Tavola Magazine 2º ediçao

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MAGAZINE REVISTA DE CIÊNCIAS HUMANAS ANO 2 N. 2 MAIO, 2015 O BRASIL BIPOLAR O RETORNO DE LUZIA Um poema épico sobre a ‘primeira brasileira’ da História por Marcos Angelini A MAGIA DO GOL CONTRA por Caio Garrido FIGURAS DA RESISTÊNCIA por Maria Angela Santa Cruz + Poemas | Osvaldo Felix Contos | Lucas Arantes Música | Antonio Loureiro por Fábio Zuccolotto PORQUE OS CARROS SÃO TÃO FASCINANTES Entrevista com Paulo Sandler por Caio Garrido

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Edição temática voltada às questões de nosso país, compreendendo desde questões políticas, históricas, de identidade, até questões culturais importantes, como nossa literatura, música e arte, que por muitas vezes passam em branco pela percepção das pessoas. Tudo isso partindo de diversos pontos de vista: psicanalíticos, sociológicos, antropológicos e artísticos. Ainda nesta edição, uma entrevista exclusiva com o psicanalista Paulo Sandler, especialista na obra de Bion, e um apaixonado por carros, sendo estes o motivo da conversa que chega à essa publicação.

Transcript of Tavola Magazine 2º ediçao

MAGAZINEREVISTA DECIÊNCIASHUMANASANO 2 N. 2MAIO, 2015

O BRASILBIPOLAR

O RETORNO

DE LUZIAUm poema épico sobre

a ‘primeira brasileira’ da Históriapor Marcos Angelini

A MAGIA DO

GOL CONTRApor Caio Garrido

FIGURAS DA

RESISTÊNCIApor Maria Angela Santa Cruz

+ Poemas | Osvaldo Felix Contos | Lucas Arantes Música | Antonio Loureiro

por Fábio Zuccolotto

PORQUE OSCARROS SÃO TÃOFASCINANTES

Entrevista com Paulo Sandlerpor Caio Garrido

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SUMÁRIo

Brasil Bipolar

Fábio Zuccolotto

Paulo Cesar Sandler e a fascinauão por carros

por Caio Garrido

O Retorno de Luzia - Um poema épico sobre a ‘primeira brasileira’ da História

por Marcos Angelini

A Terceira Margem do Rio: Um diálogo entre Poesia (Sonho) e Prosa (Vigília)

Ana Raquel Ribeiro

Figuras da resistência, o homo sacer brasileiro contemporâneo e a construuão do comum

Maria Angela Santa Cruz

Crise de identidade do brasileiro - A magia do gol contra

Caio Garrido

Pensando as telenovelas: um olhar psicanalítico

Alessandro Alves

Cinema: Algo de Antonioni em Praia do Futuro

José Geraldo Couto

Entrevista: Novas “vozes” da música brasileira - Antonio Loureiro

por Caio Garrido

Conto: Quando vários pontos se encostam

Lucas Arantes

Poemas

Osvaldo Felix

Agenda

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Editor Geral: Caio GarridoJornalista Responsável: Marcos Angelini - MTB 21.329Diagramação: Vanúcia Santos (asedicoes.com)Revisão realizada pelos autoresArte final capa: Vanúcia SantosFotografia da capa:Leonardo Rodrigues - C��rdenad�r d� Departament� de F�t�grafia d� Núcle�Tavola. Fotógrafo, com formação em Publicidade e Propaganda. ProfessorUniversitári� na UNIP. Mestrand� na área de Educaçã�.

Tavola MAGAZINEé uma publicação do Núcleo Tavola Instituto de Formauão e Pesquisa em Psicanálise, Psicologia e Ciências Humanas LTDA.

Rua Visc�nde de Abaeté, 210, Jd. Sumaré CEP 14025-050 | Ribeirã� Pret� – SP –Tel.: (16) 3623-5786e

Núcleo Tavola | Espauo São Paulo de PsicanáliseVila Madalena | Sã� Paul� – SP – email: [email protected]: 12.947.921/0001-45 | Luis Henrique Milan N�vaes (diret�r geral)

EDIToRIAL É nas nuances que a vida se anuncia. Sem term�s de c�mpr�miss� �u separaçã�. N�s detalhes e

fissuras d�s fat�s, é �nde p�dem�s buscar as �rigens para pensar quem s�m�s e desc�brir caminh�sdiante d� que se apresenta.

Diante da liberdade de representaçã�, naquil� que nã� f�i imp�st�, pr�põe-se � que é d� singular,d� que é p�ssível simb�lizar c�m� identidade, e que nã� é p�ssível neg�ciar.

A 2º edição da Tavola Magazine vem tratar justamente diss�: Daquil� que nã� é p�ssível neg�ciar.o que é da história pess�al e � que é da história de um país. C�m� seus enred�s se c�nfundem e, àsvezes, se perdem?

A (verdadeira) história nã� é matéria para transaçã�;P�dem�s dizer que a identidade brasileira passa p�r uma pr�funda crise, esperand� n�vas recapi-

tulações?os desmand�s da atual p�lítica brasileira, �s radicalism�s ide�lógic�s exp�st�s antes e pós-elei-

ções, as últimas manifestações, a C�pa d� Mund�, � an� de 2014 – que marca cinquenta an�s d�g�lpe civil-militar de 1964 –, a finalizaçã� d� relatóri� da C�missã� da Verdade, e �utr�s ac�nteci-ment�s �c�rrid�s ultimamente, n�s causaram f�rtes impressões, deixand�-n�s pr�fundas marcas. Taisquestões f�ram m�tivad�ras para muit�s d�s c�nteúd�s presentes nesta ediçã�.

Mas � que parece premeditad�, nã� f�i � cas� para a ediçã� da revista. o Inc�nsciente determi-n�u � t�m, e alguns d�s text�s que f�ram se �rganizand� a� l�ng� d� temp� nã� tinham a pr�p�stanem c�m� pan� de fund� � tema “Brasil”, se pr�jetand� entã� uma linha tênue, que a�s p�uc�s set�rn�u visível, n�s permitind� n�meá-l�s c�m� fazend� parte de uma unidade.

As temáticas atravessam a história d� país, sua riqueza cultural e a infinda linha de n�ssa memóriado futuro, para parafrasear o psicanalista Bion.

Bion, que f�i uma das principais inspirações para Paulo Cesar Sandler – um grande psicanalistabrasileir� –, inspir�u também a primeira matéria desta ediçã�. Nela, Paul�, c�m sua alma gener�sa,fala um p�uc� s�bre sua história e sua paixã� p�r carr�s, n�s m�strand� as �rigens desta fascinaçã�pra ele e para as pessoas em geral.

Tem�s também � imprescindível artig� de espírit� literári� – se é que p�dem�s den�miná-l� assim– de Fábio Zuccolotto, que versa s�bre esse Brasil bipartid� que se anuncia.

D� literári� a� psicanalític�, a história c�ntinua se delineand�, em p�ema deMarcos Angelini, sobrea “primeira brasileira” que se tem n�tícia. C�m Ana Raquel, � b�m cald� de n�ssa cultura vem à t�na,c�m pinceladas psicanalíticas que passeiam p�r Guimarães R�sa, Caetan� e Milt�n Nasciment�.

Já a psicanalistaMaria Angela Santa Cruz, traz um imp�rtante artig� s�bre questões acesas da ditadu-ra, c�m as ress�nâncias que ainda h�je persistem, ainda que de f�rma disfarçada n�s h�mens ign�rad�sna nossa sociedade, os atuais homines sacri brasileir�s, vidas matáveis. Um exempl�, segund� a psica-nalista, é a dem�nizaçã� e criminalizaçã� d�s j�vens de periferia, c�l�cad�s c�m� �s n�v�s inimig�ss�ciais, � que faz existir ainda um particular estad� de exceçã� para grande parte da p�pulaçã� brasi-leira, principalmente negra.

Além destes, também temos notas, ensaios e entrevistas sobre cinema, telenovela e música brasileiraatuais, com José Geraldo Couto, Alessandro Alves e Antonio Loureiro, respectivamente.

Para fechar, p�emas de Osvaldo Felix e conto de Lucas Arantes.Certamente, � que nã� falta aqui é paixã�. Essa é a marca que desejam�s deixar.

Uma boa leitura a todos.Tavola Magazine

Contatos:Tel.: (16) 3623-5786Rua Visconde de Abaeté, 210Jd. Sumaré - Ribeirão Preto - SPtav�lamagazine@nucle�tav�la.c�m.br

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Trinta anos após o movimento Diretas Já, parte dos brasileiros se reencontrou nas avenidas enã� f�i pel�s uníss�n�s carnaval e futeb�l. As manifestações de 2013 rec�l�caram a s�cieda-de brasileira diante d� espelh�, exibind� e esgarçand� feridas jamais cicatrizadas n� tecid�

s�cial. A efeméride junina, p�r sua gênese nas pautas d� M�viment� Passe Livre, lev�u às ruassegment�s distint�s de n�ssa s�ciedade, unid�s, a princípi�, pela repressã� desmedida a�s quemanifestavam p�r uma causa tã� cara a t�d�s �s que saem de casa diariamente n�s centr�s urban�s.

As diferenças nã� tardaram a aparecer quand� �utras demandas e discurs�s vieram à t�na emcartazes, grit�s e agressões. os p�sici�nament�s ide�lógic�s nã� só reapareceram na agenda detant�s, c�m� se apr�fundaram, transb�rdand� um radicalism� que caiu na c�rrente sanguínead� país e culmin�u, nã� c�incidentemente, na metástase durante as eleições de 2014.

o dur� embate n� pleit� presidencial e a sua reverberaçã� se sustentam em narrativas que de-cantam, de um espess� cald� s�ci�cultural, a experiência brasileira em d�is c�rp�s de chã�, �uprecipitad�s. Amb�s c�mp�st�s de ingredientes artificiais, realçad�s em n�tas sintéticas de ec�n�mi-cism� e marketing, mas, também, c�m ar�mas f�rtes e temper�s da terra, c�lhid�s de n�ssa história.

Este artig� é uma tentativa de pr�p�r uma reflexã� s�bre esse intrincad� m�ment� naci�nal.

Raiz

As raízes deste territóri� em f�rma de crucifix� nã� seriam r�bustas, c�m� as que vem�s h�je,nã� f�sse a capilaridade desigual entre �s s�l�s que pisavam índi�s e aqueles drenad�s p�rjesuítas e bandeirantes.

Embalada pel� Atlântic�, ap�rt�u na Terra deVera Cruz a n�ssa p�rçã� da pólv�ra e, nã� sesurpreenda, da cruz. Inquisid�res de �cas, bater de pés, idi�f�nes e, dep�is, senzalas, ag�gôse tamb�res. Incendiári�s aprisi�nad�res d�s que vibravam p�r si.

Passad�s alguns sécul�s, a grandil�quente história d� fad� c�meçaria a preencher as almaslusitanas de além-mar que acumulavam pau-brasil, �ur� e lament�. Gêner� musical carac-terizad� p�r v�zes p�tentes e agud�s perfurantes, c�m� � ch�r� d�s penitentes que beijamo trágico destino das lanças. Com as lamúrias empavonadas dos amantes abandonados, dosimpéri�s decadentes que rem�em s�pr�s de glória sem largarem �s aç�ites.

F�ram sécul�s de escravidã�, iluminada, apenas, pela f�gueira de pilhas e pilhas d� quenã� se c�nseguia pilhar deste chã�. T�rrentes de sangue vermelh�, c�m� � de t�d�s nós, verte-ram das peles nã� brancas, c�m� a da mai�ria de nós, transb�rdand� as margens d� Ipiranga.

I Hiato ao homo economicus

Uma das conseqüências da escravidão e da hipertrofia da lavoura latifundi-ária na estrutura de nossa economia colonial foi a ausência, praticamente,de qualquer esforço sério de cooperação nas demaisatividades produtoras, ao oposto do que sucedia em outrospaíses, inclusive nos da América espanhola. 1

(Sérgio Buarque de Holanda, 1936)

BRASIL

BIPOLARpor Fábio Zuccolotto

“Sua graça, toda, é Diodato de quê?” – indaguei. - ´Diodato Nariz, por alcunha...´– ele disse; disse, de brancura. Conheci como eu nunca tinha dado tento d’atençãonaqueles homens, cuja valia. Assim que eles eram, de batismo: e o Pantaleão, Salús-tio João, João Tatu e O-Bispo. Naquela hora, era que eu punha tino.”

(João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas)

Fábio Zuccolotto é cientista social, psicanalista emf�rmaçã� e c��rdenad�r d� Dept�. de Estud�s S�-ciais e P�lític�s d� Núcle� Tav�la.

ESTU

DoSSo

CIAIS

EPo

L�TICoS

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o impéri� p�rtuguês transf�rm�u-se em impéri� brasileir� para que este, p�r sua vez, set�rnasse uma república de mini-impéri�s particulares e instituições viciadas.

A independência ec��u tal qual a memória d� pastel de Belém na latrina de lusa p�rcelanabranca. Jesus! Durante sécul�s ela plan�u c�m� uma ave de rapina s�bre capitanias hereditá-rias. Dizem que f�i abatida à flecha lá pelas bandas da Serra da Cantareira e enterrada n� Pic�d� Jaraguá, c�m� um espantalh� v�ad�r.

Em 1922, alguns lokis pr�t�antr�p�fágic�s reuniram-se às margens d� Teatr� Municipal deSã� Paul�. Tentaram fundir estéticas eur�peias às percepções da experiência tupiniquim para que,enfim, uma identidade naci�nal multic�l�rida n�s libertasse da aquarela. Independência e m�rte!

L�uvável, p�rém, � que fizeram f�i inaugurar a infeliz tradiçã� reservada a�s vanguardis-tas d� velh� �este. A de serem minad�s p�r p�der�s�s agentes da santa inquisiçã� da m�rale d�s b�ns c�stumes - enfad�nh�s herdeir�s de sesmarias, palacetes, cartóri�s e c�ncessõespúblicas. Em última instância, da parte de alguns, de buscarem, nã� a ruptura, mas � rec�nhe-ciment� n� brilhante verniz de esquelet�s amarelad�s.

Quant� a�s m�dernistas, fiquem�s c�m � fresc�r integral de Plíni� Salgad�. Anauê, L�bã�!Nã�, Arnald�, nã� vire b�l�r! Vam�s v�ltar pra Cantareira? Eu v�u. Arnald�? onde está

v�cê? Sint� muit�, amig�, desisti. Nã� v�u. V�u para � leste, c�m Harry Haller:Quando não encontro nem um nem outro e respiro a morna mediocridade dos dias chama-

dos bons, sinto-me tão dolorido e miserável em minha alma infantil, que atiro a enferrujada lirado agradecimento à cara satisfeita do sonolento deus, preferindo sentir em mim uma verdadeirador infernal do que essa saudável temperatura de um quarto aquecido.2

Cercanias da Modernidade

“A história de todas as sociedades que existiram até hoje tem sido a história da luta de classes”.Assim, Marx e Engels abrem � capitul� primeir� de O Manifesto Comunista3, em 1848. Talassertiva deve ser lida c�m t�d� � relativism� hist�ri�gráfic� que lhe cabe. A prudência emc�mpreender que existiram e ainda existem s�ciedades sem classes, à revelia d� marxism� �r-t�d�x�, deve-se a� fat� de que a influência p�sitivista se s�brepunha massivamente à nascenteetn�grafia e sua ínfima repercussã� n�s mei�s acadêmic�s da ép�ca, atribuind� um caráterp�sitiv�, certeir� e universal a�s estud�s s�ciais. Ressalva feita, nã� p�dem�s negar à afirma-çã� sua precisã� quant� às s�ciedades capitalistas, bem c�m� � fat� de que dela deriv�u umagama de interpretações que rev�luci�n�u a M�dernidade.

Um arcab�uç� teóric� que desnud�u as estruturas da dominação no capitalismo e apontoua c�mplexa malha da superestrutura – a ide�l�gia, � Estad�, as leis e as instituições. E, se nelehá a primazia d� capital econômico, nã� devem�s n�s esquecer, para relembrar B�urdieu4,de que este está em permanente dinâmica c�m �utr�s capitais e seus respectivos campossimbólicos, c�m� p�r exempl�, � religi�s� e � cultural. P�rtant�, � permanente pr�cess� deconstrução e desconstrução das representações d� indivídu� – gr�ss� m�d�, n�ções, ideias eimagens �riundas d� inc�nsciente que c�nstituem sua subjetividade – é f�rtemente influencia-do pelo posicionamento do seu capital econômico no campo da economia, mas nã� se reduzs�mente a ele, uma vez que ele está embebid� em �utr�s tant�s campos simbólicos.

Conforme escrito acima, os campos simbólicos se entrelaçam e estão em permanen-te dinâmica uns com os outros. Um campo simbólico é um espaç� s�cial c�m disp�siçõese especificidades que influenciam e sã� influenciadas p�r indivídu�s e instituições que �c�mpartilham. T�d�s que � c�mpõem estã� submetid�s a uma hierarquizaçã� de p�der, emdisputa, que �s p�sici�na naquele campo segundo seus capitais e habitus. Em uma t�scaanalogia, o capital religioso do Papa, no campo da religiosidade, seria ‘equivalente’ a� capitaleconômico de Wall Street, no campo econômico. Em suma, nã� existe c�mparaçã� p�ssível,uma vez que a b�lsa deManhattan e as ações de Ge�rge S�r�s influenciam e sã� influenciadaspel� Vatican�, a bíblia e as falas de Francisc�. Daí a imp�rtância de tais categ�rias analíticas.

o habitus é uma espécie de ‘mediad�r’ entre as representações subjetivas e as práticas objetivas.Segundo Maria Setton, ele é “um conjunto de esquemas de percepção, apropriação e ação que éexperimentado e posto em prática, tendo em vista que as conjunturas de um campo o estimulam”5.

C�ntrariand� � s�ciól�g� francês B�urdieu, que entende que nenhum campo tem a prima-zia, faç� abaix� uma síntese, talvez simplista demais, de seus c�nceit�s c�m a ideia centralda te�ria de Marx.

Um indivídu� que p�ssui um determinad� capital econômico c�mpartilha, diariamente, di-versos campos simbólicos c�m indivídu�s detent�res de mai�r �u men�r capital econômico,p�rém, ainda assim, nas s�ciedades capitalistas, a incidência d� campo econômico nas estrutu-ras de d�minaçã� é prep�nderante. D�minaçã� esta que, independentemente d� campo, se dápela c�açã� �u pel� discurs�, p�r vezes inc�nsciente, �utras tantas c�nsciente, que estabeleceum d�míni� c�nsentid� pel�s d�minad�s à medida que estes naturalizam �s campos simbólicosd�s d�minad�res, em uma dinâmica que B�urdieu cham�u de violência simbólica. Eis � p�derdaqueles que alcançam milhões de pess�as atribuind� significad�s e estabelecend� narrativas,s�b a pálida n�çã� da neutralidade, c�m� verdades inc�ntestes. Amém. Plim–plim.

Assim, o conceito de classe social abarcaa noção da subjetividade. A luta de classes,portanto, apesar de ser bastante objetiva eprimordial no campo econômico, é bem maisampla d� que supõem matreiramente algunsarticulistas defensores do status quo, uma vezque ela é travada em divers�s campos. Paraalém de rasteiras distinções entre p�bres e ri-c�s �u n�rdestin�s e sulistas, a apr�ximaçã��u � afastament� entre indivídu�s, grup�s einstituições está sujeit� a� mai�r �u men�rgrau de identificaçã� entre �s seus habitus esuas representações.

P�r iss�, na dita ‘�piniã� pública’ da mí-dia, nã� estranhe um aparente c�nsens�fav�rável à p�lítica ec�n�mia pró mercad�financeir�, �u, p�r exempl�, a massificaçã�da idi�tia cunhada recentemente: ‘esquerdacaviar’. Ainda que, destes que a pr�palam,muit�s nã� tenham lid� um text� sequer deesquerda, nem c�mid� caviar, eles c�nstituemdiversos campos com setores conservadoresda elite e deles representam e naturalizamgrande parte dos discursos, os incorporandoem seus habitus. Também, nã� estranhe c�-rintianos milionários cumprimentando-se unsa�s �utr�s, sem nenhuma carga de ir�nia,c�m a expressã� “é nóis, man�”.

Melancolia 6

N� tr�n� falta � rei. Na cruz falta � messias.Quem n�s guiará à terra pr�metida? Quemfalará p�r deus? Quem pregará? Quem serápregad�? Getúli�, Ge�rge S�r�s, Gl�b�, Ge-neral Médici, General Motors, Gugu, Pelé eMarighella. Qual ‘ism�’ amparará a mai�ria?P�r que, na TV, ‘p�pulism�’ é term� pej�rativ�e nada se fala s�bre ‘mercadism�’, ‘rentism�’ eelitism�? O petróleo é nosso. o lucr� é deles.

Alv�rada de 24 de ag�st�. 1954. Na antes-sala ainda ressoavam as bravatas desferidas peloj�rnalista Carl�s Lacerda c�ntra a c�rrupçã� e �mar de lama do governo, em solo para poucosconvidados e muitos microfones. Ali ao lado,em uma câmara para milhões de órfã�s, �uvia--se �s primeir�s ac�rdes d� cant� d� cisne:

EXTRA. Matou-se Vargas. O presidentecumpriu a palavra: “Só morto sairei doCatete”. Às 8:30 hs. da manhã de hoje omaior líder popular que o povo brasileirojá conheceu encerrou de modo dramáticosua grande vida. A mensagem que Vargasdeixou pouco antes de desfechar contrao peito o tiro fatal: «À sanha dos meusinimigos deixo o legado de minha morte.Levo o pesar de não ter podido fazer peloshumildes tudo aquilo que eu desejava.”7

Impéri� vai, impéri� vem. Nã� é s�bre sereternamente autóctone, mas sobreviver comdignidade, ou, minimamente, sobreviver.C�ng�, Saig�n, Brasil. N� c�raçã� das trevaso apocalipse redime.

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C�m � c�rp� am�rtecid� adentr�-me. N� acelerad� fus� beatnik a cena pendurada na parede.A sagrada família envelheceu e nã� tem um t�stã�. Pergunt�-me quand� c�l�carã� a manjedou-ra à venda n� eBay. A ayahuasca acab�u. E ag�ra, J�sé? Bem vind� a� desert� d� pei�te.

Iníci� de 1964, Guerra Fria. Na batida da b�ssa, J�ã� G�ulart, c�m ampl� ap�i� p�pular,anunciava:

Os contrastes mais agudos que a sociedade brasileira apresenta, na fase atual do seu desen-volvimento, são de natureza estrutural, e, em virtude deles, a imensa maioria da nossa populaçãoé sacrificada (...) Optei pelo combate aos privilégios e pela iniciativa das reformas de base, porforça das quais se realizará a substituição de estruturas e instituições inadequadas à tranqüila con-tinuidade do nosso progresso e à instauração de uma convivência democrática plena e efetiva.8

Tranquil�. Quatr� meses dep�is ele vivia exilad� n� Uruguai. Jang� tinha 70% da p�pula-ção ao seu lado.9 Iss� nã� bast�u, em face da defesa da ‘s�berania’ brasileira c�ntra � perig�que vinha d� Tiamat �riental. A ínfima min�ria, p�rtant�, era a p�rçã� que cabia à família bra-sileira representada na TFP10. Em n�me de um anarquista-hippie (Jesus?), ajudaram a blindar �rein� de deus c�m tradiçã�, pr�priedade, t�rtura e fel! A elite naci�nal que s�nhava c�m Parisjá havia entendid�, há muit� temp�, que � charme da Cidade Luz nã� era a luz da liberdade,igualdade e fraternidade, senã� a exclusividade d� salt� Luís XV. P�uc� imp�rtava desequi-librar-se a� pis�tear algumas raízes. Trágica seria uma queda fatal da sacada da Bastilha, �umelh�r, d� alpendre da Casa-grande11.

II Hiato ao homo economicus

Observamos aqui muito bem a ligação do imperialismo com onosso velho sistema colonial fundado na exportação de produtosprimários, pois é dessa exportação que provém os recursos com que o im-perialismo conta para realizar os lucros que são a razão de serde sua existência. Considerada do ponto de vista geral doimperialismo, a economia brasileira se engrena no sistema delecomo fornecedor de produtos primários, cuja venda nos mercados interna-cionais proporciona os lucros dos trustes que dominam aquele sistema.12

(Cai� Prad� Jr., 1945)

P�r mais de vinte an�s um entã� p�stulante a n�v� impéri� tabel�u c�m n�ssas �ligarquiase seu braç� armad�, ciente de quais mã�s eram calejadas de trabalh� e quais assim estavamde fustigar aspirantes a libertad�res da América. C�nstruíram até uma Esc�la das Américaspara ensinar militares de t�d� � c�ntinente a expandirem a dem�cracia c�ntra � subversiv�discurs� de igualdade. Ali, �s �bedientes alun�s aprendiam técnicas m�dernas que já haviamsuplantad� �s defasad�s tr�nc� e pel�urinh�. As veias rasgadas da América Latina c�nheceram� pau-de-arara, a cadeira d� dragã�, entre �utr�s. Chaga interminável.

Ist� parece nã� ter fim. o p�v� nã� reage. Fica quiet�, cada um n� seu cant�, tentand� tirarvantagem d�s �utr�s a� invés de ir pr�testar lá n� Paláci� d� Catete. Cacete, ag�ra já existeBrasília! Fizeram n� mei� d� nada, n� desert�. Garç�m, cadê � pei�te? Péssim� � atendiment�daqui, nã� acha? Culpa d� Luci� C�sta, aquele m�dernista. D� Niemeyer, c�munista safad�.Garç�m! Este país é uma merda. o brasileir� é uma merda.

Maestr�, t�que um fad�. Nã�, nã�. My Way. A versã� de Sinatra. Melh�r, um ch�r� acele-rado. Brasileirinho, de Waldir Azeved�. V�u para � alpendre.

Mania 6

Brasil: � país d� futur�.

