Tcc cristiane nobre

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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS-UNISINOS CIÊNCIAS HUMANAS ESPECIALIZAÇÃO EM EDUCAÇÃO INFANTIL CRISTIANE NOBRE FIUZA JANELA PANELA CANELA: A CONSCIÊNCIA FONOLÓGICA INVADE A EDUCAÇÃO INFANTIL SÃO LEOPOLDO 2013

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Trabalho de Conclusão de Curso de Especialização apresentado como requisito parcial para a obtenção de título de Especialista em Educação Infantil, pelo Curso de Especialização em Educação Infantil da Universidade do Vale do Rio dos Sinos- UNISINOS Para citar: FIUZA, Cristiane Nobre. Janela - Panela - Canela: a consciência fonológica invade a Educação Infantil. São Leopoldo, 2013. 47 f. Monografia (Especialização em Educação Infantil). Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2013.

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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS-UNISINOS

CIÊNCIAS HUMANAS

ESPECIALIZAÇÃO EM EDUCAÇÃO INFANTIL

CRISTIANE NOBRE FIUZA

JANELA – PANELA – CANELA: A CONSCIÊNCIA FONOLÓGICA INVADE A EDUCAÇÃO INFANTIL

SÃO LEOPOLDO 2013

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Cristiane Nobre Fiuza

JANELA – PANELA – CANELA: A CONSCIÊNCIA FONOLÓGICA INVADE A EDUCAÇÃO INFANTIL

Trabalho de conclusão de curso de

Especialização apresentado como

requisito parcial para a obtenção do

título de Especialista em Educação

Infantil, pelo Curso de Especialização

em Educação Infantil da Universidade do

Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS.

Orientador: Prof. Dr. Luciano Bedin da Costa

São Leopoldo 2013

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Cristiane Nobre Fiuza

JANELA – PANELA – CANELA: A CONSCIÊNCIA FONOLÓGICA INVADE A EDUCAÇÃO INFANTIL

Trabalho de Conclusão de Curso de

Especialização apresentado como requisito

parcial para a obtenção de título de

Especialista em Educação Infantil, pelo Curso

de Especialização em Educação Infantil da

Universidade do Vale do Rio dos Sinos-

UNISINOS

Aprovado em ( ) ( ) ( )

BANCA EXAMINADORA

Orientador(a)

Professor Doutor Luciano Bedin da Costa

_______________________________________________________________

Segundo Avaliador(a)

________________________________________________________________

Professor Doutor Remi Klein

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Escrever é coisa séria, disse a mãe Depende de quem escreve - retrucou o menino...

De como escreve, De quando escreve

E porque se escreve. Se for o chefe é coisa séria

Se é formal é muito sério Formulário então, nem se fala

Para julgar, demitir, pedir e não dar permissão... coisa seríssima.

Mas há palavras que são pura diversão As que gargalham...

Graça, palhaço, fanfarrão As que flutuam...

pena, nuvem, bolha de sabão As saborosas...

Pipoca, brigadeiro, algodão E há aquelas que tornam os sérios

crianças de prontidão balanço, pega-pega, bicho-papão

Não sei, mas desconfio que a escrita deveria

mudar de mão.

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Trabalho realizado a partir de observações e

interações com jogos de consciência

fonológica na turma de Educação Infantil,

Pré II B, do CMEB Santo Inácio, Esteio, no

decorrer do ano de 2012.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO.....................................................................................................7

2 POETIZANDO A CONSCIÊNCIA FONOLÓGICA..................................9

3 O TERRITÓRIO DA CONCIÊNCIA FONOLÓGICA...............................11

4 O TEMPO DAS LETRAS........................................................................30

5 CONCLUSÃO.........................................................................................42

6 REFERÊNCIAS.......................................................................................45

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INTRODUÇÃO

Esta pesquisa busca investigar como os jogos de consciência fonológica

interferem no modo das crianças pensarem o processo de construção da escrita.

O trabalho tem como finalidade deslocar o foco do resultado e transpô-lo para

o processo, tendo como pressuposto seu elemento primordial: o som. Este será

abordado como ingrediente essencial na vida das crianças desde seus nascimentos

e a teoria do Ritornelo de Deleuze e Guattari alicerçará a pesquisa, apresentando o

conceito de (des)territorialização.

Creio que mais importante do que a apropriação do código seja o caminho

percorrido pelas crianças, a forma que elas constroem e moldam suas hipóteses,

modificado-as, colocando em xeque suas alternativas, se despindo daquilo que

julgavam regra para se refazer sempre que surge um novo componente. Pensar o

processo pela ótica da criança, tendo-a como autora deste, é sabê-la capaz e

produtora de seu conhecimento.

O trabalho apresentará a seguinte formatação: trechos que buscam embasar

a consciência fonológica como sendo uma habilidade metalinguística importante no

processo de aquisição da linguagem escrita farão uma trama com outros trechos

denominados aqui de “retratos sonoros”.

