metálica. Os pequenos dentes soltaram. Incrível! Puxou de volta, fecharam-se. Parecia quase diabolicamente esperto. O couro era macio e maleável, tinha a cor de chocolate intenso, como uma sela antiga.

Com cuidado, puxou a placa de novo, desta vez, abrindo completamente.

Olhou o interior. Abriu mais a bolsa e segurou o candelabro. Viu o brilho de metal. Céus! Seria... Colocou a mão lá dentro e retirou uma bainha de couro. De um lado, sobressaía o punho duro, feito para mãos masculinas, e coberto em tiras de couro novo. Era uma espada, apesar de diferente das que ela conhecia. Os homens carregavam floretes, finos e mortais. Retirou-a dali. Viu que tinha mais de meio metro de comprimento e que era larga e brilhante. Dava uma sensação de... de força. Era óbvio que nunca tinha sido usada. Devo usá-la.

O pensamento a fez arquejar. A idéia de atingir carne com um instrumento tão pesado e afiado fez seu estômago se revirar. E em quem deveria usar aquilo? Deu uma risada nervosa. Não era forte o suficiente para golpear alguém com a espada. Uma onda de desapontamento a atingiu, quase como se fosse uma tristeza por ter perdido a força. Estranho...

Uma imagem cruzou sua mente: ela mesma, levantando alto a espada.

O duque saiu das sombras e ela, com o coração na boca, desceu a espada

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em ângulo. O som da lâmina penetrando a carne reverberou pelo seu braço. Sangue surgiu na gravata branca do duque.

Françoise arfou e desvencilhou-se da visão. Seu estômago embrulhou. Em que estava pensando? Estaria louca? Nunca tentaria matar o duque, nem ninguém, não importava o quão desprezível fosse. Colocou a espada de volta na bainha. Estava se deixando levar.

Controle-se, recriminou-se. Pense em outra coisa.

Pôs a mão na bolsa de novo e encontrou... Roupas? Segurou um paninho contra a luz. Era brilhante, preto e... flexível. Buracos para as pernas. Ah, céus! Poderia ser uma peça íntima? Corou só de pensar. Aquilo não cobria nada! Não havia nenhuma fenda entre as pernas. A pessoa tinha de tirá-la completamente para usar o banheiro. Esticou o tecido outra vez. Como uma meia. Seria... tricotado? Impossível. O tecido era fino e sedoso.

A bolsa continha outras roupas íntimas. Uma, também preta, era confeccionada com o objetivo de segurar os seios. Mas isso deixaria a barriga completamente nua... Quem usaria uma coisa dessas?!

As amantes do duque, sem dúvida. Aquelas eram roupas de prostituta.

Procurou um pouco mais e encontrou dois conjuntos de... bem, o que quer que fosse aquilo. Um branco, outro rosa-claro. Também encontrou uma camiseta desestruturada, de tecido não tão fino, que chegava até as coxas. Olhou aquilo de novo. Por algum motivo, havia ali pequenos desenhos de ovelhas pulando sobre uma lua, cada uma usando um gorro. Debaixo daquelas peças, havia alguns frascos. Ela retirou um, tinha a forma de uma garrafa, mas não era feito de vidro. O material era opaco, em tom lavanda, com algo escrito nele. Cedia ao toque, e tinha um cheiro diferente. Isso a sobressaltou. "Pureology", dizia em um dos lados. O que significava aquilo? "Cuidado intensivo da cor. Complexo antidesbotamento. Xampu para volume." Virou o frasco, e pequenas mensagens cobriam o outro lado. O primeiro parágrafo estava em inglês, mas seus olhos foram atraídos para o seguinte, em francês.

"Para usar, molhe o cabelo. Depois, enxágue. Repita a operação."

Era sabão! Quem já ouvira falar em sabão líquido?

Espiou a bolsa outra vez e encontrou vários frascos, feitos do mesmo material, talvez dez deles, com cheiro de álcool que revelava que deveriam ter efeito medicinal.

Mas que valise estranha! Roupas de prostituta, uma espada, sabão para os cabelos e um monte de... Remédios?

Quem usaria objetos tão disparatados? E tão estranhos em si mesmos, garrafas que cediam ao toque, roupas maleáveis que não pareciam ser feitas de tecido.

Por que os criados não levaram a valise para o duque? Por que o porteiro achou que ela a tivesse derrubado? Nunca vira aquela mala antes.

Sim, você viu!

A sensação foi tão forte que a varreu, em ondas. A náusea a invadiu. Abaixou a cabeça por um instante, até que passasse.

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A mala era do Mal. Tinha que se livrar dela.

Uma pontada de dor atingiu sua cabeça mais uma vez. Não poderia fazer isso. Não podia se livrar da valise, quando não tinha certeza das conseqüências. Minha nossa, não tinha certeza de nada!

Talvez seu propósito possa esperar até que tente salvar madame...

A dor esmoreceu. Olhou à sua volta. Ainda que não pudesse se livrar da bolsa, não queria que fosse encontrada. O guarda-roupa?

Não, Annette a veria. O quarto de vestir?

No fim, ficou com o lugar testado e aprovado havia milhares de anos, e empurrou a valise para debaixo da cama, sob a cabeceira. Apagou as velas e entrou sob o edredom. Tinha certeza de que não pregaria os olhos em uma casa como aquela, esperando o dono voltar da boêmia.

Pensamentos giravam em sua mente. O incêndio... Madame Croute clamando por sua morte. O sentimento de completude que a acompanhara o dia todo. O déjà vu que não a largava. E agora aquela imagem, de cortar o pescoço de Henri com a espada. Seria uma visão? Parecia tão real... Mas ela nunca faria algo do tipo. Assim esperava. Estaria enlouquecendo? Talvez, o fato, era que se sentia como se fosse duas pessoas completamente diferentes, vivendo em um mesmo corpo.

Ela estava falando com Avignon. Apenas conversando. E foi a experiência mais aterrorizante que já tivera. Sua alma estremecia enquanto olhava a boca carnuda. Não conseguia ouvir o que estava dizendo. O copo que ele segurava captou a luz, brilhando. O copo era mau. Sabia disso, e o homem que o segurava era ainda pior. Aí ele a encarou e derrubou propositalmente o copo, que se espatifou em espalhou milhares de pedaços. Um em especial desafiou a gravidade, voltando para cortar a mão dele.

O sangue, vermelho e brilhante, apareceu em seu pulso.

Como se observasse tudo de fora, ela viu-se estender a mão para tocá-lo...

* * *

Françoise se assustou, levando a mão ao peito para conter as batidas aceleradas de seu coração. Arquejava em busca de ar, enquanto o medo a invadia. Que tipo de pesadelo era aquele? Estava com medo de um copo?

Forçou-se de volta à realidade. Estava na casa do duque d'Avignon. Estava abafado ali... Não era de espantar que não conseguisse respirar. Levantou-se e foi para a janela, onde um céu mais claro espiava entre as cortinas. Ela as fechou.

As árvores no parque em frente pareciam vivas com os pássaros, cujos cantos sonolentos prenunciavam o nascer do sol. Criados já se apressavam para chegar ao mercado. Carruagens rugiam pelas ruas laterais. Cavalos eram exer-citados nos caminhos do enorme parque. A cidade explodia em barulhos e odores, embora o dia mal tivesse começado. Aquela era a Paris que ela conhecia e amava.

Paris fora tão estranha e esmagadora quando chegara da propriedade de madame Toumout em Provença. Agora, era onde se sentia em casa.

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Então o viu, bem abaixo de onde se encontrava. Destacava-se dos outros, ainda mais pelo jeito de andar, despreocupado como se passeasse, enquanto saía da escuridão do outro lado do parque.

Os lábios dela estreitaram-se em uma linha fina. Só podia ser o duque. Havia acordado cedo várias vezes para ver seu retorno e sonhar com o dia em que ele desistiria de seus hábitos depravados para revelar seu amor pela garota simples que ela era, a quem juraria amar mais do que à própria vida. Como se sentia idiota agora. Nem mesmo gostava dele!

Bem, não tinha de gostar. Na verdade, o que precisava era conseguir fazê-lo interceder a favor de madame LaFleur. Observou-o desaparecer sob a arcada sob sua janela.

Não havia tempo de se vestir. Avignon estaria a caminho da cama. Enfiou um escandaloso robe vermelho. Apressando-se para o hall, tentava pensar em algum argumento válido para o duque.

Lá estava ele, subindo as escadas. Mesmo agora, com sua mente concentrada em madame e em seu pedido, a energia que reluzia ao seu redor a deixava um pouco tonta.

— Vossa Graça. — Fez uma rápida reverência. Ele pareceu resignado.

— Você acorda cedo.

Ela parou no topo da escadaria, bloqueando-lhe a passagem. Dali poderia capturar-lhe o olhar. Aqueles olhos escuros... Mas não completamente negros, como pareciam a distância. De fato, eram os olhos mais estranhos que ela já havia encontrado. Pareciam com o céu noturno, pontilhado de brilhante de estrelas. Ninguém imaginaria que existisse neles tamanho abismo, a menos que chegasse tão perto quanto Françoise estava agora.

— Eu... eu queria falar com o senhor sobre madame. Ele ergueu uma sobrancelha.

— Outra hora.

— O senhor me ajudou...

Avignon a segurou pelos braços e a puxou para o lado. Seu toque queimou-a, mesmo através do vestido. Ele congelou, as mãos ainda ali. Françoise voltou-se para o olhos escuros e viu uma chama se acender ali. Aquele toque o teria afetado tanto quanto a ela? De repente, sentia como se o conhecesse desde sempre.

— Vossa Graça gostaria de algo antes de se recolher? Ambos se sobressaltaram ao som da voz de Gaston.

O criado olhou de um para o outro. A surpresa cruzou sua face, antes de voltar à neutralidade.

— Não, estou indo direto para a cama.

E com isso, passou por ela. Seus seios roçaram o braço direito dele, que virou a cabeça para olhá-la, como se preso pelo efeito daquele toque. Françoise estava muda. Sua língua parecia colada ao céu da boca. Aquele homem podia fazer sua feminilidade doer com apenas um toque.

Apressado, ele deu-lhe as costas e rumou na direção oposta ao quarto dela.

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Abriu a última porta à direita; devia ser o seu quarto. Um elegante cavalheiro em um casaco bem cortado apressou-se, vindo do que devia ser a escada de serviço dos fundos.

— Vossa Graça? — perguntou ele, seguindo Avignon. — Posso ajudar...?

A porta se fechou. Françoise sentiu como se uma luz fosse apagada. Olhou em volta, aturdida. Como poderia pedir-lhe que salvasse madame, se ele nem falava com ela?

— Esteja pronta a qualquer momento hoje, mademoiselle. — Gaston se inclinou.

— Para o quê? — perguntou ela, ainda um pouco tonta.

— Para sua reunião com La Fanchon, é claro! — Gaston sorriu sob seu delicado bigode. — Tenho certeza de que conseguirei arranjar uma.

Ele saiu, descendo as escadas.

Françoise voltou ao próprio quarto. Madame não seria condenada imediatamente. Levaria semanas até que fosse levada ao Comitê de Segurança Pública. E mais tempo ainda até que se juntasse ao desfile de condenados a caminho da Place de Ia Revolution.

Mas saber disso não diminuía o sentido de urgência; tinha que ajudá-la, antes que fosse tarde. Estaria em alerta, e na melhor oportunidade, trataria de confrontá-lo outra vez Gaston lhe dissera que seu senhor havia pedido-que lhe preparasse um banho. Françoise decidiu que deveria aproveitar a oportunidade para abordar o duque.

Se ao menos os criados não estivessem todos em volta do dele durante o banho...

Queria encontrá-lo sozinho, sem criados para colocá-la para fora, e o duque, por sua vez, seria incapaz de sair por estar nu. O simples pensamento suscitou a mais inesperada cascata de imagens sensuais que ela poderia ter imaginado.

Como sabia daquelas coisas?, perguntou-se, atônita. Era quase como se já o tivesse visto nu. E ela era virgem!

Não devia pensar nisso. Precisava se concentrar apenas em salvar madame. Esgueirou-se pela escada, o sangue afluindo para seu ventre, fazendo sua feminilidade pulsar.

Avignon nu... Ombros largos, peito viril, abdômen plano e...

Balançou a cabeça para banir os pensamentos, ao menos aqueles. Sabia qual era o quarto. Vira o entrar lá.

Escondeu-se no lado mais distante da porta para ouvir o que estava acontecendo no aposento.

O duque não estava sozinho. Podia ouvi-lo dando ordens para alguém. Seu lacaio, Drummond? Fosse quem fosse, respondia "muito bem, Vossa Graça", a cada comando. Como Avignon deveria amar aquela obediência nata. Nunca era desafiado, não é?

Ouviu passos se aproximando da porta pelo lado de dentro do quarto e ocultou-se às sombras no fim do hall. Um homem elegante, vestido com elegância

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imaculada, apareceu, descendo pela escadaria.

Ao perceber que o perigo passara, Françoise aproximou-se novamente e colou o rosto à porta. Podia ouvi-lo movendo-se lá dentro, mas parecia estar sozinho. Perfeito!

Estava quase tremendo. Pense em madame LaFleur. Entreabriu a porta e deslizou para dentro.

O quarto era amplo e decorado em tons de vermelho e preto. As cortinas estavam fechadas, mas seu olhar foi capturado pela figura em frente à grande banheira de porcelana. O roupão estava jogado sobre uma cadeira. Pelo menos, o duque estava de costas para ela. A luz dourada brincava sobre os ombros, nas curvas das nádegas, nas coxas musculosas.

Uma vibração fulgurante gritava que ele estava mais vivo do que qualquer um que já vira, mas que não se dava conta de sua presença. Contudo, logo a voz rouca se fez ouvir, desmentindo a impressão de que não sabia que havia alguém a observá-lo:

— A que devo esta honra, minha cara?

Françoise odiava tamanha insolência. Como sabia que era ela?

Henri se virou. Céus! Ele era incrível, másculo e belo na medida certa. Desconcertada, sentiu o ponto no centro da virilha pulsar de desejo.

— Era isso o que você queria?

Seu tom era calmo, entediado até. Bem, não que ele precisasse ficar embaraçado pelo seu corpo. Os pelos negros em seu peito largo, os mamilos pequenos e escuros, agora arrepiados, os bíceps, as faixas de músculos sobre o abdômen plano, a saliência do antebraço... Tudo incrível e... muito familiar.

Agitada, Françoise decidiu não olhar para parte mais interessante de todas. Pelo menos, não por muito tempo. Mas não precisou; sabia que os pelos em "v" apontando para baixo levavam a um órgão impressionante. E ele nem estava excitado.

Podia imaginá-lo ereto. Mãe de Deus! Nunca tivera pensamentos tão explícitos com um homem!

Conseguiu desgrudar os olhos dele, apenas para pousá-los sobre a cama. E pensou naquele corpo nu deitado ali, enroscado nos lençóis, com uma mulher... Com ela. Beijando-a, acariciando-a, como algo valioso para cuidar... amar...

Françoise balançou a cabeça, respirou fundo e voltou-se. Henri Foucault não se importava com ninguém, menos ainda com ela. Queria lhe pedir que usasse a influência que tinha com Robespierre para salvar madame, mas não conseguia falar.

Ele, por sua vez, estava ficando excitado, isso era evidente.

Queria correr para fora. Mas também queria ficar. Aquele homem era perigoso, não apenas para sua castidade, mas também para a sua alma. Françoise sentia isso. Uma parte dela sabia tudo e gritava para que se protegesse. A outra, não tinha tal certeza, mas era rebelde o bastante para querer saber.

Bem, não levara muito tempo para que ela se jogasse em sua direção. Não a entendia. Certamente, havia corado como uma donzela. Mas também tinha

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apreciado com franqueza seus dotes másculos, como se fosse acostumada a homens e às suas partes íntimas. Mesmo assim, ficara desconfortável e desviara o olhar. Mas quanto voltara-se para a cama, ele pôde vê-la imaginando todos os jogos de amor praticados ali. E começara a imaginá-los também. Um erro. Françoise podia estar usando aquele vestido sujo e vulgar, mas ainda assim, lembrava-se das curvas generosas reveladas quando se encontraram na escada. O corpo de Françoise era pequeno, mas exuberante. Sentiu seu próprio cheiro almiscarado na garota. Sempre podia sentir o cheiro quando elas o desejavam.

Viu-a se virar. Pensou que a reação dela à sua ereção fosse revelar se era experiente ou donzela. Enganou-se desta vez. Os olhos azuis de sua protegida eram uma estranha mistura de choque ingênuo e apreciação experiente. Ele a encarou, fascinado. Havia algo de cínico nela, mas existia também um halo de esperança, de quem acreditava em novas possibilidade.

Inocência? Ou a mulher mais mundana que ele jamais conhecera? Qual era a verdade que a bela Françoise ocultava? O que era ela?

Sacre Dieu, era sua protegida. O que estava pensando?

— Permite moi?

Olhou para o robe sobre a cadeira.

Ela voltou a si, anuindo.

Henri pegou seu robe e o vestiu. Puxou o cinto ao redor da cintura para cobrir sua ereção. A garota tentava encontrar voz para se manifestar. Pressentia o que ela iria dizer. Deixara de se surpreender com a humanidade havia muito tempo.

— Fui visitar madame LaFleur na prisão hoje. Finalmente a encontrei, na Conciergerie — revelou ela, como se fosse um desafio.

— Você o quê?

Como? Quer dizer que ela ousara vasculhar as fétidas prisões em busca da amiga? Aquilo exigia coragem. Por outro lado, também podia ter arruinado seus esforços para salvá-la, associando-se à idosa.

— As condições são aterradoras.

Ora, disso Henri sabia muito bem.

— Fui informado.

— Uma doença pode matá-la antes que seja guilhotinada. — Os olhos ficaram marejados.

Poupe-me das lágrimas, pensou Henri, com uma careta. Já vira o suficiente, falsas ou verdadeiras, para nunca mais querer vê-las na vida.

— O senhor poderia ajudá-la. Sei que poderia.

O pior era que sabia que Françoise tinha razão. Porém, ao falar, ironizou:

— Você me toma por alguém que não sou.

— Como assim? Por alguém influente, ou por alguém que se importaria o bastante para tentar? — desafiou-o Françoise.

Ah, além de tudo ela era persistente.

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— Escolha você — replicou Henri, com exacerbada frieza.

— Como pode ficar com seu sal, sua água de poço, e seu brandy, e não levantar um dedo para aliviar o sofrimento ao seu redor?

— Eu levantei um dedo para salvá-la — lembrou-a. — Não faça com que me arrependa.

Françoise engoliu em seco. Ouvira a ameaça velada na voz grave. Aquilo bastaria.

— E sou-lhe grata pelo que fez. Mas o senhor poderia fazer mais. Que tipo de homem é que nem mesmo tenta?

O rosto dele tornou-se uma máscara de ferro. Como ousava desafiá-lo após tê-la ameaçado? Insana! Quem ousaria desafiar um vampiro?

— Talvez um que não se interesse pelos outros.

O tom de voz deixava transparecer o tédio. Um monstro, quem sabe, uma aberração, mas não um homem.

— O senhor tem influência sobre Robespièrre.

Ah, ela não compreendia! A idosa estava fora do alcance de sua influência. Robespièrre jamais abriria mão da mulher, depois da prisão. Isso daria esperança aos outros prisioneiros. O único modo de salvá-la era como havia salvado os outros. Mas a senhora não se encaixava no padrão, o que atrairia atenção. E era sua vizinha. Eles fariam a conexão. Tentar salvá-la colocaria em risco todo seu trabalho pelos outros. Henri fez menção de dizer isso, mas calou-se. Não podia fazê-lo, é claro.

— O custo seria muito alto.

— Que custo? — pressionou Françoise. — Para o seu orgulho? Uma bagatela, no total.

— O que você sabe sobre isso?

Uma expressão de dor no rosto dela mostrava que sabia... de tudo, assim como ele. No entanto, a inocência prevaleceu.

— Não sou tão experiente quanto o senhor.— Estava embaraçada por sua ingenuidade, mas não desistiu. — Conheço o custo. A vida de madame. Sua alma pode ter muitas marcas do passado, monsieur Le Duc, mas isso apenas significa que não deve suportar outra.

Uma perspectiva ingênua que só um jovem que desconhecia a realidade defenderia.

— Você não sabe nada sobre almas marcadas.

— Sei, sim. — Parecia surpresa consigo mesma, então seus olhos se desfocaram no tempo e no espaço. — O senhor fica desconectado da humanidade. Acredita ser diferente, até mesmo um monstro, e por não conseguir mudar nada do que fez, ou sentiu, ou foi, sua única chance é ficar insensível à dor alheia. Porque, se não o fizer, nunca conseguirá amainar a sua própria dor, e isso, no fim, é o máximo que pode esperar.

Ele piscou, depois pigarreou, aturdido.

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— Se é assim que pensa, como... Como espera que eu me incomode com a dor de outra pessoa?

Ela franziu as sobrancelhas, refletindo sobre a questão.

Sim, minha bela, este é o seu problema em me convencer, não? E o meu é encontrar uma maneira de viver com o fardo que me tornei para mim mesmo.

— Simples — Françoise disse, lentamente —, acho que a única forma de superar o que fez a si mesmo, e aos outros, é decidindo abrir-se para o mundo. Sim. Determinação e altruísmo podem ser a única chance de cura para os seus males, Vossa Graça.

Henri deu um longo suspiro. Determinação era o que tinha usado para banir seus demônios por séculos.

— Não concorda?

— Não, não concordo. — Não agüentava mais. — Agora, vai me deixar tomar banho?

Françoise ainda estava pensativa.

— Mas eu acho que sim. — Relanceou-lhe o olhar e sorriu. — Note que, se acredito que alguém pode superar o cinismo e abrir-se para o mundo, então posso crer que me ajudará a despeito de sua natureza, e me esforçarei para que o senhor o faça. O que significa que não vou desistir.

Henri rosnou, exasperado.

— Discutirei isso com você durante o jantar, não enquanto me banho. É o bastante?

Ela fez uma reverência, os cantos da boca rosada curvando-se num sorriso, e deixou o aposento.

Inferno! Que tipo de camaleão havia trazido para casa? E como, diabos, uma garota simples e ingênua o conhecia tão bem?

* * *

Henri desceu as escadas meia hora depois.

Estava tenso, pois sabia que faria algo insano naquela noite, que poderia encurtar sua utilidade para os que sofriam e impossibilitar sua permanência em Paris.

E se perdesse seu propósito, poderia perder também sua alma. Então, por que o faria? Seria porque ela o desafiara? Ou porque ela parecia pensar que alguém poderia encontrar esperança, a despeito de quanto o tempo, ou a alienação o tivessem prejudicado?

Fechou os olhos com força. Era mais sábio do que isso. E mesmo assim, tentaria tirar a senhora de lá por ela. Não contaria nada à garota, isso apenas aumentaria os riscos. A pequena Françoise não tinha de saber sobre sua partici-pação naquele resgate. Então, apenas a afastaria esta noite e a evitaria até que tudo terminasse. Teria de ficar todo o tempo longe de casa. Merde!

Entrou na biblioteca. Françoise já estava lá, lendo um livro, ainda vestindo

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aquele vestido horroroso. O que o lembrou...

— Gaston me disse você perdeu a reunião com La Fanchon hoje.

Ela pareceu envergonhada.

— Peço desculpas por isso. Estava distraída quando ele me avisou o horário, e levei a tarde inteira para chegar até madame, depois que descobri onde a prenderam.

— Você não tem idéia do que terei de fazer para acalmar seu orgulho ferido.

Movendo-se como um felino, Henri caminhou até a mesa lateral onde estava o brandy e serviu-se de um copo. Gaston havia preparado ratafia também. Ergueu a garrafa e ofereceu à sua protegida.

— Parece que se dignou a atendê-la amanhã — falou ele, arqueando as sobrancelhas.

Françoise corou de leve. Decididamente ficava bela embaraçada.

— Eu... eu esperava visitar madame de novo e levar-lhe algo mais útil do que meu conforto. — Deu de ombros. — Não preciso das roupas de La Fanchon. Se Vossa Graça puder, talvez, fazer-me um pequeno empréstimo do dinheiro reservado para esse fim, eu poderia subornar os guardas para levar comida e um cobertor para ela.

Henri cerrou os lábios.

— Não permitirei que ande como... como uma mendiga! Françoise olhou o próprio vestido e engoliu seco.

— Bem, talvez compre um vestido.

— Um? — A moça era impossível! — Você deve pensar na minha reputação. — Levantou uma das mãos para calar seus protestos. — Você receberá uma mesada, que deverá gastar como quiser, em subornos ou até em cobertores. Mas amanhã, deverá ver La Fanchon.

Françoise ainda quis reclamar. Era difícil não lhe dizer que faria como quisesse, e que as prioridades dele eram muito estranhas. Mas não podia ser ingrata, e o duque não lhe pedia muito.

— Claro, Vossa Graça. Ele assentiu, aprovando.

— Sábia decisão. — Bebeu seu brandy. — Agora, devo jantar rápido e sair para um compromisso.

— Mas o senhor prometeu que discutiria a ajuda à madame durante o jantar!

— Prometi? Não me lembro. De qualquer modo, nos falaremos em breve.

Ela o surpreendeu, levantando-se e colocando-se em seu caminho, os olhos faiscando de fúria.

— Não se atreva a esquivar-se de uma promessa fingindo esquecer!

Henri teve ganas de dizer a verdade, mas não podia lhe contar seu plano. Quando ela fosse até a Conciergerie e descobrisse que madame havia fugido, era melhor que não relacionasse isso a Henri Foucault.

— Falarei no momento que eu escolher, querida. — Isso a deixaria louca.

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Mas não podia evitar. — E agora, escolho ter um jantar pacífico, bem distante de conversas sobre madame LaFleur, Robespierre, prisões e execuções.

Suspirou com o que esperava parecer tédio infinito.

— O senhor é... um caso perdido. Não há mais esperança de chamá-lo à realidade.

Verdade. A esperança havia saído de sua vida muito tempo atrás. E ele era um louco, só de pensar que poderia trazê-la de volta.

As paredes de pedra da Conciergerie erguiam-se sobre Henri na escuridão. Passava um pouco da uma da manhã. Os guardas estariam entediados e sonolentos. Melhor pensarem que estavam sonhando, se um deles visse o ato em si. Infiltrou-se até a guarita. Podia ouvi-los jogando cartas. Diabos, podia cheirá-los. Aliás, tudo ali cheirava como uma república apodrecendo de dentro para fora-

— De quem é a próxima ronda? — alguém perguntou.

— Denny.

— Eu? Está brincando, patife? Eu fiz a última!

Resmungos. Denny seria o alvo de Henri. Barulho de chaves sendo levantadas da parede. Perscrutando através da grande grade de ferro que servia como porta para o velho palácio.

Atento, Henri o viu sair pelo fundo da guarita, dirigindo-se a uma escadaria.

Invocou seu poder e observou a cortina vermelha descer sobre seu campo de visão. O turbilhão negro subiu, engolfando-o, enquanto a conhecida dor o atravessava, e então passou pela porta corrediça. Não fez nenhum barulho pela dor causada no transporte. Habituara-se a ela, após tantos anos. Desceu silenciosamente a escadaria, seguindo o brilho da lamparina do guarda, mas de longe, nas sombras.

As escadas davam nas enormes criptas romanescas. Ainda se lembrava de quando ali se localizavam os estábulos do exército de Henrique IV, no século quinze. O círculo de luz bruxuleava mais adiante. Podia ouvir a respiração barulhenta do guarda, e o eco de seus passos. O ruído abafado das celas começou a aumentar. Apressou-se por um corredor estreito.

Denny assobiava, talvez para afastar a escuridão; foi pego de surpresa quando Henri o puxou. Ele olhou direto para seus olhos vermelhos. O medo surgiu em sua expressão, para depois sumir, enquanto Henri mantinha-o imóvel pela força de sua vontade e pelo poder de seu Companheiro.

— Madame LaFleur, uma idosa. Você a conhece? Foi trazida ontem.

O homem assentiu, os olhos vazios de expressão.

— Leve-me até sua cela.

O guarda virou-se para voltar pelo corredor. Eles passaram por diversas celas que exalavam o fedor de corpos humanos sem banho. Ele conhecia o desconforto; havia estado naquelas celas muitas vezes. Então, ignorou as mãos suplicantes, que seguravam cartas que queriam fazer chegar a pessoas amadas do lado de fora. Seus rostos eram lacrimosos, pétreos e parados, como olhos de mortos.

O guarda parou em frente à terceira cela e apontou.

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— Nos fundos.

— Deixe-me entrar. O guarda abriu a portinhola que ficava na grade maior sem pensar que alguém de dentro poderia sobrepujá-lo e sair. Trancou a porta. Henri virou-se para ele e sussurrou.

— Você não vai se lembrar de nada.

Então o libertou. Observou Denny chacoalhar a cabeça como se para clareá-la, depois dar de ombros e continuar a ronda.

Eles não o notavam, continuavam com o que quer que estivessem fazendo. Abriam-se, como a multidão sempre fazia para os da sua espécie. Caminhou até madame LaFleur, deixando o poder se esconder. Quando se aproximasse, tudo o que a senhora veria era um nobre comum.

Ela ergueu-lhe os olhos muito sábios para alguém que vivera apenas uma vida e sorriu para ele.

— Françoise o enviou.

Não era uma pergunta. E era verdade. Não estaria ali sem o incentivo dela.

— Vim tirá-la daqui.

— Como? — ela perguntou.

Henri não responderia àquilo. Examinou-a cuidadosamente. Podia ser idosa, mas parecia bastante saudável, apenas um pouco de cansaço ao redor dos olhos e da boca. Passar um dia e uma noite na Conciergerie faria isso com alguém.

— Vai envolver um pouco de dor. — Ele sorriu. — A senhora pode suportar?

Ela assentiu, com um brilho sábio no olhar.

— A alternativa também envolve certa dor. — Olhou ao redor.

— Os outros...

— Não — ele a interrompeu. — Só a senhora. Ela se endireitou.

— Há um homem com uma criança aqui. Leve-os, em vez de a mim.

Uma família? Henri não havia notado. Olhou em volta; ninguém prestava atenção nele. Ali estavam um homem de trinta e poucos anos e um menina de três.

Voltou-se para a velha senhora.

— Voltarei para buscá-los. Mas primeiro a senhora, ou Françoise jamais me perdoará.

Como se ligasse para aquele perdão. Contudo, La Fleur não precisava saber que era mentira.

— O senhor não é o que pensávamos.