Bipartido

A partir da década de 80, � bl�c� s�viétic� c�meç�u a esfacelar e a Guerra Fria a c�ngelar. osEUA agigantavam-se na �rdem mundial que nascia. os regimes militares da AL nã� tinham maisserventia. Enquant� � mund� se familiarizava c�m sua primeira superp�tência, as p�líticas da�rt�d�xia ne�liberal já estavam adiantadas n� centr� d� capitalism�. o Estad�, em t�d�s �ssentidos, não encontrava mais sentido.

Um Brasil recém saíd� d�s an�s de chumb� elegeu, c�m � ap�i� substancial d�s grup�sde c�municaçã�, � �ligarca Fernand� C�ll�r. Deu n� que deu: impeachment e a sensaçã�de que aventureir�s d� Atlântic� e herdeir�s de sesmarias nã� c�nseguiriam mais c�mandara naçã� d� carg� máxim� da República. Restavam ‘apenas’ � legislativ� e instâncias d� ju-diciári�. Àquela altura deve ter parecid� evidente às f�rças hegemônicas que �s p�stulantes

ao cargo deveriam vir de campos ideológicosmais próxim�s d�s ansei�s p�pulares. Apenasmascaradas, a�s �lh�s em ch�que, as basesdo poder nacional poderiam seguir sem mui-tos terremotos em um território democrático erecentemente crucificad�.

o PT e � PSDB nasceram c�m� partid�s deesquerda. o primeir�, trabalhista, f�i fundad�em 1980, na base �perária d� ABC paulista.o �utr�, s�cialdem�crata, fundad� durante aC�nstituinte de 1988, c�mpunha a centr�-es-querda. Sem jamais terem c�gitad� qualquerruptura de ordem revolucionária, seguiram pelasvias das instituições, tentand� ref�rmá-las p�rdentr�. Evidentemente, em um pervers� pr�ces-so de violência simbólica, aceitaram o jogo dasuperestrutura enraizada n� Brasil C�lônia.

Nascid� em família de militares, em 1931,n� Ri� de Janeir�, Fernand� Henrique Card�s�sucedeu Itamar Franc�, send� eleit�, em gran-de medida, pela popularidade do Plano Real,� qual ajud�u a c�nceber. Egress� d� PMDBe um dos fundadores do PSDB, o prestigiados�ciól�g� tinha uma sólida carreira acadêmicaquand� entr�u n� campo da p�lítica instituci�-nal. Fez parte de um heter�gêne� grup� que,em �p�siçã� à cepalina13 Teoria do Desenvol-vimento, desenvolveu, sem ironia, a Teoria daDependência n� iníci� d�s an�s 60.

III Hiato ao homo economicusTais circunstâncias serviram de base paraa interpretação da dependência associada,cujo trabalho fundador é o ensaio de Fer-nando Henrique Cardoso e Enzo Falettopublicado no Chile em 1969, ‘Dependên-cia e Desenvolvimento na América Latina’.(...) A dependência associada pode serresumida – com todos os riscos implícitosem um resumo – em uma idéia simples:já que os países latino-americanos nãocontam com uma burguesia nacional, nãolhes resta alternativa senão se associaremao sistema dominante e aproveitarem asfrestas que ele oferece em proveito de seudesenvolvimento.14

(Luiz C. Bresser-Pereira, 2010)

Apesar de pedir para que esquecêssem�stud� � que havia escrit�, seu g�vern� prati-cou a teoria da submissão associada, indoc�ntra � princípi� s�cialdem�crata e desenv�l-vimentista de muit�s quadr�s de seu partid�.Implement�u p�líticas de ch�que ne�liberal,conforme regia o centro do capitalismo, pri-vatizand� estatais e acelerand� a aberturaec�nômica iniciada p�r C�ll�r. Ações quepouco alteraram a concentração de renda, ge-raram desempreg� e n�s deixaram à mercê dasp�líticas d� Fund� M�netári� Internaci�nal.

Filh� de lavrad�res sertanej�s, nascid�em 1945, em Caetés, � p�pular Lula, metalúr-gic�, líder sindical e um d�s fundad�res d� PT,

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após m�derar � discurs� e jurar parcimôniaem uma carta aos brasileiros para o sistemafinanceir�, cheg�u lá. Habilid�s� articulad�r,costurou um governo com uma enorme baseque abarcava desde m�viment�s s�ciais atéset�res c�nservad�res, tend� c�m� � fiel dabalança � fisi�lógic� PMDB. Beneficiad� pelaalta das commodities, puxada pel� crescimen-t� da China, cri�u e ampli�u pr�gramas s�ciaisc�m� seu antecess�r jamais s�nh�u. Sustentad�por poderosas alianças com oligarcas da estirpede Sarney, c�nseguiu desenv�lver uma p�líticaec�nômica nã� �rt�d�xa que, além de p�sici�-nar � país c�m� uma das grandes ec�n�mias d�mundo, afagando empresários e bancos, promo-veu a ascensã� s�cial de milhões de brasileir�s.

C�m a amplitude desta c�alizã� e � paísatingind� níveis históric�s de desenv�lviment�e melh�rias s�ciais, � PSDB viu a sua s�bre-vivência p�lítica na c�ncentraçã� d� discurs�à direita d� g�vern�. Afin�u-se c�m set�resainda mais c�nservad�res d� que aqueles dabase aliada e se resumiu a entoar o canto do�lig�póli� midiátic�, c�m� um p�rta-v�z d�mercad� quand� este desejava ext�rquir maisd� Estad�. Desempenh�u, durante an�s, umpífi� papel enquant� �p�siçã�.

Até chegarem �s primeir�s sinais da crisede 2008, n� fim d� cicl� ec�nômic� virtu�s�a partir da queda d� val�r das matérias primaspara exp�rtaçã�.

É a economia, estúpido! 15

Fotografe, agora, a paisagem de uma socie-dade de c�nsum� hipermidiatizada, s�b f�rteinfluência d� campo simbólico de uma eliteec�nômica transnaci�nal que c�manda �s ru-mos da alta tecnologia, megaconglomeradosempresariais, entretenimento e informação,além, claro, de deter as rédeas do touro deWall Street. Pegue sua capa, já que n�s úl-timos sete anos esta paisagem vive sob amai�r t�rmenta pela qual já pass�u. Imagineo Brasil, no meio deste temporal, após des-cobrir as maiores reservas de petróleo domundo em décadas, estreitando os laços daAmérica Latina e ajudand� a pintar um n�v�quadr� ge�p�lític� c�m �s BRICS16. Digamosque nã� é um cenári� que agrade a� impé-rio, instrumento dos interesses supracitados.N�ssa história m�stra c�m� �s set�res da elitenacional sempre se mostraram favoráveis aochic�te e c�ntrári�s a�s interesses p�pulares.

As manifestações de 2013 f�ram alv� deuma forte guinada de abordagem por parteda mídia, após a desmedida repressã� da PM,� que acab�u p�r enc�rpar �s pr�test�s n�sdias subsequentes. N� iníci�, ela criminali-zava �s ‘baderneir�s’ que tinham uma pautaespecífica, para, dep�is, percebend� � �p�r-tuno momento, fomentar a profusão de pautasgenéricas n�s ‘manifestantes’ que emergiamde uma s�ciedade que jamais lid�u c�m suasc�ntradições. o Gigante. Nas ruas, a rev�lta

contra os gargalos estruturais de um modelo de crescimento alicerçado em séculos de desi-gualdade f�i a expressã� máxima de uma p�lítica de c�alizã� de classes que chegava a� seulimite: � lulismo17. Enquant� divers�s set�res pr�gressistas atinham–se às pautas mais específi-cas, a expl�sã� da indignaçã� difusa da mai�ria s�b símb�l�s naci�nalistas, l�nge de mirar asestruturas d� p�der, t�rn�u–se um larg� campo para a vazã� e a mimetizaçã� de representa-ções mantenedoras destas mesmas estruturas. A imagem refletida n� espelh� f�i a de um paísque se vê a�s pedaç�s, em pilhas que nã� f�rmam um t�d�.

N� primeir� m�ment�, nenhum partid� �us�u tentar se apr�priar das manifestações, as-sustados com a fúria popular. Contudo, o campo político engl�ba muit� mais agentes d� queos partidos.

Findad�s �s grandes pr�test�s, � clima de instabilidade f�mentad� pass�u a ser rec�nstruí-do na narrativa midiática, em uma missão suicida em defesa da elite nacional e pela promoçãoda pauta d� mercad� financeir� nas eleições que se apr�ximavam. A velha mídia brasileira deLacerda, que estupra a imparcialidade fingind� nã� ser pr�tag�nista na s�ciedade d� espetá-cul�. o país à beira d� ap�calipse ec�nômic� e a ‘c�rrupçã� escandal�sa’, que pela primeiravez vem à t�na c�m prisões de p�lític�s e empresári�s, exp�nd� perig�samente a estrutura,passaram a ser �s mantras diári�s para angariar e unificar d�is flanc�s c�nservad�res da classemédia, grande estrela das manifestações, c�m� uma só f�rça p�lítica c�ntrária a� g�vern�federal que nã� mais sustenta a c�alizã� das classes.

o primeir�, de �rigem católica, inc�nf�rmad� c�m � achatament� de seu capital econômicoe, fundamentalmente, o social; espremid� entre a ‘senzala’ que pass�u a dividir espaç�s c�mele e a eterna falta de perspectivas de ser parte da elite. o segund�, � flanc� c�mp�st� p�r parteexpressiva d�s que ascenderam na última década, muit� mais próxim� da ética pr�testante e suasimbiose catártica com um capitalismo crescente18, temend� perder � que c�nquist�u. P�r iss�,bastante suscetível à narrativa d� ap�calipse. Amb�s, embalad�s pel� cant� da sereia, f�ram af�rça m�triz da óbvia e necessária pauta p�r melh�rias n�s serviç�s públic�s que, parad�xal-mente, carregava altas d�ses de l�uv�r à merit�cracia e à reduçã� d� papel d� Estad�. Discurs�sque, nã� p�r c�incidência, se aninhavam c�nf�rtavelmente na candidatura �p�sici�nista, maisafeita a� mercad�. Críticas à Rede Gl�b� e à mídia em geral surgiram a�s m�ntes, alguns cha-mando-as de comunistas. A bipolaridade beirando um surto psicótico.

Em um país s�b f�rte abal� identitári�, �s marqueteir�s perceberam que � caminh� p�ssívelàs candidaturas nã� p�deria ign�rar � que vinha �c�rrend� desde � an� anteri�r. A palavra‘mudança’ f�i � t�m da carnificina. Diante de um clima de suspensã� histórica, as três campa-nhas maj�ritárias tentaram atribuir suas esc�ras narcísicas a�s eleit�res, �ferecend� cada qualuma imagem d� Brasil que sustentasse quem f�m�s, s�m�s e devem�s ser c�m� s�ciedade.Um sentid� de país, disputad� c�m intensidade e agressividade, que só enc�ntraria � futur�desejad� em suas pr�p�stas p�uc� debatidas. Marina: � esg�tament� d� bipartidarism� e amudança na c�nstruçã� d� n�v�. Aéci�: a c�nstruçã� de um presente caótic� e a �p�siçã�c�m� a �rdem necessária à mudança. Dilma: a transf�rmaçã� feita n� passad�, a c�nstruçã�de um presente melh�r e a segurança para mais mudanças.

N� segund� turn�, �s precipitad�s d� cald� brasileir� ficaram ainda mais definid�s em t�r-n� de discurs�s ide�lógic�s carregad�s de Guerra Fria. Indíci�s de que, n� fund�, � abal� quevivem�s é mais intens�, é tã� pess�al que é na �rdem mundial. Em t�rn� de Aéci�, a elite me-rit�crática, � capitalism� que quebr�u, �s banc�s, a ética, a pureza, �s ne�liberais �rt�d�x�s,� mérit�, a mídia, � mercad�, Miami, um f�rtíssim� antipetism� nutrid� de elitism� (inclusa aextrema direita naci�nalista) e Sã� Paul�. Em t�rn� de Dilma, �s p�bres assistid�s, � c�munis-m�, � b�livarianism�, � Estad�, �s heter�d�x�s inc�mpetentes, �s bl�gs suj�s, �s m�viment�ss�ciais, Cuba, Fidel, Chávez, Stálin e a regiã� N�rdeste.

D�is representantes de pr�jet�s de naçã� que se diferenciam, basicamente, quant� à im-p�rtância que atribuem à arena pública enquant� espaç� d�s embates e das transf�rmações.Entretant�, s�b f�rte influência da atual c�njuntura ge�p�lítica, símb�l�s aglutinad�res derepresentações variadas e m�bilizadas, c�nsciente �u inc�nscientemente, pel� acirrament� daluta de classes. os atrit�s e rupturas de relaci�nament�s em inúmer�s campos da vida cotidia-na de tant�s alastraram �s graves sint�mas de um m�del� de capitalism� mórbid� em um paísque precisa se c�nfr�ntar c�m questões basais.

Tento e Tino

Apuradas as urnas, a eleiçã� ainda nã� acab�u. Escrev� esse text� n� iníci� de dezembr�de 2014 e � mar c�ntinua bastante agitad�. As instituições estã� send� irresp�nsavelmentetensi�nadas p�r algumas f�rças p�líticas derr�tadas, s�b f�rtes críticas de �utr�s set�res �p�-sici�nistas, verdadeiramente dem�cratas. o Planalt� está tentand� neutralizar � g�lpe que seavizinha via impeachment. Aparentemente, está send� bem sucedid�, principalmente dep�isde ter anunciad�, para � iníci� d� próxim� mandat�, um h�mem d� mercad� financeir� paraa Fazenda e a ruralista Kátia Abreu para a Agricultura, agradand� à estrutura e dando um tapana cara de sua base progressista.

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Mund� af�ra, nesse cassin� viciad�, a banca sempre vence, enquant� �s índi�s, quil�mb�-las, ribeirinh�s e tantas �utras min�rias que s�madas sã� mai�ria, sempre perdem. E assim seráenquant� imp�rtantes alicerces nã� f�rem dem�lid�s, interna e externamente.

Neste m�ment� de abertura nas p�ssibilidades ge�estratégicas, quand� � centr� d� capi-talismo também patina, o Brasil pode se consolidar como um importante agente internacionalna pr�p�siçã� de n�vas perspectivas humanistas, questi�nad�ras e de ações n� sistema gl�bal.Entretant�, para tal, as p�rções d� s�l� tupiniquim a serem pisadas pel�s seus demandamuma capilaridade justa, para que � futur� seja presente n� planti� de n�vas sementes e raízes.Urgem as n�ções e práticas de alteridade e pluralidade, para que, de n�ssas experiências par-ticulares, c�nstruam�s uma identidade naci�nal partilhada p�r muit�s e nã� sequestrada p�rp�uc�s. Uma identidade que passe p�r espaç�s públic�s, pela p�litizaçã� d� c�tidian�, pel�pressup�st� d� dever de n�s rec�nhecerm�s em n�ssa própria história.

Hiato final ao homo economicusA história da distribuição da riqueza jamais deixou de ser profundamentepolítica, o que impede sua restrição aos mecanismos puramente econômi-cos. (...) A história da desigualdade é moldada pela forma como os atorespolíticos, sociais e econômicos enxergam o que é justo e o que não é, assimcomo pela influência relativa de cada um desses atores e pelas escolhascoletivas que disso decorrem.19

(Th�mas Piketty, 2013)

Poema - Fábio Zuccolotto.

Tirinha - J�ã� da Silva - net�destr�v�canh�ta.

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NOTAS

(Endn�tes)1 HoLANDA, Sérgi� Buarque. Raízes do Brasil. 26. ed. Sã� Paul�: C�mpanhia das Letras, 1995. p. 57.2 HESSE, Hermann. O lobo da estepe. Iv� Barr�s� (trad.). Ri� de Janeir�: Rec�rd, 1995. p. 30. (C�l. Mestres da Lite-ratura Contemporânea)3 MARX, Karl.; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. 9. ed. Petróp�lis, RJ: V�zes, 1999.4 BoURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. Sérgi� Micelli (�rg.), vári�s tradut�res. 6. ed. SP: Perspectiva,2007. (C�l. Estud�s)5 SETToN, Maria das Graças. J. A teoria do habitus em Pierre Bourdieu: uma leitura contemporânea in Revista Brasi-leira de Educauão.Sã� Paul�, v. 20, p.63, mai�/ag�. 2002.6 “A melancolia se manifesta com tristeza profunda, limitação da vida ativa e profusão de auto-recriminações ou auto-censuras e uma invasão sufocante de culpabilidade, segundo a psicanálise. Em contrapartida, a mania se destaca pelaexaltação do humor, com tonalidade de alegria excessiva e incontrolada. Há também uma aceleração do curso do pensa-mento e desestruturação do discurso, o que levou Freud a compará-la com as formas sociais de exaltações festivas, comas liberações das inibições, com a abolição do controle superegóico, e do incremento das transgressões da vida social. Sena melancolia temos uma aniquilação da vida social, na mania temos uma transgressão da mesma. Em ambas as formasclínicas, observa-se disfunção da culpa e da responsabilidade. Portanto, há sempre falta de regulação da culpa e da res-ponsabilidade, no que tange à perda da sintonia, e modulação excessiva do humor, ora para mais, ora para menos comrelação ao objeto”. CAMPoS, Sérgi� de. Considerações acerca do transtorno afetivo bipolar in Almanaque online. nº 3,jul - dez, 2008. IPSM-MG < http://www.institut�psicanalise-mg.c�m.br/>. Acess� em: 16/12/2014.7 Jornal Última Hora, Ri� de Janeir�, 24/08/1954. Disp�nível em: < http://c�pacabana.c�m/rua-t�neler�/ >. Acess� em08/12/ 2014.8 Mensagem ao Congresso Nacional - Remetida pelo presidente da república na abertura da sessão legislativa de1964. Disp�nível em: <www.institut�j�a�g�ulart.�rg.br/c�nteud�.php?id=68>. Acess� em 08/12/2014.9 Fonte: <www2.camara.leg.br/camaran�ticias/n�ticias/PoLITICA/464707-JANGo-TINHA-70-DE-APRoVACAo-AS--VESPERAS-Do-GoLPE-DE-64,-APoNTA-PESQUISA.html>. Acess� em 06/12/2014.10 Tradiuão Família e Propriedade. organizaçã� civil de católic�s ultrac�nservad�res que particip�u ativamente d�G�lpe de 64, �rganizand� a “Marcha da Família c�m Deus pela Liberdade”. Atualmente chamada de S�ciedade Bra-sileira de Defesa da Tradiçã�, Família e Pr�priedade, f�i fundada p�r Plíni� C�rrêa de oliveira que “Provinha, pois,de duas notáveis estirpes brasileiras. De um lado, os Corrêa de Oliveira, senhores de Engenho em Pernambuco (...)De outro lado, sua mãe, Dª Lucília, pertencia à tradicional classe dos paulistas de “quatrocentos anos” – isto é, pro-venientes dos fundadores ou primeiros moradores da cidade de São Paulo – e contava entre seus ascendentes váriosbandeirantes famosos”. <http://www.tfp.�rg.br/> . Acess� em 10/12/2014.11 FREYRE, Gilbert�. Casa-grande & senzala: f�rmaçã� da família brasileira s�b � regime da ec�n�mia patriarcal. 48ªed. SP: Gl�bal, 2003.12 PRADo Jr, Cai�. História econômica do Brasil, SP: Brasilienese, 1945. Versã� digitalizada. Disp�nível em: <www.mem�riasdaresistencia.�rg.br/cpjr_hist�riaec�n�micad�brasil.pdf >. pg. 249.13 CEPAL - C�missã� Ec�nômica para a América Latina e � Caribe, criada em 1948. É “uma das cinco comissõeseconômicas regionais das Nações Unidas (ONU). Foi criada para monitorar as políticas direcionadas à promoção dodesenvolvimento econômico da região latino-americana, assessorar as ações encaminhadas para sua promoção e con-tribuir para reforçar as relações econômicas dos países da área, tanto entre si como com as demais nações do mundo”.<http://www.cepal.�rg>. Acess� em 12/12/2014.14 BRESSER-PEREIRA, Luiz Carl�s. As três interpretações de dependência in PERSPECTIVAS: Revista de Ciências So-ciais. SP: UNESP. v. 38, p. 17-48, jul/dez., 2010.15 “É a ec�n�mia, estúpid�!» - sl�gan criad� pel� marqueteir� James Carville para a campanha de Bill Clint�n, nac�rrida presidencial d�s EUA, em 1992.16 Acrônim� d� grup� ec�nômic� e p�lític� c�mp�st� p�r: Brasil, Rússia, �ndia, China e África d� Sul.17 SINGER, André. Os sentidos do lulismo: ref�rma gradual e pact� c�nservad�r. 1ª ed. SP: C�mpanhia das Letras,2012.18 WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. SP: Ed. Pi�neira, 1998.19 PIKETTY, Th�mas. O Capital no Século XXI. Mônica B. de B�lle (trad.). Ediçã� Digital. Ri� de Janeir�: Intrínseca,2014. p.28.

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oan� era 1962. o até entã� c�-pil�t� Paul� Sandler – h�je um pr�eminente analista– recebe � avis� de seu pai: “H�je v�cê vai dirigir”. Nunca havia se aventurad� afazê-l�. Nem imaginava que seria daquela f�rma. Na Rua Cubatã�, uma das mais m�-

vimentadas da ép�ca em Sã� Paul�, lugar c�nfus� e replet� de ônibus, nã� era pr�priamenteum d�s melh�res lugares para tal enfrentament�. Seu pai explicava, e Paul� nã� discutia. Tinhaque se virar. Saiu mei� a�s tranc�s, mas f�i; nã� precisava receber nenhuma br�nca, já queera alg� que desejava e muit� fazer. Assim c�m� f�i quand� aprendeu a nadar, �nde seu paisimplesmente o jogou na piscina, Paulo estava então no mar de carros. Sempre dotado de umaentrega c�mpleta, Paul� nã� fugia a� desafi�.

Mas para falar deste e �utr�s desafi�s, é precis� primeir� p�sici�nar-n�s em �utr�s lugaresestratégic�s. P�is f�i através de seu núcle� familiar, entre �utr�s, que ele estabeleceu seus maisprimev�s c�ntat�s c�m � mund� d�s aut�móveis e d�s s�nh�s que ali se faziam nascer.

Em se tratand� de um psicanalista, Paul� busca traçar � iníci� desse c�ntat� pel� quechama de relações �bjetais, que n� cas� eram � pai e um prim�-irmã�. Paul� Sandler tinhaseus três an�s de idade na ép�ca que marca c�m� � iníci� de sua paixã� p�r aut�móveis, n�qual essa trindade h�lística � fazia preenchê-l� de s�nh�s e fantasias, primeir�s m�viment�sem direçã� a� pensament� e a açã�, à aut�n�mia em relaçã� a� própri� desej�.

Seu pai e seu prim� f�ram aqueles que puxaram � carr� das influências, e Paul� �s tratavac�m� se f�ssem seus íd�l�s, principalmente em relaçã� a� prim�, que na ép�ca c�ntava c�mseis an�s a mais d� que ele. Ele sempre queria saber quais eram �s n�mes, �s c�mand�s edetalhes d�s carr�s, e seu prim� R�nald� lhe ensinava.

Basicamente a paixã� ac�nteceu em funçã� deles, mas também através da influência de�utras pess�as, c�m�, p�r exempl�, um m�t�rneir� de b�nde.

MATÉ

RIA

Carros têm c�rp�, cheir�, traseira (�), curvas, pers�na-lidade, charme. Carr�s fazem parte de n�ss� itinerári��níric�. Muit�s dizem que eles p�dem até sentir, vibrarjunt� à pers�nalidade d� d�n�. Se existe alguém que en-tende de s�nh�s, é apaix�nad� p�r carr�s, e tem muit� afalar s�bre a �rigem desta fascinaçã� – que ac�mpanhaa espécie humana desde a criaçã� da r�da – é � psica-nalista Paulo Sandler. Paul�, c�nhecid� p�r ser um d�smai�res exp�entes da psicanálise n� Brasil, além de terescrit� divers�s livr�s de psicanálise aqui e n� exteri�r etraduzid� imp�rtantes �bras daquele que c�nsidera umdos mais importantes psicanalistas e teóricos da discipli-na –Wilfred Ruprecht Bion – também já escreveu divers�slivr�s s�bre aut�móveis, entre eles � P�rsche e � opala.A Revista Tavola Magazine conversou com Sandler paratentar resp�nder a uma básica questã� que muit�s já sefizeram um dia: P�rque �s carr�s sã� tã� fascinantes?

PAULo CESAR SANDLER

E A FASCINAçoO POR CARROSpor Caio Garrido

o m�t�rista de b�nde se chamava Francis-co. Após o bonde passar em frente sua casa, osm�t�rneir�s paravam e ficavam c�nversand�.Entã� Francisc� dava um alô e �s �lh�s de Paul�brilhavam. C�m� era fantástic� ser m�t�rneir�de b�nde! E de carr�, de m�t�, bicicleta... P�isnã� era só � aut�móvel que � fascinava, eramt�das aquelas engenh�cas: vel�cípede, carri-nh� de r�limã, bicicleta, carrinh�s de madeira.

Muito tempo depois, com 10 anos deidade, “c�nheceu” alguns psicanalistas daS�ciedade Brasileira de Psicanálise, que c�n-viviam em sua casa, c�m� R�bert� Azeved�(todos esses analistas eram amigos de seu pai,médico e também psicanalista dessa primeirageração, fundadores da Sociedade).

Paul� entã� ia à casa de R�bert�, p�rter ficad� amig� d�s filh�s dele, e eles ti-nham alguns carrinh�s c�m �s quais ficavambrincand�. H�je, R�bert� faz a seguinte �b-servaçã�: «V�cê escreve e m�nta seus livr�se c�nferências c�m� v�cê dispunha �s carri-nh�s em fila, muit� bem �rganizad�s”.

Iss� tud� diz muit� s�bre �nde e c�m�se inici�u sua paixã�. Mas se existe alguma

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motivação mais profunda, esta seria sua in-cessante curi�sidade, que já se aventava n�sprimeir�s an�s de vida, quand�, p�r exempl�,desmontou um relógio dos pais e uma molase soltou pegando em seu rosto ainda miúdo.Aquil� nã� era pra mexer; Havia um pr�ibid�,um perig� env�lvid� ali. Ver c�m� aquelascoisas funcionavam era ver como funciona-va � mund�, � que talvez p�ssa tê-l� levad�p�steri�rmente a desc�brir de que maneirasdiversas a mente pode funcionar.

Paul� tinha seu pai c�m� inspiraçã�, queassim c�m� ele, mexia e ad�rava ver c�m� fun-ci�navam �s carr�s e t�das as engenh�cas. Seupai foi um dos primeiros motoristas a ter umV�lkswagen, rar�, “esquisit�” pra ép�ca, muit�diferente d�s carr�s existentes. Paul� c�nsideravae c�nsidera � pai um pi�neir�. Ele experimentavac�isas que ninguém ainda havia experimentad�.Mas f�i adiante n� que � pai fazia.

Assim c�m� � interesse em mexer c�mmadeira. Quando Paulo era criança, os seusmóveis f�ram feit�s p�r seu pai e seu avô;

Enquant� me fala iss�, a� meu red�r estát�da uma c�nstelaçã� de artefat�s que c�m-põem sua clínica e história. Me apresenta umaestatueta que seu pai fez. ”Ele ach�u esse pe-dacinh� de madeira n� chã� e esculpiu nele”,diz Paul�. A estatueta aparenta um h�memc�m uma mulher a� lad�, num andar simbió-tico. Tudo está disposto numa curiosa misturabem articulada de um rústic� c�m sutileza eclaridade. Sua camisa quadriculada e � �lhardiscreto por trás dos leves óculos disfarçam aqualidade e inteligência de seu pensament�.Reflit� entã�: Seu estad�mental de tranquilida-de, ac�lhiment� e alma amena que se pr�jetasem precisar de gesticulações excessivas �u fa-las ininterruptas é reflex� de seu ambiente? ouseu ambiente é c�nsequência deste estad�?

Nã� sei a resp�sta, mas p�deria sugerir quese algum psicanalista falasse sobre isso, teriaa ver com algo como tempo e espaço mental,necessários para a contemplação e o pensar.

Ge�rge Harris�n, em um d�cumentári�afinadamente dirigid� p�r Martin Sc�rsese –Living in the material world – diz que achaque as grandes pess�as p�dem pr�jetar suagrandeza sem precisar dem�nstrá-la. A magiavem de dentro.

Paulo não citou George, mas se apoia emgrandes mestres da arte, c�m� Shakespeare,G�ethe, e Freud evidentemente. Paul� des-c�briu s�bre as �bras desses exp�entes d�pensament� através de seu pai, que � ensina-va um p�uc� de tud� � que sabia s�bre eles.E Paul� f�i se apr�fundand�.

Na psicanálise e na medicina, curi�samen-te, � pai nã� aparentava desejar que Paul� �seguisse. Mas quand� entr�u na faculdade deMedicina, seu pai dava pulos. Ali percebeuque � pai realmente queria que ele entrasse.

Muito antes da psicanálise e da me-dicina, a escrita e a paixã� p�r aut�móveistomaram um rumo comum.

A partir d�s 13 c�meç�u a escrever s�bre aut�móveis para a F�lha de S. Paul�. A�s 17 tinhauma c�luna semanal; era � mais n�v� cr�nista de aut�móveis. Teve até uma certa n�t�riedadena ép�ca. As pess�as achavam que ele era um adult�, escreviam cartas, querend� saber quemestava p�r trás daqueles text�s.

A escrita, c�m� tantas c�isas que apareceram em sua vida, parece ter vind� p�r acas�, masPaul� era um peixe pr�nt� a cair n� mar quand� uma �p�rtunidade se m�strava. Estava passand�pela rua, quand� um c�lega vei� falar c�m ele, que sabia que g�stava de escrever e disse: “V�cêque g�sta de ler e escrever, tem um pess�al que tá precisand�...” Quand� viu, estava ac�mpa-nhand� um repórter e um f�tógraf� da F�lha, e semanas dep�is escrevend� para � J�rnal.

Paul� entã� acab�u assistind� de camar�te a� final da infância e c�meç� da ad�lescênciada indústria aut�m�bilística naci�nal. Ia a�s lançament�s, salões de aut�móveis, e às fábricas.

Sua vida e caminh� pareciam t�mar cada vez mais f�rma. C�m� um pensament� em buscado pensador.

“Pensar é � trabalh� mais difícil que existe; pr�vavelmente essa é a razã� pelaqual tã� p�uc�s se aventuram a fazê-l�.” Esta frase p�deria ser atribuída a Bi�n, um d�s maisvig�r�s�s defens�res d� pensar. Mas nã� é � cas� aqui. o aut�r dela, Henry F�rd, f�i um d�sn�mes mais pr�eminentes da história d� aut�móvel.

Bi�n talvez tenha sid� � principal precurs�r d� pensament� de Paul� na psicanálise. ParaPaul� Sandler p�deria ter sid� Bi�n quem fal�u iss�. Segund� Sandler, “quand� uma c�isa éverdade, muitas pess�as vã� chegar a ela – �u p�ucas pess�as – mas sempre haverá � suficien-te pra alguém saber. Iss� que é � pensament� sem pensad�r; Iss� que � Henry F�rd fal�u, f�iele, mas p�deria ser qualquer um.” Diz ainda: “os pensament�s estã� ali; o pensad�r é ump�rta-v�z d� pensament�.”

Mas n� cas� de Henry F�rd as intenções a� dizer iss� pareciam �utras. C�m� n� cas� de Hen-ry e tant�s �utr�s, � carr� f�i um m�t�r para muitas �utras finalidades. Carr�s rev�luci�naram as�ciedade. Henry rev�luci�n�u a indústria e esperava que � c�mérci� rev�luci�nasse � mund�.

o m�d� c�m� Henry F�rd falava s�bre � pensar parece perverter � sentid� que teria paraBi�n e Paul�. Paul� diz que existem gravações e d�cumentações extensas s�bre a vida deHenry, e que ele falava iss� muit� n� sentid� de se sentir superi�r a�s �utr�s. Diz ainda: “E umcientista, c�m� � Bi�n, falaria iss� num sentid� pedagógic�, de que ‘p�ucas pess�as pensam’a ‘quem sabe as pess�as c�meçam a pensar’, mas nã� pra dizer que quem pensa é melh�r quequem nã� pensa.

Henry F�rd era um h�mem muit� aut�ritári�. Na ép�ca que seu filh�, �s vended�res e c�n-sumid�res queriam que pintasse �s carr�s c�m �utras c�res, Henry, p�r ec�n�mia de mercad�,falava: ‘o cliente p�de ter � carr� da c�r que quiser, c�ntant� que seja pret�’. È uma fraseaut�ritária, de dupl� víncul�. Henry tratava �s funci�nári�s mal. E cheg�u a ser também umsimpatizante d� nazism�, entre �utras c�isas.”

Discurs� um p�uc� c�ntraditóri� de Henry F�rd. Discurs� vind� de alguém que esperavatant� que � carr� e � c�mérci� rev�luci�nassem � mund�.

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“Pode-se dizer que o carro era um pensamento sem pensador, atéque surgiram os pensadores que pensaram ele.

Deram uma forma pra ele.”Paulo Sandler

o primeir� aut�móvel imp�rtad� para � Brasil f�i Sant�s Dum�nt quemtr�uxe. Já � primeir� acidente de trânsit� que se tem n�tícia aqui nas terrinhas baixas, f�i em1897, quand� � p�eta olav� Bilac c�lidiu c�m uma árv�re. A perda de c�ntr�le de seu aut�-móvel Serpollet talvez anunciasse assim de primeira, � que de secundári� p�deria se esperara partir da existência d�s carr�s. P�is um p�eta sabe � val�r de uma árv�re, de uma pedra.

Sandler diz achar que não há nada específico que um psicanalistapossa falar sobre carros, vendo isso como campos distintos, diversos,da vida e do conhecimento, mas nos fala o quanto de problemas psi-

quiátricos estão envolvidos nessa paixão humana, sem perder de vista oquão secundário ao carro essas questões e problemas são.

Para adentrar a� camp� das paixões humanas, Paul� Sandler me fala de uma ép�ca muit� p�li-tizada de um Brasil em que era p�ssível se sentir culpa p�r um g�st� in�fensiv� à primeira vista – aturma d� ‘p�liticamente c�rret�’ já existia nestes temp�s. P�is diziam que g�star de carr�s era umg�st� burguês. Paul�, também p�litizad�, que quase f�i pres� p�r c�nta de m�viment�s estudan-tis, se sentiu em c�nflit� p�r um temp�. Até que percebeu � terren� c�nflitante desenhad� pel�slíderes mundiais. (o quant� cada um nã� tem dentr� de si inúmeras inc�erências e c�ntradições?)Paul� entã� diz: “os líderes c�munistas e t�d�s �s líderes dit�s dem�crátic�s eram apaix�nad�sp�r aut�móveis. Ditad�res que se diziam s�cialistas também. Na lista estã� Brejnev, Fidel Castr�,Stálin. Stálin tinha uma fabrica de aut�móveis só pra ele; Fidel Castr� tinha carr�s, lanchas, e aindase fazia f�t�grafar num jipe american�. Aí se via � quant� ele g�stava.”

Apesar de achar que nã� há nada específic� que um psicanalista p�ssa falar s�bre carr�s,vend� iss� c�m� camp�s distint�s, divers�s, da vida e d� c�nheciment�, Sandler n�s fala �quant� de pr�blemas psiquiátric�s que estã� env�lvid�s nessa paixã�, sem perder de vista �quã� secundári� a� carr� essas c�isas sã�. Ligad�s a�s ideais de exclusividade, p�der, status,atençã�, Paul� diz: “Sã� pr�blemas da linha paran�ide, de �nip�tência, de �nisciência, p�is �ser human� c�m � aut�móvel acha que c�nsegue andar a 120 km/h, c�isa que s�zinh� ele nã�c�nsegue. Entã� dá margem à pess�a utilizar aquil� que seria útil, para um fim ‘tóxic�’, ligad�a�s núcle�s esquiz�paran�ides, e daí vind� �s abus�s, a vi�lência, a expansã� de avidez, ainveja. Tud� iss� seria uma c�isa secundária. P�rque nã� é só � aut�móvel que tem iss�. Iss�ac�nteceu pela primeira vez c�m � relógi�, uma engenh�ca mecânica que ainda era p�r c�rda.Quem tinha � melh�r relógi� se sentia � melh�r. outra necessidade que � ser human� tem éa de superaçã�, que � aut�móvel dá, mas iss�, n�vamente, nã� é específic� d� aut�móvel. oaut�móvel p�de ser usad� c�m� arma, pra se matar, matar �s �utr�s. (Inclusive, legalmente éc�nsiderad� c�m� arma) Uma estatística nã� muit� divulgada: Na 2º guerra mundial, n� Sta-linism�, e n� Nazism�, em t�rn� de 25 an�s, mataram cerca de 85 a 90 milhões de pess�as.Iss� nunca tinha ac�ntecid�. Tanta gente m�rrer em tã� p�uc� temp�. Um rec�rde d� séc. XX.Dep�is de terminada a 2º guerra mundial, n�s 50 an�s dep�is, m�rreram �u f�ram inutilizadasmais pess�as p�r acidente de aut�móvel d� que nessas duas hecat�mbes.”

Mas � que será entã� que � carr� tem de tã� maravilh�s�? E será que � carr�tem um apel� diferente para �s h�mens, mais d� que para as mulheres?

Segundo Paulo, “numa época era uma coisa mais masculina. Mas os tempos estão mudandoum p�uc�: C�meçaram a ter mulheres c�m� pil�t� de c�mpetiçã�; em geral é a mulher que dizqual vai ser � carr� a ser c�mprad� dentr� de uma família, entre �utras c�isas. Mas tem certasatividades que as mulheres, p�r alguma razã�, ainda nã� se n�tabilizaram muit�. Emb�ra elasentraram em algumas atividades anteriormente mais masculinas, como piloto de competição,maestr�, �u c�mp�sit�r de música sinfônica, nã� tem nenhuma Shakespeare feminina, G�ethefeminina, �u uma Picassa. Evidente também que tem�s aut�res e artistas mulheres excelentes,que fizeram muitas c�isas, mas �s mai�res até � m�ment� f�ram h�mens. As mulheres vem sen�tabilizand� mais, em esp�rtes �límpic�s p�r exempl�. Mas a mulher já tem um diferencial:Ela pr�cria. A necessidade de criar nã� é men�r na mulher �u mai�r n� h�mem. A necessidade

é a mesma. É que a mulher já cria. Ela cria umacriança. Entã� ela nã� precisaria criar c�isas,se interessar p�r engenh�cas mecânicas. Já �h�mem fica tentand� criar essas �utras c�isas.”

C�m� �bjet� de desej�, nã� só �s h�mens�lham para �s carr�s c�m� se �lhassem parauma mulher, mas as mulheres também �lhampara �s carr�s c�m� se �lhassem para �s h�-mens, segund� Paul�. Em uma certa ép�caera popular a denominação maria-gasolina,diz ele. E c�mpleta: “E � h�mem, p�r exem-pl�, disfarça a velhice c�m � aut�móvel, c�m� dinheir�. Aí está tud� misturad�, � carr�, �dinheir�, � prestígi�.”

“Uma necessidade na-tural.” Está aí � que estávam�s tant�buscand�… o simples e natural. N�rmal-mente é de onde ascendem todas as respostas.Quand� Paul� chega a� p�nt� �nde fatalmen-te vam�s descer, fica mais clar� � p�rquê detanta libid� investida niss�, � p�rquê de tantafascinaçã� humana p�r carr�s.

“As coisas que abriram as fron-teiras no mundo não foram os

cavalos, mas a bicicleta. Não de-pender mais da tração animal.”

Segundo Paulo, o mundo inteiro é fascina-d�: “P�uca gente nã� é. V�cê vê a quantidadede aut�móveis h�je, c�m as cidades e asestradas l�tadas de carr�s. A impressã� quese tem é que esse tip� de ‘gering�nça’, va-m�s dizer assim, atende a uma necessidadenatural. Muitas c�isas artificiais, inclusive �automóvel, atendem a uma necessidade natu-ral. Necessidade p�r quê? P�r que sã� c�isasque � ser human� precisa fazer e nã� c�nse-gue fazer s�zinh�. Entã� a gente mistura artec�m �fíci�; Artifíci� na n�ssa língua parecepalavrão. Mas se respeitássemos a etimologia,veríam�s que Artifíci� é arte + �fíci�. É fazerdeterminadas c�isas c�m certa arte. Estender�u dar a� ser human� c�isas que ele preci-sa: M�bilidade, l�c�m�çã�. As c�isas queabriram as fronteiras no mundo não foram oscaval�s, mas a bicicleta. Nã� depender maisda tração animal. Que começou com a bi-cicleta. Que é alg� que também sempre mefascinou muito. É a coisa da roda, de poderacelerar um pouco.”

Estendend� essa ideia de artifíci�, e pen-sando na diferença entre arte e artesanato,Paulo não considera os carros como objetosde arte. Acredita que sã� �bjet�s de artesa-nat�. Ele diz: “Existem até alguns aut�móveisque estã� exp�st�s n� MAM (Museu de ArteM�derna) de N�va Y�rk. Fazem parte da ex-p�siçã� permanente alguns d�s carr�s quesã� mais p�pulares em term�s de beleza aquipara � Brasil, c�m� � P�rsche e � Karmann-

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-Ghia. Mas n� cas� dessas exp�sições de arte,ach� que já está mei� misturad�, nã� se p�dedizer que é arte.”

“A pessoa pode transcenderatravés da arte. A arte transcende.A arte ou o símbolo comunica al-guma coisa que não é ela mesma.Transcende à ela. E não acho que

o automóvel faz isso.”

Diz que é artesanat�, “p�is tem algumac�isa �riginal em alguns desenh�s, desenh�sque fazem bem à vista, �nde � bel� lá está.N� artesanat� também tem � bel�. (Est�uusand� � bel� n� sentid� da Estética, c�n-ceit� da Fil�s�fia) Que c�njuga c�isas queagradam a mai�ria d�s seres human�s. Talvezp�r iss� �s museus de aut�móveis h�je sã�mais visitad�s d� que �s museus de arte.”

E a arte desestabiliza, nã� agrada t�d�mund�. Para Paul�, �s aut�móveis até têm

isso, mas não alcançam a sublimidade. Segundo ele, a arte alcança a sublimidade.Diz ainda: “Estes �bjet�s de arquitetura, engenharia, de design, �nde a f�rma segue a fun-

çã�, aí nã� chega a ser sublime. E �s carr�s sã� pr�duzid�s em série; iss� estraga até a f�rmaque � própri� designer deu. Quand� vai pr�duzir em série, �s engenheir�s esculhambam ��bjet�, � pr�jet�. Sã� �s engenheir�s que vã� dar f�rma para aquil�. Já na arte, as pess�asc�stumam ficar muit� em�ci�nadas. P�de ser uma �bra de arte, uma música, s�fisticada �unã�, e as pess�as c�meçam a ch�rar; Relembram alguma c�isa dela, da infância, da vida, quesã� c�isas que a engenharia nã� faz. A pess�a p�de transcender através da arte. A arte trans-cende. A arte �u � símb�l� c�munica alguma c�isa que nã� é ela mesma. Transcende à ela. Enã� ach� que � aut�móvel faz iss�. Ele p�de ser útil, p�de dar prazer, p�de ser desafiad�r parav�cê p�der c�ntr�lar, mas nã� há nenhuma sublimidade. Nem bestialidade. P�rque também aarte transmite alguma c�isa bestial para a pess�a perceber. o aut�móvel só é bestial quand�serve pra matar as pessoas.”

Eu acrescentaria que ele p�de ser bestial quand� mata f�rmas de arte (�u artesanat�) anti-gas. Paulo é um grande apreciador dos carros antigos. Prefere-os.

Diz que eles eram muit� mais bem feit�s e acabad�s: “P�r exempl�: certas c�isas de indus-trializaçã� pi�raram � aut�móvel. Vidr�s pan�râmic�s f�ram ab�lid�s. Neste cas� � pr�gress�foi um retrocesso.”

E diz ainda que “� g�st� é p�der c�ntr�lar � carr�. N�s aut�móveis antig�s, p�de-se dizerque p�de ter um cert� c�ntr�le s�bre ele. E tem cas�s, que vã� dizer que v�cê veste � carr�.(dit�s aut�móveis esp�rtiv�s) C�m� se � carr� f�sse uma r�upa e que v�cê p�de c�ntr�lar ump�uc� melh�r… Nã� sei se tem a ver c�m a pers�nalidade da pess�a. A pess�a se adapta a�que � carr� p�de dar.”

Paul� pôde se adaptar muit� bem a� que vida pôde lhe dar.Paul� pôde dirigir sua vida.

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Apartir de um enf�que mais centrad� em �bras de Alencar, Machad�, Aluísi� Azeved� eDrumm�nd, resvaland� pel�s primórdi�s de n�ssa Literatura, numa mençã� a Caminha,Nóbrega e Anchieta, nasceu � (pretens�) p�ema “o Ret�rn� de Luzia”. De f�rma livre,

mas sem ab�lir algumas rimas que lhe deram, a meu sentir, um ritm� épic� (mais pretens� ain-da), tentei fazer de Luzia uma pers�nagem viageira pelas �bras d�s referid�s mestres. Súplice,revisita alguns pass�s de n�ssa c�l�nizaçã�, aventuras, b�nança, am�res e ódi�s. Em rep�rta-gem datada de 25 de ag�st� de 1999, publicada pela revista Veja, Luzia f�i dada c�m� send�a primeira brasileira: a rec�nstituiçã� de um crâni� de mulher de 11 mil e quinhent�s an�s, �mais antig� da América, rev�luci�n�u as te�rias s�bre a �cupaçã� d� c�ntinente. Arqueól�g�sdescrevem Luzia c�m� uma mulher baixa, de c�mpleiçã� física m�desta, cuja figura, aindaj�vem, remanescente de um p�v� extint�, que �cup�u a América há milhares de an�s e queacab�u dizimad� talvez p�r guerra �u catástr�fe natural, perambulava pela regiã� d� cerrad�mineir�. Em síntese, esta é Luzia e � seu p�ema segue abaix�.

O RETORNO DE LUZIAUM PoEMA ÉPICo SoBRE A

‘PRIMEIRA BRASILEIRA’ DA HISTÓRIApor Marcos Angelini

O RETORNO DE LUZIA

Eu nasci há mais de 10 mil an�s.Carreg�, Senh�r, a geneal�gia d� Planeta:fui negra, da fria Cítia, grega, r�mana talvez.Já fui Iracema. Vivi da caça e da pesca,já perc�rri as fl�restas, fui livre, escrava, liberta.Curvei-me a deuses, reis, princípi�s e principad�s.Já morri de muitas mortes, já vivi muitas vidas.Fui, Senh�r, � capitã� da armada d�s ingleses,a Cruz na terra fincada d� Deus d�s p�rtugueses.Fui � sangue que j�rr�u mil m�rtes.H�je s�u Luzia, fizeram-me Luzia, desc�briram-me Luzia.Luzia só.Senh�r, c�m� �s h�mens sã� tard�s: pinçaram-me das cavernas,contaram-me como a Cristo os ossos, os anos, os séculos.

E, durante esse temp�, eu viCaminha seguir per � mar de l�ng� até t�par sinais de terra,lançar o prumo e amainar as naus.ouvi � Evangelh� que saiu d�s templ�se entrou virgem nas selvas.Pus-me de j�elh�s naquela terra chã e mui frem�sa.Vi Nóbrega dar a r�upa trazida a� genti�,repartind�-lha até ficarem iguais n� c�rp�.Senh�r, c�m� �s h�mens sã� tard�s: eles também tinham alma!Vi nascer Piratininga, escrever nas areias � grande piahy.Provei do acaju, da mangaba, do araçá e do ombu.

Senh�r, c�l�nizada a terra, j�gadas t�das as sementes,vi Zumbi nas n�ites m�rtas – negra libertaçã�.Senti � cheir�: � cheir� c�letiv� d�s c�rtiç�s,o prazer gr�ss� da alma brasileira em Rita.Maldita! Bendita!A m�ral em Piedade:Saudade!

Senh�r, vi rasgad� de lad� a lad�� ventre-livre de Bert�leza,s�rte diversa da Chica – estranha liberdade...

A casa era a da rua de Matacavalos.o mês n�vembr�, � an�... era de 1857.os �lh�s eram de Capitu.Reacenderam a chama d� ciúme;tornaram um certo Bento em Casmurro.Eu vi, Senh�r, saltar d� gêni� d�s Machad�straid�res, traíd�s,� frac�, � amante e �s enam�rad�s:tragic�média humana de t�d�s �s meus sécul�s.

E lá, nas plagas de Pernambuc�,vivi � amar� d� açúcar: a humildade vexada,os coronéis insistentes, pobres, ricos, dementes.Vi Vit�rin� Quix�te querer viv� um f�g� m�rt�.C�m� �s h�mens sã� tard�s: há l�bis�mens ainda!

Carreg�, Senh�r, � sentiment� d� mund�:do negro, do romano, do grego,d� escrav�, d� índi�,num c�raçã� mai�r que � mund�.Muit� mai�r, �nde cabem, sim, as d�res, �s h�mens.o mundo caduco,o mundo presente,o mundo futuro.S�u, Senh�r, a Luzia de t�d�s �s am�res,de Rita, Capitu e Bert�leza.Venh�, Senh�r, emergida d� escur� das cavernas,revelar, em verso,a grandeza das c�nquistas de C�l�mb�, de Cabral,e a beleza de um paísincrustada na Grandeza d� Univers�.

Marcos Angelini é o jornalista responsável da TavolaMagazine.

“Se dep�is de eu m�rrer, quiserem escrever a minha bi�grafia,

Nã� há nada mais simples.

Tem só duas datas - a da minha nascença e a da minha m�rte.

Entre uma e �utra t�d�s �s dias sã� meus.”

(F. Pessoa)

o pr�fess�r Marc�s Angelini nasceu em Sã� Paul� a�s07 de junh� de 1945. Dedic�u 32 an�s a� magistéri�do ensino médio e superior. É jornalista pela FundaçãoCásper Líber�. H�je, c��rdena, juntamente c�m seuirmão, o espaço Substratum em Ribeirão Preto, localde cursos e palestras sobre assuntos atuais, focandoa imp�rtância d� aut�c�nheciment� c�m� element�fundamental para a transf�rmaçã� d� ser human�.

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LITE

RATU

RA&

PSICANÁLISE

Resumo: o diál�g� entre p�esia (s�nh�) e pr�sa (vigília) nas �bras h�mônimas A terceira margemdo rio, permitiu evidenciar �s mecanism�s desl�cament�, c�ndensaçã� e figurabilidade entre aspalavras de Caetan�Vel�s� e de J�ã� Guimarães R�sa. Nesse sentid�, a ideia de uma terceira mar-gem n� ri� que encerra � indizível, presente em ambas as �bras, permite pensar a palavra c�m�representaçã� de c�isa, a palavra em sua materialidade que flexibiliza a relaçã� entre significantee significad� (água da palavra). Mas é metaf�ricamente na relaçã� c�m � pai que se encerram asraízes d� t�da cadeia ass�ciativa. Sã� �s desej�s inc�nscientes, submers�s n� ri�, que regem �s�perad�res e que criam �s meandr�s da rede de ass�ciações �ra c�nvergentes e �ra c�ntraditóriasdenunciando a presença escondida, disfarçada da (i)lógica do desejo inconsciente.Palavras-chave: psicanálise, p�esia, pr�sa, s�nh�

The third shore of the river: a dialogue between poetry (dream) and prose (vigil)

Abstract: The dialogue between poetry (dream) and prose (vigil), in the homophonous works ATerceira margem do rio, shows the mechanisms of displacement, condensation and figurabilitybetween the words of Caetano Veloso and João Guimarães Rosa. The idea of a third shore of theriver that contains the unspeakable, found in both works, allows one to think the thing-wordÿtheword in its materiality that turns looser the relation between referent and meaning (water of theword). But it is metaphorically in the relation with the father that the roots of the associative chainare found. Unconscious desires, inside the river, conduct the operations and create the texture ofthe web of associations, sometimes converging sometimes conflicting, and which denounce thehidden, disguised presence of the (il)logic of the unconscious desire.Keywords: psychoanalysis, poetry, prose, dream

Um convite...