Ele colocou seu braço sobre os ombros dela e invocou o poder. O mundo tornou-se vermelho. La Fleur levantou o rosto, questionando quando a escuridão começou a espiralar à volta deles. Ao avistar os olhos vermelhos, os dela se arregalaram de surpresa. A névoa negra os envolveu, a dor o atingiu, ainda a ouviu gritar.

O que apareceu ao redor deles foi seu depósito, próximo ao cais do Sena.

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Barris escuros e caixas estavam amontoados em pilhas regulares. Ainda segurava os ombros de La Fleur. Foi assim que sentiu quando as pernas dela cederam. Ergueu-a nos braços, antes que pudesse cair. Não pesava quase nada. Provavelmente, havia apenas desmaiado pelo choque do transporte. Era ainda mais dolorosa para os humanos do que para ele.

Caminhou pelo labirinto de cargas até uma escrivaninha vazia no momento, iluminada por uma lamparina. Jennings devia estar fora. Sua equipe e o administrador do depósito eram todos ingleses, apesar de falarem excelente francês e poderem sair, quando necessário. Uma longa mesa ao lado da escrivaninha estava coberta de papéis. Henri empurrou-os para o lado e colocou a velha senhora ali em cima.

Sua mão direita segurava o braço esquerdo. Ela gemia, piscando, voltando à consciência. Isso era ruim. Ele levantou-lhe os ombros. Seu rosto estava pálido como papel.

Jennings entrou rapidamente.

— Meu senhor, o que está fazendo aqui...?

— Arranje um pouco de água, homem, ou melhor ainda, brandy. — Virou-se para madame.

— Seu coração?

— Sempre foi fraco — murmurou ela.

— Maldição! Eu nunca teria arriscado, se soubesse! Novamente, os olhos dela reluziram.

— Prefiro isso à guilhotina. As pessoas sobrevivem a incidentes como este?

— Não muitas.

Jennings serviu bebida do jarro na escrivaninha. La Fleur balançou a cabeça.

— Estou velha. Não tenho arrependimentos. — Olhou para ele. — Um. Um só.

— E qual é? — Não deveria ter perguntado. Ela o faria prometer tomar conta de um gato velho, ou algo igualmente detestável.

— Eu gostaria de ver Françoise mais uma vez.

Henri mordeu o lábio. Sua noite estava completa. Por que não assumir mais um risco? Assentiu.

— Jennings, fique com ela. — Deitou-a e foi para as sombras.

— Apenas beba isso — ia dizendo Jennings em francês, enquanto Henri invocava o manto negro que o ajudava a transportar-se de um local para outro. — O mais fino brandy francês. Vai deixá-la de pé num instante.

Capítulo III

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Françoise não conseguia dormir. Em vez disso, foi até janela aberta de seu quarto e olhou para a praça escura, com as árvores sombrias dançando ao sabor da brisa quente da noite. A experiência de ver o duque em seu banho fora inquietante, tanto por já saber como ele seria como pelo devastador desejo que sentira. Parecia-lhe que tudo o que passara era apenas memória. Os sonhos que estava tendo apenas a faziam sentir-se mais confusa. Seria o limite da loucura?

E havia ainda o terrível senso de urgência que experimentava. Não apenas envolvendo madame La Fleur; ainda tinha esperança de convencer Avignon a ajudar sua amiga. Era um perigo para ela mesma, e tinha a ver com Avignon. Sentia-se sitiada, atacada por seus sentimentos por ele. E teve a tarde inteira para pensar sobre isso. O jantar fora solitário. A noite estendia-se, e mesmo os livros da biblio-teca do duque não a distraíram.

Uma pancada de chuva caiu sobre o parque. Gotas atingiram sua face, mas Françoise não se moveu. O ar esfriou com a chuva, bem como o sangue em suas veias.

Desejo. Era o que sentia por ele. Apenas desejo. Não algo de que se orgulhasse. Mas quem não desejaria um homem com aquela beleza morena e um corpo feito para o pecado? E ele usava aquela beleza e vitalidade para levar mulheres à sua cama.

Não seria uma delas. Sua vida e sua alma dependiam de sua força, de algum modo. Resistiria àquele canto enigmático. A proteção de pensar que ele não se interessaria por uma garota como fora. Vira a evidência disso, no banho. Homens como Henri Foucault queriam tudo, não importando se fosse uma presa digna ou não. Razão pela qual ela devia se proteger. Seus pensamentos voaram para a estranha bolsa escondida embaixo de sua cama. A espada afiada, as várias garrafas cheias do que parecia ser remédio, Não poderia ser dela, poderia?

Chegará o momento em que você deverá usar o conteúdo daquela bolsa.

O pensamento era quase como uma voz dentro dela. Françoise balançou a cabeça... Para que poderia usar uma espada, exceto para matar? Não era uma assassina, apesar das imagens que a inundaram na noite anterior. Não se mata um homem por ser atraente. Ou mesmo sem princípios. Quase riu ao imaginar quão desajeitada ela seria, com aquela espada curta. O duque com certeza riria dela. Daí, jogaria a espada longe e... Virou-se para o interior do quarto, ouvindo movimento. Seu coração deu um pulo.

— Venha... — Ela reconheceria aquele tom barítono em qualquer lugar.—Você deve se apressar.

— O que está fazendo aqui?

A mão dela pousou sobre o pescoço, movida por um instinto. Aquilo não deveria acontecer. Não sentia o déjà vu costumeiro, e era surpreendente.

— La Fleur está doente. — Henri moveu-se na direção de Françoise. — E chama por você.

Ele estivera com madame La Fleur? Na prisão?

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— O coração? Henri assentiu.

— Eu posso me vestir — protestou Françoise.

— Não há tempo.

Retirou um penhoar e jogou-o sobre os ombros dela.

Françoise amarrou a fita de seda com dedos trêmulos enquanto ele apressava sua saída.

Quando chegaram à porta da frente, Jean já estava lá. Tinha parado de chover. Um cavalariço segurava um garanhão negro, empinando na ponta da guia.

— Sem carruagem?

Ela não poderia montar aquele cavalo.

— Não há tempo.

Isso era tudo o que podia dizer?

Henri montou. O cavalariço soltou a guia, e ele recolheu as rédeas, murmurando:

— Calma, garoto.

O cavalo sossegou. Era impressionante. O duque estendeu-lhe a mão. Sem luvas. As dela também estavam. Tomou fôlego; La Fleur precisava dela. Ainda assim, o firme aperto da mão dele na sua enviou sensações até o âmago de seu ser. Um dia conseguiria superar o efeito de seu toque? Ele tirou o pé do estribo.

— Coloque seu pé direito no estribo e eu a puxarei.

E puxou. Sem esforço, virando-a para sentá-la em frente a ele. Estava com as rédeas em uma das mãos, e a outra em volta da cintura dela. Françoise teria se sentido insegura em montar de lado como estava, mas não foi assim. O que sentia era o corpo viril pressionando o seu, todo duro e musculoso. Nunca estivera tão próxima de um homem antes. Ainda assim, a sensação lhe era estranhamente fami-liar. O cheiro dele flutuava sobre ela, picante, único, e a centelha de vida que desprendia do irresistível cavaleiro de negro parecia iluminá-la de dentro para fora.

O cavalo fazia barulho sobre as pedras.

O véu negro da noite caía sobre Paris, uma névoa espessa envolvia a cidade.

Cavalgaram a pleno galope, não rumo à Conciergerie, mas seguindo o rio, passando por ruas vazias cheias de depósitos escuros. Como La Fleur chegara ali? Devia ter escapado da prisão. Mas como?

Por fim, Henri conduziu o cavalo até a frente de uma imensa construção de pedra, com imponentes portas de madeira, duas vezes mais altas do que um homem. Ele a deslizou até o chão e desceu em seguida; prendeu as rédeas num poste feito para isso e agarrou sua mão.

Françoise correu para acompanhar o passo largo. O duque abriu as portas para levá-la a uma escuridão profunda. Enormes caixotes de madeira e barris empoeirados amontoavam-se em pilhas. O lugar cheirava à poeira, piche, madeira e álcool de algum tipo. Brandy, talvez?

Henri a empurrou, abrindo caminho entre as pilhas de grandes cilindros, cheios do que lhe pareceu ser renda. Saíram numa clareira na floresta de caixas e

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barris. Um homem de rosto curtido estava de pé, cuidando de La Fleur, que estava deitada sobre uma mesa.

Françoise correu para o lado dela.

— Madame, a senhora está bem?

Pergunta tola a sua. O rosto dela parecia pergaminho antigo, os lábios tão descorados que estavam azuis. Alguém lhe havia feito um travesseiro com um saco. Os olhos estavam turvos, em vez do azul penetrante de sempre. Tomou-lhe a mão. Estava fria.

— Fico feliz que ele a tenha trazido, minha filha — La Fleur murmurou. Olhou para Avignon. — Obrigada, Vossa Graça. Foi um ato bondoso.

— Nada parecido — disse ele. La Fleur apertou os olhos.

— Ele não vai admitir que é bom, vai?

— O duque pervertido? Creio que não. — O brilho de dor nos olhos de Françoise desmentia seu tom leve. — A senhora... fugiu? Mas como? E o que aconteceu com a senhora?

— Meu coração... — a idosa sussurrou.

— A senhora vai melhorar, madame, sei que vai. — Apertou a mão da amiga.

— Estou enfraquecendo, filha. Não tenho muito tempo. — A aceitação preenchia sua voz.

Françoise não aceitava. Era tudo sua culpa.

— Como ele pôde expor a senhora ao risco de uma fuga? Devia apenas falar a seu favor com Robespierre, usar de influência. — O duque havia matado sua amiga.

Um débil sorriso tocou os lábios de La Fleur.

— Ninguém sai daquela prisão através de influência, querida. Robespierre e madame Croute não podem permitir que os prisioneiros ganhem esperança, não é? — O esforço pareceu deixá-la cansada. Fechou os olhos. — Não o avisei sobre meu coração.

— Mas a senhora não pode ir...

La Fleur abriu os olhos.

— Creio que não posso recusar o chamado de Deus. Lágrimas desciam pela face de Françoise. Escondeu o rosto no ombro de madame LaFleur.

— Quero que me prometa uma coisa. — A voz era um sussurro.

Françoise se sentou.

— Qualquer coisa.

O olhar da velha senhora, porém, estava direcionado a Avignon. Françoise virou-se a tempo de vê-lo assentir.

— Cuide dela.

Os lábios de Avignon formaram uma linha estreita. Não gostava que o forçassem. E, decerto, Françoise era um fardo incômodo. Mas ele assentiu de novo.

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— E você, ma petite dindon. Olhe profundamente. Não se engane com o que está na superfície, mesmo em você.

— Não me enganarei — prometeu. O que La Fleur queria dizer? Que estranha promessa exigiu em seu leito de morte. Françoise voltou-se para Avignon.

— Não podemos deixá-la mais confortável? Um cobertor, talvez?

Ele olhou para a mulher idosa com pesar.

— Só Deus pode deixá-la confortável agora.

Horrorizada, Françoise virou-se. Os olhos de La Fleur estavam abertos, mas ela já não estava ali. Morrera no instante em que Françoise se virara. Poderia uma vida extinguir-se tão... depressa? Lutou em busca de ar entre os soluços que a sufocaram. Não era justo. Não, mesmo!

Deus, o que alguém faz com uma criança que está vendo a morte pela primeira vez? Avignon olhou para Jennings, que rolou os olhos. O duque cruzou os braços, para suprimir o impulso de abraçá-la e acalmá-la com sussurros, enquanto beijava seus cachos loiros. Mas não tinha tempo para isso. Tinha que voltar ao Lacaune's antes que sentissem sua falta. Planejara afastar-se só o tempo de se deslocar até a prisão e de volta ao depósito com a idosa, mais um momento para passar pelo reservado masculino do clube de jogos.

Quanto tempo até que os guardas notassem a fuga? Ela não era parte de uma família; era sua vizinha. As pessoas teriam visto Avignon, com sua protegida à frente, galopando pelo Marais até o rio à noite. Tudo isso atraía a atenção para ele. Henri esperava que Robespierre não fosse tão esperto como imaginava ser.

Pigarreou. Melhor prosseguir com aquilo.

— Jennings, temos uma caixa vazia? Tenho certeza de que mademoiselle gostaria de ver sua amiga descansar respeitosamente.

Ele concordou, mostrando pelo brilho em seus olhos que apreciara a manobra de Henri, e desapareceu nas trevas. Françoise tentava se recompor.

— Muito obrigada por me trazer.

— Não foi nada — mentiu.

Jennings voltou, trazendo uma caixa vazia, parecida com um caixão. Françoise levantou-se e tirou o caro penhoar que ele mandara fazer para uma cantora de ópera e o estendeu na caixa, com o forro de seda vermelha para cima. Henri recolheu o frágil corpo idoso e depositou-o na caixa. Dobrou as bordas da capa para dentro, para cobri-la. O invólucro físico parecia pacífico; ele esperava que a alma também estivesse.

Françoise assistia à cena em silêncio. Olhos marejados, lábios trêmulos. Era tão jovem e parecia tão frágil, vestida apenas com a camisola sem mangas do mais fino linho. A bela e corada pele de seu antebraço o fazia querer tocá-la.

— Jennings, por que não chama um ou dois dos rapazes e... encontra um lugar para madame LaFleur descansar no Cimetier Du Pere Lachais?

— Agora mesmo, Vossa Graça. Jennings baixou a tampa da caixa.

— Sem um padre, nem um funeral? — Françoise soluçou. — Madame ficaria horrorizada.

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Henri tomou fôlego antes de falar, para que suas palavras não soassem cortantes. Colocou uma mão sobre o ombro dela para dar-lhe firmeza, mas suas palavras sumiram na garganta ao sentir-lhe a pele. Aquilo enviou choques diretamente em seu quadril. Tentou simular indiferença, enquanto retirava a mão. Ela o olhava de modo estranho. Engoliu em seco.

— Padres são ilegais, e qualquer tipo de cerimônia atrairá atenção para nós.

Ela o olhou com aqueles olhos azuis grandes, inocentes e inexperientes, conseguindo parecer, ao mesmo tempo, desapontada e conformada com sua recusa.

Movido por um impulso, Henri virou-se para o caixão substituto e abaixou a cabeça. Encarou Françoise e ela fez o mesmo.

— Guie-me do irreal para o real. Guie-me da escuridão para a luz. Guie-me da morte para a imortalidade. — Ele tomou fôlego. — Da terra a terra, das cinzas às cinzas, do pó ao pó; na certeza e esperança da Ressurreição na vida eterna. Nós entregamos o corpo de Vossa serva a Vosso poder, Senhor. Amém.

Françoise olhou para ele, estudando seu rosto.

— De onde é aquela primeira parte?

— Das Upanishads.

Ela assentiu, pensativa, como se soubesse o que aquilo significava. Claro que nenhuma boa garota católica conhecia as Upanishads.

— Nunca achei que conhecesse a bênção.

Não lhe contaria que fora um monge por quarenta anos, mais ou menos, no século treze. Ainda podia recitar grandes trechos da bíblia.

— Até Satã conhece as escrituras. Eu conheço bastante.

E então, porque ela o deixava desconfortável, disse, só para ter algo a falar:

— Você pode limpar este lugar, Jennings? Temos que abrir espaço para outro carregamento.

Jennings fez uma saudação galhofeira, para garantir que Henri soubesse que era desnecessário pedir.

— Claro, Vossa Graça. Já está tudo acertado.

Quando a garota começou a espiar ao seu redor nas sombras, examinando as caixas e barris, Henri percebeu que chamara sua atenção para algo que não queria que ela soubesse.

— Tudo isso é seu? — perguntou ela. Françoise se levantara de onde estava ajoelhada, ao lado do caixão improvisado.

Bem, era isso. Inútil negar, quando havia acabado de admitir, dando ordens a Jennings. Boa parte da elite de Paris sabia daquele segredo.

— Sim, é.

Ela o encarou, piscando.

— Você é contrabandista, não é?

— Eu me descreveria como um comerciante que não recolhe impostos sobre

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seus bens. Observou-a absorver a informação.

— E a razão de sua influência sobre o novo governo.

— Os novos vilões apreciam o luxo tanto quanto o clero e a nobreza, os antigos vilões.

Viu-a franzir o nariz, desgostosa. Por isso lidar com contrabando era o disfarce perfeito, Henri pensou. Todos desdenhavam suas atividades, mesmo que desejassem usufruir os benefícios dela.

— Por que o senhor precisa desobedecer a lei? Avignon é a propriedade mais rica da França.

— Avignon está confiscada.

Era verdade. Verdade também que não precisava da renda de lá. Mas seus inquilinos provavelmente morreriam de fome, se não estivesse dividindo seus lucros vindos do comércio e dos poços com eles, para manter a terra em boas mãos. O caos que a Revolução criara significava sementes e implementos agrícolas a preços exorbitantes. E, claro, havia seu real motivo para contrabandear. Os navios indo e voltando da Inglaterra, com refugiados escondidos. Ou as salas do fundo daquele depósito, escondidas atrás de uma fachada de tijolos. Que ela pensasse que era um rude insensível, lucrando enquanto o país passava fome.

— Mas contrabando?

— A dependência de Robespierre em relação aos meus vários... empreendimentos a manteve fora da prisão, minha querida protegida. E lhe rende adoráveis jantares, como o que teve a noite passada. Deveria mostrar mais respeito.

Françoise engoliu em seco, depois desviou o olhar.

— O senhor está certo, claro. Que tolice de minha parte.

— Agora, devo levá-la de volta para casa. Venha.

Ele virou-se e caminhou para a saída do depósito escuro.

Françoise seguiu os ecos dos passos de Avignon. Uma parte dela notou que ele quase corria. Sentia-se estranhamente vazia. Deveria estar soluçando. Sua única amiga no mundo acabara de morrer. Mas após a primeira explosão de dor, pareceu-lhe inevitável a morte de La Fleur, como se já tivesse visto e chorado aquela morte antes. Madame estava destinada a morrer. Se escapasse da guilhotina deveria ser atingida por outro infortúnio qualquer, ceifada desta vida, não importando como.

Não haveria esperança de mudar o destino?

Françoise estremeceu.

Quando emergiu do depósito, Avignon estava desamarrando o cavalo. O calor voltara.

Avignon moveu-se para a sela e estendeu-lhe a mão. Ela sabia o que aconteceria se a segurasse. Mesmo o toque reconfortante de pouco antes em seu ombro, no depósito, provocara-lhe um calafrio.

Ele tirou o pé do estribo; Françoise levantou a barra da camisola com uma das mãos, consciente de que seus seios se moviam livres sob o fino linho. Seus

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mamilos enrijeceram. Então, pôs um pé escorregadio no estribo e agarrou a mão dele. Quente, macia, forte, a sensação eletrizante de vida a atingiu mais com mais força ainda do que imaginara.

Ah, queria aquilo. Depois da morte que testemunhara naquela noite, a sensação de vida que emanava dele tinha um apelo irresistível. Ele a levantou até a sela. O quadril feminino estava pressionado contra sua virilha, o ombro delicado contra seu peito, enquanto montava de lado, sobre o cabeçote da sela. A elevação roçava em suas partes mais íntimas. O braço dela deslizou naturalmente pela cin-tura firme para se equilibrar, enquanto ele a segurava firme e comandava o cavalo.

Não diziam nada.

Henri, por certo, nada sentia; ela, pela segunda vez na noite, sentia... tudo. Estava transbordando com as sensações de momentos inusitados e familiares misturando-se, além da impressão de condenação iminente, e da inevitabilidade de tudo.

Olhe profundamente, La Fleur dissera. Por quê? Será que pensava que ela via apenas a superfície das pessoas, até a sua própria?

Talvez estivesse falando de Avignon. Françoise sempre pensara nele apenas como o duque pervertido, contudo ele tentara salvar madame. Não do jeito que Françoise imaginara, mas tentara. E isso, a estava fazendo rever o que pensava sobre ele.

Dessa vez, a viagem pelo Marais foi lenta. O movimento da sela, causado pelos passos do cavalo pressionava suas partes femininas. Quanto faltava até a Place Royale? Não demoraria, e ela estaria gemendo e implorando para que ele a possuísse se aquilo se prolongasse muito.

A princípio, não notou que estavam atraindo atenção. Apesar de ser tarde, houve gargalhadas e piadas ao longo do percurso. O povo não via um duque e uma mulher seminua a cavalo todo dia. Avignon saudava os intrometidos como se tudo o que pensavam fosse verdade. Como podia?

Quando enfim chegaram em casa, Françoise desmontou e entrou correndo pela porta que Jean segurava aberta, enquanto Avignon descia e entregava as rédeas a um cavalariço.

Ela pulsava de desejo.

Algo despertara dentro dela. Avignon ainda representava um perigo terrível, a despeito da bondade demonstrada. Coisas ruins aconteceriam caso se permitisse gostar dele. Arruinaria sua vida inteira. Ela tinha que agir.

Ainda assim, se não se pode mudar o destino, para que resistir? A morte da amiga provara que o que deveria acontecer, aconteceria. Achou aquilo tão deprimente, que lhe vieram lágrimas aos olhos outra vez.

Relanceou o olhar para Avignon e viu em seu rosto uma expressão de... consternação. Ele não entrou na casa, apenas assentiu para Jean e disse:

— Cuide para que mademoiselle tome um brandy. Ela teve um choque.

Então, virou-se nos calcanhares e saiu.

Simples assim.

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Devia estar voltando para sua noite de jogatina, como se madame não tivesse morrido, nem estivesse para ser enterrada por um inglês que provavelmente era protestante, na calada da noite, sem um padre. Como se não tivesse proferido uma bênção sobre o corpo da idosa.

O homem era impossível, e era melhor que tomasse consciência disso, e se controlasse.

Ela estava em um lugar escuro que não possuía paredes nem teto. Até o chão era obscurecido pela névoa. Todas as direções eram iguais, logo, não havia para onde correr.

E devia correr. Havia algo muito assustador naquele lugar, algo que faria pior do que arrancar seus membros um por um. Que a condenaria eternamente. Começou a correr sem saber se fugia de seu medo mais profundo ou se ia em direção a ele. Correu até seu coração bater descompassado e ficar sem ar. Não conseguiria correr para sempre, mas o monstro a perseguiria até após a morte. Mesmo agora, sabia que ele estava atrás dela. Caiu, e lutou para se levantar...

Lá estava! Uma espada curta de gladiador brilhou à luz, como sua salvação. Ou perdição.

Ficou de pé, incapaz de desviar-se da espada brilhante. Ouviu sapatos batendo sobre uma superfície que não conseguia enxergar. O terror a segurava. Agarre a espada, pensou. É sua única proteção.

Mas não o fez. Não pôde. Porque não tinha certeza de que a espada a salvaria. Usá-la poderia transformá-la além de qualquer reconhecimento. Virou-se para encarar seu inimigo.

Avignon saiu da escuridão, parecendo satânico como nunca. A mão dele sangrava.

Françoise acordou, sufocando um grito. Nem sequer conseguia gritar. Lentamente, o quarto ficou visível ao seu redor; a escuridão já não era disforme. Discerniu o guarda-roupa. A cadeira próxima à penteadeira. Estava amedrontada. Devagar, percebeu que estava coberta de suor.

E então outra sensação a dominou.

A espada. Podia senti-la na bolsa sob a cama, como uma presença vil, escondida no quarto. Algo dentro dela queria usá-la para o pior dos fins.

Escorregou para fora da cama, respirando aos arrancos. Não conseguia dormir com aquela coisa ali. Ficou de pé, o peito arfando. Não imaginava se arrastar embaixo da cama para retirá-la dali no escuro. Dormiria em outro quarto,

Mas o que os criados pensariam? Não queria demonstrar seus... bem, a palavra gentil seria caprichos, mas alguns poderiam chamá-lo de outra coisa. Loucura, talvez.

Estaria ficando louca? A sensação de completude e desastre iminente, a certeza de que tudo o que fazia, já fizera antes... seria a razão para pensar que já sabia como o duque seria nu, mesmo antes de vê-lo?

Não havia respostas para suas questões. Não tinha saída.

Arrastou-se para a poltrona em frente à lareira fria e se encolheu, para ficar o menor que podia. Existiam muitas forças em jogo, além de sua compreensão. E elas

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poderiam parti-la em pedaços.

— Muita sorte para metade da noite, Avignon. — St. Martine tomou seu brandy, o último de vários da noitada. — Ninguém tem uma sorte assim.

Henri ignorou a insinuação.

— Ora, e eu pensei que fosse habilidade.

St. Martine estava prestes a responder de modo desagradável quando as portas duplas do grande salão se abriram com um estrondo. Soldados marcharam para dentro, espalhando-se.

Um silêncio desceu sobre o lugar. Henri relanceou o olhar para a porta, onde viu Robespierre, limpo e meticuloso, entrando atrás de seus cúmplices. Continuou colocando seus ganhos em pilhas iguais para serem embrulhadas em rolos.

— A declaração de que jogar é ilegal foi publicada em detalhes.

Robespierre olhou os membros de seu próprio governo espalhados pela sala. Alguns coraram, outros, levantaram o queixo em desafio. Algum dia, Robespierre não conseguiria controlar seus próprios seguidores. Não se pode reprimir tudo sem que algo ceda.

— Onde está o proprietário deste estabelecimento?

— Aqui, senhor. — Lacaune deu um passo à frente.

— Prendam este homem! — ordenou Robespierre.

Os soldados se moveram para cumprir a ordem. Diabos! Lacaune era um homem honrado, e havia poucos deles, não importando seu trabalho.

Henri sentiu a indignação crescer dentro de si. Pois controle-se, disse a si mesmo. Não pode fazer nada aqui.

— Estou certo de que vocês, cidadãos, vão querer contribuir para a causa revolucionária com seus ganhos.

Que voz afetada! Teria Robespierre, de fato, um auto-controle tão perfeito? Ou tinha medo de que a violência e as compulsões sexuais interiores fossem se soltar e destruí-lo aos olhos do mundo? Talvez ambas as coisas. Henri imaginou como devia ser o sexo entre Robespierre e sua amante.

Murmúrios de protesto espalharam-se pelo salão. Henri recolheu alguns rolos que permaneciam sobre a mesa e começou a embrulhar seu ouro. Quando cada homem tivesse "contribuído" ele seria liberado, embora tivesse que ouvir os sermões de Robespierre durante os procedimentos.

Ajeitou-se em sua cadeira, seus ganhos agora empilhados. Finalmente, era o último homem, além dos soldados. O baixote veio parar à sua frente.

— Foucault, eu devia saber que o encontraria aqui.

— Mas não sabia? Que estranho.

— Fui informado de que esteve ausente por um tempo, no meio da noite.

— Eu venho. Eu vou. Nem eu mesmo consigo saber de mim.

Estava sendo insolente, é claro, mas o homem tinha um motivo para perguntar. Nada bom.

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— Bem, tivemos outros eventos surpreendentes esta noite.

— Estou ansioso para saber — murmurou Henri, em sua voz mais entediada.

Aquilo irritou Robespierre.

— Bem, deveria estar. Porque não há prisioneiros suficientes na Conciergerie esta noite.

— E alguma vez houve, prisioneiros o bastante para satisfazê-lo? — inquiriu Henri num tom polido.

— Quero dizer que um fugiu.

— Como pode saber disso, com toda aquela gente?

— Porque ouvimos um grito. — Robespierre sorria, presunçoso. — E isso sempre anuncia uma fuga.

— Creio que tenha feito um estudo a respeito.

Henri explicitou em seu tom que não podia se importar menos com gritos. Mas se eles chegaram a àquela conclusão, isso tornaria seu trabalho mais difícil. Com freqüência, tinha que voltar à mesma cela duas ou três vezes para tirar toda uma família.

— E esta fuga em especial foi muito interessante. Não foi como as outras.

— As outras? Meu Deus. Não sabia que era tão descuidado com os prisioneiros.

Robespierre ficou sério.

— As outras foram famílias. Esta foi uma idosa. Sua vizinha, de fato.

— Madame LaFleur? — Henri colocou o monóculo para examinar o baixote. Teve a satisfação de vê-lo se contorcer um pouco. — Você deixou que ela escapasse de suas garras?

Balançou a cabeça, consternado.

— Criminosa empedernida, aquela. Não me sinto seguro, sabendo que está à solta.

Os lábios de Robespierre endureceram.

— Gostaria de saber seu paradeiro no período que esteve fora daqui esta noite, Foucault.

— Fora? Mas não estive fora. — Tirou o monóculo.

— Então onde esteve entre... — Conferiu um caderninho. — Ah... Uma e duas e meia da manhã?

Henri espiou o grupo de funcionários e sorriu. Uma garota sorriu de volta.

— Pergunte a ela. Robespierre o encarou.

— Você... Aqui mesmo?

— Na chapelaria. — Henri começou a encher os bolsos com os rolos.

— Estes ganhos pertencem ao Estado. Henri olhou para ele.

— Ah, não, com certeza. Onde madame Croute arranjaria renda? — Guardou

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o último rolinho. — A propósito, por que ainda cobra impostos de sal e brandy? Ninguém tem dinheiro para comprá-los agora. E você sabe como os franceses gostam de boa comida e boa bebida. E, claro, há a água limpa de que ambos, você e madame Croute, gostam tanto.

O outro enrubesceu.

— Poderia confiscar seus poços.

— Provavelmente com os mesmo resultados dos outros empreendimentos que confiscou. As fábricas não estão produzindo. O que seus amigos revolucionários fariam se a água parasse de fluir?

— Falarei com a garota, não pense que não o farei!

— Ahhh, mas nunca duvidei disso.

Henri acomodou-se de volta na cadeira enquanto Robespierre ia até a garota, que respondeu às questões com lágrimas nos olhos, mas como que acreditava ser a verdade. Quando Robespierre se foi, enojado, todas as outras atendentes juntaram-se ao redor dela, perguntando detalhes sobre a anatomia e as técnicas de Henri.

Robespierre deveria tê-las ouvido, pois sua face ficou desgostosa.

Henri ergueu as sobrancelhas quando ele se aproximou.

— Deduzo que estou liberado.

— Sim. — A palavra foi arrancada da garganta do outro.

Henri se levantou.

— Seria uma honra se você e madame Croute comparecessem à minha pequena reunião na quarta-feira. Seriam a alma da festa. Celebridades da Revolução, e tudo o mais.

— Eu jamais iria a uma das suas reuniões dissolutas.

— Nunca diga "nunca", cidadão. — Henri dirigiu-se à porta, os bolsos estufados de moedas de ouro e prata.

Não corria perigo imediato, mas Robespierre e seus comparsas o observariam um pouco mais de perto a partir de agora. Maldição! E tinha um carregamento para entregar na semana seguinte.

Os cabelos de Françoise estava escovado em cachos macios. Seus cílios tinham sido escurecidos, embora recusasse a usar pó, ruge ou batom. Não queria pensar por que permitira a Annette fazer mesmo o pouco que fizera. O vestido era outra questão. Muito mais escandaloso do que o azul-celeste que usara na primeira noite, e tão decotado que suas aréolas corriam o risco de saltar para fora do traje. O fichu que combinava era transparente. Enfiado no espaço entre seus seios e cobrindo seus ombros, não escondia nada. O corpete estava amarrado tão apertado que mal podia respirar. O que levantava seus seios, claro. O fato de não usar jóias apenas contribuía para a sensação de que estava quase nua.

Você vai deixá-lo surpreso. Controle seus sentimentos e pode fazê-lo sofrer pelo pouco tempo que ainda resta para ele.

De onde tinha vindo aquela voz que teimava em infiltrar-se em sua cabeça?

Apesar disso, apreciou a expressão embevecida do dono da casa ao descer

Projeto Revisoras 60

as escadas e encontrá-lo à sua espera na biblioteca.

Henri parecia abalado ao vê-la.

— Gostou do vestido, Vossa Graça? — perguntou. Ele pigarreou.

— Talvez não seja o mais adequado.

— Bem, nenhum deles é, na verdade. Pois foram feitos para suas amantes.

Avignon suspirou.

— Pode ser, mas Fanchon disse que enviaria algo mais adequado.

— Talvez eu devesse ter esperado. — Estava gostando daquilo. Pela primeira vez estava no controle da situação.

Ele indicou-lhe uma poltrona.

Françoise aceitou. Aquele era o seu aposento favorito na casa. Aconchegante e másculo. Cheirava a couro antigo e polimento, e ao perfume sutil do duque, canela com aquele toque adocicado. Sentou-se e ele lhe entregou uma taça.

— Ratafia de novo? Ela deu de ombros.

— Prefiro um bom brandy. — Reprimiu a própria surpresa. Damas não bebem brandy. Já teria experimentado?

Henri pegou a bebida solicitada, enquanto a estudava.

— Onde aprendeu a tomar brandy?

— Ah, nem sei. — E não sabia, mesmo. Ainda observando-a, serviu-lhe o que pedira.

Ela pegou o copo com o que esperava ser uma mão treinada e bebericou.

Tudo o que conseguiu foi tentar não engasgar. A coisa queimava como fogo! Podia senti-la descendo até seu estômago. Pressionou os lábios com firmeza. Os olhos escuros estavam rindo dela.

— Isso é bom — disfarçou Françoise. E continuou — Envelhecido por vinte anos, eu diria, em carvalho novo. — De onde saíra aquilo? — Feito pela família Remy Martin?

Os olhos dele arregalaram-se de leve. Françoise sentiu-se vitoriosa.

— Você é uma caixinha de surpresas de extraordinária complexidade, mademoiselle Suchet.

Talvez até para si mesma, ultimamente. Mudou de assunto.

— Vai jantar em casa, antes de sair hoje à noite?

Ele apoiou-se sobre a moldura da lareira.

— Acho que vou abster-me de jogar esta noite. Na noite passada, Robespierre apareceu em um dos clubes que freqüento e prendeu o proprietário. Pareceu muito interessado no desaparecimento de madame LaFleur.

— Ah, não! — Aquilo era culpa dela. — Coloquei o senhor em apuros.

Henri a olhou de modo estranho.

— Não creio que se importe.

Projeto Revisoras 61

Não se importava. E também se importava. Sentiu-se enrubescer. Era para impedir que o importunasse que ele havia salvado madame. E tudo dera em nada no fim. Sentiu um peso descer sobre os ombros.

— Bem, Robespierre pode bisbilhotar o quanto quiser — continuou Avignon. — Não ousará me tocar. Sou importante demais para seus amigos.

— Por causa do... — ela baixou a voz — contrabando.

— Só por isso. Ainda assim, devo ser discreto na próxima semana.

Françoise tomou mais um gole da bebida. Dessa vez, não ardeu tanto. Poderia se dizer que era... uma sensação de calor. Tomou fôlego. Os olhos do duque não se desviavam de seu rosto, mas sabia que ele estava agudamente cons-ciente de seus seios.

— O senhor crê em destino? — questionou.

Mais uma vez, Henri pareceu surpreso. Não seria capaz de identificar aquela expressão dois dias atrás, agora, porém, sentia como se o conhecesse havia muito tempo.

— Destino individual ou coletivo?

Ela ergueu as delicadas sobrancelhas.

—Existe alguma diferença?

— Sim. — Ele bebericou seu drinque. — O homem é bruto, ambicioso, cruel, e incapaz de moderar seus instintos para o bem comum. Sociedades sempre desmoronam. Estamos testemunhando isso na França. — Voltou a olhar para ela. —Então, acredito que haja um destino coletivo.

Aquilo soou muito amargo. Mas quando procurou um exemplo para o contradizer, hesitou. Grécia? Conquistada e desintegrada, indo de grandes realizações para uma simples sociedade agrícola sob o pulso do Império Otomano. Roma? Séculos de disputas medíocres por supremacia.

— E destino individual?

A expressão dele se suavizou. Achava que sabia por que ela lhe perguntava aquilo.

— Ah, isso é mais difícil. Quero crer que se pode mudar o destino de uma pessoa. E suficiente que eu queira acreditar?

— Talvez madame estivesse destinada a morrer, se não na guilhotina, do coração. Mas e se ela não seria guilhotinada, e eu causei sua morte ao insistir que a resgatasse?

Ele não respondeu.

— A questão real é: como agir, se não sabemos a resposta? Pois não sabemos. Não temos como saber.

Françoise bebericou seu brandy e completou:

— Devemos continuar tentando mudar as coisas ruins. O que mais podemos fazer?

Ele não riu. Nem em seus olhos havia riso.

Projeto Revisoras 62

— Exato — disse, suavemente. — O que mais podemos fazer?

De algum modo estranho, aquilo a fez sentir-se melhor, não tinha certeza se quanto à morte de madame ou ao seu próprio futuro. E o duque não era o que imaginara. Apaixonara-se pela sua imagem de homem mau, mas deveras atraente. E ele o era. Mas também era mais do que isso. Sentia-se muito relaxada agora, aquecida, quase... consolada. Se soubesse que o brandy a faria sentir-se assim, teria começado a bebê-lo antes.

Levantou-se e colocou a mão no ombro largo. A impressão dos músculos fortes sob o casaco era chocante.

Sua energia parecia precipitar-se ao redor dela, fazendo-a sentir-se viva, consciente de cada parte de seu corpo de um modo repentinamente desconfortável.

— Obrigada — murmurou.

Mas não retirou a mão. Estava brincando com fogo. Sabia, bem lá no fundo, que isso era perigoso para ela, embora não compreendesse por quê. Talvez fosse a bebida. Ou quem sabe estivesse cansada de estar assustada. Sentia-se incerta sobre o que deveria ou não fazer. Sua mão moveu-se pelo ombro.

— Não me agradeça.

Henri ficou carrancudo. Queria que ela não o tocasse daquele jeito. Aquilo mandava o sangue rapidamente para seu membro, e os testículos estavam quase doloridos. E então viu nos olhos azuis o mesmo que sentia: puro desejo. Estivera errado sobre ela. Não seria como aquelas tolas garotas que se apaixonavam. Mas o queria sexualmente. Havia tido muitas mulheres assim também... as que não o amavam, mas queriam ter prazer com ele. A bela Françoise seria tão experiente assim? Não acreditava nisso. Ela ainda parecia temerosa. Ou talvez, apenas não quisesse acreditar que era tão insensível. Havia apenas uma maneira de descobrir. Não devia. Não queria fazer.

Mas fez...

Baixou sua cabeça até juntar-se à dela. Os olhos azuis se arregalaram. Ela sabia o que aconteceria dali por diante. Não era uma inocente, afinal. Ou era? Henri não sabia. Precisara de consolo, e ele lhe dera o que podia. E agora seus olhos diziam que ela queria algo diferente, apesar de isso assustá-la. Os lábios dela se entreabriram num silencioso convite.

Henri respirou fundo

Que Deus o ajudasse, iria beijá-la!

Françoise sentia o que parecia ser uma dor latejante entre suas pernas. Estava intumescida e úmida, e tinha a impressão de que sua pélvis se abria e comprimia várias vezes seguidas.

Henri abaixou a cabeça.

Ela entreabriu os lábios e pouco depois o viu deslizar um braço por suas costas e puxá-la para si. O corpo másculo era firme sob o cetim, e Françoise podia sentir a área rígida entre as pernas dele roçando em seu baixo-ventre. Os lábios carnudos e macios roçaram mais uma vez nos dela. A língua, atrevida e bem-vinda, vasculhava todos os cantos de sua boca com grande intimidade.

Inebriada, Françoise estremeceu. O beijo era delicioso, uma sensação

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maravilhosa que parecia se perpetuar ad infinitum, tornando aquele um beijo imortal... Havia uma urgência e paixão naqueles lábios. Nunca sentira nada parecido. E, de certa forma, tinha a impressão de que já vivera algo semelhante. Talvez fosse o conhecimento inato de uma mulher, mas sabia quais os prazeres que a esperavam, e o que fazer para despertá-los, mesmo que uma parte de si a alertasse de que deveria desistir naquele momento. Mordiscou o lábio dele e foi recompensada com um rosnado de desejo crescente.

Uma batida discreta soou na porta da biblioteca.

Françoise assustou-se, e Avignon se afastou de um salto.

— O que é? — vociferou, inconformado.

A porta abriu-se e Jean entrou, justificando-se:

— Uma... mulher deseja vê-lo, Vossa Graça.— Ele apresentou um cartão numa bandeja de prata.

Françóise ajeitou a vestido e imaginou se Jean podia adivinhar que estivera beijando Avignon. Sentia-se quase desfalecer de vergonha. Quem imaginaria que um beijo pudesse ter uma força tão poderosa, que parecia lhe abalar por dentro e por fora?

Claro que tem, sua tola. Afinal, foi o beijo imortal de um homem que estará sempre além da eternidade!, repetiu aquela voz que passava a se insinuar dentro dela cada vez com mais freqüência.

Alheio a tumulto que a dominava, Avignon foi até ele e arrebatou o cartão. Olhou para Françoise.

— Eu a verei num minuto. Leve-a ao salão verde.

— Muito bem, Vossa Graça. — Jean fez uma reverência e se foi.

Françoise franziu o cenho. Depois de um beijo como o que partilharam, ele podia seguir diretamente para entreter um de seus casos? Sentiu-se pequena e insignificante. O beijo, que julgara imortal, não havia significado nada para o seu charmoso duque. ...

— Traga uma cesta de frutas frescas para mademoiselle Suchet, Jean. — Olhou de novo para Françoise. — Não devo demorar. — E dizendo isso, saiu.

Françoise concluiu que ficaria ali por pelo menos uma hora, aguardando sua presença, enquanto Henri... fazia amor com a próxima mulher da fila. Estava desgostosa consigo mesma, mas não tinha outro lugar para ir, então esperaria.

Marta Croute marchava pelo salão verde. Uma energia negra e densa a envolvia. Henri Foucault. Deveria saber que era ele. O sujeito destilava desdém. Era imoralmente belo. E sabia disso. Usava aquele fato para macular a honra de jovens inocentes. Conhecia o tipo. Demais, até.

Um arrepio de repulsa percorreu seu corpo, seu útero seco. Homens como aquele pensavam que as regras não se aplicavam a eles. E de fato, durante a maior parte da vida de Marta, isso fora verdade. A aristocracia fazia o que queria, a despeito de a quem magoasse.

Foucault era bem o tipo. Mas não seria mais, em breve. Agora, estavam

Projeto Revisoras 64

recebendo seu troco. E ela apreciaria esmagar aquele belo rosto com os próprios punhos.

O ódio cresceu dentro dela e preparou-se para sua vingança...

Henri abriu a porta do salão verde para encontrar madame Croute girando em suas mãos a representação de dois pastores e seu cachorro. O salão estava fechado para o sol que se punha, iluminado por lustres e candelabros.

Ela levantou o olhar à sua entrada. Os olhos cinza eram frios e cobiçosos.

— Com certeza, o senhor pagou por isso mais do que minha família ganha em um ano.

Henri inclinou-se.

— Minhas desculpas, madame Croute.

Não iria se justificar para aquela raposa velha. Olhou para as roupas dela. Claro que vestia vermelho e azul, as cores da Revolução. Ficaria melhor usando cereja. E escolhera o estilo mais rústico de fichu, que apenas fazia a figura feminina parecer grosseira, a despeito de estar na moda.

— Posso oferecer-lhe alguma coisa?

Ela balançou a cabeça sem agradecer pela oferta, e pôs as pequenas estátuas de volta no lugar. A mão tremia de leve.

— Como posso ser útil a tão ilustre membro da nova guarda?

Croute não respondeu; apenas andou pelo salão, sentindo o pesado brocado das cortinas, deslizando a mão sobre a madeira entalhada nas costas das cadeiras.

— Nunca tinha estado em uma casa na Place Royale. Espanta-me que viva em um endereço tão fora de moda.

Henri ficou impassível.

— Talvez devamos mudar o nome do lugar, agora que o rei e a vagabunda que tinha por esposa estão mortos. — Ela pegou o relógio com mecanismo dourado. — A revolução muda tudo, cidadão. Podemos até refazer a paisagem à nossa própria imagem.

— Podem mudar o nome de um parque.

Aonde ela queria chegar, e por que viera à casa de um homem solteiro sozinha? Sentiu o sol se pôr. Mas então imaginou que as regras da velha sociedade não se aplicariam a madame Croute, do ponto de vista dela.

— Ah, podemos fazer mais do que isso. Mudamos o nome de outro quarteirão para Place de Ia Revolution.

Henri sorriu sem disfarçar a raiva.

— Entendo. Madame Guilhotina fica lá. E ela muda tudo, não é?

— Exatamente. — Croute ajeitou-se no sofá. — Foi mesmo muito altruísta da parte de monsieur Guillotine inventar um modo de executar criminosos que seja tão humano. Enforcamento era tão indigno de confiança, e às vezes levava muito tempo. E não se pode confiar no machado do carrasco. O golpe pode ser insuficiente, ou torto. Mas a guilhotina é muito... confiável.

Projeto Revisoras 65

Henri deu uma risada amarga.

— Sem sombra de dúvida, ele a imaginou como uma bondade infinita, embora ilusória. Mas qualquer invenção pode ser mal utilizada.

A mulher o encarou, irritada.

— O senhor nos despreza?

Henri foi até a delicada mesa onde se encontrava uma de suas caixas de rape e a pegou.

— Não mais do que desprezo a maioria da humanidade. Isso a insulta?

Madame Croute o esquadrinhou com o olhar.

— Com certeza tinha essa intenção. Você sabe por que estou aqui?

Henri levantou as sobrancelhas.

— Uma visita social?

Madame Croute parecia convencida. Cruzou as mãos de juntas grandes. Havia trabalhado duro na vida.

— Digamos que seja um aviso. Tenho muitos amigos entre os cidadãos, e talvez alguma influência — disse ela.

— Foi o que ouvi dizer.

— Eles são capazes de desentocar aqueles que não carregam a Revolução no coração.

Todos sabiam que era ela que fornecia os nomes para o Comitê de Robespierre.

— E descobriram que não sou amigo da Revolução? Não é novidade. Você poderia ter perguntado a qualquer um. Não sou amigo de ninguém, além de mim mesmo.

— Que é o único motivo para você fornecer pequenos luxos para os novos líderes da cidadania.

— Sim.

Uma mulher como aquela, com tanta ambição, vinda de família pobre, queria toda a influência e o luxo que lhe haviam sido negados. Todos iguais. Só um novo nome para um câncer antigo.

— Chegará o tempo em que não precisaremos mais de você, quando o poder da máquina da economia tornar a França o país mais poderoso do continente — prosseguiu ela.

Ele duvidava de que a máquina da economia da França fosse voltar a funcionar tão cedo.

— Mas até então?

— Seus... serviços o tornam útil. — Ajeitou a saia austera. — Desde que não trabalhe contra nossa causa. Você o faz? Tem ainda a questão desta... sua... protegida — disse com todo o desdém que conseguiu esboçar. — Tenho informações de que a moça não o era, até que o senhor a reclamou.

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Melhor usar a insolência.

— O que importa quando a reclamei? Ela é minha protegida, agora.

— Seja lá o que ela for, não é sua protegida.

Henri sorriu.

— Uma protegida é alguém que está sob a proteção de outra. E mademoiselle Suchet está. — Fez sua voz soar o mais bondosa possível. Aquela criatura vil não iria ameaçar sua petit.

— Conheço uma prostituta quando vejo uma.

Henri respirou fundo e esforçou-se para conter o ímpeto de esbofeteá-la pela afronta.

— Tenho certeza de que já viu várias, madame Croute. Estão em toda Paris, servindo aos seus "cidadãos". Mas não me referiria à minha protegida desta forma, se fosse a senhora.

— Do que mais chamaria uma mulher que cavalga no mesmo cavalo com um homem depois da meia-noite, com o traseiro pressionado contra ele na sela?

Ah, a maldita achava que o pegara. Ainda não, pensou Henri, ainda não!

— Teve o capricho de conhecer meu depósito no Quai de St. Paul.

— No meio da noite? De camisola? — Croute estava ultrajada.

— Incomum, mas não um crime. — Henri deu de ombros. Ela teria feito a conexão?

— Na mesma noite em que a antiga patroa dela fugiu da Conciergerie?

Os olhos de madame Croute brilhavam em triunfo. A conexão fora feita. Ele fingiu um bondoso interesse.

— Uma mulher tão idosa. Imagino como conseguiu!

Houve uma longa pausa. Madame Croute não queria admitir a ignorância.

— Esqueça isso. O importante é que todos os outros fugitivos eram famílias. Apenas esta mulher foi diferente. Alguém que foi sua vizinha, cuja criada o senhor tomou como protegida. E vocês foram vistos logo após a fuga, correndo em direção ao seu depósito.

Henri deu de ombros.

— Não tinha idéia. Mas a senhora é bem-vinda para inspecionar meu depósito. Traga quantos homens quiser. Leve o tempo que for necessário.

— Eles estão lá agora. — Croute sorriu, satisfeita. Henri pensara estar um passo adiante ao se voluntariar.

Teria de observar aquela mulher mais de perto. Eles não encontrariam os aposentos atrás do tijolo nos fundos, que abrigavam os prisioneiros libertos até que a barca os levasse ao navio ancorado em La Havre. Pelo menos, não acreditava que encontrariam. Os quartos estavam vazios agora, de qualquer forma. Era seu trabalho enchê-los nos próximos dias. Rezava para que Jennings não fosse tolo a ponto de deixar que seus homens resistissem, ou seriam presos.

— Seus bens não serão confiscados, é claro.

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Eles não queriam matar a galinha dos ovos de ouro.

— Devemos ir até lá, ver o que descobriram? Henri fingiu tédio.

— Jennings vai limpar qualquer bagunça que tenham feito. Tenho coisas melhores a fazer.

Madame Croute demonstrou sua surpresa.

— O que poderia ser mais importante? Ele abriu um sorriso zombeteiro.

— Não deseja realmente saber, não é, madame?

Teve a satisfação de ver um rubor subindo pelo pescoço até tocar-lhe a face. Seus olhos se estreitaram de ódio. Então lhe ocorreu que ela pensava que faria sexo com sua protegida. Ficou sério. Não queria que pensasse aquilo. Embora não soubesse por que se incomodava com aquilo.

— Sinto as cartas me chamando esta noite. E ficaria feliz se pudesse convencer seu querido amigo a não estragar meu jogo.

— Vejamos o que sua protegida tem a dizer sobre seu passeio noturno.

Aquela mulher havia se nomeado inquisidora-chefe? Que ousadia!

— Esta noite não será possível. Ela está com dor de cabeça, trancada em seu quarto. — Além disso, não poderia deixar a víbora ver Françoise usando aquele vestido. — Mas a senhora e seu amigo virão na quarta-feira, não?

— Não faço idéia — declarou a megera, decepcionada, mas insegura quanto a como exigir o que queria, frente à recusa de Henri.

— Bem, então, melhor descer e supervisionar a busca, não acha? — Conduziu-a para a porta. — Jean — falou para o porteiro em serviço —, por favor, mostre a saída a madame Croute.

Ela voltaria na quarta-feira, podia apostar. Apenas para provar que se encaixava com o local.

Quando a porta se fechou, Henri virou-se para chamar Gaston e o encontrou de pé, junto às escadas.

— Desça até o depósito. Não vá diretamente para lá. Encontre Jennings e descubra se alguém foi machucado ou preso.

O mordomo assentiu e virou-se para partir.

— E Gaston?

O homem voltou-se.

— Seja discreto.

— É claro, Vossa Graça.

Os "cidadãos" não descobririam nada e uma vez que tivessem vasculhado o depósito, isso os impediria de pensar que precisavam fazer de novo. Nesse ínterim, Henri manteria Françoise a salvo de tipos como a Gárgula Croute. Mas a verdade era que a imensa caldeira em que Paris se transformara estava esquentando e, em breve, explodiria.

— Não pode ver a família Rideaux.

Projeto Revisoras 68

O jovem guarda com bigodes abundantes e cabelo fraco era cobiçoso. Podia ver em seus olhos.

— Por que não? — perguntou Françoise.

— Eles foram enviados à faminta madame esta manhã. Os Primeiros Cidadãos adivinharam que eles seriam os próximos a fugir, já que alguém quase foi pego em frente à cela deles, antes que desaparecesse, diante dos olhos de Colbert.

— A... a família inteira... guilhotinada? Mas havia... três crianças!

O jovem guarda mordeu o lábio.

— Eu sei... Mas os pecados dos pais, e tudo isso... Bem, eles seriam a semente da revolta contra a Revolução.

O jovem desviou o olhar de vergonha, a despeito das desculpas.

Françoise mal conseguia controlar seu estômago. Pensar naquelas crianças, pousando suas cabeças no bloco em frente à multidão que aplaudia ensandecida. Conhecera-as quando fora visitar madame, e prometera voltar para lhes trazer comida e cobertores. Agora descobria que seu gesto chegava tarde demais!

Tinha que se controlar. Uma família estava perdida, mas havia quinze ou vinte outras na lista com nomes ainda sem cruzar. Ainda restava esperança para eles.

— Bem, então, eu... eu quero ver a... a família St. Navarre.

Os nomes seguintes na lista. Espere! Não era esse o nome do homem de olhos tristes que a ajudara a encontrar madame LaFleur? Ele tinha um filho, Emile. O pânico floresceu dentro dela.

O guarda a olhou, desconfiado.

— Eles conheciam minha tia. — Uma desculpa esfarrapada, no mínimo. Ela expôs as moedas.

Viu-o decidir enquanto ele manejava as moedas que lhe trouxera.

Minutos depois, levou-a por celas repletas de prisioneiros. Roncos, vozes, gemidos e soluços ecoavam nas pedras úmidas da prisão.

— Colocamos as famílias em celas ao redor do pátio, assim podemos ficar de olho nelas. Montmorency vai deixá-la entrar, se molhar a mão dele.

Françoise apressou-se para manter o passo.

Saíram num pátio aberto. Era um espaço gélido, feito de pedra, sem nenhuma planta à vista, com celas cercando todo o perímetro. Guardas patrulhavam o local e se cruzavam o pátio, alguns carregando lamparinas levantadas.

De repente, Françoise ouviu vários bebês chorando. Estava achando difícil engolir. O próprio pensamento de Emile e seu pai sendo mandados para a guilhotina a deixava doente.

— Ali. — O guarda apontou para uma cela no mesmo lado em que haviam entrado, três celas abaixo. Ele acenou para o guarda com dragonas e uma barriga incipiente.

Françoise apertou o rolo de moedas.

Projeto Revisoras 69

— A dama quer ver St. Navarre. — O guarda falava baixo, para que os outros não ouvissem.

Françoise reconheceu a deixa. Depositou metade do que restava das moedas de Avignon na mão de Montmorency.

— Por favor, senhor, se permitir.

Ele segurou uma moeda contra a luz e abafou uma risada.

— Por aqui.

Françoise sentiu-se como a corda de um piano, tensa a ponto de estourar, enquanto passava pelas celas apinhadas de pessoas chorosas e fétidas. O que veria? Uma família angustiada ou algo mais?

Quando o pequeno grupo composto por Montmorency, o jovem guarda e ela se aproximavam da cela, viram outro guarda de pé, petrificado, olhando para dentro como se nada visse.

— Deveraux — chamou o primeiro, mas o guarda não respondeu. Montmorency começou a correr, o guarda que estava ao lado dela também. Movida por um impulso, Françoise os acompanhou.

De repente, todos avistaram uma figura completamente vestida de preto, um lenço de seda sobre a parte inferior do rosto, de chapéu tricorne, dentro da cela. Estava com um homem de camisa esfarrapada agarrado a um lado, e um garoto na curva do braço esquerdo.

Os olhos do homem de negro brilhavam com um vermelho inumano.

— Agora, silêncio, se puder, embora isso vá doer em você. Não em seu menino, ele não sentirá nada. — A voz era um barítono sussurrado. Henri!

— Você aí! — gritou Montmorency, e buscou as chaves.

Na cela turva, Françoise viu o que lhe parecia uma inesperada escuridão, tão negra que era a essência do nada, fechar-se ao redor das três figuras. A mancha negra espiralou como um tornado.

O guarda levantou a lamparina.

Françoise ofegou.

A escuridão não se dissipou; subiu. O homem de expressão triste e o garoto no abraço de Henri estavam de olhos arregalados de medo.

Os olhos vermelhos pulsaram e luziram.

Então, a espiral negra os engoliu por completo. Ouviu-se o grito estrangulado do homem, e...

Eles se foram.

Françoise arfou e colocou a própria mão sobre a boca para evitar um grito. Seu cérebro se recusava a funcionar. Seu olhar vagava pela cela como se as figuras ainda estivessem ali de algum modo.

O quê significa tudo isso? Henri está mesmo ajudando essas pobres almas? A voz dentro dela se manifestou outra vez, parecendo tão surpresa quanto Françoise se sentia.

Projeto Revisoras 70

Montmorency voltou a si primeiro, e, com mãos trêmulas, destrancou a cela. O guarda petrificado, Deveraux, também despertou do transe, olhando ao redor como se estivesse confuso.

— O que... O que aconteceu aqui? — questionou o guarda que a acompanhava.

— Nada — respondeu Deveraux, sorrindo. — Estou só fazendo minha ronda.

— O que foi aquilo? — O jovem guarda parecia estar perguntando a si mesmo, não para os outros. — Não era humano.

A boca de Françoise estava tão seca que ela não conseguia engolir.

Ouça-os. Não era humano. Aquela voz interior a pressionava a refletir. Sua cabeça começou a doer. Mas ainda sentia alguma insegurança. A voz não queria acreditar que Henri estava resgatando os prisioneiros.

— Eles fugiram! — anunciou Montmorency.

Françoise olhou em torno. Um guarda estava petrificado em frente a outra cela, do lado oposto do pátio. Dali, tudo o que podia ver eram dois pontos vermelhos faiscantes pulsando como chamas incandescentes dentro da cela.

Ela não apontou o que estava acontecendo. Não queria que Henri fosse pego. O que quer que ele fosse, humano, ou não. Não podia pensar nisso agora. Não pensaria. Recuou até a arcada por onde viera com o guarda.

E esbarrou em um homem grande, com rosto vermelho. Um enorme punho fechou-se sobre seu braço.

— E o que está fazendo aqui, hein, mademoiselle? Montmorency gritou.

— Outra fuga, capitão!

Bem naquele instante, um novo grito ecoou do outro lado. Mas os guardas não o consideraram nada de incomum. Avignon estava usando o caos no pátio para cobrir uma nova fuga naquela cela com o guarda. E aquilo era bom, seja lá como o estivesse fazendo aquilo.

Eu nunca soube. A voz dentro dela era pensativa.

O capitão de rosto avermelhado arrastou-a com ele enquanto inspecionava a cela vazia. Seu rosto era irado quando voltou-se para ela.

— Por que estava aqui, garota? — Olhou em volta. — Quem a deixou entrar?

O jovem guarda deu de ombros e recebeu um olhar duro de Montmorency. Engoliu em seco.

— Ela pagou um bom dinheiro por uma visita, capitão. O homem segurava seu braço com tanta força que deixaria hematomas.

— Aposto que pagou. — Ele a sacudiu. — O que você tem a ver com tudo isso?

— Nada — Françoise conseguiu responder.

— Veremos. — Empurrou-a à sua frente.

Ela tropeçou, e esticou as mãos para se proteger da queda iminente.

Tudo aconteceu em câmara lenta.

Projeto Revisoras 71

Em um minuto estava estatelada no chão de pedras irregulares, no outro, apoiada nas mãos e joelhos, levantava a mão para olhar o ponto que ardia. Estava arranhada. O sangue jorrou pelo pequeno ferimento.

É só um arranhão, pensou.

Não! Será a danação da sua alma, exclamou a voz desconhecida que teimava em sussurrar em seu ouvido, como se viesse de dentro para fora. O começo do fim que não tem fim. Ouça-me, sua tola. Agora você não tem escolha. Tem que matá-lo, ou... ou fugir esta noite mesmo, e nunca mais vê-lo enquanto viver.

Estaria a voz mudando de idéia sobre matar Henri?

O mundo voltou a se mover. O capitão a levantava. Ele a levou pela arcada até a guarita. Os prisioneiros, despertados pela confusão, pressionavam-se contra as barras. Era assim que um hospício deveria ser, embora nunca tivesse visto um.

— Você sente-se aqui — ordenou o capitão, empurrando-a para uma cadeira.

Um grito ecoou pelos corredores.

— Maldição! — resmungou o homem. Os guardas se apressaram pelo caminho feito por ambos, deixando-a, surpreendentemente... sozinha.

Françoise levantou-se, olhou para o baralho abandonado, espalhado sobre uma mesa, os restos de uma torta de carne, vários copos de cerveja, alguns casacos e capas... Então, correu para a rua. Para onde ir? Não tinha nenhum outro lugar, além da casa de um certo duque que lhe dera abrigo no momento em que mais precisara.

Se ele não é o que eu pensava... se tem honra e coragem... A voz fez uma pausa, como se confusa com aquela nova situação. Então nunca a deixará ir. Virá atrás de você em algum ato de bondade e responsabilidade. Dai fará de você algo com que não conseguirá viver, mesmo que por acidente. Por isso, trate de matá-lo logo!