Car� leit�r, permita-me fazer um c�nvite: Uma pausa para um devanei�, um mergulh� nas águas(des)c�nhecidas da Terceira Margem do Rio... Se essa nã� f�r uma h�ra c�nveniente, v�lte maistarde, mas, p�r fav�r, nã� pr�ssiga sem antes se dar � temp� de experimentar as águas de Caeta-n� e Milt�n. E, se ag�ra f�r um b�m m�ment�, ac�m�de-se naquele recant� mais ac�nchegantee �uça (mesm�) essa música. Use � temp� que lhe parecer necessári�. Apr�veite para dar tant�smergulh�s quant� f�r � cas� até deixar-se m�lhar pelas intrigantes palavras desse �bscur� ri�.Dep�is, e apenas dep�is, de um bel� mergulh� na música, sugir� um mergulh� n� c�nt� h�mô-nim� de Guimarães R�sa. Só entã� estarem�s pr�nt�s para c�meçar a brincadeira... Esper� p�rv�cê aqui. (...)

A terceira margem do rio - Caetano Veloso e Milton Nascimentooc� de pau que diz:Eu s�u madeira, beiraB�a, dá vau, tristrizRisca certeira

Meio a meio o rio riSilencioso, sérioN�ss� pai nã� diz, diz:Risca terceira

A TERCEIRA MARGEM Do RIo:

UM DIÁLOGO ENTRE POESIA (SONHO)

E PROSA (VIGÍLIA)1p�r Ana Raquel Ribeir� *

*Artigo publicado originalmente no “Boletim Formação

em Psicanálise” - Institut� Sedes Sapientiae - An� XIX –

V�l. 19 – Nº 01 • Janeir�/Dezembr� 2011

Ana Raquel Ribeiro é graduada em Psic�l�gia pela PUC/SP

e psicanalista, pel� Institut� Sedes Sapientiae, �nde c��r-

dena um d�s grup�s de Ac�mpanhament� Clínic� (AC) d�

curs� de F�rmaçã� em Psicanálise. organiz�u � livr� “P�r

uma psicanálise viva” de aut�ria de H�mer� Vett�razz�

Filh�. Atende em seu c�nsultóri� particular e na Clinica

Psicológica da PUC e coordena a rede de atendimento

psic�terapêutic� ‘C�m Tat�’ d� Institut� Fazend� História.

NOTA:

1. Versã� revista e ampliada d� trabalh� apresentad� na

XX J�rnada d� Departament� F�rmaçã� em Psicanálise d�

Institut� Sedes Sapientiae em 2009.

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Água da palavraÁgua calada, puraÁgua da palavraÁgua de rosa duraProa da palavraDur� silênci�, n�ss� pai

Margem da palavraEntre as escuras duasMargens da palavraClareira, luz maduraRosa da palavraPur� silênci�, n�ss� paiMeio a meio o rio riPor entre as árvores da vidao ri� riu, riPor sob a risca da canoao ri� vil, vio que ninguém jamais �lvidaouvi, �uvi, �uviA v�z das águas

Asa da palavraAsa parada agoraCasa da palavraonde � silênci� m�raBrasa da palavraA h�ra clara, n�ss� paiH�ra da palavraQuand� nã� se diz nadaFora da palavraQuand� mais dentr� afl�raTora da palavraRio, pau enorme, nosso pai

Mas, afinal p�r que esse c�nvite? P�r quedeixar-se levar pel�s meandr�s de um p�ema/cançã� num devanei�? P�r que entregar-se aessa escuta? Na f�rmaçã� de um analista, bus-ca-se incessantemente desenvolver uma escutacapaz de r�mper a c�ncretude d� discurs�.Faz-se analista aquele que c�nsegue se apr�xi-mar de seu paciente naquil� que ele nã� sabeque diz a� falar, quand� a palavra transcen-de � significad� mais explícit� e se apresentanuma rede de p�ssibilidades de significaçã�.Nesse sentid�, � fazer psicanalític� apr�xima--se d� fazer p�étic�, artístic�, que se permitebrincar c�m as palavras. N� entant�, c�ntradi-t�riamente, quais sã� �s espaç�s criativ�s emque psicanalistas em f�rmaçã� (�u nã�) se per-mitem estar? onde está � lugar da brincadeirac�m as palavras que permite � exercíci� da es-cuta? Em mei� a� univers� teóric� auster� queem�ldura, f�rmata e enquadra, a brincadeirac�m a palavra parece p�r vezes acuada, já quetão pouco “séria”...

Na linguagem p�pular, “p�eta” e “s�nha-d�r” sã�, às vezes, tratad�s c�m� sinônim�s.Trata-se de uma anal�gia que c�nsidera queamb�s utilizam a palavra c�m� “c�isa”. Re-gid�s pel� significante, � s�nh� ign�ra e �p�ema flexibiliza as relações entre significan-te e significad�. Tant� na p�esia, quant� n�s�nh�, a palavra se materializa na sua c�rp�-

riedade: s�ma e sema. A palavra é sign� e c�rp� - é iss� que n�s ensinam �s tr�cadilh�s, e é p�riss� que �s p�emas esc�ndem um univers� quase infinit� de significad�s que permitem, além deum deleite particular, um exercíci� de ampliaçã� de escuta.

É c�nhecida a imp�rtância capital d� significante em t�da e qualquer f�rmaçã� d� In-c�nsciente: chistes, s�nh�s �u sint�mas. Regid� pel� pr�cess� primári�, ambígu� e caótic�, �Inc�nsciente pressi�na � Eu para manifestar-se, seja n� pequen� espaç� de um chiste que esca-pa, num p�ema dem�radamente gestad� e sentid�, �u n�s s�nh�s. T�d�s �s cas�s encerram amanifestação do desejo inconsciente. Muito antes de Freud, segundo Meneses (2002, p.21), ofilós�f� greg� Aristóteles já articulava a imaginaçã� a� desej�: “...a fantasia, quand� se m�ve,nã� se m�ve sem � desej�”. Freud (1900/1996) c�nc�rda c�m � filós�f� a� pr�p�r que: “...durante � s�nh� � Inc�nsciente nã� p�de �ferecer nada mais que a f�rça pulsi�nante para umcumprimento de desejo”.

o desej�, c�mpreendid� c�m� m�la pr�puls�ra de t�d� m�viment� psíquic�, repr�duz acada m�ment� da vida de vigília �u n� s�n� �s registr�s arcaic�s de vivências de satisfaçã�geradas a partir de tensões de necessidades atendidas. o desej� é, p�rtant�, a m�çã� pulsi�naln� aparelh� psíquic� que arranca a carga da tensã� de necessidade na busca da vivência de sa-tisfaçã�. o investiment� energétic� d� traç� da vivência de satisfaçã� fica tã� intens� que resultanuma identidade perceptiva alucinatória. Tal identidade de percepção passa a constituir o objetod� desej�, que a� ser repr�duzid� em s�nh�, �u em qualquer �utra f�rmaçã� d� inc�nsciente,c�nsiste n� que fic�u c�nhecid� c�m� a realizaçã� d� desej�.

Nesse sentid�, tant� � s�nh� c�m� a p�esia �peram sens�rialmente. A elab�raçã� �níricase apr�xima, p�rtant�, d� pr�cess� de elab�raçã� artística - ambas enraizadas nas descargaspulsi�nais regidas pel� desej�. Para Meneses (2002, p.16) “p�esia e s�nh� mergulham numalógica da ambiguidade, abrigand� a c�ntradiçã�, aci�nand� insuspeitas f�rças psíquicas.Quand� s�nha, t�d� h�mem é p�eta: utiliza �s recurs�s da figurabilidade, a imagem sensível;estabelece anal�gias que nã� se impõem à primeira vista”. Meneses (2002, p.20) ap�nta ain-da � que diz Ric�eur acerca de t�d� latente que exige ser manifestad�: “�nde quer que umh�mem s�nhe, pr�fetize �u p�etize, �utr� se ergue para interpretar” - � que n�s traz de v�ltaà pr�p�sta desse trabalh�.

A Terceira Margem do Rio é um poema particularmente interessante para nosso convite aodevanei�/ exercíci� de escuta/ interpretaçã�. Iss� p�rque nã� se trata apenas de um poemamaravilh�samente c�ncebid�, mas que preserva suas raízes na pr�sa. Caetan� cri�u a cançã�(p�ema) a partir d� c�nt� h�mônim� de Guimarães R�sa, A terceira margem do rio, criando umdiál�g� entre p�esia e pr�sa anál�g� à relaçã� estabelecida entre � s�nh� e a vida de vigília.A pr�sa de R�sa parece �rdenar, preencher as lacunas deixadas pel� p�ema de Caetan�. Masp�deríam�s pensar � invers�. A cançã� criada p�r Caetan� é a c�ndensaçã� p�ética d� c�nt�de Guimarães R�sa, c�m� se � c�nt� pudesse ser pensad� c�m� um event� da vida de vigíliaque carrega de energia algum element� inc�nsciente e se transf�rma num rest� diurn�, matéria--prima n�bre para a c�nstruçã� p�ética d� s�nh�, n� cas�, a cançã�, tã� mais livre na palavrac�m� “representaçã� de c�isa”, definida p�r Laplanche & P�ntalis (2004, p.450). Iss� permiteque a cançã� sirva nã� apenas de base para a livre ass�ciaçã� daquele que a escuta – � que jáseria válid� – mas para escutar � p�ema à luz d� c�nt�, de f�rma anál�ga à escuta de um s�nh�à luz das ass�ciações d� analisand�.

Em �utras palavras, sup�nh� aqui nesse exercíci� metafóric�, que a pers�nagem que narraem primeira pess�a � c�nt� é aquele que “s�nha” a cançã�, de �nde surge a anal�gia entre �s�nh� e a vida de vigília, bem c�m� evidências d�s efeit�s da f�rça d� desej� inc�nsciente. Em�p�siçã� a esse sup�st� “trabalh� d� s�nh�”, � presente “trabalh� de análise”, tenta resgatar n�c�nt�, evidências de c�m� a palavra f�i transf�rmada. o presente trabalh� estabelece, p�rtant�,um diál�g� entre p�esia (s�nh�) e pr�sa (vigília) nas duas �bras, pr�curand� evidenciar a pre-sença d�s mecanism�s de desl�cament�, c�ndensaçã� e figurabilidade n� p�ema (cançã� deCaetan�Vel�s�), a partir d� que é narrad� n� c�nt� de Guimarães R�sa. A seguir, c�mpartilh� aexperiência desse meu mergulh�...

Compartilhando meu mergulho na “Terceira Margem do Rio”

ouç� a música A terceira margem do rio, de Caetan�Vel�s�, e s�u t�mada p�r ela. Nã� c�nsig�explicar � que se passa. Simplesmente me invade a cadência ritmada desse ri�-silênci�, dens�sentiment� d� pai que se faz presente na ausência, na palavra que cala. Pens� em c�m� me fisgaa cançã� e c�m� nã� c�nsig� parar de �uvi-la... Dezenas de vezes até que a repetiçã� permitaac�m�dar cada s�m e palavra em mim. Sint� c�m� se quase pudesse t�car � mergulh� da músi-ca e da p�esia n� inc�nsciente. Mergulh� rápid�, invasiv�, sem permissã� prévia. Nã� há nadaa fazer, a nã� ser sentir que alg� f�i pinçad� das entranhas e emergiu das pr�fundezas. Tal qualCaetano canta sobre o rio, água da palavra.

Da narrativa a cançã� repr�duz � efeit� enigmátic� da palavra que silencia. De fat�, sem� c�nt�, a cançã� parece c�dificada c�m� um s�nh�. Também fica preservad� n� p�ema �

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estil� característic� da pr�sa r�siana, seus ne�-l�gism�s, aliterações, rimas, lirism� e mel�diaquase musical. o ritm� �scilante entre acele-raçã� e distensã� d� p�ema se assemelha a�pr�cess� de c�nstruçã� d� s�nh�, em seusmovimentos sucessivos de regressão e progres-sã� n� aparelh� psíquic�.

A aceleração e distensão também aparecemno poema como recurso para deslocamen-t� e c�ndensaçã� de element�s d� text� deGuimarães. Em seu text�, R�sa (2005, p.77)c�nta que � pai enc�menda uma can�a feitade uma madeira b�a, rija, que dure “na águap�r uns vinte �u trinta an�s”. N�s vers�s ini-ciais d� p�ema (“�c� de pau que diz / eu s�umadeira beira/ b�a, dá vau, tristriz/ risca cer-teira”), Caetano estabelece uma aceleraçãoque emparelha “madeira beira”, �cultand�não apenas “madeira boa”, como “beira boa”- as duas duplas que anunciam � sentid� decan�a a� “�c� de pau”. Iss� p�rque � “�c�de pau” é “madeira boa” para a canoa, e é a“beira b�a” que abre passagem, “dá vau”, paraa can�a fazer na água uma risca suave (tristriz)e precisa (certeira).

Particularmente � ne�l�gism� “tristriz” dáum t�m de s�nh� à cançã�. Há alg� �cult�nesse curi�s� term� que remete à figurabilida-de e à c�ndensaçã� características d� trabalh�d� s�nh�. N� primeir� cas�, há em “tristriz”a sonoridade da canoa resvalando na água. Aprópria musicalidade d� significante permiteo deslocamento do efeito sonoro de repetiçãode “tristriz” n�s demais pares: “mei� a mei�”,“rio ri” e “silencioso sério”, como se o som dapalavra fosse, nesses casos, o elo entre signi-ficantes distint�s, t�d�s eles ap�ntand� paraas margens d� ri� que esc�ndem a “terceiramargem” silenciosamente presente. Dessa for-ma, repr�duz a imagem, narrada n� c�nt�, d�pai f�rtalecid� na sua ausência, p�r an�s a fi�visível (sentad� na can�a n� ri�), p�rém inatin-gível para � filh�.

Em relaçã� à c�ndensaçã�, enquant� “tris”c�ndensa “três” e “ris” (de risca) ev�cand�,p�rtant�, a “risca terceira”, “triz” sugere �limiar de “p�r um triz”. Essa c�ndensaçã� ex-pressa o sentimento, presente no conto, do paique aband�na a família para viver/ m�rrer nacan�a - a vida p�r um triz, expressa n� risc� naágua. É também a água que denuncia a ausên-cia/presença d� pai. A água é � lugar de umafala que cala, e � p�ema marca iss� na �p�si-çã� (“n�ss� pai nã� diz, diz”) que se anunciaentre as margens d� ri� (“risca terceira”). ouseja, o pai se cala, mas a risca terceira da ca-n�a, sinal d� seu aband�n�, é quem denuncia(“n�ss� pai nã� diz, diz risca terceira”).

Há um mistéri� na imagem imóvel d� paina can�a. P�r trás d� silênci� e da seriedadedo pai esconde-se um riso vil. Por deslocamen-t�, a imagem d� pai “séri�” vista pel� filh�,aparece na cançã�/ s�nh� c�m� um ri� que rium ris� l�calizad� n� seu mei� (“mei� a mei�� ri� ri”/ “P�r s�b a risca da can�a/ � ri� vilvi”), �u seja, � ris� está naquele que fica n�meio do rio, em “sé-rio”, no pai. A conden-

saçã� que apr�xima � ris� da seriedade d� pai sugere � efeit� sádic� exercid� p�r ele s�bre afamília que s�fre as c�nsequências d� aband�n� vigiad�.

Em �utr� trech�, há a expressã� da figurabilidade d� s�nh� - a criaçã� de uma identidadeperceptiva, tã� vívida n� psiquism� que p�de ser sentida: “�uvi �uvi” a inaudível “v�z das águas”.Ainda pela figurabilidade, “�uvi �uvi” sugere uma percepçã� visual e auditiva simultânea: “�uvi�u vi”. A figurabilidade é � mecanism� que permite que a regressã� se dê temp�ralmente (d� pre-sente para � passad�, que a� mesm� temp� rec�nfigura � passad�). A� representar �s pensament�sem imagens, � p�ema/s�nh� substitui a cena infantil que demanda uma expressã�, p�r uma cenarecente, vívida e vivida n� presente d� s�nh�. A cena infantil que nã� p�de ser esquecida tamp�u-c� revivida, p�de, n� entant�, reaparecer em s�nh�. É assim que “� que ninguém jamais �lvida”permite pensar n� registr� inc�nsciente que nunca se perde, e que justamente pela figurabilidadep�de ser revivid� n� psiquism� alucinat�riamente (“� ri� vil, vi”). N� c�nt�, R�sa (2005, p.80) ex-plicita c�m� a imagem d� pai na can�a nã� p�deria jamais ser esquecida: “Nã�, de n�ss� pai nã�se p�dia ter esqueciment�; e, se, p�r um p�uc�, a gente fazia que esquecia, era só para se despertarde novo, de repente, com a memória, no passo de outros sobressaltos”.

Mas é p�ssível pensar, s�b a ótica d� pai, que �utr�s registr�s inesquecíveis emergem daságuas. Lançar-se a� ri� aparece c�m� um desl�cament� da temática da l�ucura presente n� c�n-t�. A terceira margem é � invisível, inaudível e desc�nhecid�. o pai, a� ir à pr�cura da terceiramargem d� ri�, busca � desc�nhecid� dentr� de si mesm�, a palavra que falta. Palavra essa quea água nã� diz (“água da palavra / água calada pura / água da palavra / água de r�sa dura”), queestá presente c�m� ausência (“dur� silênci�”), mas que a� mesm� temp� detém a p�ssibilidadede revelaçã� (“pur� silênci�”/ “entre as escuras duas / margens da palavra / clareira luz madura”).Nesse sentid�, �bserva-se a s�bredeterminaçã� e, mais uma vez, a c�ndensaçã�.

N� p�ema (s�nh�) e n� c�nt� (rest� diurn�) a água-palavra é � lugar da ausência d� pai,mas também da revelaçã� n� sentid� de n�meaçã�: “r�sa da palavra”, �nde a letra da cançã�explicita, mais uma vez, a relaçã� fluida entre significante e significad�. A “r�sa da palavra” étant� a fl�r, símb�l� d� p�tencial da fertilidade, l�cal da fecundaçã� para a geraçã� d� frut�,quant� � n�me de R�sa, aut�r da palavra. Assim, r�sa c�ndensa a r�sa e � R�sa, bem c�m� arelaçã� p�esia e pr�sa, aqui pensada n� diál�g� s�nh�/rest� diurn� e pr�cess� primári�/pr�ces-so secundário.

A revelaçã� da água/palavra se dá na transf�rmaçã� da m�bilidade (a palavra que escapa)em im�bilidade (“asa da palavra/asa parada”), seguida da incandescência e lumin�sidade (“brasada palavra/a h�ra clara”), própria da revelaçã�. A “casa da palavra” é “�nde � silênci� m�ra”. Arevelaçã� se dá, p�rtant�, n� nã� dit�, naquil� que subjaz a� at� d� pai de nã� dizer.

“T�ra da palavra” remete a� pai, numa referência fálica à funçã� de interdiçã� que apareceàs avessas a� “t�rar” a palavra, destruí-la n� silênci�. É a “pr�a da palavra”, que t�ma a frente,que anuncia, penetra e c�rta a água, mas � faz para � silênci�, numa denúncia da ausência dainterdiçã�. É a ausência d� pai, é a palavra que v�a e escapa.

A “t�ra” fálica “da palavra” (“ri� pau en�rme n�ss� pai”) parece c�l�car n� s�nh�/cançã�a realizaçã� d� desej� d� filh�, p�r ass�ciaçã� a� c�nt�/rest� diurn�. Iss� p�rque, n� c�nt�há � element�, men�s explícit� na cançã�, d� desej� d� filh� (e da mulher d� pai) pel� re-t�rn� d� pai. Desej� de que esse pai ausente pudesse estar falicamente p�tente e cumprind�sua funçã� de interdiçã�, tã� necessária a� filh� e à esp�sa. C�ntraditória e simultaneamen-te, a cançã�/s�nh� também permite pensar num desej� inc�nsciente d� filh� de que � paipermanecesse l�nge, na can�a, para que ele própri� pudesse se t�rnar p�tente e fálic� n�lugar d� pai. Numa relaçã� especular, a “risca terceira” é também a “risca certeira”, c�m�se a risca que inscreve a saída d� pai na can�a f�sse um tir� certeir� que abre caminh� para� terceir�, para � filh�.

N� c�nt� aparece � c�nflit� e a culpa d� filh�, p�ssivelmente ass�ciad�s a tal desej�. R�sa(2005, p.81) fala c�m� a vida da pers�nagem t�rna-se reclusa e sem sentid�, a nã� ser pel�desej� �bstinad� de entender �s m�tiv�s da ausência d� pai: “S�u h�mem de tristes palavras.De que era que eu tinha tanta culpa? Se � meu pai, sempre fazend� ausência: e � ri�-ri�-ri�, �rio-pondo perpétuo.”

É também n� c�nt� que resgatam�s � c�nflit� edípic� d� desej� de t�mar � lugar d� pai e d�h�rr�r quand� tal p�ssibilidade se apresenta c�ncretamente. Nas palavras de R�sa (2005, p.81):

E falei, � que me urgia, jurad� e declarad�, tive que ref�rçar a v�z: — “Pai, � senh�r estávelh�, já fez � seu tant�... Ag�ra, � senh�r vem, nã� carece mais... o senh�r vem, e eu,ag�ra mesm�, quand� que seja, a ambas v�ntades, eu t�m� � seu lugar, d� senh�r, na ca-n�a!...” E, assim dizend�, meu c�raçã� bateu n� c�mpass� d� mais cert�. Ele me escut�u.Fic�u em pé. Manej�u rem� n’água, pr�ava para cá, c�nc�rdad�. E eu tremi, pr�fund�,de repente: p�rque, antes, ele tinha levantad� � braç� e feit� um saudar de gest� — �primeir�, dep�is de tamanh�s an�s dec�rrid�s! E eu nã� p�dia... P�r pav�r, arrepiad�s�s cabel�s, c�rri, fugi, me tirei de lá, num pr�cediment� desatinad�. P�rquant� que eleme pareceu vir: da parte de além. E est�u pedind�, pedind�, pedind� um perdã�. S�fri �grave fri� d�s med�s, ad�eci. Sei que ninguém s�ube mais dele. S�u h�mem, dep�is desse

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faliment�? S�u � que nã� f�i, � que vai ficar calad�. Sei que ag�ra é tarde, e tem� abreviarc�m a vida, n�s ras�s d� mund�. Mas, entã�, a� men�s, que, n� artig� da m�rte, peguemem mim, e me dep�sitem também numa can�inha de nada, nessa água que nã� para, del�ngas beiras: e, eu, ri� abaix�, ri� a f�ra, ri� a dentr� — � ri�.

A p�ssibilidade de �cupar � lugar d� pai, que gera h�rr�r a� filh�, termina p�r fazer � filh�t�mar � lugar d� pai, mergulhad� dentr� d� ri�, de �nde t�d� desej� parte e para �nde tud�retoma.

Deix� � ri�, � mergulh� brincadeira de palavras e ac�rd� d� p�ema/s�nh� c�m a incertezade quem � s�nh�u. Se nã� há um s�nh� n� p�ema de Caetan�, tamp�uc� há um inc�nscientes�nhad�r n� c�nt� de R�sa, quiçá um s�nh� s�nhad� a quatr�, Caetan�, R�sa, a pers�nagem eeu... (...) Mas... Afinal, p�r que nã�? P�r que mesm� nã�?

REFERwNCIAS

FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológi-

cas Completas de Sigmund Freud. Ri� de Janeir�: Imag�,

1996.

(1900). Interpretaçã� d�s S�nh�s (I), v.4., 776p.

LAPLANCHE, J; PoNTALIS, J.B. Vocabulário da Psicanálise

– Laplanche e Pontalis. Sã� Paul�: Martins F�ntes, 2004,

552p.

MENESES, A. B. As portas do sonho. Sã� Paul�: Ateliê Edi-

t�rial, 2002, 176p.

RoSA, J. G. A terceira margem n� ri�. In: Primeiras Estó-

rias. Ri� de Janeir�: Edit�ra N�va Fr�nteira, 2005, p.77-82.

VELoSo, C. A terceira margem n� ri�. Recuperad� em 03

de març� de 2010, de: http://letras.terra.c�m.br/caetan�-

-vel�s�/201521/

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DITADURA

FIGURAS DA RESISTwNCIA,O HOMO SACER BRASILEIROCONTEMPORxNEO EA CONSTRUçoO DO COMUM

A meu pai

Af�rma mais c�mum de se referir à ditadura n� Brasil desencadeada pel� g�lpe militarde 1964 vinha send� n�meá-la c�m� uma ditadura militar. É intrigante, n� entant�que, passad�s 50 an�s d� g�lpe, quase t�das as publicações, chamadas nas diferentes

mídias, event�s de análise e repúdi�, referências s�bre � g�lpe e s�bre a ditadura têm inclu-íd� � significante civil na expressã� até entã� utilizada. o que se pass�u nestes 50 an�s que,só ag�ra, p�dem�s c�letivamente n�mear a ditadura pel� seu verdadeir� n�me – ditaduracivil-militar? ou, c�l�cada de �utra f�rma a questã�: � que se pass�u para que se excluísse,sistematicamente, da linguagem c�mum a referência à ditadura brasileira c�m� uma ditaduradesencadeada e mantida tant� p�r militares c�m� pela s�ciedade civil? E quand� se fala ems�ciedade civil, d� que exatamente estam�s faland�?