— Não vou matar ninguém! — E também não podia deixar a casa de Henri. Não tinha para onde ir. Pôs as mãos sobre os ouvidos enquanto corria, mas isso não ajudou. Sua cabeça doía tanto que quase não enxergava o caminho.

Não há escolha, amiga.

Correu até ficar exausta, depois andou, voltou a correr. Corria para a casa de um homem que podia chamar a escuridão e desaparecer, que tinha olhos vermelhos, que não era humano.

Apesar disso, não mataria Henri. Claro que não!

Mas ele não era humano...

Capítulo IV

Projeto Revisoras 72

Jean abriu a porta. Françoise cambaleou para dentro, buscando ar.

— Mademoiselle! — Jean falou, levando-a até uma cadeira. — Está tudo bem?

Como assim?

Pegue a bolsa de couro, ordenou a voz que teimava em se fazer ouvir em meio ao turbilhão de emoções que a dominava. Você deve se salvar. Não há muito tempo.

Levantou-se, completamente trêmula. Jean parecia horrorizado ao vê-la. Ela passou os dedos pelos cachos dourados.

— Quando o duque chegar diga-lhe que...

— Mas Sua Graça já está aqui. — O rapaz parecia surpreso. — Está na biblioteca.

Françoise piscou, confusa. Como Henri teria chegado ali antes dela? Não ousaria usar a carruagem.

Pegue a bolsa de couro! A voz gritava.

Controlou-se e afastou a voz para longe. Ela o confrontaria. Afinal o duque tinha o direito de se defender. Diria que sabia de sua visita à prisão que vira o turbilhão negro.

O medo ameaçava fechar sua garganta.

Afastou-o de novo. Havia uma explicação. Tinha de haver. Um monstro não estaria resgatando famílias da guilhotina. E não se podia matar uma pessoa para evitar um erro futuro.

Até a voz vacilou.

Engoliu em seco e normalizou a respiração.

— Posso lhe trazer algo? — Jean estava preocupado. Françoise recusou.

— Irei me juntar a Sua Graça na biblioteca. — A cabeça começou a latejar.

Não entre lá. Deve ser agora. Aconteceu na biblioteca, embora na última vez eu não tenha ido até a Conciergerie como você fez esta noite.

Pelo amor de Deus, o que a estranha voz dizia nem mesmo fazia sentido! Algo dentro dela lutava para sair. Era quase tão assustador quanto ter visto Henri com olhos vermelhos antes de ser engolfado pelo turbilhão negro. Parecia haver duas pessoas em um só corpo. A dor atingiu suas têmporas enquanto Françoise tremia, à porta da biblioteca. Devia estar enlouquecendo.

— Sou mais forte do que isso — sussurrou para si mesma. — Estou no controle.

Abriu a porta.

Henri girava o brandy em um copo de cristal. Dessa vez, a lareira para onde olhava estava acesa. Fazia frio, muito frio.

A sensação de perigo que pairava no ar deveria estar vindo daquela premonição que pressagiava uma grande tempestade. Ou poderia vir de Henri, ou

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do fato de algo dentro dela querer cometer um assassinato.

De súbito, ele virou-se para encará-la. Como sempre, estava impecável, sem um cabelo fora do lugar. Os olhos negros estavam indecifráveis. Não podia ver as manchas prateadas de onde estava. Percebeu que pouco o conhecia. Deveria ser um filho mimado de algum nobre benevolente.

Françoise sacudiu a cabeça, tentando minimizar a dor e falou de chofre:

— Você esteve na prisão esta noite — Ele não deu nenhuma mostra de consternação ou surpresa, apenas esperou. — Você os resgata.

Uma risada cínica emergiu dos lábios carnudos.

— Não sei o que pensa que viu...

— Ouvi sua voz. Era você. Ou está se referindo aos olhos vermelhos e ao turbilhão negro? O que foi aquilo?

— Sua imaginação, é óbvio.

— Não imaginei nada. Ou explica quem... ou o que você é, ou...

— Ou o quê?

Ameaçar um homem que não era humano? Ridículo! Saia desta sala. Agora mesmo! A dor em sua cabeça ficou insuportável.

Ele atravessou a sala, o copo na mão.

— Acho que você deve juntar-se aos outros no depósito pelos próximos dias até que eu possa tirá-la daqui.

— Não contaria a Robespierre e madame Croute quem está por trás das fugas, se é o que está pensando. Eles são vis, e seja lá o que você for, ao menos está tentando salvar vidas.

— Vá e arrume as malas. Mandarei Gaston...

— Quero saber o que você é. — Segurou-o pelo pulso com uma das mãos e sentiu a eletricidade.

Não, Françoise, não!

— Você não quer saber nada sobre mim. — A face aristocrática se endureceu. Henri olhou para a mão dela em seu pulso.

E então a mesma cena de antes teve início. Tudo começou a se mover muito devagar. Sua outra mão apertava o copo, como se ele desconhecesse a própria força. O vidro se partiu, espalhando cacos pelo tapete. A mão enorme estava cortada em vários lugares. O sangue jorrou em profusão.

Instintivamente, Françoise esticou-se para ajudá-lo.

— Não! — Henri gritou simultaneamente à voz que eclodia dentro dela.

Françoise recolheu a mão num reflexo de momento, bem a tempo de se proteger daquele contato que a transformara em uma vampira dois séculos antes.

O alívio a invadiu. Não entendia por quê. A dor em sua cabeça diminuiu. Ainda se sentia cheia, quase transbordando. Algo se contorcia e lutava dentro dela. Estava dividida por dentro, como se estivesse quebrada ao meio como o copo.

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Então, de repente, tudo passou a fazer sentido e, naquele instante, tornou-se de fato duas.

Conseguimos! Não aconteceu do mesmo jeito de antes.

Françoise tentava respirar. A voz estava mais forte que nunca, e mais distintas. Não era a dela. Sentia isso agora. E aquilo era inacreditável.

— Sinto muito — lamentou Henri com expressão preocupada. — É um arranhão na sua mão?

— Eu caí na prisão hoje à noite.

Ele encarou a pele ferida e empalideceu.

— Meu Deus, garota, você podia ter...

Ela não conseguia tirar os olhos da mão dele por algum motivo. E, o mais estranho era que, enquanto olhava, os cortes se curaram sozinho.

Françoise ofegou.

— O... O que foi isso?

Ainda não estamos a salvo da infecção. Apenas ganhamos tempo.

Henri olhou a própria mão. Os cortes já eram marcas vermelhas. Respirou fundo.

— Isso é parte da minha doença — explicou. A voz estava trêmula. — E você por pouco não foi infectada.

Ele usou a mesma palavra que a voz dentro de sua cabeça repetia: infecção. Estavam todos ficando malucos?

Você quer ser como ele, sua cabeça-oca? Saia da sala. Agora! Henri é um monstro.

Um monstro? Mesmo? Como? Um monstro que salvava crianças da guilhotina? Sentiu um momento de incerteza naquela outra parte de si mesma. Ela não falava daquele jeito. "Ganhamos tempo". "Sua cabeça-oca". Aquilo provava que a voz não era dela. Ninguém mais falava daquele jeito, também. Lutou para colocar-se de pé.

Henri não se moveu para ajudá-la; em vez disso, puxou a sineta chamando um criado.

Em alguma parte dela, a certeza era completa.

Não importa que o caráter dele não seja o que eu pensava. Você ainda deve se proteger. Ele a infectará, se não hoje, amanhã. Não gosto disso mais do que você, mas é autodefesa. Tem que matá-lo. Ele provavelmente infectará outros também, se isso a faz se sentir melhor sobre o que tem afazer.

Matá-lo? Não podia matar ninguém. Especialmente, Henri.

Sua cabeça começou a doer outra vez.

Jean apareceu à porta.

— Por favor, traga uma bacia com água, sabão e alguns panos.

Os olhos de Jean se arregalaram, mas tudo o que falou foi:

Projeto Revisoras 75

— Sim, Vossa Graça.

Françoise se sentou em uma das poltronas, uma guerra acontecendo dentro dela, com punhaladas de dor que a faziam querer gritar.

A bolsa. Você precisa da bolsa.

Sua garganta estava fechando. Estava tão cheia! Tinha que acabar com aquilo que estava lhe acontecendo. Segurou sua cabeça.

— Não matarei — sussurrou, enquanto se balançava para a frente e para trás.

— O que disse? Você está bem?

— Eu... — Ela sufocou um soluço. — Tenho de ir. — Levantou-se e saiu pela porta, deixando-o perplexo. Não conseguia pensar em nada, exceto que queria que a dor parasse.

Bom Deus, quase a infectara. Henri esfregou a boca. O que teria feito? Observado-a morrer, enquanto seu corpo rejeitava o Companheiro? Olhou para o próprio rosto refletido no espelho acima da lareira.

O rosto de um vampiro. Apenas quando chamava seu poder para se deslocar e a escuridão se tornava muito densa para permitir a passagem da luz seu reflexo desaparecia.

Não poderia tê-la deixado morrer. Teria lhe dado seu sangue para lhe conceder imunidade.

A percepção o atingiu como um golpe físico.

Aquilo violaria a regra principal de sua espécie. Se alguém fazia novos vampiros e eles, por sua vez, criavam outros vampiros, onde aquilo acabaria, se não em guerra com a humanidade e escassez de Sangue para tantos?

Mas ainda assim o teria feito, com ou sem regras.

Ele... se importava com Françoise como não se importava com ninguém havia séculos, a despeito dos que salvara da guilhotina.

Teria cometido o mais grave pecado por ela.

Isso significaria que a amava?

Nunca descobriria. Seria também o mais grave pecado contra ela. Nenhuma mulher queria ser um monstro. Françoise o insultaria por isso. Não podia arriscar outro acidente. Ela já sabia demais a seu respeito. Então, se manteria a distância, insistiria que era tudo sua imaginação, e a embarcaria para a Inglaterra no fim da semana. Não podia confiar em si mesmo.

Pegue a bolsa. A voz comandava, inexorável. Era mais forte do que ela. Começou a correr, atravessando a cozinha onde Jean estava saindo para a noite morna, para os estábulos. Abriu a porta do esconderijo.

Ofegante, tropeçou e caiu em frente ao feno, atrás do qual escondera a sacola de couro, depois de tê-la mantido embaixo da cama por alguns dias,

Nós não temos escolha. A voz soava como se também ofegasse. Françoise podia ouvir o desespero e a dúvida contidos naquela ordem. Mas as pontadas de

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dor não paravam.

Com um gemido, remexeu no fecho estranho. A boca da sacola abriu-se como uma fera faminta. Dentro, a espada luziu. O roxo suave e o rosa das garrafas apareceram abaixo dela.

— Não. Em nome de Deus, não! — Arfou, enquanto lágrimas desciam por seu rosto. Devia achar um modo de banir aquela voz perversa para longe, — Não sou forte o bastante para decapitá-lo!

Aquilo fez com que á voz recuasse. Houve uma pausa.

É verdade. Havia me esquecido de como era fraca, surda e cega. Outra pausa. Está bem, está bem... Deve haver outro jeito. Também não quero que o mate. Mas não podemos tê-lo atrás de você, se o abandonar.

A dor amainou um pouquinho.

— Ele não me ama. Não virá atrás de mim.

Não aposte a eternidade nisso, agora que Henri parece ter alguma moral. A voz era amarga. Tudo bem. Você lhe dá a droga e o deixa. Fará isso hoje à noite. E ele a odiará para sempre, então não deixará que se aproxime nunca mais. Combinado?

A dor diminuiu a ponto de deixá-la pensar de novo.

Sim. Tinha de abandonar Henri. Ele jamais a amaria. Não aceitaria ser mantida como amante. Não tinha futuro com ele, por mais que isso a desesperasse.

O que faria sem emprego ou outro modo de se sustentar, não sabia. Mas o que importava, sem Henri?

— Sim, combinado.

Esconda isso em sua saia. Rápido!

Sufocando e tossindo como se sua garganta estivesse cheia, Françoise cambaleou de volta à casa. Foi até a biblioteca sem encontrar ninguém.

Em frente à porta, a voz disse:

Pare! Agora se acalme. Respire.

Conseguiu engolir. Inspirou uma vez. Duas. Três. Mais devagar. Enxugou os olhos.

Melhor.

A porta da biblioteca se abriu. Jean saiu com uma caixa de madeira da escrivaninha.

Do interior do aposento, Henri avisou:

— Enterre isso no parque. Ninguém toca no vidro.

— Sim, Vossa Graça.

Françoise entrou na sala. Ele estava de quatro no chão, uma posição nada nobre. Esfregava o carpete com um pano e uma bacia. Ela piscou, surpresa.

Até a voz pareceu estupefata.

Henri está tentando não infectar ninguém... Merde! Eu estava mesmo errada.

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Ele se levantou e limpou as mãos no pano, preocupado.

— Você está bem? — Deu um sorriso incerto. — Foi só um pouquinho de sangue.

Parecia abalado.

Certo. Um pouquinho de sangue. E um pequeno parasita dentro dele que muda você para sempre.

— Estou melhor — disse ela. A dor de cabeça tinha sumido, mas sabia que a voz podia trazê-la de volta a qualquer momento. Tocou a garrafa macia que segurava nas dobras da saia. Estava ouvindo vozes; devia estar maluca.

Deixe de ser tola. Faça-o falar. Sirva-lhe um drinque.

— Você... Você quer explicar? — perguntou a Henri. Ele nunca vai lhe contar. É um segredo, grande e ruim.

— E não tente me dizer que é minha imaginação — acrescentou.

Ele fixou o olhar no pano em suas mãos, aparentemente dividido. Respirou fundo e encarou-a, ainda em dúvida.

— Tenho uma doença em meu sangue.

É um modo de dizer.

— E quanto à sensibilidade à luz? — Tinha visto aquilo antes, quando o rosto dele ficara empolado.

— Um efeito da doença.

Meias-verdades.

— E os olhos vermelhos também?

— Sim, é um pigmento que reflete a luz. Como os olhos dos animais, à noite.

Ah, essa è boa! Sem previsão de confissões. Então, vamos fazer isso logo e dar o fora daqui.

Françoise juntou os lábios com força e cruzou os braços ao ouvir a voz insistir. Daria outra chance para uma explicação verdadeira.

— Difícil de crer, mas esperto. E sobre a espiral negra que o faz desaparecer?

Ele desviou o olhar. Não havia modo de explicar aquilo.

— O que quer de mim?

Françoise encarou-o com mil pensamentos conflitantes. A voz o queria fora de sua vida para sempre. Mas ela desejava sentir aqueles braços ao seu redor, escutar seu coração batendo, sentir o exótico aroma de canela e ouvi-lo dizer que a amava acima de tudo. Queria que a beijasse.

Você está perdida, garota. Melhor sairmos daqui agora mesmo. O peso da garrafa macia em sua mão direita pareceu triplicar. Prepare-lhe um drinque.

O próprio fato de querer que Henri a beijasse significava que a voz estava certa. Tinha que deixá-lo o quanto antes. Já era noite:

— Não sei o que quero — Françoise admitiu, em voz baixa. — Talvez a

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verdade. Talvez eu só queira um drinque:

Dirigiu-se à mesinha onde estava a garrafa de brandy. Pelo canto dos olhos, o viu apoiar o cotovelo na lareira e colocar o pé ali, em uma pose que se tornara habitual nos últimos dias. Olhava para a lareira que esfriava.

De costas para ele, Françoise pegou a macia garrafa roxa e pressionou sua tampa. Um lado se levantou.

— Está na hora de levá-la até o depósito. O Maiden Voyage parte para a Inglaterra em quatro dias. Pegará a barca para encontrá-lo em três dias. Jennings cuidará de você até lá.

— É onde os mantêm? Aqueles que você resgata?

— Sim. Há quartos escondidos atrás da parede dos fundos.

Ela colocou mais do medicamento no drinque, Se a droga pudesse matá-lo, a voz não a pressionaria a usar a espada. Olhou para trás, mas ele ainda encarava a lareira. Iria odiá-la. Os próximos instantes seriam a última vez que o veria. Escondeu a garrafa atrás de um vaso Sèvres e serviu o brandy. Serviu um drinque menor para si mesma.

Segurando o fôlego, pegou os dois copos e se virou.

Henri estava tão lindo, ali de pé. E fora gentil com ela. Mais do que gentil, aliás.

Faça! Ou eu juro que a deixo maluca de verdade.

Exibiu um sorriso forçado e estendeu-lhe o copo.

— Você faz um bom trabalho, então. — Ela iria se odiar por isso, tanto quanto ele.

Henri pegou o copo.

— Nunca é suficiente. Nunca. Você viu a prisão. Tentou respirar. Ele tomou o drinque em vários goles.

— Mas tem que ser feito — continuou. — E minha condição me faz adequado...

Ele se perdeu no meio da frase, a boca comprimiu-se formando uma linha rígida, e chacoalhou a cabeça. Colocou seu copo no apoio da lareira. Françoise notou que estava tremendo. Quando faria efeito? O que ele faria se percebesse o que ela fizera?

Henri tomou fôlego como se para dizer algo, piscando rapidamente algumas vezes. Seu olhar deslizou para o copo na lareira, e dali para Françoise. Seus olhos se endureceram. Olhou para a sala e viu a garrafa aparecendo atrás do vaso. No mesmo instante, sem hesitar, tentou chegar até ela.

— Sua pequena tola — sussurrou. — Onde conseguiu este láudano tão concentrado?

Seus passos ficaram lentos. Praticamente caiu sobre a mesa enquanto agarrava a garrafa, os olhos a questionando.

— O que...?

Depois seus olhos rolaram para trás e Henri desabou no chão. A garrafa

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deslizou da mão, agora frouxa.

Françoise correu até ele e se ajoelhou.

O que fizera?

Ele não está morto. Apenas tomou morfina suficiente para derrubar um elefante, só isso.

O que a voz sabia? Sentiu o pulso dele na garganta, sob a gravata. Estava lento e estável. Françoise suspirou de alívio. Não estava morto. Agora podia seguir adiante e viver a vida de vergonha e arrependimento que lhe restasse.

A voz que habitava o outro lado de sua mente surpreendeu-se com aquele pensamento.

Você não vai se arrepender disso.

— Sim, vou — murmurou Françoise. Um tumulto soou no hall. Vozes alteradas, o som de passos. Ela levantou-se, com o coração descompassado.

— Onde ele está, homem?

— Nós o encontraremos, de qualquer maneira.

O barulho se aproximou. Françoise olhou para a figura de Henri, esparramada no tapete, as duas partes dela apavoradas. Antes que pudesse fazer algo, a porta foi escancarada e o pequeno homem que tinha começado a odiar atravessou a entrada, com soldados uniformizados a seu lado. Ao ver Henri inconsciente, parou. Seu olhar varreu Françoise, a sala, depois voltou para Henri. Um sorriso cruzou sua boca.

— Bem, bem. — Robespierre atravessou o carpete e empurrou-lhe as costelas com um pé. O peito de Henri subia e descia. — Nunca tinha visto Foucault bêbado. Certamente não estava bêbado quando esteve com você na Conciergerie esta noite, libertando prisioneiros.

Então eles sabiam que era Henri. Isso era ruim. Pior, haviam conectado-a às ações dele.

Se eu não tivesse o impedido de tocá-la, ele a teria levado até um sótão para lhe dar seu sangue. Não estaria em casa quando esses idiotas chegassem. Isso tudo é novo, não aconteceu da primeira vez.

Françoise sentiu seu rubor se intensificar. Que linguagem! E o que a voz queria dizer com aquilo de Henri lhe dar seu sangue?

Madame Croute entrou empurrando os soldados, que se espalharam pela biblioteca.

— Ele não está morto, está?

Robespierre balançou a cabeça, seu rosto parecendo confuso.

— Mas está inconsciente.

— Bom. Odiaria perder a chance de interrogá-lo. — Os olhos dela eram cobiçosos.

Françoise podia ver Gaston e Jean no corredor. O mordomo espremia as mãos com força.

Robespierre andou até onde estava a opaca garrafa roxa e abaixou-se para

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pegá-la. Cheirou-a e recuou com desgosto.

Madame Croute a tomou dele e cheirou.

— Láudano? Não... exatamente.

— Deve ser aparentado. — Robespierre voltou-se para Françoise. — Talvez a tenha julgado mal. Quando a vimos lá, tivemos certeza de que era ele quem estava cometendo estes atos criminosos contra a república. Considerávamos você uma cúmplice. Mas não estavam juntos nisso, não é? Você foi para confirmar suas próprias suspeitas, depois agiu baseada no que viu. Fez o trabalho do povo esta noite.

Eles pensavam que ela havia drogado Henri para entregá-lo ao Comitê de Segurança Pública? Pior, só estavam ali porque sua presença o trairá.

— Como ele faz? — perguntou Robespierre.

Tinha de se manter fora da prisão se quisesse ajudar Henri. Não podia abandoná-lo naquele momento.

— Eu... eu não tenho idéia. — Aquilo, pelo menos, era verdade. — Vi o mesmo que os guardas.

A voz suspirou.

Você não vai embora, mesmo que eles a deixem ir.

Robespierre franziu as sobrancelhas.

— Dizem que ele desaparece. Alguma ilusão, claro.

O que, nenhuma menção a olhos vermelhos ou turbilhão negro? Talvez ninguém queira contar.

Madame Croute se ajoelhou ao lado de Henri.

— Este é perigoso. Devemos tomar precauções extras. Eu o quero acorrentado, sozinho, em plena vista dos guardas o tempo todo. Dispam-no para ter certeza de que não possui armas. — Ela acariciou-lhe a linha do maxilar. — Não precisam ser gentis. Logo irei interrogá-lo.

— Você crê que uma interrogação rigorosa é um serviço adequado para uma mulher, minha querida? — questionou Robespierre.

Ele realmente não sabe nada a respeito dela, não é? Françoise teve uma sensação horrível no estômago. Madame Croute apenas sorriu.

— Terei o que precisa. A única pena é que teremos de esperar até que o efeito da droga passe antes que ele possa sentir alguma coisa.

Ao dizer isso, virou a estranha garrafa em suas mãos, apertou-a e ofegou quando o material voltou à sua forma original.

— O que é isso? Feitiçaria? — Estreitou os olhos para Françoise.

— Avignon importou. Um novo tipo de garrafa — mentiu.

Eles o colocarão na Place de Ia Revolution no fim. Foi o que aconteceu da última vez, segundo Donna. Talvez a guilhotina seja a melhor resposta. Mas a voz não parecia certa. Ele não poderá infectá-la se estiver morto.

O que aconteceu da última vez? O que aquilo significava? Guilhotina, a

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melhor resposta para algo? Quem è a maluca agora? Françoise respondeu, em pensamento. Se a voz podia ouvir seus pensamentos, não precisava responder em voz alta. Eles vão torturá-lo para descobrir onde esconde os prisioneiros. Henri não merece isso. E não vou permitir que lhe cortem a cabeça!

A voz ficou em silêncio. Talvez não a tivesse ouvido.

— Você fez um bom trabalho, minha criança. — Robespierre sorriu gentilmente. Como podia? Quando ia permitir que sua amante horrorosa torturasse Henri? — Você tem a gratidão do Conselho Revolucionário.

Os soldados arrastaram o corpo, passando por Gaston e Jean. Ela o traíra!

Santa Maria, me perdoe. Não tinha certeza de qual das duas pensara isso.

Madame Croute encarava Henri.

— Você gostaria de me ver interrogá-lo, criança? — Ela olhou para Françoise. Sua expressão era distante, serena, como se já não estivesse mais ali. — O processo é deveras... excitante. Ou prefere esperar pela guilhotina?

Françoise sentiu seus joelhos tremer. Sacre dieu, o que fizera? Olhou de um para outro, depois para Gaston, que a encarava. Jean apenas parecia confuso. Madame Croute a fitava, encorajadora.

— Vou esperar. — Não estava certa em que voz tinha conseguido responder, a sua, ou a da outra mulher que ocupava seu corpo e mente.

Françoise ficou com Gaston e Jean olhando a porta da frente se fechar. Fora, o bater de botas, o som de cascos e os gritos afastaram-se. Sentia-se cheia e vazia ao mesmo tempo.

— Por quê? — quis saber Gaston. — Depois de toda a bondade dele?

Françoise sentiu as lágrimas rolar por suas faces.

— Nunca quis que isso acontecesse.

Era verdade. Não podia dizer que uma voz interior, que podia na verdade ser parte dela, queria matá-lo. Nunca deveria ter deixado que a convencesse a drogá-lo! Se tivesse sido mais forte!

— Não podia aceitar que ele me mantivesse, aqui ou na Inglaterra. Não podia ficar perto dele... — Porque Henri a infectaria. — Por razões que não posso explicar. E então percebi que ele poderia estar ajudando aquelas famílias que encaravam a guilhotina, e que nunca o conhecemos de verdade, nenhum de nós. — As palavras se atropelavam. — Quando fui à prisão para ajudar algumas pessoas, não sabia que minha mera presença ali o condenaria. Nunca quis que fosse capturado. Queria lhe dar a droga para que me odiasse por isso, e não viesse atrás de mim.

De repente, seus joelhos não mais suportaram seu peso. Françoise afundou no piso, soltando os soluços presos em sua garganta.

Gaston abaixou-se e deu-lhe tapinhas nas costas.

— Pronto, pronto, ma petite. Encontraremos um meio de libertá-lo.

Ela assentiu, mas percebeu que o mordomo não acreditava nisso.

— Não queria que o levassem — repetiu.

— Bem, temos algum tempo. Não vão torturá-lo até o efeito das drogas

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passar. — Gaston ponderou. — Talvez o general possa dizer algo a favor de Sua Graça...

Aquilo soou vago.

Mas era tudo o que tinham.

Por um instante, Françoise imaginou por que a voz, tão decidida a afastá-la de Henri poucos momentos atrás, estava agora em silêncio enquanto ela fazia planos para conseguir libertá-lo. Talvez estivesse envergonhada pelo fato de o terem entregado às sandices de madame Croute.

Henri conseguiu abrir as pálpebras. Pareceu um esforço monumental. A escuridão era pontuada por coroas de luz. Não parecia capaz de mover seus membros. Algo o arranhava, não conseguia dizer o quê. Um vermelho embotado o cercava. Seria seu Companheiro, tornando o mundo vermelho? Não. Apenas partes eram vermelhas. Punhos, colarinhos. Uniformes. Vozes ecoavam. Não conseguia entender. Estavam gritando com ele?

Suas mãos estavam acima da cabeça. Algo as puxava, arrastando-o sobre pedras. Era isso que o arranhava. O guarda andando a seu lado o chutou nas costelas, mas não sentiu. Tudo estava muito distante. Risadas ecoaram, profundas e masculinas, ao seu redor, distorcidas em algo infernal.

Ela fizera aquilo. O drogara. A única maneira certa de subjugar seu Companheiro. Deveria saber o que ele era, afinal. E ficara tão apavorada que o traíra. Era a única coisa que o machucava de verdade. A traição da única mulher que conseguira amar depois de séculos de solidão...

Françoise andava pelo quarto, insone, apesar de ser quase quatro horas da manhã.

Sentou-se, de repente, em uma cadeira pela qual passava. A lua brilhava através das janelas abertas para pegar qualquer brisa no calor de julho. Seus pensamentos eram uma mistura de fragmentos exaustos.

Talvez eu possa me infiltrar com outra daquelas garrafas e drogar os guardas, pensou. Implausível e suicida. Onde estava a voz mandona agora, que precisava de instruções?

— Você tem estado notavelmente silenciosa — sussurrou.

Estou pensando.

— Espero que seja em um modo de libertá-lo. Você diz que ele é um monstro, mas não é.

Alô, olhos vermelhos, turbilhão negro? A voz tinha um modo estranho de falar.

— Alô, você! As ações de Henri não são de monstro.

Você... você pode estar certa... Nunca soube disso a seu respeito na primeira vez.

— A alma de um homem faz dele um monstro, e não o que... — Françoise

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engoliu em seco. — ...não o que ele pode fazer que outros não podem. Madame LaFleur disse que eu devia olhar além da superfície.

Conselho que eu não ouvi da primeira vez... É um dos motivos pelos quais estou pensando.

O que levantava outro assunto. Um que Françoise não podia mais evitar. Nunca perguntara por medo de não querer saber a resposta.

— Quem é você? — sussurrou.

Não acreditaria em mim se eu contasse.

A voz soava tão exausta quanto ela. Ou talvez fosse cansaço do mundo, um estado além da exaustão.

— Por que eu sinto como se já tivesse feito tudo isso, visto tudo antes? Começou quando comecei a ouvir você.

Françoise vasculhou sua mente, mas nada ajudou-a a desvendar o mistério.

— Bem, vou ajudá-lo. E não tente nenhum truque como dores de cabeça. A única coisa que vai conseguir é que eu me atire da Ponte Neuff. E daí onde você estaria?

Estou pensando nisso também.

Henri apertou mais os olhos, depois os abriu. Ainda estava confuso, mas não tanto quanto antes. A dor atravessou-o em ondas de náusea. Engoliu, tentando controlar seu estômago. Pelo menos isso significava que o efeito das drogas estava passando. Inspirou o cheiro fétido da prisão. Odor corporal, umidade, urina, sangue...

Piscando, tentou ver ao seu redor. Estava acorrentado, nu, no meio da cela, por correntes longas e muito pesadas, que passavam por anéis no teto baixo e estavam presas a mais anéis aferrolhados à pedra em ambos os lados da cela, e bem fora de alcance. Sangue surgiu em seus pulsos, causado pela bordas ásperas das algemas. A droga ainda retardava sua cura. Isso era ruim. Se alguém com uma ferida aberta o tocasse, estaria morto em horas. Olhou para baixo. Seus tornozelos estavam presos a dois anéis no chão. Estava de braços e pernas abertos. Restrição eficiente, se fosse um homem comum. Não o seguraria, uma vez que a droga saísse de seu corpo. Até lá, ficaria preso.

A luz de tochas flutuou pelo corredor, apesar de o sol estar alto no exterior. Um guarda marchava em frente à cela. Não, dois, com as mãos nos punhos das espadas. Um terceiro estava de pé nas sombras, com duas pistolas, carregadas e armadas, apoiadas nos ombros.

Companheiro! Chamou o ser que habitava seu corpo, para ver se ele respondia. Seu sangue moveu-se preguiçosamente. Nada próximo de lhe dar a força necessária para puxar os anéis das paredes ou se deslocar. Mas podia sentir outra vez. Sua cabeça doía como o diabo. Tinha algumas costelas quebradas. Respirar era doloroso.

Françoise o drogara. O pensamento o corroía mais que as costelas ou a cabeça. Estaria mancomunada com Robespierre e sua amante infernal? Ele precisava sair dali. Mas como? Precisava de um plano. Todavia, não podia pensar...

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Sua cabeça caiu devagar para o lado enquanto ele imergia nas águas turvas da inconsciência.

Algum tempo depois, acordou novamente. O sol havia se posto. Alguém estava abrindo a porta da cela.

— Traga aquilo para cá. — Era uma voz feminina. Inculta. Croute! Sua silhueta desenhava-se contra a luz das tochas que os guardas seguravam. Eles trouxeram um braseiro, e o colocaram sobre um tripé. Outro guarda trouxe uma pequena mesa dobrável. Colocou-a próxima ao braseiro e deixou ali uma caixa com facas que luziam como luas crescentes prateadas.

Croute deixou seu olhar vaguear sobre o corpo de Henri, demorando-se nos genitais pendurados entre suas coxas separadas, então andou ao seu redor lentamente.

— Ora, ora. É um belo espécime. Aristocratas cuidam bem de seus corpos. Será um prazer trabalhar com você. — Ela tocou suas nádegas.

Henri cerrou os dentes. Tentou chamar o Companheiro. Um lento rolar de pressão deslizou por suas veias, mas o mundo não ficou vermelho. Não conseguiria escapar das garras desta mulher por pelo menos mais algumas horas. Deveria suportar o que ela fizesse. Seria dor, só isso. Talvez até amortizada pela droga ainda em suas veias. Sobreviveria, sempre o fizera. No final, não teria nem cicatrizes.

Croute aproximou-se mais. Abaixou-se e ergueu seus testículos, exibindo o pênis. Ele nunca se sentira tão vulnerável.

— Impressionante. Talvez haja um modo de você evitar meus serviços, pelo menos por um tempo.

— Improvável — rosnou ele.

— Você me desaponta. Bem, talvez mude de idéia. Enquanto isso, vou lhe fazer algumas perguntas. — Ela sorriu como se estivessem em um chá, e não prestes a executar uma dança de dor e horror. — Realmente espero que não responda de pronto.

A mulher insana examinou a caixa aberta com as facas. Escolheu uma curva, que parecia ter vindo do norte da África.

— Quero saber onde escondeu os criminosos. — Aproximou-se, segurando a faca, que refletiu a luz avermelhada.

— Prepare-se para mais desapontamento — Henri falou, beligerante.

O sorriso dela se ampliou.

— Você se recusa a responder? Ah, isso não me desaponta, de jeito nenhum. — Ela fez um corte em seu peito, sobre o mamilo.

Henri se encolheu. O sangue surgiu imediatamente. Podia não ser capaz de matá-lo, mas se causasse bastante dano muito rápido, o enfraqueceria. O que adiaria sua fuga ainda mais.

— Pelo menos agora sabemos que pode sentir.

— Mais do que você, maldita!

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A fúria cobriu-lhe o rosto de vermelho.

Françoise apressou-se a chegar a Conciergerie, os olhos cheios de lágrimas de frustração. Visitou três dos homens que conhecera na casa de Henri. Ninguém faria nada por ele. Temiam demais o Comitê, e uma vez que Robespierre o aprisionara, nada o salvaria. Eles lhe disseram isso repetidas vezes. O visconde a aconselhou a emigrar. O general, na mesma hora, ofereceu-se para sustentá-la, uma vez que precisaria de um novo "protetor". Dar-lhe um tapa pela impertinência provavelmente não a ajudaria em nada.

Todo o tempo perdido e não se encontrava mais perto de libertar Henri. Tinha de vê-lo. Talvez ele tivesse alguma idéia de como poderia agir. Gaston lhe dera gordos rolos de moedas de ouro para subornar os guardas. Queria acompanhá-la, mas ela o convencera de que não deveria parecer apoiar seu ex-patrão. A única chance da criadagem era retratar o duque como um mestre vil, que tirara vantagem deles.

Pensar no que podiam estar fazendo a Henri a deixava desolada. O efeito da droga já teria passado? Quem sabe até, ele já tivesse fugido em um turbilhão negro e se preocupava à toa.

Não, Henri não pode comandar seu poder até que o efeito da droga passe.

— Não estou falando com você — sussurrou, vendo a tarde se transformar em noite. Nunca deveria ter concordado em dar-lhe a droga.

Ainda assim, a voz parecia saber muito.

— O efeito pode passar o suficiente para que ele sinta o que estão lhe fazendo, e não o bastante para que consiga controlar seu poder? — Aquilo seria o pior dos mundos.

Talvez. Uma pausa. Provavelmente.

Françoise começou a correr.

Na guarita, havia a costumeira longa fila de pedintes. Lutou para chegar à frente, sob protestos e cotoveladas. Acenou para o jovem guarda, com cabelos ralos e bigode imenso, que já recebera sua contribuição.

— Ah! — Sorriu ele. — Vindo me visitar, docinho? — Tirou-a da fila.

Françoise manuseou as moedas e deixou que ele as visse.

— Henri Foucault, duque de Avignon.

Os olhos do guarda se arregalaram. Ele olhou em volta para certificar-se de que seus companheiros estavam concentrados no jogo de cartas.

— Esta visita será perigosa, mademoiselle.

— E, portanto, digna do preço exorbitante que estou disposta a pagar.

Os olhos do guarda dardejaram em torno do pequeno pátio que continha a guarita. Aquiesceu bruscamente. Françoise lhe entregou um punhado de moedas.

— Trouxe algo que não deveria, senhora?

Mas antes que ela respondesse, ele riu, guardando as moedas.

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— Que importa? O duque não vai poder esconder nada do que lhe entregar. Mas os guardas na cela precisarão de encorajamento, também.

Ela assentiu. Era perigoso que ele soubesse que carregava mais dinheiro. No entanto, o que mais poderia fazer? Deixou-se guiar para o corredor que saía do vestíbulo.

— Venha comigo.

Françoise apressou-se a segui-lo, correndo. Eles circularam pelo antigo palácio, passando pelas celas barulhentas, repletas de mulheres soluçando, crianças chorosas, e as súplicas daqueles mais próximos às grades. Uma cela estava totalmente escura e quieta, exceto por gemidos baixos e tosses úmidas. Cheirava a putrefação. Ela cutucou o casaco do guarda.

— O que é esta cela?

Ele abafou uma risada amarga.

— Estes não vão viver para visitar madame Guilhotina. Eles já estão mortos em tudo, menos no nome. Um fim rápido seria uma bondade.

Ela olhou por sobre o ombro enquanto se apressava à frente. Rezou para que Henri nunca fosse colocado ali. E notou que estava feliz que ele tivesse tirado o pequeno Emile e o pai daquele lugar. Não tinha idéia de onde eles estariam agora, mas qualquer lugar seria melhor do que aquilo. Quase deu um encontrão no braço estendido do guarda. Ele parar, de súbito.

— Shhh! — sibilou.

À frente, ela ouviu o bater de pés e risadas masculinas. O guarda a arrastou para um corredor lateral, voltando alguns metros. Pensou que ele esperaria que os guardas passassem e sairia. Em vez disso, rumou para o corredor mais estreito, cercado de celas menores dos dois lados. Ela o seguiu descendo por dois lances de escada, sempre mais para o fundo. Sua coragem começou a falhar. Não estaria o guarda a levando para algum lugar remoto, onde pudesse lhe roubar e estuprar?

O corredor não tinha mais celas. Apenas pedras que vazavam, pingando água. Pelo que sabia, podia estar abaixo do Sena. Quantos prisioneiros teriam gritado naquela masmorra ao longo dos anos? As paredes pareciam destilar a dor absorvida durante os séculos.

Chegaram a um corredor comprido e estreito. No final, o salão se abria, quase como uma caverna iluminada por tochas. Homens em uniformes azuis, ornamentados por lapelas e punhos vermelhos, postavam-se à frente de uma cela com pesadas grades de ferro.

— Bem, meus companheiros homadames des affaires — o guarda anunciou enquanto entrava no salão.

— Permitam-me apresentar uma dama que mudará o mês de julho para vocês.

Ele virou-se e estendeu um braço na direção de Françoise, que se escondia nas sombras do corredor.

Ela inspirou. Os três homens pararam, voltando-se para encará-la.

O que está esperando? Era isso o que você queria.

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Remexeu sua bolsa e separou dois rolos ali dentro enquanto pisava no salão, seu olhar vagando em direção à cela. Viu uma forma nas sombras lá dentro, pálida, pendurada em correntes, a cabeça escura descansando no peito.

Engoliu em seco. Não ousava pensar sobre Henri.

— Cavalheiros. — Saudou-os.

— Você vai causar nossa demissão, ou coisa pior, Ravelle. — Ele acenou para Françoise e apontou para sua bolsa.

— É só uma visita.

As expressões dos guardas iam do alívio à cobiça. Françoise contou dez moedas e as levantou. Um dos guardas mais jovens, com uma aparência composta por pústulas entre faixas de barba, tentou agarrar o ouro. Ela recolheu a mão.

— Sozinha. — Tinha que ver Henri sozinha. O guarda pareceu em dúvida. Ela sorriu.

— Aonde eu iria? — Ela relanceou o olhar pela cela sombria.

Estendeu a mão com o ouro novamente.

Viu alguns guardas mordendo o lábio ao olhar para as moedas brilhantes, contendo um ano de salário.

Então, o guarda com as pústulas retirou o ouro da mão dela e saiu de seu caminho.

— Estaremos bem aqui no corredor — avisou o guarda mais velho, enquanto pegava o próximo punhado de moedas e removia a pesada corrente que trancava a porta da cela.

Françoise colocou o último punhado nas mãos do terceiro guarda.

— Você também — disse para o seu guia.

Quando todos saíram para o corredor, e ela os ouviu especular sobre o que comprariam com seu suborno, virou-se para a cela. Seu coração deu um salto no peito.

Henri estava pendurado em correntes, nu. Não levantara a cabeça durante sua negociação.

Ao dar um passo à frente para abrir a pesada porta, sua mão tremeu. Ele não estava morto. Os guardas lhe teriam dito se estivesse. Mal discernia sua forma pálida, marcada com faixas mais escuras. Os músculos nos ombros e braços saltavam, mesmo com as correntes esticando seus membros. Seu abdômen liso estreitava-se até os músculos que marcavam a cintura e aninhavam seus genitais.

Ele não vai morrer por um pouco de tortura. As palavras podiam ser insensíveis, mas podia sentir na voz o medo do que encontrariam ali.

— Coragem — murmurou, meio para si, meio para a voz. Forçou a porta. Ela rangeu, era tão pesada que mal conseguia abrir.

Enquanto entrava na cela, seus olhos se acostumavam à escuridão. Colocou a mão sobre a boca para abafar um grito, para não trazer os guardas de volta correndo. O sangue vazava de dúzias de cortes. Peito, barriga, ombros, bíceps, coxas, alguém fizera cortes cuidadosos de cerca de dez centímetros em todo lugar,

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até em sua virilha, perto dos genitais. Entre os cortes havia escuras marcas de queimadura, e descorados de contusões. Henri levantou a cabeça. Seu rosto estava grotesco. Um olho estava fechado, o outro, era apenas uma fenda. O sangue vazava do que certamente era uma fratura no nariz. Seus lábios estavam inchados e rachados, bem como a pele sobre as maçãs do rosto. Ela apressou-se à frente.

— Henri — sussurrou. — Oh, Henri, o que fizeram? Suas mãos pairaram sobre o rosto dele.

Não o toque! Ele está sangrando.

— O que você planejou, espero. — A voz de barítono soou mais fraca que o habitual.

Claro que pensaria assim.

— Não, não! Você não entende. Eu só queria...

Mas não havia desculpas para o que fizera. Não podia se forçar a inventar uma.

— Veio se regozijar?

— Não! — Ela se afastou. — Tentei o dia inteiro fazer com que seus amigos o ajudassem. — Voltou-se para ele.

Uma risada fraca escapou dos lábios carnudos, agora inchados.

— Tenho certeza de que não conseguiu.

— Não deu. Os covardes!

— Por que está aqui, Françoise? — Era difícil para ele formular as palavras.

— Eu... tinha que lhe dizer... que sinto muito. Nunca quis que isso acontecesse. Só queria deixá-lo porque... — O que poderia dizer?

— O que eu fiz para você?

— Nada — ela quase gemeu. — Mas uma parte de mim... Essa parte achou que você me tornaria um monstro. Com o seu sangue. Sei que parece loucura. Tive sonhos... Com as garrafas. E havia uma espada. Para que eu a usasse. E quando eu quase encostei seu sangue no meu machucado, a voz dentro de mim começou a dizer que mesmo que eu tivesse escapado daquela vez, você me infectaria, cedo ou tarde. Tive uma dor de cabeça tão forte que não podia pensar, se não fizesse o que a voz queria. Mas não o mataria. Então, a voz disse que se eu lhe desse a droga, e fugisse, você me odiaria e não viria atrás de mim. — Silenciou. Tudo aquela loucura sobre vozes... O que ele iria pensar?

— Como você devia me matar? — ele indagou. Reunindo forças para encará-la.

Françoise fechou os olhos com força.

— Não sei, mas tinha que ser de um jeito específico. Só em pensar sinto náuseas. Talvez fosse toda essa conversa de guilhotina...

— Diga.

Françoise tomou fôlego.

— Decapitação.

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— Então você sabe o que eu sou — ele gaguejou. Era uma acusação. — Eu já imaginava!

— Mas eu não... não sei — lamentou ela. — Essa voz dentro de mim...

Onde estava a voz? Por que estava em silêncio? Talvez estivesse esperando, para ver o que Henri diria.

— Ela sabia.

— É horrível demais pára você aceitar — ele falava com dificuldade. — Mas você sabe sobre o sangue, como me subjugar, me matar. Você sabe o que eu sou. Por isso me entregou.

— Juro que não sabia que eles estavam vindo. Só queria fugir antes que algo terrível acontecesse e me mudasse para sempre.

— Você estava certa. Vá! Encontre Jennings. Ele a levará à Inglaterra.

— Não vou abandoná-lo à tortura.

— Vou me curar quando o efeito da droga passar. Quando virem isso, ficarão assustados demais para entrar na cela e me atormentar.

— Então chame sua escuridão e vá!

— Eu não quero sair. Devo mantê-los ocupados até que o navio esteja pronto em Le Havre. Ninguém estará a salvo até que o navio esteja longe. Até a noite de segunda-feira.

— São mais de três dias! — Seu estômago revirou. Ele ainda tentava salvar aqueles que ajudara a fugir. — Mande... a carga na barca esta noite.

Os guardas podiam estar ouvindo.

— Se o navio não estiver pronto para sair quando a barca chegar a Le Havre, a carga será devolvida.

— Eles não estarão vigiando as barcas, e seu depósito? Isso pareceu angustiá-lo e ele abaixou a cabeça.

— Vou pensar em algo. Vá até Jennings.

Ele está certo. Você tem de ir.

— Não vou deixar Paris até saber que você está livre. — A voz de Françoise tremia.

Viu-o reunir suas forças.

— Não pode admitir para si mesma o que sou? Sou um vampiro! — A palavra vibrou no ar úmido da cela. — Bebo sangue humano. Eu controlo mentes e me desloco. Compreende? Você tem razão. Sou um monstro.

Só poderia ser brincadeira. Vampiro? Algo que tomava sangue humano? A própria definição de monstro...

Odeio dizer isso, mas eu avisei.

Françoise estremeceu.

— Por que não me contou? — questionou mais à voz do que a Henri.

Ele curvou os lábios com amargura.

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— Humanos têm... aversão à minha espécie.

Você acha? A voz era amarga. E você, amiga, nunca acreditaria em mim.

Françoise estremeceu. Por mais chocante que pudesse ser, não podia negar a verdade. A sensibilidade à luz.

A cura espontânea. Ele, com certeza, virava morcego e sumia com os prisioneiros.

— Você bebe o sangue deles, dos prisioneiros? — Sua voz soou insensível, distante.

Henri desviou a face maltratada.

— Não.

— Então, quem mata para saciar sua necessidade?

— Não mato. — Ainda não olhava para ela. — Tomo um pouco de alguém diferente a cada quinze dias. Isso não os machuca.

Seria verdade?

Sim. A voz que a questionava era rancorosa. Mas isso não altera o fato de que toma o sangue deles.

Françoise olhou para Henri, seu corpo tão ferido, e a culpa a invadiu. Ela causara aquilo. Henri podia ser um vampiro, mas ainda era o homem que a acolhera em sua casa. Como evitaria que o torturassem se não desaparecesse? Espiou-o à luz tênue. Aquele corte acima do peito estava se curando? Seu nariz quebrado se endireitava, lentamente.

— Como você faz isso?

— Minha infecção é um parasita que tem... propriedades incomuns. Reconstrói o hospedeiro.

— Você é... imortal? — As palavras ficaram no ar.

— Exceto por decapitação. — Seu olho se abriu um pouco enquanto o inchaço cedia. Parecia mais humano, mas não era.

Como pudera acreditar que ele um dia poderia amá-la?

Os pensamentos de Françoise ricocheteavam ao seu redor. Pôs a mão sobre a boca para evitar se lamuriar.

Henri viu sua reação e afundou nas correntes, enquanto os outros cortes se curavam.

— Apenas vá — ordenou. — Jennings a manterá a salvo. Esqueça que o mundo tem criaturas como eu.

— Como posso ir, sabendo o que eles farão com você?

— Ficarei bem. E por que se importa? Sou só um monstro.

As lágrimas vieram em profusão. Ela engoliu, incapaz de responder.

— Guardas! — gritou Henri.

O bater de botas soou imediatamente. Françoise sentiu a presença deles atrás de si.

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— Acompanhem a moça até a saída.

Ele estava acostumado a dar ordens, sua certeza tão contaminada quanto o sangue de vampiro.

Uma mão tomou-lhe o cotovelo e a virou para a porta. As lágrimas caíam.

Apenas vá... O pensamento era só um sussurro em sua mente. O peso da crueldade que imperava entre as paredes da Conciergerie caía em seus ombros enquanto seguia os guardas para o mundo exterior.

Capítulo V

Françoise voltou à Place Royale, seus pés trabalhando por vontade própria. Henri era um vampiro. Qualquer um chamaria um vampiro, que tomava sangue humano, de monstro. Qualquer pessoa normal. Henri queria assustá-la dando nome ao que era. Mesmo assim, ela acreditava que era pelas ações de alguém que se mediam o homem e o monstro. E por essa escala, Henri era um bom homem.

E a despeito que era, não deveria estar preso e ser torturado por aquela mulher cruel. Só de pensar nisso a fazia enlouquecer. Não tinha esperança de que aquela Croute, que o havia machucado tanto, não iria fazê-lo de novo.

Você não pode salvá-lo. Sua única esperança é fugir com os prisioneiros. Se ficar aqui e por sorte ele escapar, então estará de volta à dúvida se o deixa ou o mata, ou é infectada e fica como ele. Não são alternativas atraentes.

Mas como os prisioneiros chegariam às barcas se o depósito de Henri estava sendo vigiado? E o que seria dos criados da casa se ficassem para trás, poderiam suportar o peso da ira de Robespierre? Não podia permitir isso.

Mas o que faria?

Do outro lado do parque, Françoise viu vários sans culottes rondando a casa. Parou e misturou-se às sombras do tronco de um elmo, onde a luz da tarde se escondia.

A multidão observava a casa de Henri.

— Você gosta tanto de dar ordens — sussurrou para a voz. — O que sugere?

Um jovem que passava dirigiu-lhe um olhar estranho. Falando sozinha no parque. Ah, céus!

Não sei de mais nada. Depois que você não se infectou quando Henri quebrou o copo, minha experiência é quase irrelevante.

Do que a voz estava falando?

— Chega de tanto mistério. Não consigo pensar direito em ajudar Henri, as

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famílias resgatadas ou os empregados dele se não puder controlar minha própria mente. Ou eu fico louca aqui mesmo, ou vai me dizer quem você é e por que está dentro de mim. O que vai ser?

Tenho medo de explodir sua cabecinha.

— Não me importo.

Não sei o que fazer. A voz soou, de súbito, incerta. Se eu lhe contar tudo, ainda vou existir? Talvez, agora que não foi infectada, eu nunca tenha vivido mais de uma vida. Não há Francis, só Françoise.

— Você está com medo de... Morrer? — Françoise pulou a parte sobre mais de uma vida. A voz se chamava Francis e tinha medo de morrer.

Talvez eu nunca tenha existido. Essa é uma aniquilação mais completa. Tudo o que eu queria era voltar e mudar o modo como as coisas aconteceram. Mas não gosto de ser tão fraca que mal posso abrir a porta da cela de Henri. Odeio não perceber os cheiros, nem ver nem sentir, como costumava. É tudo tão... Chato. Será meu destino ser você?

— Como? Quem é você? — Françoise estava, de fato, assustada agora.

Você nem me reconhece. A voz estava deprimida. Pensei que seria a mesma pessoa, apenas sem a... parte monstro. Mas talvez isso tenha feito de mim quem sou. Se eu desistir disso, será que gostarei de ser tão otimista e vulnerável? Preciso controlar essas idiotices.

— Bem — Françoise tossiu de leve —, o corpo é meu. E você não pode me controlar. Dores de cabeça só vão me levar ao hospício ou a afogar-me no Sena. E aí onde você estaria? Morta, com certeza. Então, eu estou no comando.

Seria verdade? Ela continuou. Não agüentaria não estar no comando com todos ao seu redor em apuros e sem ninguém para ajudá-los.

— Conte tudo.

Procurou um modo de influenciar o que a voz dissera.

— Se eu sou o seu destino, então talvez você seja o meu. Talvez precisemos uma da outra, Francis, pelo menos por enquanto. Nada vai bem.

Estamos encrencadas, está certo. Junto com uma porção de gente. Nem mesmo sei o que aconteceu na primeira vez. Não sabia o que ele estava fazendo. Estava sentindo pena de mim mesma em um sótão na margem direita enquanto... Talvez enquanto estavam guilhotinando Henri. Foi como ele morreu. Pensei que talvez tivessem sido minhas drogas que permitiram isso, mas na primeira vez eu não estava envolvida, e não trouxe as drogas de volta. Então não sei como o mataram.

Bom Deus! Henri... Não! Uma coisa de cada vez.

— É melhor você começar a me contar o que quer dizer com essa conversa de na primeira vez — murmurou Françoise. — Temos que trabalhar juntas se vamos mudar o fato de que os prisioneiros não podem fugir com todos os vigiando, e Henri pode ser guilhotinado, e eu posso... virar vampira.

Parou. Não havia mais nada que pudesse dizer, e ambas sabiam disso.

A emoção a dominou, o medo que vinha dela, bem como o medo e a incerteza que vinham da pessoa chamada Francis. Podiam sentir uma à outra...

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Fechou os olhos.

Houve uma exalação lenta, não sabia se sua ou da voz que não conhecia. Agora. Agora saberia.

Ela estava em Versalhes, na Sala de Espelhos novamente. Os espelhos estavam sombrios e esfumaçados na escuridão. Uma figura se refletia debilmente ali. Ela começou a correr à frente, e Françoise levantou a saia e correu também. Quando se aproximaram uma da outra, ela viu que o reflexo era do seu rosto, como no outro sonho. Mas vestia-se escandalosamente, em calças de couro que iam até seu tornozelo, botas de salto alto e um corpete mais justo, com uma rede prateada de tricô por cima dele. Todas as curvas de seu corpo estavam visíveis. Seus olhos estavam contornados de preto e seu cílios engrossados, embora não usasse pó ou ruge.

E então elas colidiram, fundindo-se uma na outra. O espelho derreteu, o grande salão girou tirando tudo de foco.

Françoise ofegou e segurou a cabeça enquanto o salão desaparecia em sua visão, sendo substituído por várias cenas cheias de emoção. Um sótão, Henri abaixando-se sobre ela, forçando-a a beber seu sangue. Doença. Estar sozinha e amedrontada. Perceber o que era. Vampira. Forte. Um monstro. O período de choro e de não se levantar da cama. O primeiro gole de sangue. A repulsa quando matara aqueles de quem bebia... A culpa.

As imagens começaram a vir mais rápido, de várias vidas completas. A turba em Paris, saudando um triunfante Napoleão. O navio para as Américas. Vivendo sozinha em cabanas nas florestas. A civilização a encurralando, repetidamente. Indústrias expelindo fumaça. O horror da guerra, de novo... e de novo. Ela se mudando, sempre se mudando antes que alguém pudesse encontrá-la, conhecê-la, amá-la. Uma longa fila de lugares e pessoas sem rosto. E através de todo o desespero, mesmo que tivesse se reduzido a brasas ardentes, o ódio a si mesma. Os sonhos de matar Henri antes que ele pudesse infectá-la. As imagens começaram a ficar mais lentas. Uma cidade nas colinas, próxima ao mar, insinuante e estranha. Vidro reluzindo. Prédios estranhos e altos enfileirados em uma longa rua cinzenta. Uma taverna com um "O" brilhante com um pequenino 2 pendurado do lado, sobre a porta. Flutuou para dentro e ali estava, conversando com uma bela mulher. Sabia o que havia sido dito, quem era a mulher. Donna. A excitação de acreditar que poderia voltar e mudar tudo a consumiu. Então, viu a garota bonita que a atendera no sebo confirmando que o livro sobre a máquina do tempo havia sido escrito por Leonardo Da Vinci. Roma. Florença. II Duomo. O Batistério. A máquina reluzente. E Versalhes.

A máquina estava em Versalhes, e a trouxera de volta.

Francis era Françoise. Porém, uma Françoise que fora infectada por Henri, abandonada por ele e que aprendera a se odiar tanto que queria matá-lo para evitar que ele a transformasse em vampira.

Ela abriu os olhos. A Place Royale parecia estranha, ou talvez um pouco curiosa.

— Desculpe não tê-la reconhecido — disse. Silêncio.

— Você está aí? — E se o ato de se revelar matara Francis? O pânico a sufocou. Precisava de Francis para ajudar Henri, Gaston, Jean e as famílias aprisionadas...

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Sim, estou aqui. O que pode significar que seremos infectadas por Henri, a despeito do que fizermos. É a única maneira de existir uma Francis.

Françoise sentiu o horror de Francis como se fosse seu. E era, de um modo estranho.

— Nós ainda devemos salvá-lo, Francis. — Endireitou-se. Agora compreendia o que Francis queria dizer com "encrencadas". Jennings! Talvez ele pudesse ajudar.

Uma pausa longa. Francis estava se decidindo.

— Vamos pensar sobre essa parte de ser infectadas depois. Mas não podemos ficar paradas.

Estou com você.

— Talvez para sempre. Pode ser difícil para você. Como disse, sem poderes especiais.

Talvez não. Talvez eu desapareça se não houver a chance de sermos infectadas. A coisa toda é meio louca, não? Não era como ela diria, mas compreendia Francis.

— Pelo menos, não estou louca.

Começou a voltar pelo parque, em direção ao rio. Hora de ir até o depósito.

Espere. Se eles colocaram guardas, você vai precisar de uma razão para entrar.

Françoise mordeu o lábio. Voltou para a casa. Pierre providenciaria o que precisava.

Madame Croute levantou a saia com desgosto enquanto entrava na cela.

— Este chão está imundo. Lavem duas vezes por dia — exigiu. Diante do choque nos olhos dos guardas, esclareceu: — Não por ele, idiotas. Por mim. Recuso-me a sujar os sapatos.

Henri estava se sentindo melhor, ao menos fisicamente.

O efeito da droga estava passando. Suas feridas estavam quase curadas. Provavelmente, já podia juntar poder suficiente para se deslocar. Mas no minuto em que o fizesse, aquela mulher desprezível e Robespierre iam cair sobre o depósito e a casa, e desmontá-los procurando-o. Pessoas seriam presas, mortas. Até Françoise, por Deus. Poderiam encontrar os prisioneiros atrás da parede do depósito. Ou poderiam queimá-lo, e com ele as quase cem pessoas. Tinha que manter aquela criatura concentrada nele, até que a barca pudesse levar os prisioneiros e Françoise pelo Sena até Le Havre em segurança. Não tinha certeza de como fazer isso, além de deixar que ela o torturasse. E não queria dar-lhe tal satisfação.

Ainda havia o problema de como tirar os prisioneiros. Sempre os carregara até sua barca em cestas de sal e condimentos, debaixo do nariz de todos. Mas Françoise estava certa. Estariam vigiando o depósito e suas barcas. Deveriam ter percebido que era assim que tirava as famílias do país.

A depressão que se agarrava a ele desde a saída de Françoise pesou em

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seus ombros. Ela ficara apavorada ao saber o que ele era. Podia não tê-lo traído intencionalmente, mas queria fugir dele o suficiente para drogá-lo, mesmo antes de reconhecer que sabia. Agora, o odiava. Como Cerise de Haviland, muitos séculos antes, em Alcaise. Ele se certificara disso. Que escolha tinha? Ela corria perigo a cada minuto que continuava em Paris. Nunca deveria tê-lo visitado, pelo amor de Deus! Só esperava que toda aquela conversa sobre ouvir vozes não significasse que ela tinha a mente frágil. Françoise se fortaleceria novamente, quando não tivesse que encarar o horror de um vampiro em sua vida. Tinha de fazê-lo; era jovem. Quanto a ele, de um jeito ou de outro, o trabalho de que se utilizava para evitar enlouquecer estava para terminar. Se conseguisse retirar aqueles últimos fugitivos de Paris teria concluído sua missão. Teria feito alguma diferença? Talvez tudo fora em vão em face do Mal imensurável que o mundo parecia gerar.

Quando Croute rumou em sua direção, arregalou os olhos.

— Então vocês não estavam mentindo — ela comentou para os guardas à sua volta. — Ele se cura sozinho.

Os guardas estavam colocando o braseiro com os acessórios dela a postos. Entraram com relutância, olhando Henri, nervosos.

Ele apenas a encarou. Estava curioso por saber se teria coragem de torturá-lo, agora que sabia que ele era algo sem explicação no mundo racional.

Marta Croute deslizou a mão sobre o peito largo, marcado apenas pelo leve rosado da pele nova. Encarou-o, curiosa. Ainda não estava com medo. Ele se curava, e daí? Isso não era ameaça. Ou talvez não compreendesse nada além de sua visão estreita da natureza.