P�rque � g�lpe f�i exatamente c�ntra a s�ciedade civil, �u, a� men�s c�ntra a mai�ria dap�pulaçã� que c�meçava a entrever, n� iníci� d�s an�s 1960, a p�ssibilidade de realizaçã� demudanças substantivas, estruturais nos modos de vida, de emprego, de uso da terra, de educa-çã�, c�ntra um p�v� que era vist� e se via c�m� subdesenv�lvid�. F�i um m�ment� genétic�na �rganizaçã� das p�pulações rurais – as ligas camp�nesas d� n�rdeste –, n�s sindicat�s detrabalhad�res, na educaçã� c�m Paul� Freire e sua genial pedag�gia da vida e d� desej� – aPedag�gia d� oprimid� –, nas esc�las experimentais, n�s m�viment�s das c�munidades ecle-siais de base, n� m�viment� estudantil. N� C�míci� da Central d� Brasil em 13 de març� de1964, � entã� presidente J�ã� G�ulart afirma publicamente seu c�mpr�miss� c�m as ref�rmasestruturais, as entã� chamadas ref�rmas de base – ref�rma agrária, tributária, bancária, admi-nistrativa, universitária e eleit�ral –, c�m a m�dificaçã� d�s padrões de pr�duçã� n� camp�,c�m mudanças na c�nstituiçã� de 1946, afirma enfim � c�mpr�miss� c�m a imensa mai�riada p�pulaçã� – à ép�ca pred�minantemente rural – que vivia em c�ndições de miséria, pr�-p�nd� c�m iss� a ampliaçã� da dem�cratizaçã� d�s direit�s.

Essa C�nstituiçã� é antiquada, p�rque legaliza uma estrutura s�ci�ec�nômica já supe-rada, injusta e desumana; � p�v� quer que se amplie a dem�cracia e que se p�nha fim a�sprivilégi�s de uma min�ria; que a pr�priedade da terra seja acessível a t�d�s; que a t�d�sseja facultad� participar da vida p�lítica através d� v�t�, p�dend� v�tar e ser v�tad�; quese impeça a intervençã� d� p�der ec�nômic� n�s pleit�s eleit�rais e seja assegurada arepresentaçã� de t�das as c�rrentes p�líticas, sem quaisquer discriminações religi�sas �uideológicas.

T�d�s têm � direit� à liberdade de �piniã� e de manifestar também sem tem�r � seupensament�. É um princípi� fundamental d�s direit�s d� h�mem, c�ntid� na Carta dasNações Unidas, e que tem�s � dever de assegurar a t�d�s �s brasileir�s.

É apenas de lamentar que parcelas ainda p�nderáveis que tiveram acess� à instruçã�superi�r c�ntinuem insensíveis, de �lh�s e �uvid�s fechad�s à realidade naci�nal1.

Mas f�i exatamente, cada vez mais � sabem�s, uma min�ria da s�ciedade civil – a eliteec�nômica brasileira – quem arquitet�u � g�lpe, justamente p�rque nã� queria que seus pri-vilégi�s tivessem fim. C�m� diz Plíni� de Arruda Sampai� em entrevista a Flávi� Tavares2, aprópria Câmara de Deputad�s era c�mp�sta em sua mai�ria – 80% – “p�r fazendeir�s, �u filh�sde fazendeir�s �u genr�s de fazendeir�s”. N� mesm� d�cumentári� desvela-se man�bra daCIA, através de um cover, � Institut� Brasileir� de Açã� Dem�crática – IBAD –, que financia-va campanhas de candidat�s a deputad� federal, estadual, g�vernad�res, grande imprensa, na�rquestraçã� da derrubada de J�ã� G�ulart3. Articulada e sustentada pel�s interesses d�s EUAem manter-se c�m� hegemônic� n� lad� �cidental d� gl�b� em temp�s de Guerra Fria, p�r umlado, e aliançada com as correntes majoritárias das Forças Armadas, multinacionais, grandes

Resumo Este artig� ret�ma, parcialmente, � c�ntext�históric� d� g�lpe de 1964 n� Brasil, para ressaltar asinterrupções de pr�cess�s dem�cratizantes entã� emcurso e seus efeitos na destruição e na reconstruçãode caminh�s para � país. P�r mei� da clínica c�m ex--pres�s p�lític�s e c�m ad�lescentes das periferias deSão Paulo, procura evidenciar os efeitos tardios da di-tadura em alguns dos componentes dos processos depr�duçã� de subjetividade. A� final, indica a c�nstitui-ção do comum c�m� uma direçã� p�ssível e desejávelna produção de novos processos de subjetivação.

Palavras-chave ditadura civil-militar; t�rtura; clínicade ex-pres�s p�lític�s; clínica da ad�lescência; p�líti-cas públicas; pr�duçã� d� c�mum.

Maria Angela Santa Cruz é psicóloga, psicanalista,analista instituci�nal, mestre em Psic�l�gia Clínicapela PUCSP.

*Artig� publicad� �riginalmente na Revista Percurs�nº 52 an� XXVI junh� de 2014 - Institut� SedesSapientiae

Maria Angela Santa Cruz

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empresári�s, latifundiári�s e banqueir�s bra-sileir�s, extraiu da f�rça multitudinária viva epujante d� iníci� d�s an�s 1960 a c�nfigura-çã� destrutiva e m�rtífera que vivem�s durantel�ng�s 21 an�s – n�ss�s an�s de invern�.

Existia um senh�r chamad� Fidel Castr�,que estava n� p�der em Cuba. E n� Brasil,n� iníci� d�s an�s 60, existia muita c�nfusã�p�lítica. E tínham�s med� de que essas c�n-fusões se espalhassem e virassem uma c�isacontagiosa. Formou-se um grupo de empresá-rios para poder, então, estruturar uma reaçãoà implantaçã� da república s�cialista d� seuJango Goulart4.

Med� d� c�ntági�. o capitalism� sempres�ube se apr�priar da p�tência d� c�ntági�das multidões para utilizá-las em sua susten-taçã� e expansã�.

Contagiantes são as primeiras páginas dosj�rnais de 20 mar. 1964 (Folha de S. Paulo),que impuseram imagens impressi�nantes dam�bilizaçã� de mei� milhã� de pess�as reu-nidas na Praça da Sé, em São Paulo, momentofinal da Marcha da Família c�m Deus, pelaLiberdade. Reaçã� �rquestrada pelas f�rçasc�nservad�ras – deputad�s, empresári�s, suasmulheres, que repr�duziam � discurs� d� fan-tasma d� c�munism� para as mulheres de seusempregad�s – e f�ram estas imagens pujantespublicadas pelo Almanaque Brasil, que entra-ram nas casas das famílias das classes médiasbrasileiras. Uma delas faz parte de meu acer-v� de memórias de infância/pré-ad�lescência.Na capa d� primeir� númer� pós-g�lpe daRevista Seleções – a sucursal americana n�slares brasileir�s p�r décadas –, vibrava a f�t�da multidã� da Marcha da Família. Seu cabe-çalh� dizia: Um povo que fez sua revolução.

NemG�ebbels p�deria imaginar um plan�tão perfeito para conseguir a adesão maciçada população ao golpe, em pele de revolu-çã�. Enquant� iss�, enquant� a marcha c�ntrao fantasma do comunismo e em defesa dosval�res cristã�s, da família e da pr�priedadeseguia seu curso pré-programado, a operaçãoBrother Sam5 aut�rizava que a F�rça Navaln�rte-americana enviasse quatr� navi�s t�r-pedeiros, dois navios de escolta, uma frotade petr�leir�s american�s e um p�rta-aviões,a� p�rt� de Sant�s. Estes aguardavam � sinalpara entrar em açã�, cas� h�uvesse reaçã�d� g�vern�, legalmente c�nstituíd�, a� g�lpeencabeçad� pelas tr�pas d� General olym-pi� M�urã� Filh� em 31 de març� de 1964,amanhecend� � dia 1� de abril de 19646.

E aqui já p�dem�s pensar em um primeir�efeito do golpe sobre a produção das subjeti-vidades brasileiras: � p�v�, mais uma vez nahistória d� Brasil, f�i feit� de �bjet� de eng�-do, de manipulação, massa de manobra paraa legitimação de um golpe contra si mesmo.Acabou aceitando e, de alguma forma legiti-mand�, a� men�s n� iníci�, um regime quepraticamente extinguiu as riquíssimas sendasabertas no campo da educação, da saúde, da

p�litizaçã�, d� caldeirã� s�cial de pr�duçã� de uma lógica de cidadania que só v�ltaria a�cenári� brasileir� c�m a chamada c�nstituiçã� cidadã de 1988 – 24 an�s dep�is. E � queac�ntece c�m um p�v� que é sistematicamente c�l�cad� à margem de si mesm�? C�m ump�v� para � qual se f�rja uma inc�nsciência ativa de suas determinações p�lític�-existenciais,pr�duzind� uma v�luntária servidã�? C�m um p�v� para � qual se c�nstruíram n�v�s e “terrí-veis” inimig�s, �riund�s de seu própri� sei�?

“[...] a demonização e criminalização dos jovens de periferia oscolocam como os novos inimigos sociais, alguns dos atuais

homines sacri brasileiros, vidas matáveis”

originári�s de diferentes segment�s e classes s�ciais – trabalhad�res rurais, �perári�s, estu-dantes, pr�fissi�nais, intelectuais, p�lític�s, artistas –, c�mp�nd� uma diversidade de f�rmas deencarnar a resistência à ditadura, esses c�mbatentes f�ram aprisi�nad�s nas categ�rias de sub-versivos, ou terroristas, transformados no homo sacer7 brasileir�. ou seja, pess�as matáveis nã�por uma decisão plebiscitária, coletiva, mas por uma construção ativa, insidiosa e sistemáticafeita habilmente pel�s d�n�s da “b�a c�nsciência” ass�ciad�s à grande imprensa, a partir daD�utrina de Segurança Naci�nal, imp�rtada d�s EUA, e que previa a eliminaçã� de qualquerum que pudesse causar c�nflit�s �u dissidências em uma s�ciedade que se pretendia harm�ni-camente funci�nal dentr� de um estad� liberal, harm�nia garantida p�r fuzis e paus de arara8.

Figuras da resistência

D�s an�s de 1990 até mead�s d�s an�s 2000, tive a h�nra de fazer parte da Equipe Clí-nic�-Grupal d� Grup� T�rtura Nunca Mais/RJ. Atendia em Sã� Paul� ex-pres�s p�lític�s efamiliares, atendiment�s financiad�s pela C�munidade Eur�peia e pela oNU, a partir depr�jet�s elab�rad�s pel� GTNM/RJ. os efeit�s desse trabalh� ainda h�je estã� presentes emminha prática clínica de cada dia. É sempre necessári� lembrar � quant� a t�rtura p�de serdevastad�ra na vida, n� c�rp�, na “alma” de uma pess�a. E, talvez, � primeir� at� analític�desenl�uqueced�r para aqueles que s�breviveram à t�rtura tenha sid� p�der �ferecer umespaç�-temp� de escuta e cuidad�, bancad� p�r uma ass�ciaçã� de rec�nheciment� inter-naci�nal – primeir� pass� para a saída da clausura asfixiante da c�ndiçã� de s�breviventenaquele m�ment�. Ter as c�ndições s�ci�p�líticas de fazer um rec�nheciment� c�letiv� ex-plícit� de seu val�r c�m� c�mbatente, através d� pagament� de um pr�cess� psicanalític�,fazia entã� � efeit� �p�st� a� desmentid� d� trauma ferenczian�: � ac�lhiment� d� traumá-tic� tem a p�tência de �perar � iníci� de uma inclusã� necessária de um vivid� da �rdem d�h�rr�r; nessa �peraçã�, desperta-se t�da a f�rça viva de se saber participante de um m�vi-ment� de resistência a� t�talitarism�9.

Dentre �s percurs�s analític�s que pude ac�mpanhar, g�staria de ressaltar um pr�cess�subjetiv� daqueles que s�breviveram à t�rtura. Saídas da casa d�s h�rr�res, a vivência deaniquilament� subjetiv� fazia c�m que essas pess�as vagassem pel� mund� tal qual almaspenadas – nem viv�s, nem m�rt�s. Tal c�ndiçã� era ainda mais intensificada pel� estranh�pact� de silênci� que parecia haver, inclusive entre marid� e mulher, entre pais e filh�s, entrec�mpanheir�s, s�bre a vi�lência da experiência da t�rtura. Junte-se a iss� � fat� de que mui-t�s que saíram viv�s d�s p�rões da ditadura enc�ntravam-se c�m um pan�rama des�lad�r: an�tícia de amig�s e c�mpanheir�s m�rt�s pela repressã�, partid�s dizimad�s, � m�viment� deresistência paralisad�. À medida que se c�nseguia ret�mar alguma c�isa que pudesse se asse-melhar a uma vida – trabalh�, amizades, relações familiares, dificilmente lazer – a vivência n�mundo dos homens comuns parecia ser ainda mais estranha. o que p�deria haver de c�mumentre um s�brevivente da t�rtura e a mai�ria da p�pulaçã� brasileira que p�uc� a p�uc� ia seesquecendo de que vivia s�b uma ditadura?

A emergência de n�v�s m�viment�s de resistência a partir de mead�s da década de 1970,ganhand� f�rça e expressã� naci�nais na década de 1980, certamente pr�pici�u uma mudan-ça subjetiva e a p�ssibilidade de c�nstruçã� de n�v�s territóri�s, afetad�s que f�m�s pel� n�v�camp� de f�rças que se c�mpunha. M�ment� genétic�, a atualizaçã� das f�rças de resistênciase fez em vári�s camp�s: � m�viment� pela Anistia, � m�viment� pela Ref�rma Sanitária –que culmin�u n� SUS –, � m�viment� pela Ref�rma Psiquiátrica – que culmin�u nas atuaisP�líticas de Saúde Mental antimanic�miais, c�ns�lidadas em p�líticas de Estad� –, �s m�vi-ment�s sindicais – que resultaram na c�nstruçã� d� PT. T�d�s estes engr�ssaram e c�nfluíramn� m�viment� pelas eleições diretas – M�viment� das Diretas Já! – incluind� uma pluralida-de de at�res s�ciais e pr�duzind� n�vas m�dulações subjetivas. Ainda assim, ainda que um

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cert� entusiasm� tivesse c�l�rid� � h�riz�nte,a vivência psíquica de is�lament� e de umprofundo desalento perdurava em muitos des-ses s�breviventes. À ép�ca c�nstruí a imagemde uma b�lha, c�m� se cada um tivesse sid�enclausurad� em um tip� de b�lha específi-c�, c�m c�nt�rn�s e características próprias,mas t�das estampand� � mesm� certificad�de fabricação: o poder soberano do regimede exceçã� transf�rmand� a vida em vida nua– z�é –, vida matável10, a bi�p�lítica radica-lizada em tanat�p�lítica11. Corpo objeto dacrueldade do mal, legitimado pela banalidadedo mal12 – � cumpriment� de �rdens13. A ir-rupçã� d� real da d�r, sem intermediações, amáxima imp�tência e desampar� diss�lvend��s c�nt�rn�s subjetiv�s, pr�duziu diferentesefeit�s e estratégias de resistência psíquicapara p�der s�breviver; a partir daí, n� entan-to, é como se a vida entrasse em um constanteestad� de t�rp�r �níric�, de pesadel�.

C�m� ret�mar a vida viva? A vida de vigí-lia c�mpartilhada e c�mpartilhável? R�mper� pact� de silênci�, transf�rmar a culpa e averg�nha de ter s�brevivid� enquant� tan-tos outros foram mortos ou “desaparecidos”f�ram alguns d�s desafi�s que teceram �s pr�-cess�s das análises que pude ac�mpanhar.

Existe um irredutível desse traumátic�vi�lent�, n� entant�, que s�bra. Talvez sejaimp�ssível nã� s�brar. o que resta pr�cessar?E c�m� se faria esse pr�cessament�?

O homo sacer atual da“democracia” brasileira

Ainda que a c�nstituiçã� de 1988, c�nquistafundamental n� pr�cess� de dem�cratizaçã�d� Brasil, tenha vind� para substituir a lógicados privilégios, propondo outra lógica paraa s�ciedade brasileira – a lógica d�s direit�s–, passad�s 50 an�s d� g�lpe militar e 29 dareinstauração do regime democrático, sabemos� quã� distante estam�s de um funci�nament�jurídic�, p�lític�, ec�nômic� e s�cial anc�ra-d� nas diretrizes d�s direit�s de cidadania.

o estad� de exceçã�14 c�ntinua existind�para grande parte da população brasileira,particularmente para a população jovem dasperiferias, principalmente negra. Segundodad�s d� Mapa da vi�lência15, as maiorestaxas de h�micídi� sã� enc�ntradas na p�pu-laçã� j�vem e negra: de 2002 a 2012 há umcresciment� de 32,4% de j�vens negr�s assas-sinad�s, enquant� a taxa de h�micídi� entre �sj�vens branc�s cai 32,3%. Vi�lência seletiva.

Assim c�m� seletiva f�i a vi�lência sis-temática praticada n�s manicômi�s. OHolocausto brasileiro denuncia16 a morte depel� men�s 60 mil pess�as a� l�ng� d� sécu-l� XX n� h�spíci� de Barbacena, gen�cídi�c�metid� pel� Estad� Brasileir� de pess�asinternadas à f�rça, c�m �u sem históric� detranst�rn�s psiquiátric�s – “epiléptic�s, alc�-ólatras, h�m�ssexuais, pr�stitutas, meninas

grávidas pel�s patrões, mulheres c�nfinadas pel�s marid�s, m�ças que haviam perdid� a vir-gindade antes do casamento”17.

“Como tantos outros jovens das classes populares, buscareconhecimento e valorização através da roupa e adereços de marca.[...] se diverte dando seus rolezinhos de moto. Pilotar uma motoprovavelmente lhes traga uma sensação de potência, tão minada

por sua condição de excluídos. Impotência e onipotência: gangorrasubjetiva que os colocam em muitas situações limite.”

Seletiva também c�ntinua send� a vi�lência praticada nas prisões, nas unidades de interna-ção de jovens infratores, com todo o know-how s�bre t�rturas herdad� da ditadura civil-militar.Afinal, n�ssa P�lícia Militar, criada n�s temp�s da ditadura, c�ntinua funci�nand� na lógicada D�utrina da Segurança Naci�nal, defendend� � Estad� c�ntra qualquer cidadã� que sejaidentificad� p�r ela c�m� inimigo.

o critéri� de seleçã�: a vi�lência é c�metida maj�ritariamente c�ntra a p�pulaçã� p�bre,sem poder contratual, como diria Basaglia18.

Mas talvez uma das f�rmas de vi�lência mais efetiva, p�rque mais insidi�sa, mais umaherança da ditadura civil-militar, vem send� � gen�cídi� sistemátic� praticad� c�ntra � pen-sament�, prática exercida tant� n�s mei�s de c�municaçã� de massa hegemônic�s c�m�nas esc�las públicas. o g�lpe de 64 f�i um dur� g�lpe também para um m�viment� p�r umaeducaçã� pública, universal, de qualidade teórica, ética e p�lítica. C�mparad� a muit�s paí-ses latin�-american�s, n�ss� p�v� é um d�s mais desp�litizad�s. ou seja, h�uve, a partir d�g�lpe, um investiment� ativ� na manutençã� de um padrã� ínfim� de esc�larizaçã� desp�liti-zante de n�ss� p�v�, investiment� este que ainda nã� se reverteu nestes an�s de dem�cracia.

Em Sã� Paul�, esse quadr� é trágic�. Carl�s19 é um jovem da periferia de São Paulo, negro,que, assim c�m� muit�s que chegam a� serviç� da Clínica d� Sedes20, não sabe ler nem es-crever a�s 17 an�s de idade, tend� cursad� a esc�la regular, pública, durante t�d�s �s an�s deesc�larizaçã�. Espert�, c�nsegue driblar publicamente sua pr�funda verg�nha de ser analfabe-t�. C�m� tant�s �utr�s j�vens, principalmente das classes p�pulares, busca rec�nheciment� eval�rizaçã� através da r�upa e adereç�s de marca. C�m� tant�s �utr�s j�vens, se diverte dan-do seus rolezinhos de moto em seu bairro. Prática comum entre os jovens da periferia, pilotaruma m�t� pr�vavelmente lhes traga uma sensaçã� de p�tência, tã� minada p�r sua c�ndiçã�de excluíd�s d�s direit�s básic�s de cidadania. Imp�tência e �nip�tência: gang�rra subjetivaque � c�l�ca em muitas situações limite, material de trabalh� em seu pr�cess� terapêutic� emgrupo de adolescentes. Mas Carlos tem vontade de aprender. Carlos tem vontade de sair de suac�ndiçã� enverg�nhada e d�l�r�samente dependente. Dep�is de uma articulaçã� c�m recur-s�s intern�s e extern�s à Clínica, na perspectiva da Clínica Ampliada, Carl�s pôde c�nquistara c�mpetência para a leitura. Mas sua trajetória ad�lescente, assim c�m� de tant�s �utr�s, f�imarcada p�r d�is episódi�s de vi�lência p�licial: em ab�rdagem na rua, f�i barbaramente es-pancad� pel�s p�liciais. S�breviveu p�r milagre. Na segunda vez, c�nduzid� a uma unidadeda Fundação Casa, foi aconselhado pelo staff jurídic� de plantã� a admitir � sup�st� delit�que teria c�metid� – quebrar vidr� de um carr� – c�m � argument� de que assim ele p�deriaser liberad� n� mesm� dia; cas� c�ntrári�, teria que passar 15 dias na Fundaçã� até que �juiz desse um parecer. Saiu s�b LA – Liberdade Assistida – que vem send� usada p�r p�liciaisc�m� senha para a c�ntinuidade da teia perversa de vi�lência em que tant�s j�vens acabamenredad�s. C�m� mais uma estratégia clínica, na perspectiva da Clínica ampliada, c�nsegui-m�s um enc�ntr� c�m uma defens�ra pública, que c�nfirm�u essas práticas jurídic�-p�liciaisc�ntra �s j�vens de periferia. Mas nem mesm� ela, já tristemente habituada c�m essa tramada vi�lência, pôde dar um encaminhament� mais alentad�r para a situaçã�. Desampar� civilalimentando o desamparo subjetivo.

E a s�ciedade diante desse quadr� pervers�? Luiz, também negr�, �utr� j�vem atendid�pel� NURAAJ21, desenh�u a p�siçã� em que a s�ciedade c�l�ca �s j�vens de periferia: n�cant� superi�r direit� de uma f�lha, desenha um tribunal nomeado como os bons; n� cant�inferi�r esquerd�, desenha uma sepultura; n� centr� da f�lha, desenha a si mesm� de chifres,arma na cintura, ded� médi� em riste; entre ele e os bons, um traço indicando 20 km de dis-tância. Esta vem send� uma c�nstruçã� s�cial de décadas: a dem�nizaçã� e criminalizaçã�dos jovens de periferia os colocam como os novos inimigos sociais, alguns dos atuais hominessacri brasileir�s, vidas matáveis. Afinal, c�m� disse sem nenhum pud�r uma mulher de classemédia alta, em uma situaçã� s�cial c�tidiana, em 2013, à ép�ca da sup�sta segunda �nda deataques d� PCC em Sã� Paul�: “Dizem que para cada p�licial m�rt�, a p�lícia mata 10 ban-didos. Devia matar 20!”

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Como parecem ser matáveis também,em lento processo de dessubjetivação e re-construção de subjetividades assujeitadas,desp�tencializadas, idi�tizadas, as vidas detant�s que � Estad�, desde a ditadura, c�n-fin�u n�s manicômi�s – � p�der s�beran�em suas diferentes formas. Apesar do vigoro-s� m�viment� pela Ref�rma Psiquiátrica, emcurs� desde mead�s da década de 1970, quec�nseguiu fechar manicômi�s e pr�p�r c�m�p�lítica pública de saúde mental uma redede serviços substitutiva, de base territorial,ainda neste an� de 2014 esta �utra f�rma devi�lência seletiva c�ntinua determinand� �sdestin�s de tant�s sujeit�s e de suas famílias.João22, um dentre cinc� filh�s de uma famíliade baixa renda, sem diagnóstic�, f�i interna-d� n� H�spital Vera Cruz de S�r�caba a�s 14an�s de idade, em 1981, ainda n�s an�s daditadura. Vítima de err�s médic�s sucessiv�sdesde quand� era bebê, J�ã� ficara c�m se-quelas m�t�ras, p�ssivelmente c�gnitivas, emais resistente à �bediência. Em busca de umtratament� para seu filh�, a mãe de J�ã� � in-terna nesse H�spital, p�r �rientaçã� d� staffda entã� FEBEM23, onde fora procurar ajuda.Em t�d� � temp� em que fic�u internad� – 33an�s! – sua família � visitava e insistia em tra-zê-l� de v�lta. A t�d�s esses pedid�s, quand�conseguiam falar com o médico responsável– � únic� pr�fissi�nal c�m p�der de lhe daralta – recebiam a mesma resp�sta: que � me-lh�r lugar para ele era n� h�spital, �nde teriatratament�, e que ele nã� teria c�ndiçã� dec�nvívi� familiar. Tratament�? Medicaçã� dec�ntençã�, quand� ficava agitado. Perdendopr�gressivamente a saúde, �s dentes, hábit�sde higiene pess�al, � p�uc� de lucidez quetalvez tivesse, J�ã� m�rre n� h�spital, de cau-sas nã� esclarecidas, a�s 47 an�s de idade,em janeir� de 201424! Com tanto tempo in-ternad� – praticamente t�da sua vida – nã�teve temp� de se beneficiar da recente inter-venção feita pelo Ministério da Saúde nesteque, c�m� tant�s �utr�s h�spitais quase inex-pugnáveis da região de Sorocaba, continuamalimentand� a chamada “indústria da l�ucu-ra”25.

o que rest�u para a família? A im�bilidadee a imp�tência da culpa privatizada. Exceçã�feita a um de seus membros, de outra gera-çã�, que c�m a persistência e �bstinaçã� d�sresistentes enfrentou esse lento “assassinatolegalizad�” c�m as armas pr�ibidas e c�ibi-das pela ditadura: � pensament�, � acess� àinf�rmaçã� e à cultura, e a fala.