Tocou suas costas, onde o havia cortado na última tortura. Praticamente podia ouvi-la pensando. Ela encaixou a mão em sua nádega enquanto dizia aos soldados:

— Envie tropas para buscar na casa dele mais daquela droga que a garota usou. Estava numa garrafa opaca roxa.

Mesmo que houvesse mais, não poderiam forçá-lo a tomar. Mas o fato de que buscava reforços mostrava que ela percebera que não podia compreender direito o que ocorria ali. Um guarda bateu os calcanhares e assentiu, reconhecendo a ordem e deixando a cela.

— No espírito da experiência científica... — Ela estendeu a mão para o lado, seu olhar nunca se afastando do rosto dele. — Faca! — ordenou.

O grande guarda que o havia espancado até a inconsciência da última vez colocou o punho da faca curvada favorita nas mãos dela.

— Vamos ver por nós mesmos.

Henri deixou que ela fizesse um corte. Encolheu-se enquanto ela traçou o peitoral esquerdo com a faca.

— Traga aquela tocha aqui.

Ela se afastou, olhando intensamente o peito dele. Henri podia sentir a ferida começando a se fechar. Não tão rápido quanto das outras vezes, mas o suficiente para ser notado.

— Santa Mãe de Deus nos proteja! — exclamou um dos guardas.

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Madame Croute apenas sorriu, embora invocar santos cristãos fosse contra a sua natureza.

— Um talento útil. Significa que você pode curar qualquer coisa que eu lhe faça. Isso prolongará nosso jogo, talvez indefinidamente.

Maldição! Como poderia mantê-la concentrada nele, e não em Françoise e nos outros, se Croute não o temia?

— Mas espere! — Ela pareceu meditar. — Você pode desaparecer?

Balançou a cabeça, confusa.

— Acho que não, ou já o teria feito. Ainda assim, o último guarda morreu jurando que era verdade.

E de novo ele causava uma morte. Mas não era o único culpado. Aquela mulher era má. Um plano começou a se formar. Poderia compeli-la a deixar em paz aqueles que ele amava? Talvez com renovações freqüentes da compulsão. E talvez, se soubesse que ele estava por perto, e tivesse que o encontrar, aquilo a mantivesse focada nele.

Vamos brincar de esconde-esconde. Deixou que seus olhos ficassem vermelhos.

Ela deu um passo atrás, visivelmente aturdida.

— Gosta do que vê? — inquiriu. Capturou o olhar dela e a observou-a hesitar. — Você não vai machucar mademoiselle Suchet nem nenhum de meus amigos. Não tocará na minha propriedade. Agora, vou retirar outra família. Veja se consegue me encontrar.

Companheiro! A espiral negra subiu ao redor de seus joelhos. Não tão rápido quanto ele gostaria, mas o efeito deixou Croute e os guardas de olhos arregalados.

— Me juntarei a vocês aqui mais tarde para outra visita. Digamos, em uma hora? — E sumiu de vista.

— Preciso de uma bandeja de comida, Gaston — disse Françoise, andando apressada pela cozinha.

— Como ele está? — Não precisava dizer de quem estava perguntando.

— Nada bem. — Ela cerrou os lábios. Não contaria como Henri estava mal. Ou que era um vampiro. Ou sobre os prisioneiros escondidos no depósito. Ou quanto perigo ele e os outros residentes da casa realmente corriam. — Os gendarmes estiveram aqui?

— Ainda não. A turba está rondando o parque. Ele conhecia o perigo, então.

— Não lhes conte que eu estive aqui.

Gaston estendeu a mão e segurou-a pelo ombro.

— Não faça nenhuma tolice, mademoiselle. Deve esperar. Três dias. Estará tudo acabado em três dias.

Ela o fitou. O mordomo sabia sobre os prisioneiros.

— Os "cidadãos" estão vigiando o depósito. Ninguém conseguirá sair com os

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fugitivos de lá.

Gaston pareceu perplexo.

— Além disso, Henri não vai durar três dias.

O criado empalideceu, mas se controlou.

— Ele é forte.

Saberia o quanto? Não seria ela que lhe contaria que Henri era um vampiro.

— Não podemos deixá-lo sofrer. — Viu Gaston empalidecer um pouco mais. — Temos que apressar as coisas, de algum modo.

O outro endireitou os ombros.

— O que posso fazer?

— Não sei. Sabe sim.

Francis, como sempre, estava certa.

— Espere. Você pode tirar a criadagem daqui antes do ataque da multidão. Há algum lugar para onde você possa ir?

— Calais. Tenho um primo lá. Ela assentiu.

— Agora, como podemos tirar os criados da casa? Gaston tamborilou o dedo contra o bigode, pensando.

— Posso enviá-los em missões, um por um.

— Serão seguidos.

— Ah, mas o mercado está cheio. A pessoa pode se perder. Annette para Fanchon, o porteiro para a loja de ferragens, outro para o seleiro... Verei como pode ser feito.

— Marque um ponto de encontro fora da cidade. O mordomo sorriu.

— E eu vou até o depósito com você.

— Não, não, meu amigo. — Ela tomou seus ombros. — A criadagem depende de sua liderança. A segurança deles está em suas mãos.

— Mas e Sua Graça? — Gaston estava franzindo as sobrancelhas de novo.

— Sua Graça poderá fugir quando souber que todos estão a salvo. — Ele não precisava saber como. — Eu o certificarei de que tudo está bem com vocês... e com todos no depósito.

Gaston tinha uma aparência teimosa ao redor da boca. Françoise levantou as sobrancelhas em desafio. Gaston suspirou.

— Oui, mademoiselle. Devo fazer minha parte. Ela sorriu e deu-lhe tapinhas no ombro.

— Agora vá.

Françoise apressou-se a seguir pelo cais, rumo ao depósito, com sua bandeja de comida. O céu exibia o azul-esverdeado peculiar que logo se aprofundaria no crepúsculo. Já devia passar das sete. Tochas começavam a ser acesas por toda a rua. À sua direita, o Sena, um miasma de mau cheiro de uma cidade grande e suja,

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batia contra a parede de pedra que barrava o Quai Henri IV.

Dois guardas postavam-se diante do depósito. Vários outros descansavam contra a parede de pedra.

Eu te disse.

Françoise engoliu em seco e apertou o passo com a bandeja, quando toda uma tropa de soldados virou a esquina marchando e espalhou-se pelo cais.

Essa não!

Terrível.

A única forma de tirar alguma caixa deste depósito será se o exército as retirar.

Françoise parou, de súbito. Tomou fôlego.

— Você é um gênio, Francis! — sussurrou. Podia sentir Francis refletindo a respeito da idéia também.

Mais bien sur. Podia quase senti-la sorrir. Adiantou-se rapidamente.

— Por favor, bons messieurs, posso passar para levar ao mounsieur Jennings seu jantar?

— Está bem trancado, esse aí. — O mais velho dos dois guardas tinha uma barriga enorme, quase arrancando dois botões de seu uniforme. O que era um feito, naqueles tempos de comida escassa. De dentro do depósito ela ouviu fracas batidas de martelo e o ranger de madeira.

— Bem, bem, o que temos aqui? — O homem com cicatriz na bochecha direita levantou o tecido de linho branco que cobria a bandeja.

— Cassoulet — informou com reverência.

— Oui. Preparado por Pierre Dufond, o chef do duque d'Avignon em pessoa. E pão, é claro, fresquinho. — O guarda levantou a tampa do outro prato. — Vagens com manteiga fresca e amêndoas.

Os guardas pareciam prestes a babar na bandeja.

— Um homem não come isso tudo — comentou o mais gordo.

Ela olhou por sobre o ombro. Outros guardas passeavam pela rua.

— O bastante para dividir com vocês dois, mas talvez não com todos. — Os dois franziram as sobrancelhas para seus compatriotas. — Devo levar o pote menor de cassoulet e uma fatia, e dar o restante a vocês como... recompensa por abrirem a porta.

— Feito — respondeu o da cicatriz.

O gordo abriu uma das grandes portas de madeira.

— Nem pensem que vão pegar alguma coisa — rosnou para os dois que se aproximavam.

— Dividir e compartilhar, você sabe — recitou um dos recém-chegados. A conversa tomou um rumo beligerante.

Françoise inclinou-se, pegou sua tigela e pão e deslizou para dentro do

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depósito, enquanto a atenção deles estava em manter o que haviam conseguido dela.

Dentro, o depósito estava escuro. Como quando estivera ali antes com Henri, caixas e barris assomavam-se na escuridão. O cheiro de piche e poeira estava em tudo. A frente, réstias de luz iluminavam a escrivaninha que a lembrava da noite em que madame LaFleur morrera. Três homens em mangas de camisa estavam juntando caixas.

Jennings levantou os olhos de onde orientava outros a trazerem trouxas com tábuas empilhadas dos fundos.

— Mademoiselle! O que a traz aqui? — Ele adiantou-se.

— Você sabe que estão vigiando aqui e a casa, não é? Ele assentiu.

— Sim. — Observou as caixas, preocupado, depois tomou-lhe a bandeja com dúvida nos olhos.

— O cassoulet de Pierre. Minha desculpa para vir aqui. A maioria foi para subornar os guardas. — Enquanto ele ajeitava tudo na escrivaninha, Françoise decidiu que não tinha tempo para rodeios. — Eu sei sobre a carga especial que você tem atrás da parede dos fundos. Henri me contou.

Jennings pareceu desconfiado.

— Estarão vigiando qualquer barca, e abrirão quaisquer caixas e barris que você tente carregar — ela avisou.

Ele pensara nisso. Podia ver em seus olhos. Estava construindo caixas para carga humana porque era a única coisa que sabia fazer.

— O único jeito de essas caixas saírem daqui é se o Exército as levar.

— E como vamos conseguir que o façam?

— Acho que Henri pode arranjar isso.

Jennings franziu as sobrancelhas.

— Mas o duque está numa cela na Conciergerie.

— Porém, tem uma visita freqüente. Madame Croute. Que, se pensar a respeito, vai querer muito o conteúdo deste depósito, especialmente agora que está inclinada a matar a galinha dos ovos de ouro. Esta será a última ninhada.

— Você o viu?

Ela assentiu, a boca amarga.

— Ele esta tentando agüentar até que o navio chegue a Le Havre e que a barca possa descer o Sena. Mas isso não dará certo. — Não queria explicar o motivo.

Os ingleses eram mais discretos que os franceses, e se Gaston perguntara sobre Henri, Jennings não o fez.

— Mas, uma vez que ela tenha as caixas, estarão sob guarda tão cerrada quanto estão aqui.

Françoise sorriu.

— Sim, e daí não terá razão para vigiar este depósito. Os olhos dele sé

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arregalaram.

— Então não os levaremos nas caixas?

— Estão de sobreaviso quanto às barcas de Avignon. Pode encontrar outro barco?

Jennings ficou sério de novo.

— Vários esquifes seria melhor. Chamará menos atenção. Talvez possamos encontrar com o Maiden Voyage no canal, se chegarmos a Le Havre antes.

Ele tinha um brilho no olhar.

— Vamos sair pelo sul do depósito, tirá-los por lá. Mas há muita gente atrás daquela parede.

— Você pode colocá-los no barco sem ninguém notar?

— Teremos que fazer isso. — Ele deu de ombros. Lançou-lhe um olhar penetrante. — Alguma idéia para libertar o duque?

— Cuidarei disso. Preocupe-se só com sua carga.

Ela olhou em torno de si. Era estranho pensar que havia pessoas comprimidas atrás daquela parede de tijolos, quietas e com medo.

— É hora de eu ir. — Olhou para o cassoulet. — Aproveite seu jantar.

Acho que essa parte foi bem.

Françoise estava correndo pelo cais em direção à Conciergerie.

— Se ele conseguir barcos em tão pouco tempo. Se Robespierre não o prender. Se ele conseguir tirá-los sem ninguém notar...

Minha nossa, mas não é apropria Poliana? Que garota mais pessimista, Francis recriminou-a de forma peculiar.

Françoise sabia o que ela queria dizer, porque agora compartilhava sua experiência.

— Sou mais otimista que você — protestou. — Você nunca viu o lado bom de Henri. Ainda pensa que deveria matá-lo ou abandoná-lo se ele escapar.

Porque este pode ser o único modo de evitar ser como ele.

— Era mesmo tão horrível?

Você sabe quanto foi solitário.

Você não deixou que ninguém se aproximasse.

Uau! Que malvada! Só porque me temeriam se soubessem o que eu era. E não se esqueça de que eles envelheceriam e morreriam, e me odiariam ou por abandoná-los ou por não envelhecer... Que superficial de minha parte deixar que isso atrapalhasse um relacionamento.

Françoise tentou outra abordagem.

— Mas você não era horrível, nem Henri.

Eu matei pessoas.

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Henri tremulou para dentro da cela novamente. O depósito tinha mais uma família de três pessoas. Fora uma alegria tirá-los sob o nariz de madame Croute, embora tenha exigido quase toda sua força deslocar-se quatro vezes em uma noite. Mas vira as tropas cercando o depósito. De que servia levá-los até lá, quando não havia jeito de tirá-los? Nem mesmo vira Jennings, apenas depositara as crianças atrás da parede e voltara para buscar os pais antes que os guardas de Croute pudessem perceber o que acontecera.

Não havia nenhum guarda no exterior de sua cela agora. Não havia motivo, quando a supunham vazia. Estariam de volta logo. Já fazia quase uma hora. Ele só esperava que a compulsão que tentara em Croute funcionasse em uma mente tão distorcida. Mas ela voltaria, também, em alguns instantes, e ele poderia reforçar.

O que queria era Françoise. Um toque, isso o sustentaria.

Mas podia fazer isso. Queria-a fora de Paris. E de sua vida. Fora de perigo.

Ouviu passos se aproximando. Muitos. Vozes. Guardas. Croute já estava voltando? Estaria bastante nervosa, agora que outra família fugira.

O medo lutou com o alívio quando viu Françoise surgir. Com seu halo de cachos dourados brilhando à luz das tochas, parecia um anjo.

Ela entrou apressadamente, então virou-se para os guardas que a acompanharam.

— Vão. Vocês prometeram.

Eles pareceram chocados por vê-lo dentro da cela trancada, apesar de livre das algemas.

— O funeral é seu. — Um deles abriu a cela, enquanto o outro apontava a espingarda para Henri. — Croute vai voltar a qualquer minuto. Se ele não te pegar, ela pega.

Eles a trancaram com Henri.

Françoise ficou quieta, encolhida, enquanto os passos se afastavam; depois lançou-se para a frente, parando a centímetros do peito dele.

— Oh, Henri, você está bem? — Vistoriou-lhe o corpo.

— Estou bem — ele respondeu. Ela não deveria estar ali. — Disse para que fosse até Jennings.

Queria abraçá-la, mas manteve-se rígido. Ela afastou uma mecha de cabelo do rosto anguloso. Seu toque era gentil.

— Eu fui. É por isso que vim. Não temos muito tempo, Henri. Estão vasculhando a casa. Não tenho certeza se Gaston conseguiu tirar todos de lá.

— Procurando pela droga. — Ele sorriu, amargo. — Croute não pode me forçar a tomar. Espero que não possa mesmo torturar meus amigos. Usei meu poder nela, mas não sei se deu certo.

Françoise olhou para trás, para certificar-se de que os guardas não estariam espiando. Então, se aproximou e ficou na ponta dos pés para murmurar:

— O único modo de tirar sua carga do depósito é se pararem de vigiá-lo. Ela vai querer toda aquela renda, o brandy, e o sal, não vai?

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Henri pestanejou.

— Se ela tomar todos os seus bens, por que vigiar o depósito?

Então ela tinha um plano... E não era ruim.

— Só você pode plantar a idéia naquele cérebro ambicioso. Jennings já está aprontando esquifes. Vai tirá-los pela outra porta do depósito, depois que os bens saírem. É arriscado.

— Melhor que nada. Se as famílias saírem, eu cuido da minha equipe. Tem menos gente...

Naquele momento, os murmúrios dos guardas do lado de fora pararam. Calcanhares bateram.

— O que estão fazendo aqui? — A voz de Croute interpelou os guardas.

Maldição! Havia poucas opções. Não podia deixá-la encontrar Françoise ali. Agarrou-a e a trouxe para perto de seu corpo nu.

— Por que guardar uma cela vazia? — Os guardas estavam tentando atrasar Croute. Isso era bom.

— Não tema. E tente não gritar.

Companheiro! O poder fluiu em suas veias como lodo, lento. Mas a sala ficou vermelha. Tinha o bastante; apenas isso. Invocou mais. Segurando Françoise, um sentimento de estar fazendo o que era certo o envolveu. Para onde ir? A resposta o surpreendeu. Ousaria? O turbilhão negro já estava em seus joelhos. Françoise olhou-o, assustada. Estava mordendo seu lábio. Isso poderia bastar para evitar o grito.

— Boa garota. — Ele sorriu para acalmá-la e pensou no quarto que conhecia tão bem.

A sala ficou vermelha. Françoise fez um som borbulhante de dor reprimida.

O papel de parede vermelho estampado com flores-de-lis brotou ao redor deles.

— Você está bem? — interrogou ele, enquanto se virava em seus braços. Viu-a se controlar e assentir.

— Eu sabia o que esperar.

Claro que não podia saber. Olhou em torno de si. Marianne Vercheroux tinha se virado no banquinho estofado em frente à penteadeira e estava olhando para o canto. Ele escolhera uma área de sombras perto do quarto de vestir, para fingir que tinham entrado normalmente, em vez de aparecido em um turbilhão. Havia pouca explicação que pudesse oferecer para o fato de estar nu.

— Marianne, você deve tomar conta dela até que eu possa buscá-la. — Henri arrastou Françoise até o centro do quarto. — Um dia, não mais que um dia.

— Henri? — Marianne espantou-se, olhos arregalados. — Como você entrou? O que... o que aconteceu?

— Não há tempo, Marianne. Devo voltar. Tenho um trabalho a fazer. Apenas a mantenha a salvo.

Ele apalpou a parede, em busca da porta do quarto de vestir. Françoise

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voltou-lhe seus olhos grandes. Eram tão sábios e tristes que o surpreenderam.

Ele olhou para Marianne Vercheroux. Quis que ela fizesse o que havia pedido, mas não ousou usar seu poder. Ia precisar de cada gota que possuía. Ela levantou as sobrancelhas, depois suspirou, triste, aceitando. Concordou. Henri se permitiu um meio-sorriso enquanto fechava a porta do quarto de vestir.

Antes que estivesse completamente fechada, a escuridão já rodopiava ao seu redor.

Françoise olhou para a porta que se fechava. Queria correr para ele, dizer-lhe para não voltar lá. E se madame Croute tivesse a droga? Poderia forçá-lo a tomar? Henri achava que não, mas, se estivesse errado, eles poderiam mandá-lo à guilhotina.

Ele sabia disso. Mas não deixaria aquelas famílias desamparadas. E ela mesma havia lhe dado uma tarefa. Seus olhos marejaram.

Francis não disse nada, mas Françoise podia sentir que ela também temia por ele. Juntas, voltaram-se para madame Vercheroux. Por que Henri a trouxera ali? Esconder-se com a amante desprezada não era uma opção.

A mulher parecia... resignada.

Marianne Verchéroux voltou-se para o espelho e limpou um canto do olho com um profundo suspiro olhou para Françoise e falou:

— Me pergunto como ele passará despercebido pelas ruas quando está absolutamente nu. Mas, certamente, vai dar um jeito, como fez para escapar e trazê-la até aqui. — Fitou-a, séria. — A carruagem dele foi vista?

Françoise pensou rápido.

— Não, viemos em cavalos alugados. Eu o cobri com minha capa.

Marianne suspirou.

— Porque iria querer voltar... Eu... nem imagino. Mas é para lá que ele vai, não?

Françoise assentiu. Uma mulher que se importasse tanto com Henri, mesmo sem seu amor, saberia que ele não estava pensando em sua própria fuga.

— Muito bem. Você ficará esta noite aqui, neste quarto. Eu vou sair, como planejei. Devo ser vista, ou minha ausência será notada.

Verdade. Madame Verchéroux causava reações onde quer que fosse. Françoise olhou em torno, para as quatro paredes do quarto, e imaginou se ainda estaria mentalmente sã pela manhã.

Marianne levantou-se e deu tapinhas em sua mão.

— Ele ficará bem. Sempre fica.

No entanto, Françoise podia ver a preocupação nos olhos dela.

Henri tremulou para dentro da cela na Conciergerie em um canto. Os guardas estavam bloqueando as portas gradeadas, tentando impedir madame Croute de ver o lado de dentro, onde pensavam que Françoise ainda estivesse. Assim, ele apagou a tocha que iluminava um dos cantos, antes que o turbilhão negro se dissolvesse.

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Madame Croute espiou por sobre os ombros dos guardas.

— Avignon está aqui?

Henri apoiou-se contra a pedra, seus braços cruzados sobre o peito, um tornozelo sobre o outro, como se não tivesse uma única preocupação.

— Estou aqui.

Os guardas se afastaram, dando passagem para madame Croute. Ela os empurrou.

— Abram já esta porta!

Os guardas absorveram o fato de que haviam trancado uma garota com o duque, e que ela já não estava mais em lugar algum, apesar de a porta estar trancada. Nenhum guarda se moveu, e madame Croute não protestou quando viu Henri desacorrentado.

Um dos guarda fez o sinal da cruz e afastou-se.

Se ela viu o gesto, não comentou. Seus olhos se estreitaram. Carregava um cesto desta vez. Estaria trazendo mais facas para torturá-lo? Mais ácido?

Não importava. Croute não teria coragem de entrar agora.

— Por que se deu o trabalho de retornar? Henri sorriu.

— Creio que só para ver a sua cara. — Ele se afastou da parede e caminhou pela cela. Os guardas se juntaram e pegaram em suas armas. — Estou muito desapontado com você, Croute. Tão obcecada em conseguir respostas que sabe que não darei, quando tem uma oportunidade que lhe asseguraria que nunca mais passasse pelo que sofreu quando mais jovem. Estou surpreso que não tenha pensado ainda.

Ela não queria lhe perguntar do que estava falando. Assim, apertou os lábios finos.

Henri puxou uma algema e viu a corrente balançar. Sentiu o cheiro de sangue misturado ao do suor dos soldados espalhar-se pela cela.

— Que oportunidade? — As palavras pareciam ter sido arrancadas dela.

Henri sorriu e deu de ombros, empurrando a algema de novo.

— Bem, não importa o que ocorra aqui, terminou minha missão de... fornecedor oficial de itens raros aos membros do governo.

Croute ficou séria. Não queria admitir que não pensara nisso.

— Em outras palavras, a renda que está usando, o brandy de que seu pequeno advogado tanto gosta... Tudo acabado agora. — Observou-a digerir o significado de tais palavras. — Exceto pelo que está no depósito.— Caminhou até o outro lado da cela, e recostou-se na parede. — Pode queimá-los, ou deixar que a multidão pegue. Distribuir a riqueza ou...

Os olhos astutos de sua inquisidora brilharam. Entendera a mensagem.

— O lucro é de cem por cento quando não se paga pelos bens que já foram quitados pelo importador. O bastante para ter tranqüilidade financeira pela vida toda... — Henri deu uma pausa. — Ou ainda, pode manter alguns itens para uso pessoal e vender o restante, Claro que a pessoa teria de carregar para um lugar

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seguro, antes que o Conselho confiscasse os bens.

A mulher o olhava como se cifrões saltassem-lhe das pupilas.

— O problema — começou a dizer ele — é que existem soldados vigiando tudo para Robespierre...

Os lábios finos curvaram-se com desdém.

— Posso resolver isso — declarou ela. — Com toda certeza, a esta altura dos acontecimentos, você já sabe que quem, de fato, comanda o pequeno advogado. E a menos que cometa o mesmo erro dos outros e pense que sou estúpida, desista. Conheço seu plano. Está tentando me manter ocupada até que seu navio chegue a Le Havre e possa embarcar seus prisioneiros.

Henri manteve o rosto impassível graças a séculos de prática.

— Mas talvez não saiba que temos seu cozinheiro e seu mordomo, aqui mesmo nesta prisão. Não encontramos a garota ainda, mas encontraremos.

Maldição! Seria a mente daquela mulher tão caótica que seus poderes não conseguiam controlá-la?, Henry perguntou-se

— Você não entendeu minhas instruções? — ele insistiu.

— Entendi. De algum jeito controla mentes com seus olhos vermelhos. Mas eu já tinha dado a ordem, e ninguém pode controlar a multidão. Estão procurando sua protegida agora mesmo. Então, creio que você estará aqui quando eu voltar?

— Estarei. — Pelo menos o restante da criadagem havia fugido, ponderou. Só esperava que Croute não fosse esperta o bastante para procurar por Françoise na casa de sua última amante.

Ela não teria a coragem de entrar na cela agora. Seria poupado das facas. Saberia quando o depósito estivesse vazio, pois Croute voltaria para se gabar. Deveria ter fé em Jennings para retirar sua carga em segurança. Cuidaria de lhe dar tempo suficiente. Então, se empenharia em encontrar Pierre e Gaston e os levaria para o cais, junto com Françoise.

— Até a próxima. — Croute girou nos calcanhares e saiu com o cesto ainda no braço. Esquecera-se das facas e da tortura. Mas só por enquanto...

Era quase de manhã. Françoise andava pelo quarto como um urso aprisionado. Quantas horas teriam se passado?

Sete. Pare de andar. Vai ficar esgotada, ralhou Francis.

Sete. Tempo suficiente para esvaziar o depósito. Jennings conseguira arranjar esquifes? O depósito ainda estaria sob vigia?

— Eu deveria estar ajudando Jennings — falou em voz alta, como se Francis fosse uma pessoa em carne e osso com quem pudesse dialogar.

Ele disse para você ficar aqui.

— Desde quando defende Henri? — Recolheu sua capa da pequena cadeira estofada em brocado dourado. — Pensei que alguém que tivesse vivido por duzentos anos com força e poderes sobrenaturais teria mais coragem.

Sou velha o bastante para saber que as coisas nunca dão certo, revidou sua

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contraparte, naquele peculiar processo de comunicação em que uma falava e a outra respondia em pensamento. E sou eu quem está tentando fazer algo a respeito da nossa situação.

— Matando Henri? — Françoise retrucou. — É bom que uma de nós seja jovem o bastante para acreditar nele ou estragaríamos a segunda tentativa de uma maneira mais terrível do que aconteceu na primeira.

Eu não arruinei a primeira vez. Fui transformada em vampira e abandonada, lembra?

— Já lhe ocorreu que se houvesse ajudado Henri, em vez de presumir que ele a tinha abandonado, com todos os seus novos poderes, poderia tê-lo salvado da guilhotina? — Françoise jogou o xale por sobre os ombros.

Francis ficou em silêncio.

Françoise até podia sentir o choque que sua declaração causara. E queria chocar mesmo. O medo fechou suas garras em torno dela. Henri fora morto naquela outra vida. E Francis podia não querer evitar que aquilo acontecesse outra vez... Mas ela queria.

E Francis sabia disso.

— Vamos colocar ordem nisso depois — sussurrou Françoise, indo para a janela, abrindo-a e espiando para fora. O quarto de Marianne Vercheroux dava para um pequeno jardim sob uma pérgula, coberta por uma antiga glicínia. Seria capaz de alcançá-la com os pés, pendurada no peitoril. Tomou fôlego. Bem, quais eram as suas opções? Não podia passar pelos criados de Marianne sem causar alarde. E tampouco queria lhe causar problemas por tê-la ajudado.

Ser tão fraca é um saco.

Françoise levantou as saias, indignando-se com o palavreado de Francis.

Henri andava pela cela, ignorando os guardas acovardados no corredor, despidos de toda bravura e zombaria depois do que o tinham visto fazer. Onde estava Croute? Será que ela não tivera tempo suficiente para esvaziar o depósito?

Quem sabe, se ficasse ali e esperasse pela volta daquela insana, seria tarde demais. Talvez os "cidadãos" já tivessem encontrado as famílias fugitivas e elas precisassem de sua ajuda agora. Se pudesse fazer algo para protegê-los... Ou talvez tivesse encontrado Françoise. Mas se saísse cedo demais... Seu cérebro não pôde evitar repassar todas as possibilidades de fracasso que poderiam se confirmar.

Era de se pensar que após viver por quinhentos anos tivesse aprendido a ser paciente. Mas que ledo engano o seu...

Considerando-se tudo o que estava acontecendo, não havia tempo para ser paciente. Deveria sair dali o mais rápido possível, a despeito das probabilidades. O alívio o invadiu; poderia não vencer os inimigos, mas seu caminho estava claro. Tinha de tentar. Invocou seu poder sobre si como uma capa protetora. O mundo ficou vermelho. Iria atrás de Pierre e Gaston. Mas antes tinha algo a fazer...

— Monsieur Jennings — Françoise sussurrou, à porta do depósito. — O

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senhor está aí?

Um débil som de marteladas e batidas irregulares vinha dos fundos do depósito. Ela espiou na escuridão; o prédio todo estava vazio, exceto pelos detritos de caixas e barris quebrados, e a escrivaninha, parecendo pequena em razão do amplo espaço aberto.

Entrou. No canto mais distante, à sua direita, viu quatro ou cinco homens, Jennings e vários membros de sua equipe em mangas de camisa, e um ou dois usando renda rasgada.

O pai de Emile lhe sorriu, saudando-a, já sem a tristeza no olhar que vira quando ele estava na prisão.

Por alguma estranha razão, Françoise duvidara de que as famílias resgatadas do terror estivessem, de fato, ali, mas agora podia ver um pedaço da parede dos fundos aberta como uma porta.

François suspirou e olhou mais uma vez em torno de si.

Os homens se revezavam aos pares balançando grandes e pesados martelos em uma seção da parede lateral. Outros levavam embora os tijolos e o cimento.

Jennings olhou para ela.

— Mademoiselle Suchet, o que faz aqui?

— Vim ajudar. Já conseguiu os barcos?

— Sim. Estão amarrados no cais, dois ancoradouros abaixo daqui. Creio que dará para levar todos. — Franziu o cenho ao ver a porta aberta e foi até lá para fechar. — Estava aberta quando você entrou?

Françoise assentiu.

— Estava. E não vi ninguém na rua além de um moleque sujo. Nenhum soldado.

Jennings suspirou de alívio.

— Bem, isso significa que Croute mordeu a isca. Uma grande área da parede caiu. Os homens empurraram até o fim.

— Comecem a derrubar a parede seguinte — ordenou Jennings, em francês. Voltou-se para Françoise. — O segundo depósito abaixo deste tem escadas até o ancoradouro onde os barcos estão amarrados, e chegam até lá por baixo da rua. O que reduz as chances de sermos vistos.

— O que eu posso fazer? — perguntou Françoise.

— Pode demonstrar autoconfiança e falar com as mulheres. Elas têm de manter as crianças quietas quando começarmos a nos mover.

Françoise concordou e virou-se para partir.

Por que ele faz isso?, Francis indagou

Boa pergunta, Françoise respondeu em pensamento.

— O senhor é Anglais. Essas pessoas não são nada para o senhor. Por que se arriscar por quem não conhece?

A expressão no rosto de Jennings era de amargura. Então, ele fez uma

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revelação que a surpreendeu:

— E essa é uma longa história, senhorita. Vamos dizer apenas que o duque uma vez fez algo por mim, quando ninguém mais levantou um dedo para me ajudar. Agora, só estou retribuindo o gesto.

Henri parece inspirar uma lealdade fanática, a despeito de sua natureza, Francis refletiu. Françoise assentiu.

— É algo para se pensar... — ela disse a Jennings e a Francis, e apressou-se a cruzar a passagem na parede. Falaria com as mulheres e ajudaria no que pudesse.

Um barco já estava longe, outro, quase cheio com mulheres em grandes saias, suas blusas rasgadas, crianças em vestidos esfarrapados e calças engorduradas, bebês chorando e pais preocupados e sérios.

O amanhecer logo chegaria, precisavam se apressar. Jennings auxiliou uma mulher que já havia sido preparada para descer a escada até o barco balançando abaixo.

— Dê minhas lembranças ao "Lorde Negro".

Ela devia estar falando de Henri. Saberia o que ele era? Mas claro, todos sabiam. Henri usara olhos vermelhos e a espiral de fumaça negra para resgatá-los.

Monsieur Navarre aproximou-se naquele instante, entregou seu filho a Jennings e alcançou a próxima mulher da fila.

— O duque virá conosco? — questionou a mulher que segurava a mão de um garotinho. — Foi tão gentil.

— Não sei, madame — respondeu Navarre.

— Vou rezar pela segurança dele — falou a desconhecida, erguendo o filho com uma das mãos e a saia com a outra.

Seguiu-se mais uma leve agitação de pessoas embarcando, então os fugitivos e vários dos homens de Jennings pagaram os remos e o barco deslizou na escuridão. Françoise levantou os olhos para o grupo seguinte de pessoas, vindo pelos degraus que saíam sob o nível da rua e acima das docas de madeira. Barcas rangiam na escuridão da água profunda mais além, algumas pesadas com sua inusitada carga, outras atracadas para uso dos banhistas, embora o porquê alguém fosse querer banhar-se em águas onde flutuavam cadáveres, lixo, sujeira noturna e detritos de abatedouros Françoise não pudesse dizer.

O grupo se moveu para o ponto em que flutuava o próximo barco. Françoise apressou as mulheres a seguir pela escada. Um garotinho perguntou "Onde estamos indo?", com uma voz chorosa que ecoou com assustadora clareza. A cidade logo estaria acordando. Não tinham muito tempo. Se os "cidadãos" os pegassem, seriam guilhotinados.

— Melhor começarmos a carregar dois barcos de cada vez — ordenou Jennings, sotto voce, para Navarre. — Vá buscar o próximo grupo.

Navarre concordou e saiu correndo pelas docas. Emile observou o pai se afastar com olhos arregalados, mas não chorou. Talvez até ele sentisse a tensão no ar.

Projeto Revisoras 109

— Você, aí, pegue a escada de corda — Jennings instruiu os homens. — As damas não vão gostar de embarcar assim, mas estamos ficando sem tempo.

De repente, um som inesperado chamou a atenção de todos, fazendo-os se voltar para a rua acima.

Henri surgiu no alto da escada, como que num passe de mágica, carregando algo pesado sobre os ombros. Ao lado dele, Gaston caiu de joelhos com um leve ofegar.

Françoise nunca sentira tanto alívio na vida.

— Henri — murmurou, correndo em sua direção.

Ele estava vestido como um soldado, com uma espada no quadril. Seu cabelo negro se espalhava pelos ombros largos. O rosto, porém, estava vincado e esgotado.

O alívio invadiu seu semblante. Então ele adiantou-se, sem deixar sua carga e chegou até o ancoradouro, conseguindo, enfim, garantir que todos estivessem em segurança.

Mas o preço que pagara por se transportar da prisão até ali fora alto, suas feridas tinham sido reabertas e era óbvio que estava exaurido...

— Não consegue seguir ordens? Poderia ter sido levada!

— Não fui. — A carga era Pierre. — Ah, nossa! Ele está vivo?

— Sim. Tem um machucado na cabeça, provocado pela multidão que ajudou a prendê-lo. — Ele cumprimentou rapidamente Jennings, que viera atrás de Françoise. — Você pode colocar estes dois numa barca?

— Sim. Estamos um pouco pesados; podemos pesar um pouco mais. — Gesticulou para um de seus homens, que livrou Henri de um Pierre que gemia.

— E mademoiselle Suchet, é claro — Ordenou a Jennings.

— Claro.

— E você? — Françoise não pôde evitar que aquilo soasse como uma acusação. Atrás, um segundo barco deixou a doca e foi para o rio.

Naquele momento, ouviu-se um barulho na rua acima deles: o som de muitas pessoas gritando. O moleque que Françoise vira mais cedo espiava sobre a parede de pedra. Um brilho destacou-lhe a silhueta.

Ela ficou imóvel enquanto percebia, junto com Francis, o que aquele moleque inocente significava.

Jennings olhou por sobre o ombro e seu semblante ficou pálido.

Henri se virou.

A criança apontou para eles. Gritos ecoaram na escuridão que se dissolvia ao romper de um novo dia. Atrás dele, o brilho se definia como tochas-e a multidão surgiu como uma imensa e malévola onda negra.

Uma turba barulhenta e raivosa.

Henri girou para analisar os barcos e os refugiados. Alguns ainda estavam subindo nos dois barcos aportados.

Projeto Revisoras 110

Jennings pareceu inconformado.

— Devemos partir com o que já temos? — perguntou ao mestre.

Françoise viu Henri endireitar os ombros e puxar a espada.

— Vou segurá-los até que possa retirar todos daqui. Virou-se em direção à turba.

— Você não pode! — bradou Françoise, pegando-o pelo braço. — Será morto.

Não, não será, Francis falou. Mas ambas sabiam que em outra versão daquela experiência, Henri fora guilhotinado. O que Donna dissera? Machucado e enfraquecido pela luz do sol? Françoise olhou para o céu que clareava. Seria o início de um terrível fim?

— Leve-a para o barco, Jennings. — Ele não a olhou. Apenas ficou lá, com a espada na mão.

Jennings a arrastou para longe. Françoise estava perplexa.

— Você não vai deixar que ele se sacrifique, vai?

Os dois homens a ignoraram e Henri correu até os degraus de madeira para chegar à rua.

— É isso ou teremos de enfrentar todos eles, senhorita — argumentou Jennings, lutando para levá-la até os barcos com uma mão em cada cotovelo. — O duque fez sua escolha muito tempo atrás.

— Henri! — gritou ela, exasperada.

Mas a Henri a ignorou e subiu os degraus de dois em dois, espada desembainhada.

Françoise reconheceu o uniforme dos sans culottes enquanto homens desciam como enxame pela escada, clamando por sangue.

Jennings a empurrou para a lateral das docas e para os braços preparados de Gaston que estava no barco.

Navarre se jogou, com Emile em um dos braços, na barca e colocou a criança em um banco.

— Tenho que chegar até ele! — Françoise insistiu. O barco balançou precariamente.

— Le duc não iria querer isso — advertiu-a Gaston. Jennings soltou as cordas.

— Para os remos, amigos! — Três de seus homens e dois dos esfarrapados aristocratas, incluindo Navarre, prepararam-se para remar. Jennings tomou o outro remo e empurrou o barco para longe do ancoradouro. — Podemos fazer um pouco mais de força aí?

Françoise ficou de pé no centro do barco, enquanto este se dirigia à correnteza que os levaria para o mar aberto.

Ao longe, viu Henri avançar pela escadaria, empurrando e jogando muitos adversários sobre o corrimão.

Projeto Revisoras 111

Ela virou-se, de modo a poder assistir à demonstração de coragem do homem que amava.

Gaston a forçou a se sentar.

Henri chegara ao topo da rua agora. Talvez...

Foi então que viu a primeira faca atingi-lo, acima dos quadris, enquanto a multidão o engolfava.

Ele pode sobreviver a isso, soou a voz conhecida em sua cabeça.

Mas ambas, ela e Francis, sabiam que era provável que não o fizesse. Françoise podia ter evitado sua transformação em vampira, mas Henri estava a caminho da guilhotina. O barco encontrou a corrente lodosa e os remos começaram a trabalhar mais rápido. Estava vagamente consciente de outro barco às suas costas, deslizando pela corrente.

A cena grotesca no cais começava a se perder na distância.

Henri ainda se mantinha de pé. Françoise viu a espada reluzir. Homens ainda caíam sobre a balaustrada de pedra enquanto ele os acertava. Mas agora o cercavam como formigas engolfando uma presa maior.

Françoise o viu balançar. Sabres brilharam à luz das tochas.

Depois não pôde mais vê-lo, apenas a multidão maltrapilha. A impressão era de uma pintura, pequena e irreal, a um passo da dor e da angústia que flutuava no ar. Ela quase não percebeu que tremia, até que Gaston pôs o braço ao seu redor; daí as lágrimas que estavam rolando pelo seu rosto foram seguidas por soluços. Enterrou a cabeça no ombro de Gaston e chorou em seu casaco, que cheirava ao odor fétido da prisão.

Sentaram-se, olhando para trás, bem depois de já não poder mais enxergar a cenas nas docas. Os barcos passaram sob a Pont Neuf, navegando rápido com a corrente, deixando para trás as paredes da Conciergerie. Os refugiados estavam em silêncio enquanto passavam pelo cenário de seu antigo sofrimento.

— Ele era um bom homem — murmurou Gaston.

Até Francis tinha de concordar.

* * *

Os golpes pararam...

Estranho.

O sol se levantava. O cinza da aurora estava se transformando em um brilho vermelho-escarlate. Muito apropriado, uma vez que ele estava em uma piscina do próprio sangue, pensou Henri.

O cheiro era quase esmagador. Virou a cabeça. O povo havia se dispersado. Quase não sentiu a dor de uma última facada. Estava distante de si mesmo, separado do corpo por alguma espécie de mágica.

De repente, lá estava aquele cheiro estranho de novo. Respirou fundo. Ainda conseguia fazer isso. Era o cheiro da droga que Françoise lhe dera no brandy. E aquele outro cheiro, estranho, artificial? Viria da garrafa que encontrara na mesinha

Projeto Revisoras 112

de sua casa no dia em que ela o dopara?

Então, como que num terrível pesadelo, acima dele, viu aparecer o rosto de Croute distorcido, como se visto por uma lupa.

— Bem, bem... — A voz ecoava horripilante. — Você os retirou da prisão, mas ainda podemos pegá-los. Estamos em todo lugar. Seu sacrifício foi em vão, monsieur Le duc.

A insana companheira de Robespierre ajoelhou-se ao lado dele e afastou-lhe o casaco.

— Você pode até curar isso, Avignon. Mas não vai conseguir fugir.

Destampou a garrafa e abriu-lhe a mandíbula.

Henri não pôde resistir... Ou talvez não quisesse. Estava tudo acabado agora. Não havia propósito em sua vida. Todos com quem se importava tinham ido embora. Talvez Croute fizesse o que ele mesmo não podia. Acabar com todo o tormento de alguém que vivia havia mais de cinco séculos.

Era o fim.

Rindo, a mulher malévola despejou uma boa porção da garrafa por sua garganta.

Françoise acordou e abriu os olhos lentamente. Estava com muito calor. Cobriu o rosto com a mão.

— Está acordada, ma petite?

Gaston. Ela assentiu e se sentou. Estivera aninhada no colo dele durante todo o trajeto.

— Bom, porque é minha vez de assumir os remos. — Ele tirou um lenço, milagrosamente branco, do bolso do casaco. — Talvez possa molhá-lo, e confortar Pierre com isso?

Françoise concordou. Seus olhos pareciam seixos secos. Gaston retirou um dos aristocratas mais velhos do remo.

— Estou com fome — choramingou uma garotinha.

— Logo teremos o que comer, ma cherie — a mãe sussurrou, carinhosa.

Françoise olhou ao redor. Estavam se movendo pelo campo, a noroeste de Paris, entre as barcas. Havia outros barcos, mas o deles, pesadamente carregado, destacava-se dos demais. Quem não perceberia que eram fugitivos?

Ela se levantou e foi ajoelhar-se ao lado de Pierre, que conseguira se sentar, mas parecia pálido.

— Como está você, meu mago da cozinha? — gracejou.

Os olhos castanhos do cozinheiro exibiam a essência do desespero. Ele balançou a cabeça devagar.

Françoise molhou o lenço na água notavelmente menos suja do que era na cidade. O rio também era maior ali, recebendo vários afluentes em seu caminho para a costa norte.

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— Jennings vai nos levar para longe.

— Quem vai apreciar minha arte no lugar para onde vamos? Ninguém tem um paladar tão perspicaz quanto Sua Graça.

Françoise não conseguiu respirar por um instante. Não podia responder; em vez disso, torceu o lenço e o aplicou à cabeça dele.

Jennings puxava seu remo. Parecia exausto. Entregou o lenço a Pierre e engatinhou sobre várias pessoas para se aproximar.

Françoise arqueou as sobrancelhas, questionando:

— O quê foi?

— Estamos bastante expostos aqui. A barca de Avignon deve estar subindo o rio em algum lugar entre este ponto e Rouen. Mais próximo de Montes-la-Jolie, se tivermos sorte.

— É esse o plano?

Jennings concordou, puxando o remo.

— Tomaremos o barco para Le Havre. Se tivermos sorte, o Maiden Voyage estará acabando de chegar. Se não, sairemos para o canal. Mas vamos encontrá-lo. Daí, seguiremos para a Inglaterra.

Françoise suspirou. Tinha a horrível impressão de que o que significava vida, para ela, estava agora a caminho da guilhotina. As drogas que trouxera do futuro tinham causado aquele fim, isso, se os ferimentos que Henri sofrera e a luz do sol, por si só, não o fossem. E parecia não haver nada que pudesse fazer a respeito. O caminho da história era como um rio, caudaloso, fluindo inexoravelmente de volta ao curso.

Suspirando, Françoise se arrastou para a parte de trás do barco, sentou-se e ficou olhando na direção de Paris.

Bem, você conseguiu o que queria, Francis, pensou. Não somos vampiras. E se Henri está morto, nunca poderá transformar você. Mas por que isso não nos faz sentir melhor?

Não sei, sua contraparte respondeu.

Talvez porque um homem bom tenha morrido. Um que eu amava. Você nunca o amou assim, amou?

Pensei que amasse. Francis estava pensativa. Mas era só paixonite pelo duque pervertido. Nunca o conheci de verdade. Não como você. Você tinha razão... Quando pensei que fui abandonada... eu o culpei.

Por que você acha que eu procurei pelo verdadeiro Henri desta vez? Algo estava incomodando a mente de Françoise.

Talvez fosse necessário nós duas para ver a verdade. Minha experiência e seu... seu otimismo, Francis argumentou.

Françoise abafou um riso amargo.

Uma palavra gentil para ingenuidade. Não estou otimista agora.

Um peso caiu sobre ela, duplicado por recair sobre Francis também. Seu futuro tinha mudado, e ao mesmo tempo não tinha... Seria tão incrédula e cínica

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quanto Francis. Com a diferença de conseguiria isso em uma vida só, não em várias como sua versão do futuro.

Espere! Ela tomou fôlego. Francis, você ainda está aqui.

Eu sei o que você vai dizer. Francis suspirou. E um dos enigmas da viagem no tempo. Se Robert Heinlein não conseguiu resolver, eu com certeza não consigo.

Françoise se levantou, pensando.

Não, você mesma disse. Francis, você só existe se eu for transformada em vampira. Se eu morrer depois de apenas uma vida, você não existirá. Então, ainda é possível que Henri me transforme.

Silêncio.

Vou aceitar isso como um sim. O que significa que ele não está morto ainda. Françoise inspirou e sentiu como se retomasse o controle sobre seu próprio destino. Ainda podemos salvá-lo.

Não, não, não! Nós não vamos voltar para lá. Você não pode se arriscar a virar vampira.

O que é tão ruim nisso? Ele não mata pessoas para beber sangue. Você também não, depois que entendeu como fazer. E você não fazia nada com seus poderes porque tinha medo e odiava o que era, Francis. Mas Henri ajuda muitas pessoas com os poderes dele.

Isso é só uma gota no oceano, veio a resposta cínica de Francis.

Antes isso do que nada. Olhe em volta. O que o mundo seria se essas pessoas tivessem morrido?

Provavelmente melhor, resmungou Francis.

Françoise fixou os olhos em Emile, sendo aninhado por Christophe Navarre, com o polegar na boca.

Está bem, o mundo nunca fica melhor ao decapitar crianças, admitiu Francis a contragosto.

Exatamente. Ou, como você diria... Bingo.

Você vai voltar para salvá-lo, não é? Francis parecia desgostosa, mas resignada.

Françoise deixou a certeza dominá-la. Gaston e Jennings tentariam impedi-la. Mas, quando a noite caísse, poderia deslizar sobre a amurada da barcaça e pegar outro barco que a levasse de volta a Paris. Ainda tinha moedas dos rolos que usara para subornar os guardas, nos bolsos costurados dentro de suas saias. Poderia não chegar a tempo, mas não desistiria de tentar.

Como se você fosse invadir a Conciergerie. Croute o drogou. Henri foi ferido. Você nunca vai tirá-lo de lá, insistiu Francis.

Vou pensar nisso mais tarde.

Vai virar vampira e eu terei voltado no tempo para nada. Aí, sim, saberá o que é amargura.

Se ele não for guilhotinado, talvez as coisas saiam diferentes. Talvez você tenha várias vidas de amor com Henri. Talvez seja feliz.

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Francis bufou:

Henri não ama as mulheres. Especialmente, não as virgens de vinte e um anos. Ele só as usa, sua tola, ingênua.

Françoise engoliu em seco. Henri não a amava. Não importava.

Você tem que tomar posição em algum momento, refletiu, dirigindo-se a Francis e a si mesma. Era isso, não? Precisava lutar pelo que queria. E naquele momento queria Henri vivo, assim, sem pestanejar deu uma ordem aos homens que estavam no comando dos remos para parar e deixá-la no ancoradouro mais próximo.

Sabia exatamente como tirar Henri da prisão e, com um pouco de sorte, em breve todos estariam a salvo, os refugiados na Inglaterra, e ela e Henri, na propriedade que ele mantinha perto do Palácio de Versalhes. Afinal, não viajara dois séculos no tempo para deixar seu amor morrer.

Capítulo VI

Françoise ajeitou Henri na colcha de brocado. Estavam na propriedade dele, em Versalhes, um vilarejo próximo a Paris.

Henri estava nu, seu maravilhoso corpo de volta ao original. Todo traço da profanação de Croute e da multidão sumira, embora ainda estivesse dolorido no ombro e no quadril.

Não fora tão fácil resgatá-lo, mas Françoise contara com seu amor e com todo o dinheiro que ainda guardava para tirá-lo da masmorra e levá-lo para um lugar seguro. Quando o encontrara, depois de subornar os guardas, ele estava fraco demais, mas, ao vê-la, seus olhos se encheram de esperança a ponto de lhe dar forças para transportá-los para a propriedade em Versalhes. Tudo acontecera como num sonho, mas dera certo no final.

As barcas tinham seguido para a Inglaterra e ela estava ali, aguardando Henri se recuperar. Tinham muito o que conversar, mas não havia pressa. Os dias transcorriam com vagar... As horas com lentidão, como se os ponteiros do relógio se movessem uma vez a cada século.

O que importava era que, estando tão próxima a ele, podia sentir-lhe as vibrações. Henri ainda estava mais fraco do que de costume, mas seu corpo tinha sobre ela o mesmo efeito de sempre.

Françoise levou uma cadeira à janela que dava para a noite que brincava no céu do lado de fora.

— Gostaria de se sentar um pouco? Temos vinho e um bom camembert.

— Vou poder sair da cama? Aleluia! Minha carcereira demonstra piedade! —

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Ele sentou-se com cuidado e fitou-a com uma suavidade que a despertou. — Não quis dizer isso. Não mereço a bondade que tem demonstrado.

Ele... ele nunca olhou para mim desse, jeito. Francis soava um pouco aturdida. Está apaixonado por você...

— O que eu fiz? Li para você, o alimentei algumas vezes e o observei dormir. Nada mais.

Henri piscou devagar, analisando-a.

— Sabe muito bem que fez mais do que isso. Françoise sentiu-se corar.

— Fiz o que pude. — Serviu-se de vinho. Tinha de mudar de assunto. — Esta manhã fiquei sabendo que o Conselho Revolucionário mandou Robespierre para a guilhotina sem nem sequer julgá-lo. Eles o culparam pela fuga em massa da Conciergerie. Croute, por sua vez, caiu nas mãos da multidão.

— A revolução está se canibalizando. — Henri parecia triste.

— Você combateu a revolução. Não pensei que ficaria triste ao vê-la se desintegrando.

— O pior do homem é sempre uma visão triste. Você pode se surpreender ao saber que eu votei a favor da formação da Assembléia Nacional. Algo tinha de ser feito com relação aos abusos do clero e da aristocracia. Nosso país ficará em ruínas.

Françoise estava surpresa de certo modo, mas não totalmente. Queria reconfortá-lo. Assim, comentou:

— Não se preocupe. A França se reerguerá das cinzas com a ajuda de um pequeno soldado que se tornará imperador.

Henri a olhou de modo estranho. Quase disse algo, depois mudou de idéia.

Olharam pela janela, o abismo entre os dois colocando um nó na garganta de Françoise. A noite se estendia sobre os jardins do Palácio de Versalhes. A multidão se fora novamente, os detritos de seus piqueniques espalhados pela grama e sobre as sebes por um vento de verão. Além dos jardins, a água corria, silente àquela distância, na Fonte de Apolo.

Françoise-Francis, como ela começara a se chamar secretamente, aproximou-se da cadeira onde Henri bebericava seu vinho e olhou em direção à fonte.

Há uma gruta em uma alameda por ali. A máquina de Leonardo está lá, se já não voltou para o século vinte e um, ouviu a voz de Francis em sua cabeça.

— Françoise — começou a dizer Henri. Não costumava ouvi-lo com outro tom que não o de mestre ou indolente, embora soubesse agora que aquilo não passava de pose. — Nem sei como dizer isso a você. Não tenho o direito.

Ela manteve a voz baixa.

— Que direito não tem, depois de me salvar da multidão e de Robespierre quando minha protetora foi levada à morte?

Ele a encarou, vasculhando sua expressão como se sua vida dependesse disso.

— Ocorreu-me que só há um jeito de você parecer tão jovem e ainda assim

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demonstrar a... experiência de vida que eu vi. Porém, não consigo crer... — De novo, levantou o rosto para ela. — Como sabe sobre o Companheiro? Como sabia como me tirar da prisão? Como sabia que eu precisava de sangue para me curar?

Ela não poderia lhe contar aquilo! Forçou uma risada.

— Que vampiro não precisa de sangue?

Henri cerrou os lábios, seus olhos desafiando-a. Conte!, Francis ordenou.

Ele vai achar que estou louca. Françoise mordeu o lábio, preocupada.

Confie em mim. Conte a ele, insistiu sua outra metade.

— Se eu fosse uma vampira, você já teria sentido minha vibração, e eu cheiraria à canela e âmbar, como você — argumentou, para ganhar tempo.

Se você quer continuar qualquer relacionamento com Henri Foucault, tem de contar a verdade sobre você. Sobre nós. Mostre-lhe a máquina, se ainda estiver lá. Isso o fará acreditar.

Henri ainda esperava a resposta.

Francis estava certa. Françoise tomou fôlego.

— Quer dar uma volta? Vou lhe mostrar a verdade. Ele examinou seu rosto, depois afastou as dúvidas.

Assentiu e se levantou. Françoise tomou-lhe a mão enquanto desciam as escadas. Poderia ser a última vez que o tocava, Não disseram nada. Ela acendeu a lamparina na mesa do grande vestíbulo. Saindo pela porta da frente e descendo os degraus pela alameda de pedra, conduziu-o através dos jardins e vastos gramados em direção à gruta de Apolo. Afinal, estavam no vilarejo de Versalhes.

O palácio ficava depois de um aclive, rodeado por árvores. As duas estátuas dos cavalos de Apolo estavam colocadas estrategicamente. A peça central, de Apolo com suas seis ninfas, ficava à entrada da caverna artificial, acima deles. Lutaram para subir, e ela percebeu como Henri ainda estava fraco.

Françoise tremia. Nervosa, parou em frente ao mármore reluzente e olhou para Henri.

— Aqui você vai precisar livrar-se da descrença e abrir sua mente para o impossível.

Ele estava de pé a seu lado, espiando a estátua.

— Vou tentar.

Françoise se espremeu atrás das estátuas e entrou na caverna. A luz da lamparina que carregava oscilou, depois ficou estável.

Um brilho de bronze refletiu a sua luz.

Ainda está aqui!

Françoise adiantou-se, enquanto ouvia Henri ofegar. A maravilhosa máquina de Leonardo surgiu diante dela.

Olhou-a embevecida, a despeito de tê-la visto através da experiência de Francis. Jóias enormes brilhavam à luz da lamparina.

— Meu Deus. — disse Henri. — O que é isso?

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Françoise se virou.

— É uma máquina do tempo, construída por Leonardo Da Vinci, para uma amiga dele, chamada Donna di Poliziano. Você o conhece?

— Claro! — Ele fez uma pausa. — Mas conheço bem Donatella e ela nunca mencionou...

— Ela não a encontrou antes de 1821. Donna usou a máquina para voltar e transformar Jergan em vampiro.

— Mas eles estão juntos desde a morte de Calígula, em Roma!

— Em uma versão possível dos eventos, não estavam. — Françoise tomou fôlego. — Algo parecido acontece conosco: em uma versão possível dos eventos você me transformou naquele momento em que quebrou o copo na biblioteca. Fui infectada por um arranhão.

Levantou a mão, mostrando onde o arranhado ainda marcava a palma, abaixo do polegar.

Henri empalideceu.

— Você me abandonou por três dias, assim acreditei, e eu vivi o melhor que pude, pensando, durante mais de dois séculos, que era um monstro...

Sabendo que era um monstro, corrigiu-a Francis.

— Eu não sabia... nada sobre o que eu era. Quando o desejo por sangue ficou tão forte que pensei que enlouqueceria, matei para conseguir o que precisava. Pelo menos no começo. E me odiei por isso. Quase fui morta por um vampiro, simplesmente por ter sido feita, não nascida vampira, então evitei outros. Sempre sonhava em voltar para mudar o que me acontecera. Me chamei de Francis e tra-balhava em... uma taverna, quando encontrei Donna. Ela me deu instruções para a máquina de Leonardo. — Juntou coragem. Tinha que lhe contar tudo; como era mesquinha, egoísta. — Voltei a tempo de matá-lo, Henri, pensando que era o único jeito de evitar que você me infectasse.

Não se orgulhava daquilo. Até Francis parecia vencida.

— Sofri um acidente de carro uma vez, e a equipe de emergência me deu morfina antes que eu pudesse me curar, então sabia o que isso poderia fazer com os poderes de um vampiro. Trouxe garrafas de morfina e... e uma espada. — Sua voz tremeu, de leve. — E o motivo para eu parecer jovem e velha, provavelmente é devido a Francis agora estar vivendo em minha mente. Acho que não poderíamos coexistir no mesmo tempo. Ela se fundiu a mim. Eu controlo o corpo, mas Francis está aqui comigo.

Henri pareceu em dúvida. Mas então, olhou para a máquina, e a dúvida se dissipou. Agora, imaginava o que aquela máquina poderia ser. E como ela poderia saber sobre vampiros, se não fosse do modo como dizia.

— Eu sei o que Francis sabe, sobre vampiros e o que acontece no futuro. É como eu sei que Napoleão fará a França grande novamente, a um alto preço. Seu legado, porém, será o Código Napoleônico de Leis. Vai proteger o povo, até de si mesmo.

Deixou-o meditar sobre aquilo por um momento.

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Henri afastou seus olhos dos dela e pegou a lamparina para olhar a máquina de perto. As pedras reluziam em branco, vermelho, verde e azul, suas facetas reproduzindo luzes cintilantes por toda a caverna.

— Como funciona? — perguntou.

— Não tenho idéia. Só sei que é necessário a força de um vampiro para acioná-la.

Ele estendeu a mão e tocou uma engrenagem imensa, olhando para os detalhes em rococó das várias engrenagens interligadas.

— Eu não a teria abandonado. Em nenhuma versão dos eventos. — Virou-se, para olhá-la. — Leva cerca de três dias de infusões do sangue de um vampiro para criar imunidade ao Companheiro. Quem não as recebe, morre, Fiquei com você por três dias, no mínimo depois do incidente. Você pode não se lembrar. A pessoa fica delirante enquanto o Companheiro faz as pazes com o novo corpo. E criar vampiros é proibido, então eu devo ter gostado de você... o bastante... para tentar salvá-la.

Françoise respirou fundo.

— Não sabia disso. Francis evitava vampiros. Só sabe o que sua própria experiência lhe ensinou. Não faz o que você faz, deslocar-se, e não controla mentes. — À medida que falava, ela refletia sobre aquelas palavras. "Eu não a abandonei."

Ele a ignorou.

— Você acredita em mim? — Seus olhos brilhavam com intensidade. — Eu não a abandonei.

Ela mordeu o lábio, prendendo-o entre os dentes para recuperar o controle.

— Donna disse que você seria guilhotinado.

— Não desta vez.

— É. Talvez você ainda vá me transformar em vampira. Porque parece difícil mudar as coisas. Robespierre caiu no dia exato em que os livros de história citam, embora não houvesse menção a uma fuga da prisão. — Isso era apenas uma das coisas que a torturaram durante as longas horas ao lado da cama de Henri.

Os olhos negros brilharam.

— Se eu ainda for guilhotinado, você terá cumprido o que veio fazer. Operação bem-sucedida. — Fez uma pausa. — Você deve ter me odiado muito.

Françoise fechou os olhos.

— Eu não o conhecia. Não de verdade. Nunca olhei com profundidade suficiente para ver que você era mais do que um belo duque. — Abriu-os de novo. — Mas claro, era só uma garota ingênua. Talvez não soubesse como avaliar uma pessoa.