Carl�s, Luiz e J�ã�. Diferentes casos derazões públicas pr�dut�ras de s�friment�s pri-vados, parafraseando Jurandir Freire Costa26.C�nfigurações subjetivas nã� diretamente her-deiras d�s efeit�s da ditadura, mas herdeirasd� que a ditadura n�s leg�u: � adiament�, am�r�sidade e as dificuldades p�líticas, ec�-nômicas, s�ciais, culturais, subjetivas, dac�nstruçã� de um país que garanta �s direit�sde cidadania básicos para seu povo, através deinstituições dem�cráticas. C�m� afirma Plíni�

de Arruda Sampai� em sua entrevista para � imperdível d�cumentári� “o dia que dur�u 21an�s”: “o país, n�s an�s 60, t�ma c�nsciência da necessidade de dar um pass�, um pass� na di-reçã� da dem�cracia e da naçã�” (transcriçã� livre). A truculência d� impediment� desse pass�,feita pela ditadura, adi�u � exercíci� de n�ss� caminhar autôn�m�.

“nossa Polícia Militar, criada nos tempos da ditadura, continuafuncionando na lógica da Doutrina da Segurança Nacional,

defendendo o Estado contra qualquer cidadão que seja identificadopor ela como inimigo. O critério de seleção: a violência é cometida

majoritariamente contra a população pobre, sem podercontratual, como diria Basaglia.”

Mas engana-se quem pensa que �s efeit�s da ditadura civil-militar m�delaram apenas assubjetividades d�s dit�s excluíd�s, �u d�s chamad�s inimigos d� Estad� de �ntem – �s subver-siv�s, �s terr�ristas – �u de h�je – �s j�vens das periferias, �s chamad�s delinquentes ou, maisrecentemente, vândalos pela mídia.

Na prática clínica, seja de c�nsultóri�, seja na clínica dita instituci�nal, há um fenômen�rec�rrente que se presentifica a cada recepçã� de pais que buscam psic�terapia para seus filh�s– crianças �u ad�lescentes: a frequência c�m que deparam�s nã� c�m um pedid� de ajuda paraum p�ssível s�friment� psíquic�, subjetiv�, mas c�m um pedid� de conserto, de normalização ec�nsequente ret�mada d� c�ntr�le da vida d�s filh�s pel�s pais �u resp�nsáveis.

Certamente este nã� é um fenômen� exclusivamente brasileir�. Afinal, F�ucault há temp�sindic�u c�m� as s�ciedades �cidentais m�dernas �peram através de um regime específic� dep�der – � p�der disciplinar e � bi�p�der – em que é a própria vida que entr�u nas equaçõesd� p�der. Nesse n�v� regime, articulad�s s�b a designaçã� de bi�p�lítica, t�das as chamadasciências da vida e as ciências humanas sã� c�nv�cadas a serem instrument�s de n�rmaliza-çã� s�cial. o fenômen� da medicalizaçã� s�cial – a reduçã� de questões c�mplexas a umpr�blema médic� – nessa perspectiva, nã� é n�v�. Vem c�nstruind� n�vas e mais eficientesestratégias de c�ntr�le na c�nfiguraçã� c�ntemp�rânea da s�ciedade c�m� S�ciedade de C�n-tr�le, estratégia de p�der que seria, segund� Deleuze27, a intensificaçã� das estratégias dass�ciedades disciplinares. A Psic�l�gia e a Psicanálise nã� sã� exceçã�. A nós é, frequente-mente, endereçado um pedido de adaptação, coerente com nosso mandato social de guardiãesda ordem28. E é aqui que se c�l�ca vig�r�samente em questã� n�ssas �pções clínic�-étic�--p�líticas. A quem resp�ndem�s? A que resp�ndem�s? Para que resp�ndem�s � quê?

E � que há de c�mum também, nesses pedid�s, é � lugar �cupad� p�r essas criançase ad�lescentes, principalmente d� sex� masculin�, na dinâmica familiar, principalmente naec�n�mia desejante materna: filh�-fal�, na melh�r tradiçã� freudiana. Junte-se a iss�, e talvezparte d� mesm� tip� de c�nfiguraçã� edipiana, a desaut�rizaçã� d� pai, sua desval�rizaçã�,seu enfraqueciment� pela figura materna e terem�s aí um quadr� bastante c�mum e pre�cu-pante: mulheres-mães tiranas, pais imp�tentes, filh�s agitad�s c�m� estratégia de lidar c�m aangústia que lhes s�bra, sem referências de identificaçã� c�nfiáveis. Ainda que esta c�nfigu-raçã� atravesse as diferentes classes s�ciais, sua presentificaçã� nas famílias de classe médiaalta é particularmente perturbad�ra. N�ssa hipótese é que, uma vez desinvestid� � espaç�públic�, espaç� em que habitam as questões d� c�mum – questões de cidadania, de m�bili-dade urbana, da educação pública, da vida das crianças e dos jovens, da saúde pública, dacidade, da pr�duçã� desejante c�mum – restringind�-se e c�nfinand� as vidas a um m�d� deviver individualista e is�lad�, enclausura-se a vida de tal f�rma que s�bram p�uc�s �bjet�s deinvestiment� libidinal n� h�riz�nte d� vivível. Freud também já n�s indicara esse caminh� dapulsi�nalidade humana: a pulsã� é c�ntingente, e vai fazer c�nexões a depender d�s �bjet�s�fertad�s p�r esta �u aquela cultura, �u, spin�sianamente faland�, a depender das afecçõesdos encontros de corpos.

outr� tip� de b�lha. Desta vez c�m � certificad� de fabricaçã� d�s mur�s d� c�nd�míni��u d� sh�pping center. Há p�uc� mund�. Falta mund�, tant� para �s ad�lescentes c�m� parasuas famílias. Um ad�lescente de um de n�ss�s grup�s terapêutic�s, de classe média, pergun-tava curi�s� a seu c�lega de grup�, de classe p�pular: “o que é uma van?” De uma p�siçã�quase inversa na cart�grafia da cidade, uma ad�lescente de �utr� grup� dizia c�m� a cidadeaparecia diferente a depender da p�siçã� desde a qual se a �lhava: através d�s vidr�s d� carr�era uma cidade, através d�s vidr�s d� ônibus era �utra.

Mas, para abrir-se para � c�mum, deixar-se afetar pel� c�mum, deixar-se c�ntagiar e assimpartilhar da p�tência c�nstituinte da multidã�29, há que se r�mper c�m a lógica tã� arraigadaem n�ssa s�ciedade brasileira que é a lógica das pess�as, d�s medalhões, d� “v�cê sabe c�mquem está faland�?”30.

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E este p�de ser um d�s vári�s aprendizad�s p�ssíveis c�m a experiência d�s m�viment�sde junh� de 2013. Ac�mpanhand� Pelbart em seu belíssim� artig� na Folha de S. Paulo de 19jul. 201331, Peter argutamente entendeu que só uma resp�sta c�m� a de odisseu p�de n�stirar a t�d�s da caverna d� cícl�pe, da b�lha. À pergunta s�bre a identidade de uma integranted� M�viment� Passe Livre, esta teria resp�ndid�: “An�ta aí, eu s�u ninguém”. Resp�sta quec�nfirma, segund� Pelbart, “a imp�rtância de uma certa dessubjetivaçã� para � exercíci� c�n-temp�râne� da p�lítica”, na esteira da afirmaçã� de Agamben de que “�s p�deres nã� sabem� que fazer c�m a singularidade qualquer”.

E para � fantasma d� c�munism�, aquele mesm� que atras�u em 21 an�s a c�nstruçã�d�s caminh�s deste país, as palavras de Peter Pál Pelbart p�dem servir c�m� búss�la e c�m�intervençã�:

T�rnar cada vez mais c�mum � que é c�mum – �utr�ra chamaram iss� de c�munism�.Um c�munism� d� desej�. A expressã� s�a h�je c�m� um atentad� a� pud�r. Mas é aexpr�priaçã� d� c�mum pel�s mecanism�s de p�der que ataca e depaupera capilarmenteaquil� que é a f�nte e a matéria mesma d� c�ntemp�râne� – a vida (em) c�mum32.

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Keyw�rds civil-military dictat�rship; t�rture; clinics with ex-p�litical pris�ners; ad�lescence clinics; publicp�licies; pr�ducti�n �f the “c�mm�n”.

NOTAS:

1 Presidente J�ã� G�ulart, discurs� n� C�míci� da Cen-tral d� Brasil em 13 mar. 1964.2 C. Tavares, O dia que durou 21 anos - Documentário3 C. Tavares, op. Cit.4 Peter V�s, d� c�nsulad� d�s EUA – fragment� d� de-poimento para o Documentário Cidadão Boilensen. Acitaçã� f�i extraída de sin�pse de Flávia Santana.5 C. Tavares, op. Cit.6 C. Tavares, op. Cit.7 Na esteira das pesquisas e f�rmulações de F�ucault s�-bre as tecnologias de poder nas sociedades disciplinaresm�dernas, sintetizadas n� c�nceit� de bi�p�lítica, Gi�rgi�Agamben resgata � c�nceit� de h�m� sacer d� direit� r�-man� arcaic�: vida matável e nã� sacrificável. N� livr� op�der s�beran� e a vida nua I, p. 196, Agamben � pr�ble-matiza de m�d� a fazer emergir sua �rigem histórica c�m�p�nt� de incidência d� p�der s�beran�, c�m� vida nua,z�é, afirmand� que a vida já fizera sua entrada n� p�lític�a partir mesmo do surgimento do poder soberano, em seucaráter de exceçã�. Dessa f�rma, além de assumir a tesef�ucaultina s�bre a entrada d� bi�s nas equações d� p�der– que inauguraria � p�der disciplinar c�m� característic�das s�ciedades �cidentais m�dernas – Agamben reafirmaas teses f�ucaultinas da c�existência d� p�der s�beran� ed� p�der disciplinar na m�dernidade. N� entant�, radica-liza tais teses, afirmand� que � estad� de exceçã�, e c�mele � p�der s�beran�, d�s quais � camp� de c�ncentraçã�seria � paradigma, estariam em uma íntima s�lidariedadec�m a dem�cracia (p. 17). o cas� brasileir� faz chegara� par�xism� a c�existência das fórmulas f�ucaultianas– Fazer viver �u deixar m�rrer (s�ciedades disciplinares)e Fazer m�rrer �u deixar viver (s�ciedades de s�berania),c�m� verem�s a seguir. “H�mem sacr� é, p�rtant�, aqueleque � p�v� julg�u p�r um delit�; e nã� é lícit� sacrificá--l�, mas quem � mata nã� será c�ndenad� p�r h�micídi�;na verdade, na primeira lei tribunícia se adverte que ‘sealguém matar aquele que p�r plebiscit� é sacr�, nã� serác�ndenad� h�micida’. Diss� advém que um h�mem mal-vad� �u impur� c�stuma ser chamad� sacr�.” (p. 186).8 Para um melh�r entendiment� desta D�utrina, c�nsul-tar Bl�g d� Emir, disp�nível em: <http://www.cartamai�r.c�m.br/?/Bl�g/ Bl�g-d�-Emir/o-g�lpe-n�-Brasil-e-a-d�u-trina-de-seguranca-naci�nal/2/27107>.9 Nesse sentid�, � pr�jet� Clínicas d� Testemunh�, d� Mi-nistéri� da Justiça, já tem a seu fav�r � fat� de ser � Estad�brasileir� quem faz um rec�nheciment� públic� da vi�lênciaperpetrada pel� própri� Estad� c�ntra seus cidadã�s guerrei-r�s, �s filh�s que nã� f�gem à luta. Através da pr�p�sta decriação de espaços coletivos de circulação e de elaboraçãode um traumátic� pr�duzid� p�r f�rças de �rdem p�lítica,faz-se um investiment� ativ� e um rec�nheciment� de ums�friment� que nã� p�de ser vivid� privadamente.10 G. Agamben, op. cit.11 G. Agamben, op. cit.12 H. Arendt apud J. F. C�sta, “Psiquiatria bur�crática: duas�u três c�isas que sei dela”, in Clínica d� S�cial – Ensai�s.13 Em declaraçã� prestada à C�missã� Naci�nal da Ver-dade, tal c�m� Eichman, Paul� Malhães se �rgulha emdizer: “Ach� que cumpri meu dever”. E, ainda, em res-p�sta à pergunta d� entrevistad�r J�sé Carl�s Dias s�bre� númer� de pess�as que teria matad�, Paul� Malhãesresp�nde: “Tantas quantas f�ram necessárias”.14 G. Agamben, Estad� de excepción.15 J. J. waiselfisz, o mapa da vi�lência 2014: os j�vensdo Brasil.16 D. Arbex, o h�l�caust� brasileir�.17 D. Arbex, �p. cit.18 F. Basaglia, As instituições negadas.19 os n�mes sã� fictíci�s.20 Clínica Psic�lógica d� Institut� Sedes Sapientiae.21 nuraaj – Núcle� de Referência em Atençã� à Ad�lescên-cia e à Juventude da Clínica Psic�lógica d� Institut� SedesSapientiae. Instituíd� c�m� Núcle� de Referência a partirde 2011, mas existind� c�m� Pr�jet� de Atençã� à Ad�les-cência e à Juventude desde 2004, estes 10 an�s de trabalh�clínic�-instituci�nal vêm send� um temp� fértil de criaçã�,de experimentaçã� e de intervençã� n� camp� da ad�les-cência e da juventude, na perspectiva da clínica ampliada.22 N�me fictíci�.23 Fundaçã� Estadual d� Bem Estar d� Men�r.24 A. Cardeal, “A v�z de uma experiência: um cas� defamília”.25 G. M�ncau. “Indústria da l�ucura impede avanç�s”.Para uma melh�r c�mpreensã� desse pr�cess� de priva-tizaçã� d�s h�spitais psiquiátric�s, que t�rn�u a l�ucuraum negóci� lucrativ� para �s d�n�s de h�spital, pr�cess�que teve seu ap�geu n� perí�d� da ditadura civil-militar,c�nsultar P. Amarante, L�uc�s pela vida – A trajetória daRef�rma Psiquiátrica n� Brasil.26 J. F. C�sta, Razões públicas, em�ções privadas.27 G. Deleuze, C�nversações.28 C. M. B. C�imbra, Guardiães da ordem – uma viagempelas práticas psi no Brasil do “Milagre”.29 A. Negri, o P�der C�nstituinte – ensai� s�bre as alter-nativas da modernidade.30 R. da Matta, Carnavais, malandr�s e heróis: para umasociologia do dilema brasileiro.31 P. P. Pelbart. “An�ta aí: eu s�u ninguém”.32 P. P. Pelbart, op. cit.

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Todos com os corpos besuntados de verde amarelo, loiras e louros com um arsenal debadulaques, avivand� rixas, xingand� seus representantes, agitand� as mã�s c�m seusingress�s de �ur� e �rigem duvid�sa, a� ritm� das batucadas imaginárias e v�zes em

c�r�: “c�m muit� �rgulh� c�m muit� am�r”. E � astral lá nas alturas das grandezas em que n�sprojetamos. Fragmentos esparsos de um todo em crise.

N� camp�, um infantil Brasil de pijamas, envelhecid� p�r um vazi� de identidade.N� primeir� j�g�, g�l c�ntra. Um primeir� g�l irrepresentável, num j�g� que deveria ser

inesquecível. Um prenúnci� daquil� que já c�rresp�ndia a� n�ss� grit� bege.Entre grit�s e discurs�s c�nfus�s, p�deríam�s perguntar: Existe uma crise de identidade n�

brasileir�?o quant� � esp�rte e mais precisamente � futeb�l p�dem deflagrar uma crise dessa espécie?Se �lharm�s para �s últim�s ac�nteciment�s �c�rrid�s n� país, desde as manifestações de

junh� de 2013 até a C�pa d� Mund� de futeb�l de 2014, irem�s perceber algumas nuancesque p�dem n�s fazer refletir.

A �rganizaçã� d� n�ss� futeb�l é um espelh�, um micr�c�sm� d� que é a �rganizaçã�p�lítica e de planejament� d� país c�m� um t�d�.

Em relaçã� à C�pa, a partir d� respectiv� e substancial fracass� da seleçã� d� Brasil, muit� sefal�u que � futeb�l era apenas um j�g�, para minimizar e negar �s efeit�s da frustraçã� da perda.

Mas a partir dessa situaçã� p�dem�s n�s perguntar: o futeb�l, quand� dimensi�nad� p�rum fenômen� gl�bal c�m� a C�pa, p�de ser c�nsiderad� apenas um j�g�?

Evidentemente que nã� é apenas um j�g�. P�dem�s sim é c�nsiderá-l� história de umanaçã� e de sua relaçã� c�m � �utr�, e d� c�mp�rtament� da s�ciedade em relaçã� às suasdores e lutas.

Paul� Lins, aut�r d� r�mance “Cidade de Deus”, em certa feita, faland� s�bre as favelasbrasileiras e a respectiva indústria d� crime e tráfic�, que desde ced� env�lvem as crianças,afirm�u s�bre � que acha necessári� para mudar as perspectivas de vida: Arte e Cultura.

Pode soar aparentemente banal ou não tão original tal resposta frente a uma realidade tão�press�ra, mas na verdade a afirmaçã� n�s traz alg� sui generis; P�is as resp�stas n�rmalmentep�deriam ser �utras: Educaçã�, saúde...

Arte e Cultura têm a ver c�m � m�d� c�m� n�s identificam�s, c�m� estabelecem�s n�ssasc�nexões c�m � �utr� e c�nstruím�s a� l�ng� d� temp� t�da uma cadeia de investiment�s dedesej�, linguagem, representações e sublimações da realidade.

o futeb�l sempre pôde ser c�nsiderad� tant� um representante fidedign� de n�ssa cultura,como em certos momentos arte.

A f�rma c�m� � futeb�l trabalh�u e desenv�lveu determinad�s aspect�s de n�ssa culturana história, p�de ser vist� n� prim�r�s� trabalh� de David Az�ubel, psicanalista e escrit�r jáfalecid�, que escreveu um livr� chamad� “o Futeb�l c�m� Linguagem – da Mit�l�gia à Psica-nálise”. Neste, ele disseca a questã� da transf�rmaçã� d� prec�nceit� racial nesse esp�rte a�l�ng� d� temp�, desde seu iníci�, quand� nã� eram aceit�s negr�s j�gand� futeb�l – p�is erac�nsiderad� um esp�rte de elite – até � m�ment� em que �s negr�s c�nquistaram seu mereci-d� espaç� pra reinarem h�je abs�lut�s.

CRISE DE IDENTIDADE

Do BRASILEIRo -

A MAGIA DO GOL CONTRApor Caio Garrido

Caio Garrido é editor geral da Revista Tavola Maga-zine. É psicanalista, e c��rdenad�r d� Dept�. deLiteratura d� Núcle� Tav�la. Tem três livr�s publicad�s;Um r�mance: “Pena que f�i ontem” (2010); e d�is dep�emas: “P�emas aut�-escrit�s em estad� de S�nam-bul�visã�” (2011) e “parapeit�” (2013, Ed. Patuá).

“A história é repleta de exemplos de indivíduos e comunida-des obcecados pelos mitos da própria etnia, da própria origem,do próprio país, da própria identidade cultural: ideias fixas queobstam a evolução de indivíduos e comunidadese geram linguagens e simbolismos imunizados em relação aooutro. Há nostalgias mítico-regressivas que negam o outro,seu direito a viver. Todavia nessa regressão, nesse fechamento,nessa nostalgia de uma raiz imaginária,sempre há uma possibilidade de abertura, de reconhecimentodo outro, de liberdade.”– Mauro Maldonato em “Passagens de tempo”.

ENSA

Io

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Através deste e �utr�s cas�s, David m�stra � quant� � futeb�l f�i um fat�r �rganizad�r paranossa cultura e identidade.

o futeb�l brasileir�, desde entã�, nunca perdeu seu estatut� de referência em relaçã� a�mund�, até �s event�s �c�rrid�s na última C�pa. A seleçã� teve raça, mas c�m p�uquíssimasdas características c�m que � mund� sempre n�s identific�u. Uma derr�cada acachapante se-l�u � destin� final da seleçã� n� t�rnei�, e deix�u uma marca pr�funda em n�ss� narcisism�.

Além desse e muit�s �utr�s fat�res, � event� f�i marcad� desde seu planejament� e exe-cuçã� p�r c�ntradições e pr�blemas de t�d�s �s tip�s, c�m� �s val�res superfaturad�s nac�nstruçã� e ref�rma de estádi�s, a falta de zel� c�m n�ss� patrimôni� históric� cultural– estes mesm�s estádi�s, que deixaram de ter sua tã� c�nhecida identidade –, a ameaça demanifestações, e �utr�s.

Durante a C�pa, �utras questões e c�ntradições vieram à t�na;S�u aquele que xinga, agride, �u aquele que permite a existência d� meu rival? Sint�-me

identificad� àquele que r�uba, mas faz? Àquele que brinca, dribla, �u � que sabe marcar �adversári�? Sint�-me identificad� àquele que arr�ga uma imp�rtância que nã� tem? Que é sócamisa, é só mística? S�m�s seres d� futeb�l, da magia, d� drible, impr�visaçã�, �u seres da faltade planejament� e trabalh� que se disfarçam n� velh� “jeitinh�”, na malandragem? Devem�sn�s espelhar n� m�d� de ser e de trabalh� d�s eur�peus �u naquil� que às vezes n�s esquece-m�s – n�ss� lad� sul-american�? Querem�s ser cópia �u tem�s alg� de �riginal? o brasileir�é sempre � ser alegre, festiv�, que aceita tud�? onde n�ssa cultura precisa reagir para �ferecermais �p�rtunidades às pess�as de n�ssa s�ciedade, para enriquecer a f�rma de expressar-n�s?

Parece-me que tais questões sã� �riundas de um �riginári� distante, de questões reatualiza-das de um temp� em que n�ssa cultura era baseada n� desej� de n�ss�s c�l�nizad�res, e d�sc�nflit�s daí gerad�s.

Miriam Chnaiderman, que escreveu um belíssim� artig� s�bre a Psicanálise brasileira, em deter-minad� m�ment� diz que � exótic� n�rteia a c�ncepçã� de cultura naci�nal. Diz ainda: “Caetan�Vel�s�, emVerdade Tr�pical, defende que nã� há p�r que temer � ex�tism�; de fat�, há c�queir�sem n�ssas praias; de fat�, a mestiçagem n�s caracteriza. o terrível é serm�s reduzid�s a iss�.”

Ainda n� mesm� artig�, Miriam cita octávi� de S�uza, psicanalista que vem se dedicand�a esses temas: “Para octávi�, a rec�rrência a uma identidade naci�nal seria uma estratégiapara lidar c�m a ut�pia c�l�nizad�ra, e a pr�duçã� cultural brasileira teria uma tendência aref�rçar a identidade naci�nal, � que p�de ser explicad� p�r um desenraiza-ment� �riginal,tant� d� h�mem american� em relaçã� à tradiçã� eur�peia, quant� d� própri� eur�peu eseus descendentes”; Segund� Miriam Chnaiderman, octávi� S�uza quer analisar � pes� destaherança inevitável que carregam�s: � fard� da gênese naci�nal enquant� Éden. Diz ainda: “oque busca pr�var é que a fantasia de um Brasil paradisíac� teria levad� à c�nstruçã� de umaidentidade brasileira c�m �s traç�s de ex�tism� (sensualidade, alegria, jeitinh� brasileir�).”

o que está em pauta atualmente é um pr�fund� questi�nament� s�bre quem s�m�s e para�nde querem�s ir. Querem�s ser reduzid�s a� ex�tism� e mestiçagem que n�s caracteriza? oudevem�s ir além? Que relaçã� devem�s ter c�m n�ssa p�lítica? Preferim�s � individualism�a� trabalh� em equipe? A tr�c� de quê querem�s n�s esc�nder, e manter n�ssa �nip�tência

Dica de Livro:

RA�ZES Do BRASIL

Aut�r: Sergi� Buarque de H�landa

Nunca será demasiado reafirmar que Raízesdo Brasil inscreve-se como uma das verdadei-ras obras fundadoras da moderna historiografiae ciências sociais brasileiras. Tanto no métodode análise quanto no estilo da escrita, tanto nasensibilidade para a escolha dos temas quantona erudição exposta de forma concisa, revela-seo historiador da cultura e ensaísta crítico comtalentos evidentes de grande escritor.A incapacidade secular de separarmos vidapública e vida privada, entre outros temas des-ta obra, ajuda a entender muito de seu atualinteresse. E as novas gerações de historiadorescontinuam encontrando, nela, uma fonte ins-piradora de inesgotável vitalidade. Todas essasqualidades reunidas fizeram deste livro, com ra-zão, no dizer de Antonio Candido, “um clássicode nascença”.

mística em t�rn� d� “país d� futeb�l”? Fugird� trabalh�, necessári� para se transf�rmarqualquer realidade?

Para Maur� Mald�nat�, psiquiatra e filós�-f� italian�, “a história é repleta de exempl�sde indivídu�s e c�munidades �bcecad�spelos mitos da própria etnia, da própria ori-gem, d� própri� país, da própria identidadecultural: ideias fixas que �bstam a ev�luçã�de indivídu�s e c�munidades e geram lingua-gens e simb�lism�s imunizad�s em relaçã�a� �utr�”. Segund� ele, “há n�stalgias mític�--regressivas que negam � �utr�, seu direit�a viver, e que, t�davia, nessa regressã�, nes-se fechament�, nessa n�stalgia de uma raizimaginária, sempre há uma p�ssibilidade deabertura, de rec�nheciment� d� �utr�, de li-berdade.”

De ac�rd� c�m � que diz a psicanalis-ta Betty Milan em uma de suas c�lunas naF�lha de S. Paul�: Será que a impr�visaçã�vale mais que � planejament�? “P�r saberm�simprovisar ou por sermos viciados na impro-visaçã�?”

o us� pervers� de n�ssa capacidade �upossibilidade de improvisação pode determi-nar os nossos destinos negativamente. SérgioBuarque de H�landa em seu seminal livr�

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“Raízes d� Brasil”, fala s�bre a influência que as nações ibéricas tiveram na c�nstruçã� den�ssa identidade: “Uma digna �ci�sidade sempre pareceu mais excelente, e até mais n�bili-tante, a um b�m p�rtuguês, �u a um espanh�l, d� que a luta insana pel� pã� de cada dia. oque amb�s admiram c�m� ideal é uma vida de grande senh�r, exclusiva de qualquer esf�rç�,de qualquer pre�cupaçã�. […] Também se c�mpreende que a carência dessa m�ral d� traba-lh� se ajustasse bem a uma reduzida capacidade de �rganizaçã� s�cial. […] P�dem�s dizerque de lá n�s vei� a f�rma atual de n�ssa cultura; � rest� f�i matéria que se sujeit�u mal �ubem a essa forma.”

Parece que pra ev�luirm�s, n�ss� sens� de identidade também deve ev�luir, para que n�ssa cultu-ra nã� permaneça estanque, p�dend� abarcar qualidades, exempl�s e características de �utr�s semperderm�s a essência da n�ssa. Neste p�nt�, cabe destacar � quant� �s indígenas se m�strarammaisev�luíd�s d� que �s seres dit�s urban�s e civilizad�s, muitas vezes nã� tend� med� de inc�rp�raraspect�s de �utras culturas sem perder características fundamentais da sua própria cultura.

os recentes ac�nteciment�s, manifestações, e desmand�s na p�lítica brasileira, p�r exempl�,m�stram um chamament� para alg� que nã� é mais p�ssível de ser ign�rad�. A indignaçã� einsatisfaçã� nã� sã� c�m �s p�lític�s �u dirigentes, mas c�m nós mesm�s.

REFERwNCIAS:

Az�ubel Net�, David.O Futebol como Linguagem – daMitologia à Psicanálise. Funpec,

Chnaiderman, Miriam. Existe uma psicanálise brasilei-ra? Revista Percurs� nº 20 – 1/1998

H�landa, Sérgi� Buarque de. Raízes do Brasil.

Lins, Paul�. (C�municaçã� oral durante Feira d� Livr�de Ribeirã� Pret�, 2014)

Maldonato, Mauro. Passagens de tempo.

Milan, Betty. A Copa e o mito do salvador. J�rnal F�lhade S.Paul�, junh�, 2014.

S�uza, octávi� de. Fantasia de Brasil, as identificauõesna busca de identidade nacional, S.P., Escuta, 1994.

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Pensar em televisã�, l�g� n�s remete à teledramaturgia, p�pularmente c�nhecida c�m�‘n�vela’, tã� difundida e assistida diariamente p�r milhões de pess�as em t�d� � Brasil.

o fenômen� cultural das telen�velas p�de ser pensad� s�b � p�nt� de vista da psi-canálise, p�is perscruta um caminh� incrível n� imaginári� das pess�as – e � imaginári� éalg� abs�lutamente imp�rtante para a c�nstituiçã� d� “eu”. Elas (as telen�velas) tem � p�derde estabelecer padrões de c�mp�rtament�, ditar m�das e m�dism�s, e influencia diretamenten� psiquism�, p�is trabalha também � camp� narcísic� e d� desej� de maneira abs�lutamen-te singular, conseguindo estabelecer laços afetivos entre o telespectador e os personagens dastramas, devid� a� fat� de que dramas pess�ais e c�nflit�s vivenciad�s sã� experimentad�s �temp� t�d� s�b a vivência de um “�utr�” que aparentemente nã� passa pel� “eu” d� sujeit�,mas inc�nscientemente é identificad� a esse “eu”, p�r trazer à t�na questões vivenciadas pel�indivídu� em sua experiência em�ci�nal real. Para c�rr�b�rar iss�, basta n�s determ�s em vári�sexempl�s de at�res que na vida real sã� amad�s �u �diad�s, e p�r vezes até agredid�s, em razã�de representarem determinad� pers�nagem. Em última instância, estam�s faland� de pr�cess�sde identificaçã�, e este é apenas um vértice pel� qual p�dem�s pensar as telen�velas à luz dapsicanálise.

As telenovelas são uma forma de narrativa, e como “todas as narrativas tem o poder de nosapresentar � mund� em que vivem�s de uma maneira mais �u men�s �rganizada, mais �u me-n�s transparente – c�isa, que na realidade, � mund� nã� é –, iss� permite que n�s identifiquem�simaginariamente c�m �s sentiment�s d�s pers�nagens da ficçã�. Nesse sentid�, uma ideia fictí-cia da nossa realidade social, transforma-se facilmente em uma visão mitológica, pois o poder daimagem é mai�r que � da narrativa em palavras; p�r iss� a telen�vela passa a ser um disp�sitiv�mit�lógic� e também ide�lógic�.” (Maria Rita Kehl)

S�b essa afirmaçã�, p�deríam�s n�s deter em aspect�s imp�rtantes, e nã� men�s relevantes,s�bretud�, a questã� mit�lógica e ide�lógica ligada à ideia fictícia de n�ssa realidade, que temum f�rte impact� s�cial, mas p�r �ra, n�ss� interesse está v�ltad� para � aspect� da identificaçã�e suas c�nsequências para � indivídu�.

Pensand� a n�ssa teledramaturgia, e visand� buscar � que de atrativ� ela tem a �ferecer, p�-dem�s afirmar que t�da telen�vela pr�cura fazer uma espécie de rec�rte da s�ciedade brasileira,usand� fórmulas e c�nflit�s p�larizad�s e sempre repetitiv�s, � que é ver�ssímil a� que ac�ntecen� c�tidian� das pess�as, c�m� am�r versus ódi�, herói versus bandid�, etc. o que ac�nteceé que essa descriçã� s�cial nã� enfrenta na pr�fundidade �s pr�blemas s�ciais, até mesm�p�rque nã� tem essa finalidade, p�is em última instância, c�mercialmente, a finalidade de t�dapr�duçã� teledramatúrgica é entreter e nã� c�nduzir a reflexões s�ciais, ainda que as mesmasp�ssam br�tar da representaçã� da realidade ali traduzida ficci�nalmente; elas apresentam sim,uma s�ciedade mais palatável, �nde �s c�nflit�s s�ciais se traduzem em c�nflit�s sentimentais,r�mantizand� de cert� m�d� � s�friment� individual e c�letiv�. É na esteira dessa apresentaçã�da realidade que esse gêner� faz tant� sucess� em mei� à p�pulaçã�, s�bretud�, entre a camadamais simples, apesar de que, em term�s de audiência, t�das as classes s�ciais gozam, pois todosidentificam-se narcisicamente c�m este �u aquele pers�nagem.

Fala-se muit� que as n�velas trazem às pess�as a p�ssibilidade de discutir a própria vida,à luz da identificaçã� c�m �s pers�nagens e situações da trama. o sens� c�mum p�de quererc�nsiderar essa discussã�, dand� a ela um efeit� terapêutic�, p�is assim c�m� em uma análise(psicanalítica), há um discurs� frente à vida e s�bre a vida. Nada mais errône�, p�is � discurs�analític� nã� �bedece a uma prévia representabilidade d�s sign�s linguístic�s d�s quais ele seserve, nem de uma raci�nalidade cartesiana; ele é da �rdem d� Inc�nsciente, p�rtant�, nã� hác�m� imprimir um caráter terapêutic� a uma representaçã� d� que vivem�s, e é s�mente iss�que uma telen�vela faz, � que nã� a exime de n�s implicar psiquicamente s�b alguns aspect�s,de m�d� que psiquicamente, as n�velas p�dem desempenhar duas funções n� psiquism� daspess�as: elab�raçã� e alienaçã�. o que iss� quer dizer?

Quer dizer que a� retratar dramas individuais de maneira ficci�nal, as narrativas ajudam at�rnar � s�friment� pess�al mais sup�rtável, p�rque � t�rna men�s s�litári� (elab�raçã�). Nesse

PENSANDo AS TELENoVELAS:

UM OLHAR PSICANALÍTICOpor Alessandro Alves

Alessandro Alves é psicanalista pel� Núcle� Tav�la- Ribeirã� Pret�. Filós�f�, bacharel em Fil�s�fia c�mespecializaçã� em Fil�s�fia da Educaçã�, e gradu-and� em Letras. C��rdenad�r d� Departament� deFil�s�fia d� Tav�la.

PSICANÁLISE

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sentid�, t�da e qualquer narrativa tem � p�der de aplacar a angústia. A questã� é que entender� s�friment� a partir da ficçã� também é uma f�rma de alienaçã� d� sujeit�, p�rque este trans-fere para � pers�nagem identificad� na trama, uma p�ssibilidade de resp�sta para aquil� que évivenciad� pel� indivídu� em sua vida real; nada mais alienante.

As n�velas ainda influenciam de maneira abissal � m�d� de vida das pess�as, p�is trabalhat�d� um camp� ligad� a� desej�, que faz c�m que � sujeit�, pela via da identificaçã� c�m �spers�nagens, passe a querer ter � que �s mesm�s têm, �u ainda, e de m�d� mais grave, a ser �que eles sã�, p�dend� pr�duzir, inclusive, efeit�s pat�lógic�s. Nesse sentid�, as pess�as passama trabalhar psiquicamente na direçã� de tentarem preencher um cert� “burac� narcísic�”. Perce-bam c�m� um simples entreteniment� p�de mexer c�m as estruturas d� eu.

Nã� p�dem�s c�nceber � eu sem � imaginári�, já n�s dizia Lacan, p�is este é de suma im-p�rtância para � indivídu�. A c�mpreensã� de que � ser human� é c�nstituíd� pela falta e é essesujeit� faltante que � faz desejar e estar m�tivad� para viver, é c�ndiçã� sine qua non para umab�a f�rmaçã� psíquica. Entender a lógica de um desej� que é c�ntemplad� brevemente e que éunicamente da ordem do imaginário, como o é no caso das telenovelas, onde através da identi-ficaçã� c�m algum pers�nagem � telespectad�r passa a ter uma vivência fictícia e prazer�sa p�ralguns instantes e a t�ma c�m� verdadeira, é uma questã� a ser resp�ndida.

Para dar uma resp�sta a esta questã�, precisam�s c�ntemplar alguns aspect�s históric�s dateledramaturgia brasileira, e é b�m que saibam�s c�m� esse gêner�, tã� p�pular n� Brasil, se s�li-dific�u e �cupa h�je, � lugar de uma das teledramaturgias de melh�r qualidade em t�d� mund�.

Em 21 de dezembr� de 2014, a teledramaturgia brasileira c�mplet�u 63 an�s, a c�ntar c�ma n�vela “SuaVida Me Pertence”, deWalter F�ster, transmitida pela extinta TVTupi de Sã� Paul�,inaugurada em 1950, de pr�priedade d� Sr. Assis Chateaubriand. Esta n�vela fic�u n� ar de 21de dezembr� de 1951 a 15 de fevereir� de 1952, c�ntand� c�m apenas 20 capítul�s de duraçã�de apr�ximadamente 15 minut�s. Naquela ép�ca, nã� havia ainda víde� tape, de m�d� que an�vela f�i exibida a� viv� duas vezes p�r semana.

Apenas em 1963 que tivem�s uma n�vela diária chamada “2-5499 ocupad�”, de DulceSantucci, transmitida pela TV Excelsi�r.

Este fenômen� cultural que é a telen�vela, só teve seu primeir� grande sucess� de audiênciaem 1964, c�m a n�vela “o Direit� de Nascer”, exibida pela TVTupi. F�i a partir desta pr�duçã�,e graças à audiência, que se inaugur�u n� Brasil a pr�duçã� sistemática de n�velas, que aindah�je, faz c�m que milhares de pess�as parem suas atividades e reclinem-se em suas p�ltr�naspara ac�mpanhar as tramas ali escritas e dramatizadas.

A�s p�uc�s �s enred�s f�ram se p�pularizand�, � linguajar f�i se apr�ximand� da grandemassa, e histórias d� c�tidian� de um trabalhad�r em sua luta diária pel� própri� sustent�, e per-s�nagens ric�s e glam�ur�s�s vivend� na �stentaçã�, f�ram se mescland� a histórias de am�r.Essa f�i a fórmula, que ainda h�je persiste, salv� algum tema n�v� �u inusitad�. A primeira n�-vela que deu essa guinada f�i “Bet� R�ckfeller”, de Bráuli� Pedr�s�, exibida pela TV Tupi entre1968 e 1969; tratava da realidade brasileira, c�m uma linguagem mais c�l�quial.

Este breve percurs� históric� já n�s indica que há sempre uma intenci�nalidade na pr�duçã�de uma n�vela, que visa sempre a audiência, e esta só é adquirida quand� atinge � que as pess�asdesejam, e a� l�ng� d�s an�s, f�i iss� que aut�res, escrit�res e diret�res se esf�rçaram em desc�brir.

Perc�rrend� um p�uc� desta história, p�dem�s n�s perguntar: � que leva uma pess�a ac�m-panhar assiduamente várias n�velas, reservand� um temp� de sua vida, se de algum m�d�, �senred�s sã� quase ritualístic�s, se repetem apenas c�m r�upagens diferentes? Para se chegar aessa resp�sta, precisam�s antes, resp�nder a uma questã� primária: o que é uma n�vela?

De m�d� geral, p�dem�s dizer que uma n�vela é um pr�dut� capaz de atingir � imaginári�c�letiv� de um p�v� e f�mentar uma cadeia de representações. Ela é a certeza de uma ilusã�bem c�nstruída, capaz de f�mentar, dentr� dessa relaçã� imaginária, uma entrega d� espectad�r,de m�d� a pr�duzir efeit�s, inclusive sentimentais, c�m �s pers�nagens que ele se identific�una trama. P�dem�s dizer que � telespectad�r se aliena a� pers�nagem que mais � atrai, send� acausa de sua alienaçã� uma identificaçã� bem definida.

Um aspect� que deve ser levad� em c�nsideraçã� n� t�cante a� desej� e a� narcisism� queas n�velas implicam n� sujeit�, é que a� pr�m�ver um espelhament� pela via da identificaçã�c�m determinad�s pers�nagens, � telespectad�r passa a apr�priar-se p�r vezes, de uma mai�rpercepçã� de sua c�ndiçã� de excluíd�, p�is � apel� a� c�nsum� e a� m�d� de vida da ficçã�,é inc�mpatível c�m a realidade c�tidiana, p�is se f�ssem exatamente iguais a� que as pess�asexperimentam em seu dia a dia, nã� causariam a demanda da falta, e esta nã� incitaria � desej�,de m�d� a nã� se t�rnar atrativa. S�b este aspect�, uma n�vela faz sucess� p�rque pr�m�ve afalta de alg� em alguém que já vive s�b a égide de uma ausência in�minável.

Do ponto de vista social, e vale citar, esta medida de se pensar o sujeito pelo seu poder dec�mpra, imp�ssibilita n�vas f�rmas de s�ciabilizaçã�, de c�nstruções s�lidárias, e pr�m�vemsentiment�s de inferi�ridade. Tud� iss� p�st� a alguém c�m um Eg� frágil, p�r exempl�, p�detrazer sérias c�nsequências, inclus� � aument� da angústia, testand� � temp� t�d� a capacidadeque � indivídu� tem de t�lerar as frustrações imp�stas pela nã� realizaçã� de seus desej�s.

As n�velas n�s implicam psiquicamente, p�rque sempre trazem temas ligad�s às lembranças,às rec�rdações, à sexualidade e a questões afetivas, dand� ensej� à ativaçã� das dimensões d�

sujeit�, que quand� ativadas, atualizam-se epr�m�vem as identificações. Elas alimentam �imaginári� de uma vida que nã� c�rresp�ndeàquela vivida pel� telespectad�r, �nde � s�fri-ment� é p�r vezes da �rdem d� insup�rtável.

Percebem�s, p�rtant�, que mais que umentretenimento, uma telenovela, pelo poderimagétic� e das identificações que ela pr�m�-ve, afeta diretamente t�da uma massa, que dealguma maneira, busca refúgi� na ficçã� paravivenciar aquil� que g�staria de ter sid�, deser; �u de repudiar, via pr�jeçã�, aquil� queab�minam em si, � que explica as relações deam�r e ódi� que �s pers�nagens causam n�stelespectadores.

Uma novela nunca é só uma novela paraquem assiste, nã� s�b � p�nt� de vista psíquic�.Nada que n�s atravessa é tã� in�cente e in�-fensivo, sempre somos implicados de algumaf�rma, e é c�m esse �lhar que um analista �b-serva t�d� e qualquer fenômen�, seja cultural,s�cial, p�lític� �u religi�s�. S�m�s seres de im-plicaçã�. o que fazer c�m iss�? Implicar-n�s.

REFERwNCIASLACAN, J. (1998) Escrit�s in: “O estágio do espelhocomo formador da funuão do eu”. Tradução Vera Ri-beir�, Ri� de Janeir�: J�rge Zahar, 1998ZIMERMAN, D. Fundamentos Psicanalíticos: teoria,técnica e clínica – uma abordagem didática. PortoAlegre: Artmed, 1999KAUFMANN, Pierre. Dicionário Enciclopédico dePsicanálise – O Legado de Freud e Lacan. Rio de Ja-neir�: J�rge Zahar, 1996

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Tensão entre potência e vulnerabilidade, perambulação an-gustiada dos personagens e uso do espaço físico como elemento

dramático tornam filme de Karim Aïnouz indispensável

Quant� melh�r � filme, quant� “mais cinemat�gráfic�” ele f�r, mais vã será a tentativade reduzi-l� a uma sin�pse. Tentar traduzir em palavras um Blow-up ou um Terra emtranse é c�m� pretender repr�duzir c�m uma caneta Bic uma tela de Le�nard�, �u

dar c�nta de uma sinf�nia de Beeth�ven cantar�land� sua mel�dia.Pois bem. Praia do futuro, de Karim Aïn�uz, é um desses filmes cuj� entrech� serve apenas

c�m� esb�ç�, c�m� planta (n� sentid� arquitetônic�) a partir da qual se ergue sua sutil c�nstruçã�.Nessa história em três at�s de um salva-vidas de F�rtaleza (Wagner M�ura) que vai a Berlim

atrás de seu amante alemã� (Clemens Schick), � que enche a tela e impregna �s sentid�s d�

CIN

EMA SoBRE o ATUAL CINEMA BRASILEIRo

ALGO DE ANTONIONI EM

PRAIA DO FUTUROPor José Geraldo Couto

José Geraldo Couto é crític� de cinema, j�rnalista etradutor. Trabalh�u durante mais de vinte an�s na Fo-lha de S. Paulo e três na revista Set. Publicou, entreoutros livros, André Breton (Brasiliense), Brasil: Anos60 (Ática) e Futebol brasileiro hoje (Publif�lha). Parti-cipou com artigos e ensaios dos livros O cinema dosanos 80 (Brasiliense), Folha conta 100 anos de cine-ma (Imag�) e Os filmes que sonhamos (Lume), entreoutros.* Texto autorizado para publicauão por José Geral-do Couto, e publicado originalmente no blog do IMS(Instituto Moreira Salles). - http://www.blogdoims.com.br/http://�utraspalavras.net/p�sts/alg�-de-ant�ni�ni-em--praia-d�-futur�/

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espectad�r sã� as sensações c�ntraditórias de is�lament� e busca de c�ntat�, de p�tência e vul-nerabilidade, afeto e incomunicabilidade.

Deslocamento e mergulho

Num sentid� ainda mais essencial, quase gráfic�, � filme p�de ser vist� c�m� a c�njugaçã�de d�is m�viment�s: um h�riz�ntal, de desl�cament� ge�gráfic�, e �utr� vertical, de mer-gulh� interi�r. Já na primeira sequência, emp�lgante e sem palavras, essas duas c��rdenadasespaciais e dramáticas aparecem c�m f�rça: d�is amig�s atravessam de m�t� uma extensã�de dunas, dep�is mergulham n� mar e um deles se af�ga, apesar da tentativa desesperadade salvamento.

É desse vazi�, dessa lacuna – literal, já que � c�rp� d� m�t�queir� m�rt� nã� é enc�ntrad� –que se �rigina t�d� � m�viment� d� pr�tag�nista. É s�b � sign� da ausência e da inc�mpletudeque se dará a sua trajetória.

Em vári�s m�ment�s se expressa lindamente essa qualidade um tant� espectral d� pers�na-gem: quand� ele caminha s�zinh� p�r um des�lad� parque berlinense, de árv�res sem f�lhas;quand� c�nversa c�m uma atendente de bar, sem que um c�mpreenda � �utr�; quand� entranuma sala de aula vazia e tenta decifrar � que está escrit� num quadr�, s�b a br�nca inc�mpre-ensível de um vigia.

Duas imagens f�rtíssimas e c�ntrastantes ficam impregnadas na retina e, a meu ver, balizamf�rmalmente � filme: � vertigin�s� aquári� vertical em que � pr�tag�nista é reenc�ntrad� pel�irmã� (Jesuíta Barb�sa) em Berlim; e a “praia sem mar” que se estende a perder de vista na név�a,h�riz�ntalidade pura em que �s irmã�s desgarrad�s finalmente se rec�nciliam.

Arquitetura em movimento

Rotular Praia do futuro de “filme gay”, além de emp�brecer � seu alcance, também dist�rce �seu sentid�, p�is, apesar de prevalecerem nele de m�d� franc� e c�raj�s� as relações h�m�-eróticas, � víncul� fundamental ali nã� é entre � salva-vidas D�nat� e seu nam�rad� alemã�,mas sim entre Donato e o irmão caçula.

Aquaman e Speed Racer, apelid�s que eles dã� um a� �utr�, inspirad�s n�s desenh�s anima-d�s, nã� deixam de ser uma f�rma de sintetizar as duas linhas mestras d� filme – � desl�cament�e � mergulh�, a busca de c�ntat� e a intr�specçã�, � h�riz�nte e as pr�fundezas.

Há em Praia do futuro algo do Antonioni de A aventura e de O passageiro, Profissão: repórter(atençã�: ist� nã� é uma c�mparaçã�, só uma referência), nã� tant� pela perambulaçã� angus-tiada d�s pers�nagens, mas principalmente pela c�nfiguraçã� d� espaç� físic� c�m� element�dramátic�. Nessa arquitetura em m�viment� nã� há um únic� enquadrament� fr�ux�, desneces-sári� �u meramente �rnamental. o ambiente nã� é mer� cenári� �nde se desenr�la � drama: eleé o drama. A isso damos o nome de cinema.

Trecho do filme Praia do Futuro– (de irmãopara outro irmão):

“De Aquaman pra Speed Racer:Te escrevo pra dizer que eu não morri.Eu só voltei pra casa.Aqui, nessa cidade subaquática, tudo pra mimfaz mais sentido.Eu não preciso me esconder no mar pra mesentir em paz.Nem preciso mergulhar pra me sentir livre.E sempre que me perguntam como era aí, dolado de fora…eu conto de um menino que acha que não temcoragem…mas é o cabra mais corajoso que eu já vi.Magricela, quando todo mundo é forte.Voz fina quando todo mundo é macho.Pés pequenos, quando todo mundo é firme.Conto do menino e digo que ele é o meuirmão.Que ele sou eu, no dia que eu tiver coragem…de aceitar o quanto que eu tenho medo dascoisas.Porque tem dois tipos de medo e de coragem,Speed.O meu, é de quem finge que nada é perigoso.O seu é de quem sabe que tudo é perigosonesse mar imenso.”

Tel: 15- 3329-3130Cel: 15- 99773-0130

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- Antonio, nos fale um pouco sobre sua história na música. Minas Gerais in-fluenciou sua música? E o Clube da Esquina?

Cresci e vivi até �s 24 an�s em Bel� H�riz�nte. Meu pai é clarinetista pr�fess�r daUFMG e minha mãe music�terapeuta também pr�fess�ra na mesma esc�la. T�-cava pian� muit� bem quand� pequen� mas desisti p�rque ganhei uma bateria.E f�i através desse instrument� que c�mecei meu caminh� na música. Ad�rava �Michael Jacks�n. ouvi muit� r�ck de t�d� tip�. G�stava d� Sepultura, S�undgar-den, Nirvana e várias �utras d� r�ck e d� metal feit� na ép�ca. Ad�rava � Yes, �Genesis, � Pink Fl�yd, Hendrix, p�r causa d� meu pai e d�s amig�s mais velh�s...Ali eu percebi que existia uma c�nexã� c�m vári�s �utr�s aspect�s musicais quenã� s�mente � r�ck. Que esses gêni�s da música tinham influência de muita c�i-sa. Dep�is de um cert� temp� a música eletrônica me marc�u também. Ia muit�às festas e g�stava de fazer essa música n� c�mputad�r. C�nvivi c�m muitas p�s-sibilidades musicais sem prec�nceit� e curtind� muit� a infância, ad�lescência ejuventude. Sempre tive muit�s amig�s bem mais velh�s d� que eu. Uma pess�aque me apresent�u muita música f�i � Pedr� Trig�, grande baixista, amig� maisantig� que tenh�. T�cam�s junt�s em banda de r�ck e até h�je dividim�s palc�sem vários sons diferentes. Sempre tive alguma noção de como era viver de músicae da real necessidade de se estudar música. E ad�rava estudar muit� meu instru-ment�. T�car bem! E nesse perí�d�, entre 12 e 17 an�s de idade, participei devári�s festivais de música, fazend� aulas de instrument� e vivend� experiênciasde banda sinfônica, big band, grup�s de percussã� e c�isas d� tip� (Em Tatuí,Camp�s d� J�rdã�, Diamantina, our� Pret�, Curitiba; t�das essas cidades quesediavam �s festivais). Em mei� a iss� tud� eu t�cava, tant� nas bandas c�ver der�ck, quant� na n�ite c�m músic�s da cena instrumental. C�mecei a t�car algu-ma c�isa de jazz e b�ssa n�va instrumental c�m 11 an�s de idade c�m � Paulã�Lacerda, falecid� amig� tr�mb�nista pr�fess�r da UFMG e p�r iss� muit� amig�da família e d� meu pai. Eu ia ver meu pr�fess�r t�car muit�!! E ele, dep�is dever que eu adquiri ali uma certa experiência na bateria, me b�tava pra dar uma“canja”. A partir de um m�ment�, t�da vez que eu ia ver ele eu dava essa canjaque na verdade era uma super mega esc�la pra mim. Esse mestre f�i � Limã�.F�i ele quem me inseriu na cena da música instrumental de BH. Eu � substituíamuit� em um cert� perí�d�. Quand� eu tinha de 14 a 16 an�s de idade ach�...