Henri levantou-lhe o queixo.

— E agora não é mais só aquela garota. E eu fui pego.

— Pego?

Pego. Ouça o que ele tem a dizer.

Françoise havia quase se esquecido de Francis.

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— Você ainda me odeia?

Ela balançou a cabeça, negando. Henri quebrou o momento tenso.

— Quer voltar para seu próprio século? — Olhou para a máquina. — Posso ligá-la para você, assim que estiver pronta.

— Francis está confortável naquele tempo, mas será que eu ficaria também? Porque acho que, no instante em que não houver mais a possibilidade de me transformar em vampira, aí... Aí a experiência de Francis nunca terá existido. Vou até lá só para ter tudo arrancado de mim? Estaria sozinha e perdida, em um mundo que não compreendo. — Olhou para a máquina...

Que começou a sumir. A coisa toda desapareceu devagar, fazendo um som que parecia sugar o ar da gruta. Françoise tampou os ouvidos com as mãos. Henri recuou um passo e a puxou para seus braços. Então, a máquina voltou a se definir.

— Merde! O que foi aquilo? — ele perguntou.

— Bem... Leonardo escreveu que a máquina não pode ficar no tempo para o qual voltou para sempre. Vai retornar ao local de onde veio.

Ele colocou a lamparina no chão e segurou-a pelos ombros.

— O que significa que não tem muito tempo. Quer que eu tente invocar meu poder e acionar a alavanca para mandá-la de volta?

Françoise encarou-o, atônita. Mas foi para Francis que indagou em pensamento:

Devemos? Não sei o que acontecerá com você se o fizermos.

Também não sei. Mas você não pode ir embora. Não agora. Francis soou melancólica

Françoise não conseguia falar. Balançou a cabeça para responder a Henri. O som preencheu a caverna mais uma vez. Viraram-se para ver a máquina desaparecendo. Ela piscou algumas vezes, depois... se foi.

Francis?

Ainda estou aqui. Francis pareceu aliviada, mas um tom de tristeza permeava-lhe a voz, apesar de ela só poder ser ouvida em pensamento.

Henri virou Françoise para si.

A cabeça dela girava. Agora estava ali. Com Henri.

Contudo, não por muito tempo. Seu coração parecia a ponto de explodir. Ele nunca poderia amá-la. Vivera por séculos, tendo casos como o de Marianne Vercheroux para que nunca tivesse de amar uma mulher, deixando um rastro de corações partidos atrás de si. Mas quem poderia não amar um homem como Henri Foucault?

Pare de pensar e ouça. Dê-lhe mais uma chance. Estranhamente, foi Francis quem insistiu nisso.

Henri tomou-a nos braços, apertando-a contra o peito. Beijou-lhe o topo da cabeça. Inferno, poderia acreditar no que acabara de ver? A ironia daquilo... Um vampiro que não acreditava que o homem mais criativo de toda a História pudesse

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construir uma máquina que viajasse no tempo. E Françoise, sua maravilhosa Françoise, estava presa entre duas eras, duas vidas, duas versões dos eventos, e lutando para encontrar sentido em tudo.

— Desculpe. Isso deve ter sido difícil para você. — Relutante, afastou-a de si e forçou um sorriso. — Sua vida será muito diferente desta vez. Vou colocá-la na Inglaterra com uma fortuna considerável. Viverá para ser uma grande dame da sociedade. A sabedoria que adquiriu com... com Francis assegurará que seja amada por toda sua família e pelas gerações vindouras.

Ela piscou, mas não disse nada.

— Espero apenas que não me despreze por ser o monstro que odiava tanto e me deixe visitá-la de vez em quando. — Maldição, sua voz tinha soado trêmula? Pigarreou. Ela não deveria saber o que lhe custava dizer aquilo. — Poderei ser o Conde Henri para seus filhos.

Françoise pegou a lamparina e virou-se para a entrada da caverna. Teria sido suficiente? Quase o matara fingir aquele tom insensível, a despeito de toda prática que possuía. Ainda assim, estendeu a mão e disse: — Vamos voltar para casa.

Henri queria ser um tio para os filhos dela? Françoise não podia acreditar no que ouvia.

Por que não faz nada? Não vai deixar ele se safar assim, não é?, Francis se manifestou mais uma vez.

Se safar como?, Françoise indagou em pensamento.

Mentindo para você sobre te amar. Ele realmente a ama. Amor eterno...

Se me amasse não...

Ora, relaxe, garota, se Henri a amar, dirá que quer transformá-la em vampira...

Eu... eu não quero ser vampira, protestou Françoise. Ninguém quer isso.

O diabo que não. Agora é você que está mentindo. Está brincando com a idéia há dias. Você não o considera um monstro.

Claro que não!

Então, não vai se importar de ser como ele. Diga-lhe, pelo amor de Deus, antes que seja tarde. Não viva uma segunda vida de arrependimento. Não seja como eu.

Não há chance de que ele me ame o bastante para passar várias vidas comigo.

Henri nunca olhou para mim do jeito que olha para você, sua tola. Se importou o bastante para me salvar quando fui infectada, mas ama você.

O barulho da fonte de Apolo cascateava ao redor deles.

Acho que o que Henri ama é o que existe de você em mim, Francis.

Bem, só há um jeito de descobrir isso.

Françoise parou, arrancando a mão da de Henri. O único jeito de ter certeza

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de que Francis permanecesse por perto era...

Henri voltou-se para encará-la, surpreso.

Agora ou nunca, amiga. Vá! Faça o que tem de ser feito!, ordenou Francis, sabendo que era chegada a hora da verdade.

Françoise estava ali parada, visivelmente tremendo. O que havia de errado? Estaria com medo dele, depois de todo aquele tempo?

— Françoise — Henri chamou, mais alto do que gostaria, por causa do barulho da fonte. — Você está a salvo. Agora, é só uma mulher normal, que pode ter uma vida tranqüila.

— Não quero uma vida tranqüila e não acho que você seja um monstro — ela falou de chofre. Depois de parar para tomar fôlego, acrescentou: — Nem mesmo achava que eu fosse um monstro quando era vampira. Levei uma vida de arrependimento por nada.

Como? Ela não o desprezava por ser um vampiro? Conhecia seu pior segredo e ainda o respeitava... Como?

— Eu te amo, Henri. — Soou como se estivesse se afogando, ou então, acabado de correr um quilômetro. Seus lindos seios arfavam sob o fichu.

Seria possível? Françoise o amava? A despeito do que sabia? Do que vira? Impossível. Com medo, forçou-se a afastar a esperança.

— Não há vida para nós dois juntos — ele declarou, tão gentilmente quanto pôde. — Humanos e vampiros não dão certo. Um envelhece e morre, o outro, não. Isso deixa ambos amargos.

— Então não me ama?

Henri fechou os olhos.

— Não! — Françoise arquejou. — Nem se incomode em negar. Seria apenas sua natureza generosa levando a melhor, porque você não quer me ferir. Mas Francis diz que você nunca a olhou do jeito que me olha, e se eu não lutar pelo que quero, a coisa toda vai se perder e eu vou ficar sem nada. Então vou lhe dizer, Henri Foucault, só desta vez e nunca mais. Eu te amo e acho que você me ama também, talvez não pelo que eu era da primeira vez, mas pelo que sou agora, e se não lutarmos pelo que queremos, teremos apenas a nós mesmos para culpar por não ter conseguido.

Henri não estava certo se conseguiria falar.

— O que você quer? — ele perguntou. Suas palavras saíram tão baixas que teve medo de que ela não as ouvisse por causa do barulho da fonte.

— Faça de mim uma vampira.

Ah, ela não sabia o que aquilo significava. Não tinha como. Mas precisava alertá-la, de qualquer modo.

— Você vai se cansar de mim. Um amor para a eternidade é um tempo muito longo para qualquer um. É um risco!

E ele sempre abandonava seus relacionamentos por medo de ser abandonado. Como sua mãe tinha feito. A ironia de criar a situação que mais temia,

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só para estar no controle, o dominou, Não havia dúvida de que passaria, de bom grado, todos os séculos que tinha pela frente ao lado de sua doce e destemida Françoise,

— Isso, vindo de um homem que deixou uma fila de corações partidos por toda a França durante séculos? Sou eu quem está se arriscando aqui.

As próximas palavras dele decidiriam seu destino.

Henri sabia disso.

— Você não está se arriscando.

Eles ficaram ali, de pé, um em frente o outro, como combatentes por mais um momento, antes que Henri a tomasse em seus braços, pensando que iria explodir, não sabia se em risos ou lágrimas de alívio e alegria.

— Precisamos de algum lugar tranqüilo — sussurou no ouvido dela.

Henri a colocou na cama alta, quase com reverência.

Françoise podia sentir Francis sorrindo dentro de si. Agora, sim! Seguiria um caminho já conhecido, e, de alguma forma, novo. Um caminho que escolhera, não um que fora impelida a seguir.

Henri, o charmoso e bondoso Henri, que lutara tanto contra as forças da escuridão em sua vida, a fitava com algo especial em seus olhos que Francis reconhecia, e no que Françoise também começava a acreditar.

— Ficará acamada por três dias — ele a alertou.

— Pode parar com os avisos? — De onde aquilo tinha vindo? Soava como Francis. Limpou a garganta. — Digo, sei o que me espera quero muito que isso aconteça.

Ele correu os dedos por seus cachos, ainda em dúvida.

— Não sou uma inocente. Ninguém sabe melhor do que eu onde estou me metendo, meu amado duque. — Afagou-lhe as faces angulosas. — E não quero ser infectada por um corte, ou mão na mão com se fôssemos jurar amizade eterna. Você vai fazer amor comigo, Henri Foucault, e pressionará seus adoráveis lábios no meu pescoço enquanto afunda os caninos em minha carótida, e quando tiver provado meu sangue, quero beber do seu.

Ele arqueou as sobrancelhas. Um sorriso era quase perceptível nos cantos da boca carnuda.

— Você é bastante decidida!

— Já estava na hora.

Henri simulou um semblante triste.

— Uma eternidade com uma esposa megera. Vou me tornar uma sombra de mim mesmo. O duque pervertido, finalmente domado.

— Fingiu ser o duque pervertido todo esse tempo. Agora vai mudar, mas talvez possa fingir só mais uma vez?

Diante de tal comentário, Henri sorriu. Não havia como não entender as

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implicações por trás de tal comentário.

Resoluto, ele foi até a penteadeira e pegou algo que ela não pôde ver. Guardou o objeto na gaveta do criado-mudo. Antes que Françoise pudesse perguntar o que estava fazendo, Henri removeu o fichu do vestido dela e o jogou no chão. Depois, acariciou o vale profundo que se formava entre o seios desnudos, fazendo-a arquear de prazer.

— Devemos providenciar para que tire essas roupas, mademoiselle?

Levaram mais de quinze minutos despindo um ao outro.

Uma coisa boa do século vinte e um é que as roupas são mais fáceis de tirar,

Fique quieta, Francis, e aproveite o que perdeu da primeira vez!

Henri deitou-se ao lado dela sobre o brocado dourado. Mas logo se levantou.

— Arranha demais. Isso tem de ser perfeito. — Levantou-a com um dos braços, lembrando-a o quanto era forte, e puxou a colcha para revelar os lençóis. Recostou-a ali e deitou-se ao seu lado.

Então ele a beijou com paixão.

Françoise correu as mãos sobre o peito largo, sentindo-o se retesar sob o toque atrevido e sensual.

Inebriado, Henri rosnou em resposta e baixou a cabeça para os mamilos rosados. Deus, como aquilo era bom! A sensação foi direto a sua virilha. Viu-a pulsar, ansiosa, à espera do que viria.

Ele sugou primeiro um seio, depois o outro, com gentileza a princípio, mas com paixão crescente. Só a lembrança da sensualidade de entregar-lhe seu corpo a fez se contorcer. Aquilo provocou outro rosnado, e Françoise podia senti-lo pulsando contra seu ventre. Estendeu a mão naquela direção, enquanto ele beijava-lhe o pescoço. Inclinou-se, convidando-o, mas Henry estava apenas movendo-se dos seios para a boca, e terminou a jornada entreabrindo-lhe os lábios com uma língua ousada, explorando, saboreando tudo.

Ágil, ela passou-lhe a mão sobre os músculos das costas, enquanto deslizava a outra sobre o membro ereto. A ponta liberava uma pequena umidade, que ela espalhou com o polegar.

O gesto o fez prender a respiração. Onde a doce Françoise teria aprendido aquilo?

Comigo. E vou lhe emprestar um pouco de vocabulário também. Isso se chama ereção.

Bom. Posso dar a ele mais prazer. Segurou o membro e deslizou a mão para cima e para baixo.

— Deus, Françoise, assim você vai me enlouquecer!

— É tudo o que quero, senhor duque... Mostre-me o que pode fazer para me retribuir.

Henri não precisou de outro convite. Afastando-lhe as pernas, deslizou o dedo entre aqueles lábios cálidos e rosados. Sabia que estava pronta para recebê-lo: úmida e quente. Extasiado, posicionou-se sobre ela e levou o membro àquela

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abertura que pulsava.

Vendo-o estremecer, Françoise desceu as mãos pelas costas largas, até as belas nádegas. Seus olhos estavam fixos um no outro quando o sentiu contrair-se sob seu toque, à medida que a penetrava com vagar. Inspirou e exalou, feliz, experimentando o prazer de ser preenchida pelo homem que amava.

Era isso o que ela queria. Não apenas excitação sexual, mas a proximidade, a ternura, tudo mesclado a uma boa dose de paixão. E também, era daquilo que Francis sentira falta durante todos aqueles anos.

Henri deitou-se sobre ela, o cabelo balançando sobre o ombro musculoso.

— Françoise — murmurou —, amo você.

Foi uma declaração simples. Nada floreado, mas direto e do fundo do coração. As vibrações dele aumentaram. Teria força suficiente para expor seus caninos?

Não me parece fraco, reparou Francis, abafando uma risada.

Com certeza, o roçar de seus caninos ao longo de seu pescoço mostrou que Henri estava bem. Françoise abriu os olhos para deparar com o vermelho dos dele. Sorriu, quando notou-lhe a hesitação.

— Faça o que tem de ser feito, duque! — Ela arqueou o pescoço e virou a cabeça para o lado.

Os dentes afundaram-lhe na pele. A dor não foi maior do que a do picar do espinho de uma rosa. Então, Henri os retirou. Depois, o rítmico sugar começou, combinando com o movimento dos quadris de ambos. Nunca sentira que fazia parte de outro ser daquele modo. Seu sangue bombeava pela artéria até os lábios carnudos, enquanto a febre subia em seu ventre. Henri se moveu dentro dela até levá-la próxima, muito próxima ao êxtase...

E parou.

— O quê? — perguntou Françoise. Estaria em dúvida? Ele beijou-lhe a base do pescoço.

— É justo retribuir — sussurrou. E deslizou para fora dela.

Seu ventre apertou-se em desapontamento.

Henri rolou, abriu a gaveta do criado-mudo e tirou algo de lá.

Françoise não podia ver o que era. Depois, ele sentou-se recostando-se contra a cabeceira. Seu membro ainda estava rígido.

Ah, sim... Grande idéia!

Ela engatinhou, subindo em seu colo.

Henri levantou-lhe os quadris, como se não pesasse nada. Ficou por conta de ela posicioná-lo; deixando-o penetrá-la. Isssssso! Era isso o que queria!

Sem se fazer de rogado, Henri ajudou-a a se mover para cima e para baixo, encaixada nele. A pressão, que havia diminuído, voltou a aumentar. A satisfação pela qual ansiava chegaria logo.

Foi então que ele revelou a pequena adaga que tinha na mão. Durante um momento que pareceu uma eternidade, ele capturou-lhe o olhar enquanto fazia um

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pequeno corte no próprio peito, próximo ao mamilo esquerdo.

Françoise inclinou a cabeça, enquanto voltava a se mover, sentindo-o dentro de si.

Eufórico, Henri arremeteu-se de encontro a ela.

O sangue vazou do corte. O momento era aquele.

— Não tem volta. — Henri ainda a avisou. Ela o encarou com fingida severidade.

— Eu não disse que bastava de alertas?

Lambeu o corte. O sangue era grosso, viscoso, sensual. Tinha um gosto... metálico. E vivo. Seria o Companheiro, nadando em suas veias?

Henri a apertou, cobrindo seus cabelos de beijos enquanto ela o sugava, impelindo-os a moverem-se juntos em uma urgência crescente. A sensação de beber seu sangue, ao mesmo tempo em que estava prestes a receber seu líquido da vida, levou Françoise ao limite, fazendo-a levantar a cabeça, arquear as costas e pressionar seus seios no peito másculo, ajustando-se ainda mais ao membro, em êxtase.

O orgasmo foi longo e intenso. Henri continuou arremetendo-se para a frente e para trás, para prolongá-lo, até que ela arfou. Teria segurado o fôlego até então? A sensação começava a declinar, quando ele se permitiu chegar ao clímax. Gemeu contra os seios redondos e firmes, enquanto seu membro pulsava na intimidade reconfortante de sua amada.

Só muito tempo depois os dois se afastaram. Quando o olhou com um sorriso terno, Françoise notou que Henri parecia em dúvida.

— Eu quis isso, Henri.

— E eu também. Mas ainda não tenho certeza se você sabe do que abriu mão.

— Francis sabe o que é ser vampira. E me incentivou a lutar pelo que queria. Ela é a única razão para que eu tenha tido coragem de confessar que te amo.

— Ela é uma otimista. Françoise piscou.

— Não, não é. Ela é amarga e cínica. Otimismo é ingênuo. E o que ela sempre diz que eu sou.

— Mas encorajá-la a lutar pelo que quer exigiu um ato de fé. Que definição melhor de um otimista? Talvez você, minha doce Françoise, tenha cedido ingenuidade suficiente para Francis se tornar otimista, só uma vez.

Ela o encarou, confusa. Teria contribuído com algo para Francis?

Francis, chamou em pensamento.

Bingo, amiga. Mas a voz estava fraca.

Francis? Oh, céus, Francis estava sumindo, como a máquina do tempo? Não me deixe, Francis! Agora que sou uma vampira, você existe. Você pode ficar! Preciso de você, Francis!

Não, não precisa, sua tola. Henri não a abandonará, ficarão juntos, pelo menos, por mais cem vidas. Então, não existe mais a Francis amarga...

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A voz sumiu.

— Francis, não! — Françoise gritou.

— O que foi? — Henri ficou tenso. — O que está acontecendo?

Estou deixando de existir. Sinto isso, respondeu Francis, dentro da mente de Françoise.

Você não pode! Henri não vai me amar se eu for só uma garota ingênua. Ele ama você, Francis, não a mim. Você mesma disse que ele nunca tinha olhado para você do jeito que olha para nós duas.

A despeito de seus esforços, sentia Francis sumir aos poucos.

Engana-se. Agora estou dentro de você, porque você viveu comigo por este breve tempo. Francis ou Françoise, este momento será a nossa passagem para a imortalidade. Seremos sempre uma só de agora por diante.

Se você não existe, não vai voltar para esta época, e eu nunca verei Henri pelo que ele é, e você nunca vai me dar a coragem para querer ser vampira... Muito menos para me tornar imortal.

Não complique, amiga. O que aconteceu, aconteceu. O tempo é infinito e não podemos mudar isso.

Não posso viver sem você, Francis!

Errado, ouviu o sussurro tão baixo dentro de si que quase se confundia com sua respiração. Você não pode viver sem ele. Tem tanto de mim quanto eu podia dar. Será suficiente...

Francis!

Não houve mais resposta.

— Françoise! Françoise! Você está bem? — Henri segurava-lhe a cabeça entre as mãos.

Às lágrimas vieram.

— Francis se foi. Se foi, e eu não posso ser quem você ama sem ela.

— Está tudo bem, Françoise. — Acariciou-lhe o cabelo. Tentou trazê-la ao encontro de seu peito, mas ela resistiu. A preocupação era visível em seu rosto.

— Disse que não existia mais porque nos entendemos e não haveria mais a amargura da antiga Francis, pois com certeza ficaremos juntos por uma cem vidas desta vez.

— Você não a sente mais aí dentro?

— Bingo.

— O quê?! Françoise piscou.

— É... é algo que Francis sempre dizia. Quer dizer, a grosso modo, que você falou algo correto.

Henri arqueou as sobrancelhas. Entreolharam-se por um longo instante.

— Talvez ela não tenha partido completamente. Não acha? — Françoise percebeu uma mudança sutil no modo como escolhia e pronunciava as palavras.

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Talvez fosse a cadência, o sotaque.

Henri sorriu.

— Pode ser que não.

Françoise sentiu uma pequena agitação dentro de si, algo... discreto. Sorriu. As lágrimas rolaram pelo seu rosto.

— Tinha começado a gostar de minha amiga.

— Quem sabe ela, sim, tenha começado a gostar de si mesma.

Françoise colocou os braços em volta do pescoço largo e beijou-o de leve nos lábios. Sentia-se zonza.

— Você é um homem sábio, Henri Foucault. — Então começou a tremer.

Ele a levantou nos braços.

— Vamos colocá-la sob as cobertas. Teremos três dias difíceis pela frente. Mas estarei aqui para lhe dar o meu sangue de novo.

Agora, ela realmente tremia.

— Me... melhor ser ... por mais que... que três dias dessa vez, colega.

Colega? De onde tinha vindo aquilo?

— Um pouquinho mais... — Henri puxou a coberta sobre ela. — Francis estava errada. Com sorte, serão mais que cem vidas. Teremos toda a eternidade pela frente, meu amor. O nosso amor, como nós, é imortal...

Ele abaixou-se e beijou-a na testa.

— Sim.

— Ainda bem que Francis teve coragem de romper os elos do passado. Ao fazer isso, ela nos deu aquilo que perdemos da primeira vez. — Sorriu, apaixonado. — Talvez encontremos um modo de usar os poderes que temos para fazer algo pelo mundo. Há outros lugares onde as pessoas precisam de ajuda, além da França.

— Eu sei... Estou pronta para ser uma vampira do Bem. Por quantos séculos ainda viver neste mundo... Desde que você prometa estar sempre ao meu lado.

— Eu prometo... Se é isso o que deseja, é isso o que terá, minha adorada — Henri sussurrou, brindando-a com um beijo que selava um amor que ia muito além do que o conceito de tempo e espaço poderia definir. Aquele era o segredo dos imortais.

Desta vez, viveriam o amor que lhes fora negado antes, e nada nem ninguém, poderia separá-los.

O futuro lhes sorria. O tempo era um mero detalhe...

* * *

— Você acha que ainda estará lá?

Francis, como decidir chamar-se na modernidade, sorriu preocupada, enquanto Henri dirigia a luxuosa BMW preta alugada descendo a colina da Califórnia Street.

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— Digo, e se ela o vendeu? Ou se... se eu nunca o entreguei, porque Donna nunca me deu, porque nesta segunda versão de mim mesma eu nunca fui amarga e querendo voltar no tempo?

— Acalme-se, ma petite — murmurou Henri. Francis olhou para Henri, que sorriu.

— E pare de morder o lábio.

Ela tomou fôlego e tentou censurá-lo. Era sempre difícil, pois ao longo dos séculos que passaram juntos tinha aprendido a amá-lo ainda mais.

— Você sabe tão bem quanto eu como o livro pode ser importante... Não, perigoso. E se alguém usá-lo para seus próprios propósitos?

— Se ela o vendeu, procuraremos e o compraremos. E o outro argumento é circular, você sabe disso. Ou estará lá, ou não.

Henri estava certo, é claro.

— Devo lembrá-la de que você o utilizou para os seus próprios fins e as coisas parecem ter dado certo. — Seus olhos riam dela.

— Ali! Ali está o sebo.

Milagrosamente, uma vaga esperava por eles bem em frente ao sebo em que ela deixara o livro de Leonardo Da Vinci. Sorte de vampiro... Em geral, ela gostava de ser vampira, forte e viva como nunca se sentira antes. Presenciara séculos e séculos de história

Fitava-o embevecida, enquanto Henri estacionava.

Estava cansado. Voara da Somália na noite anterior. Tivera de tirar sua equipe daquele inferno, antes que tudo desmoronasse, e as vidas que arriscavam fossem perdidas. A organização Médicos sem Fronteiras era o atual esforço de Henri para fazer do mundo um lugar melhor. Ela o amava por isso.

"Rossano's Livros Raros", lia-se acima da janela do sebo. Sob aquelas palavras, um pedestal simples mostrava um grande livro, que parecia um dicionário antigo. A luz estava acesa, mas Francis não conseguiu ver ninguém.

Henri tomou-lhe a mão.

— Você está prendendo o fôlego. Ela o soltou.

— Ok, vamos lá.

Uma sineta soou quando entraram. Uma moça ruiva e familiar apareceu de uma porta nos fundos.

— Já vou!

Francis espiou a loja, mas não viu o livro de Leonardo. Henri tomou sua mão. Ela respirou fundo. Claro que não veria. Ninguém manteria algo tão valioso exposto.

A mulher de quem se lembrava apressou-se a atendê-los, vinda dos fundos, parecendo distraída. Parou de súbito quando viu Francis.

— É você!

— Ah, sim. — De repente, Francis não sabia o que dizer. Pelo menos, a mulher a reconhecera. O que significava que estivera na loja. E deixara o livro ali.

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— Estive procurando por você esta semana. — Ela espiou Francis, antes de seus olhos se voltarem para Henri e se arregalarem. As mulheres sempre pareciam chocadas quando o conheciam. Desviou os olhos e voltou-se para Francis. — Você parece... diferente.

Ela passou as mãos pelos cabelos, que não tinham mais o espetado original.

— Onde estão meus modos? Lucy Rossano, este é Henri Foucault.

A srta. Rossano cumprimentou-o, meneando a cabeça.

— Prazer, sr. Foucault. Creio que seja sua responsabilidade a mudança que vejo na srta. Suchet?

— Gosto de pensar que sim — murmurou Henri.

— Deixe isso para lá — Francis os interrompeu. — Vim por causa do livro. Está com ele?

— É por isso que a procurei. Mas ninguém sabia de você.

— Estive... fora. Você tem o livro?

Lucy Rossano passou as mãos pelos cabelos.

— Sim. Sim, é claro. Mas alguém fez uma oferta por ele. E... e não sei o que fazer.

— Você não o vendeu?! — ambos perguntaram juntos.

— Não, não. Pelo menos, ainda não. Mas... mas eles ofereceram... um milhão de dólares.

Francis e Henri se entreolharam. O livro valia aquilo, com certeza. E até mais. Um original de Leonardo Da Vinci? Um milhão era pouco.

— Cobrimos qualquer oferta que você tenha recebido — Henri declarou.

A srta. Rossano olhou para ele como se tivesse surgido um terceiro olho em sua testa. Sua boca se abriu, mas ela não conseguiu dizer nada.

Francis começou a ter uma sensação estranha.

— Por que... Por que esteve me procurando?

Os olhos verdes da srta. Rossano fitaram seu rosto.

— Primeiro, achei que deveria dividir o valor. Você só o deixou aqui... Não pediu nada por ele. Pensei que não era certo ficar com um milhão de dólares.

— E depois...? — perguntou Francis, pois tinha algo mais ali. Podia sentir.

— Comecei a sonhar com o livro. E não podia suportar a idéia de vendê-lo, de jeito nenhum. Comecei a pensar nele o tempo todo. É... é amaldiçoado ou algo assim? — quis saber. — Digo, você estava tentando se livrar dele?

Então tudo ficou claro para Francis. Sorriu, e sabia que o sorriso a acalmaria, porque era.verdadeiro.

— Não. Não, já o usei para me fazer feliz. — Francis deu um passo adiante e pegou as mãos da garota. — Não venda o livro. Você não quer fazer isso.

Os olhos verdes se encheram de lágrimas.

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— Precisa de dinheiro? — Henri perguntou.

— Quem não precisa de um milhão? O sebo não vai bem... É difícil. — A garota deu uma risada comovida.

Henri fitou Francis de soslaio.

— Vamos encontrar Donna e Jergan no Ozone esta noite, depois da ópera. Tenho certeza de que conhecem pessoas que gostariam de ampliar sua coleção de livros raros.

— Fique com o livro — Francis falou, de repente. — Você estava destinada a encontrá-lo, como eu. — Suspirando, virou-se para Henri. — Hora de ir?

Ele concordou. Tirando um cartão do bolso de seu Armani, entregou-o à vendedora.

— Se algum dia precisar de ajuda, pode me chamar.

E saíram. Francis relaxou. Não precisava se preocupar mais.

— O que aconteceu com toda a ansiedade? — Henri inquiriu.

— O livro não é perigoso, pelo menos não nas mãos dela.

— É verdade. Ela não pode acionar a máquina, já que é humana. — Abriu a porta para que ela entrasse no carro e deu a volta, sentando-se atrás do volante. — Nem mesmo sabe que a máquina está sob o Batistério, em Florença.

— Não importa. O livro tinha de ser de Lucy. Henri sorriu e girou a chave, acionando o motor.

— Então... Você acha que o livro é mesmo um objeto sobrenatural?

— Pode ser... Leonardo era, ao mesmo tempo, um artista e um cientista, o que o tornava meio mágico. Talvez o livro em si tenha se transformado em um objeto sagrado.

— Está inventando, não está?

— Talvez... Agora vamos tomar um drinque no Ozone.

— Bem, viver com você é sempre uma aventura. Francis beijou-o de leve nos lábios e riu.

— Isso, vindo de um homem que liderou a resistência em Marselha, lutou em todas as guerras mundiais para vencer o Mal é um pouco estranho, não?

— Vê o que tenho de agüentar? — Henri levantou os olhos para o alto. — É o que se ganha por viver com uma mulher por mais de duzentos anos. Ela sabe tudo!

Ao terminar de falar, baixou o olhar e depositou-lhe um beijo carinhoso na testa. Depois olhou para o relógio.

— Ainda restam algumas horas até encontrarmos Donna e Jergan. E temos aquela adorável cobertura no Fairmont, com aquela cama imensa.

— Você pode encomendar champanhe.

— Se é isso o que deseja, é isso o que terá, ma petite — prometeu, brindando-a com um beijo apaixonado.

Se era verdade que existia um destino, Francis, Françoise, ou seja lá qual

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nome ela adotasse ao longo dos séculos que viveriam juntos, era o seu destino, e Henri agradecia a Deus todos os dias por tê-la colocado em sua vida. A seu ver, o segredo dos imortais só poderia ser a sublime bênção de um amor eterno...

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