M�SICA NoVAS “VoZES” DA M�SICA

BRASILEIRA - ANTONIO LOUREIROpor Caio Garrido

onde estã� as v�zes, músic�s e artistas que estariam traçand� �s caminh�s daquil� que seria a música c�n-temp�rânea brasileira?

F�i tentand� resp�nder a essa pergunta que buscam�s c�nhecer um p�uc� da trajetória d� c�mp�sit�r emulti-instrumentista Antonio Loureiro.

Passeand� entre a cançã� e a música instrumental, L�ureir� é um d�s exempl�s mais vivazes e bem vind�sda música brasileira atual. Inspirad� p�r sua herança musical, vinda d�s c�nt�rn�s regi�nais d�s m�ntes deMinas e �utras cercanias, L�ureir� inspira seus �uvintes c�m seu talent� e habilidade a serviç� da música,p�tencializand� a música instrumental e nã� a deixand� estéril.

C�m d�is disc�s s�l� já lançad�s, L�ureir� traz em sua caixa de s�n�ridades t�da a mistura que � carac-teriza: �s acent�s regi�nais, a influência d� jazz c�ntemp�râne�, da cultura p�pular brasileira, entre �utr�s.Neles, apresenta um esmer� n� cuidad� c�m a pr�duçã� e c�m �s detalhes, em cada n�ta e timbre, p�tencia-lizand� as harm�nias em suas c�ntiguidades. Seu últim� álbum s�l� tem � sugestiv� n�me “Só”, que traz di-versas participações especiais, c�m� a de Siba, Tatiana Parra, Frederic� Heli�d�r� e �utr�s grandes parceir�s,que sempre � deixam bem ac�mpanhad�.

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Iss� me fez t�car c�m a mai�ria d�s músic�sda música instrumental de Bel� H�riz�nte. Sóquand� entrei na universidade que c�mecei aconviver e tocar com um pessoal mais perto daminha idade e que fazia “�utr�s s�ns”: RafaelMartini, Krist�ff Silva, Felipe J�sé e Frederic�Heli�d�r�; que marcaram essa ép�ca. Quan-d� me perguntam s�bre � Clube da Esquinaeu sempre dig� que c�mecei a �uvir mesm�e c�nhecer mais, nã� só � Clube, mas tud�que c�nheç� de música brasileira, mais tarde,a partir d�s 16. A� mesm� temp� eu estavasempre t�cand� esses s�ns na n�ite. Em BHé comum ver um grupo instrumental tocandoversões d� Milt�n, d� T�ninh� H�rta. Mas nã�c�nhecia desde pequen�. Fui entender a im-p�rtância de Elis, Milt�n, Gil, Caetan� e essasfiguras t�das da MPB mais tarde. Entendi maisainda quand� ac�mpanhei � T�ninh� H�rta epercebi a imp�rtância dele na história da mú-sica brasileira. o jeit� dele fazer música meinspira muito. É livre, é canção, mas não é...Nã� imp�rta...

“No mercado não funcionaassim; Se você ouve o que o mer-cado te vende, na rádio, TV, tudoaquilo é 50 vezes mais “fácil, ex-tremamente fácil”, justamente praentrar no seu cérebro e não sair

nunca mais! Eu não estou a fim deinvadir o cérebro de ninguém...

Deus me livre!”

- Como você vê hoje a música brasileira?Porque é tão difícil, compositores e artistascomo você alcantarem uma melhor noto-riedade, tão diferente da época dos festivaisnos anos 60, em que num mesmo período detempo surgiam artistas de real qualidade daMPB para o grande público? Como você achaque se posiciona neste cenário hoje?

Basta v�cê c�mparar �s festivais de televisã�dessa ép�ca e �s de h�je. A� mesm� temp� eunã� v�u p�r esse caminh� da c�mparaçã� deépocas pra se pensar estética, produção musi-cal e formas de consumo de arte e cultura. Sãomuit�s �s fat�res que fizeram e fazem a diver-sidade e qualidade caírem n�s grandes mei�sde c�municaçã�. Além de fazerm�s parte daera da imagem... Tud� é imagem! Nã� s�u amelh�r pess�a pra esclarecer s�bre as muta-ções d� mercad� f�n�gráfic�, mas eu entend�que se transf�rm�u muit� e ach� que tem cadavez mais dinheir� env�lvid�. E ach� muit�difícil equilibrar a sensibilidade e f�rça paraa arte, c�m a técnica e talent� para se fazerdinheir�. ou seja, a meu ver, quant� mais di-nheir� env�lvid�, men�s arte, p�is � �bjetiv�final é � lucr� e nã� � enriqueciment� culturalde um públic�, de um p�v�. H�je tem muitac�isa b�a send� feita n� Brasil. Nã� se p�de

dizer � c�ntrári�. Nã� s�u e nunca serei � velh� reclamã� que c�l�ca a música independente ea pr�duçã� atual n� fracass�, n� lix�. o Brasil é en�rme e nã� dá c�nta d� tant� de c�isa send�feita. Fat�. Tem�s entã� que c�ntinuar fazend� alg� que acreditam�s: mexer c�m a sensibilidadedas pess�as, independente da n�t�riedade �u públic� que iss� traga para � artista. Faç� c�mam�r para � públic�, mas c�nquistá-l� nã� é meu �bjetiv�. Meu �bjetiv� é passar uma mensa-gem, um sentiment�, uma ideia, um m�ment�, mexer c�m � c�rp�, a dança, um c�nheciment�,uma reflexã�, uma sensaçã� (b�a �u ruim); Trabalhar � sens�rial e imprimir alg� na memória. E éa partir daí que vai se f�rmar � públic� que vai �uvir � que faç�. Nã� me imp�rtand� se sã� mi-lhões �u dezenas de pess�as. N� mercad� nã� funci�na assim; Se v�cê �uve � que � mercad� tevende, na rádi�, TV, tud� aquil� é 50 vezes mais “fácil, extremamente fácil”, justamente pra en-trar n� seu cérebr� e nã� sair nunca mais! Eu nã� est�u a fim de invadir � cérebr� de ninguém...Deus me livre! Música b�a, bem feita, genial, c�m grandes artistas, surge h�je assim c�m� sur-giam antigamente. Só nã� estã� na TV, rádi�, �u j�rnal, a t�da h�ra. Quem está na grande mídia,paga para estar ali e precisa dela para m�vimentar um negóci�. Mas existe a internet e na internettem espaç� pra t�d�s... Ainda... A gente tem que trabalhar c�m � que tem e se encaixar e abrir�s espaç�s p�ssíveis, c�m a f�rça e as p�ssibilidades que tem�s.

- Você cometou na bateria e na percussão, certo? Você transcendeu a bateria tocando outrosinstrumentos? O tocar outros instrumentos te deu a possibilidade de olhar e tocar a bateria epercussão de outro modo? Como você se enxerga como músico?

Sim. A bateria tem suas características técnicas e suas linguagens. Lev� iss� para �s �utr�sinstrument�s que t�c�. Tenh� mais experiência, técnica e intimidade c�m a bateria. Mas t�caroutros instrumentos e aprender vários outros, me ajuda na produção musical, nos arranjos, nac�mp�siçã� e na c�municaçã� c�m �s músic�s que trabalh�.

- Grande parte de seu CD “Só” foi gravado por você tocando todos os instrumentos. Como éencarar o processo de produtão e gravatão desta forma?

É uma �utra f�rma apenas. É mais fácil p�r um lad�, p�rque eu simplesmente grav� uma ideiaque já f�i f�rmada n� arranj� e tir� um s�m que já está prec�ncebid�. organiz� tud� em bl�-c�s e mais bl�c�s de an�taçã� e esb�ç�s de arranj�. P�r �utr� lad� é difícil, p�is nã� tem umpr�dut�r escutand� e dizend� se está b�m �u ruim aquele take gravad�. Entã� leva mais temp�para amadurecer a ideia e �uvir distanciad� d� ambiente de intérprete. Trabalhar dessa f�rmaexige que v�cê separe bem � trabalh� que v�cê faz c�m� intérprete d� trabalh� de pr�dut�rd� disc�. o inseparável é justamente � que dá � resultad� desse trabalh�.

“... quanto mais dinheiro envolvido, menos arte, pois o objetivo finalé o lucro e não o enriquecimento cultural de um público, um povo.Hoje tem muita coisa boa sendo feita no Brasil. Não se pode dizer ocontrário. O Brasil é enorme e não dá conta do tanto de coisa sendo

feita. Temos então que continuar fazendo algo que acreditamos: mexercom a sensibilidade das pessoas, independente da notoriedade ou pú-blico que isso traga para o artista. Faço com amor para o público, mas

conquistá-lo não é meu objetivo.”

- Você canta, toca, compõe, e passeia entre a música instrumental e a cantão. Quais as difi-culdades que encontrou nesse processo?

Mais natural imp�ssível. G�st� d� instrumental e da cançã�, assim c�m� g�st� d� d�ce e d�salgad�. Às vezes � d�ce antes, às vezes misturad�... Assim c�m� g�st� da pintura e d� cine-ma. Enfim, g�st� da mistura (em d�ses diferentes), das características em separad�, d� clássic�,d� c�ntemp�râne�. Tud� inspira. Nã� tenh� as características de um especialista. S�u men�sf�cad�. Dispers� e feliz p�r iss�.

-----Entrevista a ser publicada p�steri�rmente também n� bl�g Música Contemporânea –http://music�c�ntemp�rane�.bl�gsp�t.c�m.br/Para ac�mpanhar a música “Luz da Terra” d� disc� “Só”, acesse:https://www.y�utube.c�m/watch?v=lkJg-BSM0-8

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T�d�s f�rtes � suficiente se atreveram a sentar n� perímetr� de quatr� cadeiras em t�rn�dela, a c�zinheira da casa. Eram também �s suficientemente espert�s para analisar as lem-branças da história dessa c�zinha, c�m uma ajudante implantada para equilibrar � que

tombasse um pouco, nos bastidores.Quant� temp� restaria para que perdesse � vig�r? Cada c�ntinuidade era vista c�m� alívi�

para se seguir em paz, antes que t�d�s eles se f�ssem.Seus braç�s nã� só rec�lhiam �s j�rnais, c�m� aguavam �s frut�s de alpendre e revezavam

velas de 7 dias guardadas n� p�rã�.Mas p�r c�nta de t�d�s �s c�rp�s c�m seus múltipl�s p�nt�s de vistas & referências, que as-

sistiam a� temp� entre eles passar, parecia que sua viagem era a mais avançada – mesm� �utr�squedand� durante � caminh�.

Quand� enc�stavam, �s mesm�s p�nt�s regavam-se p�r rituais de saudações na esperançade um futur� mai�r, interpretand� sinais d� passad� só ag�ra, saudand�, temer�samente, � que� temp� faz p�r nã� deixar nada viv� estancar & permanecer parad�.

o temp� dela, pel� � que viam, parecia viver em seguidas n�ites de núpcias. E era c�m pre-sentes, vivid�s junt�s, que marcavam � l�ng� temp� uns d�s �utr�s & criava experiências futurasc�m resultad�s bem dep�is. Entã�, assim, � faziam c�m suas f�rmas.

E c�m� a dama se prepara bem para estes dias de enc�ntr� quand� � temp� de t�d�s estavaválido.

o alm�ç� era servid� em diferentes escalas de parentes, que tinham um p�nt� de c�nver-gência para ac�mpanhar � destin� d� enigma que �s traziam até ali – c�m t�da a ceia após uman� a�s vent�s de trabalh� & insistentes plantações.

Eram �it� �s que cabiam além dela e � primeir� que se sent�u a mesa.Em seguida: t�d�s aband�nam � televis�r, pedaç�s de j�rnais, alguma andança, telef�ne �u

assunto paralelo ao foco da inauguração da grande távola forrada de tecido e plástico.“Famílias que se alimentam unidas tentam permanecer unidas”, beirava � resum� planand�

pela c�nfiança de se servir c�midas & agradeciment�s.Uma faixa da etapa era queimada quand� a primeira entrada de saladas já estava s�bre

a mesa e a h�nra d� únic� h�mem velh� d� terren� murad� c�m pedras (satisfeit� p�r suas�brigações e desiludid� c�m a real mudança de alguma delas) se m�vesse dentr� de um c�rp�deixand� para trás � rest� de um brinde particular diári� em um c�p� c�m gel� derretend� a�spoucos.

Seguia pela frente, com passos de soldado, não para a ponta da mesa, mas a sua direita, dei-xand� clar� para quem quer ver verdadeiramente quem � guiava naquil� tud�. Terminava, assim,p�r ap�star � restante das fichas em sua ideia de futur� – mesm� já estand� nele.

Era entã� precis� um v�luntári� para retirar � c�p� sem c�nfiar que um pedaç� de papelimpedisse d� gel� virar uma mancha na mini bancada de madeira, servida também para ap�i�de prat� individual quand� se p�de c�mer em grup� ac�mpanhand� � televis�r. Era para quemse �rgulha de p�ssuir um teatr� a� fund� de casa, que servia também c�m� vigia em estádi�sde futebol.

Entre passadas de prat�s e far�fas, equipes diferentes de uma mesma família, unidas paracelebrar � desej� antig� de saudar � que se perde, arriscava dizer que, p�r sinal, neste enc�ntr�de natal, fazem�s mais aniversári�s pelas urgências c�mem�rativas d� que batidas f�rçadas deritm�s lent�s. S�nhavam c�m� b�las de água levitand� em jardins, sem querer declarar que ésempre � temp� que faz c�m que se percam uns d�s �utr�s além de nós. Pensava em nã� estarali � que nã� era muit� de alm�ç�, um pesquisad�r de h�ras vagas �u c�merciante para seguirviagens, mas vivia-se em grupos e esforçavam-se para não partir.

o natal.Dispersaram-se t�d�s c�m seus presentes, distrações & agradeciment�s.Antes de deixar � que era n�v� t�mar pel�s bastid�res de cada um deles, havia � espaç� de des-

c�berta e de us� d�s utensíli�s. Era neste temp� que � diál�g� para um n�v� ac�ntecia. E era apóseste pequen� laps� da realidade que de alguma f�rma p�deria se n�mear � que chamaram de natal.

CoNTo

S QUANDoVÁRIoS PoNToS

SE ENCOSTAMLucas Arantes

Lucas Arantes é escritor e jornalista formado na Uni-versidade de Ribeirão Preto. É membro fundador doEspaç� A C�isa e da Cia de Teatr� A C�isa. C�ncluiu,em 2009, o curso de Formação em Psicanálise noNúcle� Tav�la, mas nã� exerce a pr�fissã�. É aut�rd� Livr� “S�nid�s, D�cument�s Inúteis, P�emas naMesa P�sta �u � Clã d� Urs� da Fl�resta” (2007, Ed.Deriva), d� r�mance “o outr� Estranh�” (2009, Ed.Deriva), e do drama “Suspensão” (2009), encenadopela Trupe Acima d� Bem e d� Mal. Escreveu diversaspeças de teatr� que se t�rnaram espetácul�s encena-dos em Ribeirão Preto, São Paulo e outras cidades.Entre elas, está “Edifíci� L�nd�n” (2012, Ed. C�ruja),tragédia que retrata de f�rma ficci�nal um fam�s�h�micídi� �c�rrid� n� Brasil em març� de 2008 (�chamad� “cas� Isabela”). o espetácul� e � livr� es-tão proibidos de circular desde março de 2013, apósuma açã� judicial que grup� e aut�r já rec�rreram eaguardam resp�sta judicial. o c�nt� “Quand� vári�spontos se encostam”, presente na edição desta revis-ta, integra o livro “Menos”, ainda inédito.

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É precis� ir para falar s�bre �s que estiveram.A senh�ra sempre s�ube pular de an� após an� esfregand� a eficiência que um pedaç� de

terra equipad� trivialmente p�de pr�p�rci�nar de aliment� a uns & �utr�s.S�brevivia de j�rnais, d�bradas de páginas & n�velas, empilhand�, papel & tinta, riscand�

t�d� � espaç� em branc�, em palavras & cruzadas. C�m tantas tardes, chás & t�rradas, a cadan�va j�rnada mental, a cada melh�ria & desc�berta, é beliscad� � impuls� da c�zinha a� lad�d�s que s�bram pel�s cant�s de cada dia, nas tardes quentes da semana.

P�dia-se ler, c�mer, beber, ficar ali. Gest�s tã� necessári�s para entrar n� temp� c�m privilé-gi� de c�nhecer a história & funci�nament� de um grande b�nsai diári�.

De outros natais foram sendo feitos.Foram-se partindo aos poucos, com seus defeitos.outr�s f�ram faltand�.Além do cansaço.Até que disse � que sempre p�deria:– Vive-se de duas maneiras, p�de acreditar: �u c�m� quem arquiteta r�mances, �u c�m�

alguém que só vive de ir a teatr�s. Esc�lha sempre quand� p�ssível. Nã� há rec�meç� para �sque nem c�meçaram.

E vir�u-se para cuspir seus car�ç�s de uvas na mã�, antes de me entregar alguns deles edecretar:

– Guarde sempre n� natal alguns p�nt�s próxim�s que se enc�stam.E ria pela tarde segura & vi�lenta.

Luís Henrique do Amaral e SilvaPsicanalistaCRP 71289

Atende adolescentes e adultos(faz também o trabalho de acompanhamento terapêutico (AT) )

Rua Massacá, 348, Alto de Pinheiros, São PauloTelefone: (11) 99115-8647

E-mail: [email protected]

PATRÍCIA LOUREIROPsicól�ga/ Psicanalista.

Crp: 67/196

Especialista em Psic�terapia Psicanalítica pela USP.Atendimento de adolescentes e adultos.

Endereç�: Rua Sã� Vicente de Paula, 95. Santa Cecília.(Próxim� a� metrô Marechal De�d�r�)

Telef�ne: 3822-4573E-mail: patricial�ureir�5@h�tmail.c�m

OTÁVIO D’ELIAPsicanalista e Psicólogo

CRP 44591-1

atende adolescentes e adultos

Rua Santo Amaro, 71, 17º andar, cj.17-B -Bela VistaTelefones: 11 3455-9775 /Celular: 11 99249-7452

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1

ARTE

A pedra, minério estéril,Sem vida e sem nerv� exp�st�,

De textura tã� c�ncretaQue � intern� e � extern� se igualam.

Sem encanto e sem medidaSempre concisa e concretaCede, ao apelo do tempoE a� j�g� hábil das mã�s:

Pedra aprimora-se em corpo.

A pedra forjada em pedraPela mã� d� ser human�Perde a sisudez primária:Reta, angular ou lascada,

o que era apenas imprópri�Ganha f�rma e precisã�.

Seja casa ou seja estátua(�u seja um mínim� �bjet�)

Uma pétrea s�lidezGanha graça feminina.Medra em seu interior

o segred� d�s pr�dígi�s.o que eram perdas e pedrasAprim�ra-se em silênci�.

Seja casa ou seja estátua(�u seja um mínim� �bjet�)

o perfil purificad�D� minéri� trabalhad�Tem � nítid� c�nt�rn�

De quem sabe c�nt�rnar.Seja casa ou seja estátua

(ou seja um mínim� �bjet�)o minéri� trabalhad�

Recobre-se de mais vida.

A vida mina no corpoE na f�rma já c�nclusa

Todo o dentro e todo o foraNuma perfeita permuta

Revelam vontade própria.o sentid� entã� irr�mpe:E � que antes só era estéril

Ultrapassa � própri� h�mem.

2

Era de Er�sErrarErr�Terra

Tantas almas toscasPrazer privand� desej�s

TerraReta dos corpos

SoproPr�eza pr�cura

Viragens

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Vive à pr�cura d� que nã� tem n�me;Vive à pr�cura d� que nã� tem f�rma;E s�bre � branc� papel desta vidaDeixa cair � que nunca n�s s�bra.

A justa medida d� que pr�curaLimita-se c�m a imagem da fl�r.Nã� a uma fl�r de c�mum jardim,

Mas à pelágica, distante fl�r.

Pr�cura n�s espelh�s as imagensQue migram d� reflex� à f�rma arisca;

Imagens que nã� findam, p�rque a línguaNã� lhes sabe a c�rreta f�rma física.

Deseja sem saber � que deseja,P�rque � n�me cert� nã� tem um c�rp�:Tem a f�me que sempre n�s c�ns�me;F�me que migra da imagem a� c�rp�.

Vive à pr�cura d� c�rp�, da f�rmaQue nã� existe mas insiste; f�rma

vaga que t�da língua a� c�nt�rná-laprecisa viva imagem que a def�rma.

4Paixão

A n�ssa ideia fixaé uma c�rrenteza

que carrega c�nsig�sua própria natureza.

A n�ssa ideia fixavive para si mesma:ergue c�m� arquitet�a extensã� da certeza.

A n�ssa ideia fixafixa na vertical

t�da a nudez d� pânic�,que é sua carne vital.

A n�ssa ideia fixac�rta c�m� uma faca;e na avidez da carne

imprime � que (n�s) falta.

A n�ssa ideia fixanunca se desespera:

c�ns�me em seu silênci�� temp� que m�dela.

A n�ssa ideia fixaé vivaz pr�fetiza:

gera em seu próprio ventre� filh� que precisa.

A n�ssa ideia fixa,quand� se realiza,

rompe o próprio cordãoparindo a eterna sina.

A n�ssa ideia fixasemeia sem cessar

n� chã� de n�ssa carneos grãos do começar

A n�ssa ideia fixatece tal como parcas� invisível c�rdã�:

a vida e � que n�s falta.

A n�ssa ideia fixaa� desfazer �s nós

(�s nós que n�s uniam)irmana sangue e pó.

PoEM

AS

QUASE POESIAosvald� Felix

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AUSwNCIA

A ausência nã� cede a apel�s.Nela, tud� � que se gastaNã� se finda, mas se afina:

o seu �fíci� é a falha.

A falha tece seu fi�Trabalhand� � rig�r d� aç�Para m�ldá-l� em rem�rs�:o prazer já nasce gast�.

Nua e c�ntínua a faltaÉ a feminina fome

Que consome sem medidao n�me d� que desc�bre.

Come o nome e a pura forma,Ingere � que se recusa

E gera em seu ventre f�rteA f�rça que n�s �culta.

Uma f�rça em que se senteAfiar na carne viva

o precis� fi� da vida:Fi� de med� e de delícia.

Uma f�rça que se expressaIncôm�da e c�m alarde:

Tal fl�r invertida e anônimaQue � h�mem transf�rma em arte.

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CARNEVIVA

Todo corpo no (teu) corponã� c�mp�rta anat�mia:é antes um despertar –Corte na justa medida.

Dele não escorre sangue,Nem se p�dem ver �s �ss�s:Vê-se uma matéria ausente –� que na vida é � incôm�d�.

o teu c�rp� é alma densa,que em pele e nerv� se adensa:

vibra pesad� silênci� –fome interior das perdas.

Todo corpo no (teu) corpotateia a gasta matéria:p�lida ag�nia íntima –

textura adversa da ausência

7Intersectão

o mutism� e � silênci�(dois irmãos inimigos)

Insistem em ficarLad� a lad� c�mig�.

o silênci� vem antes:Traz a sua grandezaEm f�rma de prelúdi�Para que eu rec�nheça

o quant� errei em mim.Mas é vago o meu ser

(tão amplo em seu limite)E, nele, � que está pert�

Perde � fi� e a pr�eza.o silênci� se enredaPelas tramas do simTecendo sua meta.

Constrói uma passagemUnind� ânsia e angústia –(faz p�nte s�bre abism�s)Desc�nhecend� � cust�.

Súbito, então, descubroMinhas pequenas glórias

Mas a glória se calao mutism� a dev�ra.

o mutism� dispensaos caminh�s estreit�s:Prefere � p�nt� fix�

D�s caminh�s rasteir�s.

Parado, resguardado,Entreg�-me a� que é ásper�

Vibra dentro de mimo med� que me cala

Osvaldo Felix é D�ut�r em Estud�s Literári�s pela UNESP e pr�fess�rde literatura. os p�emas aqui presentes fazem parte de seu livr� deestreia chamad� “Quase P�esia”, a ser lançad� em breve.

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e organizaci�nal, Analista e Supervis�ra emAnálise Bi�energética. Inscriçã� e demaisInf�rmações pel� telef�ne: (16) 3623-5786

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CICLO – BANALIDADE DOMAL NAATUALIDADEna Livraria da Vila – SP

o intuit� d�s debates é pensar s�bre a atuali-dade d� que ac�ntece na Cultura n� Brasil eno mundo, incluindo os últimos acontecimen-t�s p�lític�s, �s extremism�s que vem se m�s-trando, a falta de planejamento e o sufocamen-to nas grandes cidades, o descaso ambiental, oparad�x� e � eng�d� das n�vas tecn�l�gias, ea indústria cultural, entre �utras questões, natentativa de obter uma nova perspectiva so-bre � retrat� que é a n�ssa Cultura atual, umaCultura que nã� legitima � �utr�. Próximas da-tas agendadas : 23/05 – c�m Maria Rita Kehle Marcia Tiburi 19/09- c�m Emir T�mazelli eMarc�s N�breINFoRMAÇÕES: http://nucle�tav�la.c�m.br/sp/