A palavra “retrato” no dicionário apresenta dois significados: o primeiro com o

sentido de paisagem, imagem, e o segundo advindo do verbo retratar, com o sentido

de mostra, expressão. Assim, podemos entender os “retratos sonoros” como trechos

carregados de poesia, frases, pensamentos, inferências feitas pelas crianças, além

de tentar captar as reflexões por detrás dos registros. Os retratos sonoros são os

aportes que dão voz e vez a infância. Todas as falas contidas nestes trechos foram

enunciadas pelas crianças nas aulas realizadas no decorrer de 2012. Sendo assim,

estes trechos dão a fluidez indispensável a qualquer trabalho que pretenda abordar

a infância ao mesmo tempo em que busca o contraponto à linha dura apresentada

no território da consciência fonêmica.

Esperamos que este texto seja um bom material de apoio para os que

desejam ingressar em seus estudos sobre esta habilidade metalinguística, além de

brindá-los com a expressividade da infância e a mostra de que as crianças se

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constroem, também, pela forma como se relacionam com os elementos que as

rodeiam e pelo modo como estes elementos lhes são apresentados.

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POETIZANDO A CONSCIÊNCIA FONOLÓGICA

“Uma criança no escuro, tomada de medo, tranquiliza-se cantarolando. Ela

anda, ela pára ao sabor de sua canção.” (DELEUZE & GUATTARI, 2005, p. 116)

...

É natural que as pessoas façam uma relação do silêncio com a paz. Tratam-

os até como sinônimo. Costumam convencionar o estar em silêncio com a produção

de uma sensação de harmonia com o meio, que acreditam só poder se tratar de

uma tremenda paz (de espírito). Concebem assim, o silêncio, que é o nada sonoro,

ou mais poeticamente como John Cage o definiu, afirmando que o significado

essencial do silêncio é a desistência da intenção, como sendo uma garantia do nada

que te assusta, do nada que te amedronta, do nada que te coloca em perigo; em

contrapartida, esse mesmo silêncio te confronta com a ausência do que te conforta,

do que te acalanta. O escuro é o caos. O silêncio também o é. Apenas o som, que

quebra o silêncio, traz em si a perspectiva de que ao seu redor existem elementos.

O tic-tac de um relógio, os passos apressados ou cautelosos no corredor, a

conversa quase sussurrada em outro cômodo, indicando que há vida(s) naquele

local e que é chegada hora de sentir-se seguro.

...

A mãe chama seu filho. Pronuncia uma vez seu nome. A criança sabe que o

tom é amoroso, mas não sabe que aquele conjunto fonético será usado toda vez

que alguém desejar sua atenção. Sua mãe seguirá repetindo esse mesmo chamado,

a mesma sonoridade sendo enunciada, letra por letra, sílaba por sílaba, fonema por

fonema, muitas vezes mais, até que a criança assimilará que aquele som é de sua

propriedade; sim, aquele som já a constitui.

...

Ao sentir-se em perigo, a criança chora e esse choro (som) tem o poder de

aproximá-lo de um cuidador. Ao ouvir o nome, agora já conhecido, pronunciado,

sabe que o caos novamente se estabilizará.

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...

Ao dormir a mãe canta para seu filho. A música além de embalá-lo, tem o

poder de deixar as pálpebras pesadas. O efeito não é apenas biológico. O que o

produz é a capacidade que o filho já tem de reconhecer que aquela canção é

entoada por quem velará o seu sono. A mãe, então, canta a cantiga “boi, boi, boi, boi

da cara preta, pega esse menino que tem medo de careta” e as palavras

pronunciadas (observe que espantoso) não dizem apenas de seu sentido, não são

mais, tão somente, signo (significante/significado); as palavras agora adquirem um

novo caráter. São um aviso, um informe de que lá fora tudo é calmaria. E o filho

dorme acreditando naquele som e no além do som.

...

Outros sons vão chegando. O canto dos pássaros, os brinquedos sonoros

que enfeitam o quarto, o choro da barriga vazia, o da fralda suja, o da manha e da

birra, e tantos outros que ainda aprenderá, o móbile sempre rodando e tocando, a

mesma música, as mesmas notas...

...

Ao decorrer dos anos, muitas vezes a criança recorre a sua cançãozinha, pois

ela é o fio que a devolve a estabilidade. Essa canção harmoniza. Ao mesmo tempo

em que, organiza o mundo, a criança organiza a si mesmo. Com todos esses

elementos sonoros, a criança estabeleceu o seu espaço. Ela compreendeu que a

canção tem o poder de retirá-la do caos e devolvê-la à zona de conforto. O círculo

está fechado e ela permanece no centro. Até quando?

...

A televisão ligada na sala, a chuva no telhado, o vento que faz bater a janela,

os risos das crianças nos quintais, os gritos, as buzinas dos carros, a máquina de

lavar, a campainha, o telefone, as ondas do mar, os sons construindo um arquivo

mental, separados inconscientemente em gavetas que acionam ora uma sensação

de medo, ora prazer/felicidade. O barulho de uma freada mais forte pode paralisar,

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indicando que uma situação de perigo aproximou-se, enquanto que uma música

agradável pode ser o convite para fechar os olhos e deixar-se levar pelos

pensamentos. Os sons fazendo-nos trilhar diferentes caminhos, experimentar

diferentes sensações.

O TERRITÓRIO DA CONSCIÊNCIA FONOLÓGICA

Nessa fase de reconhecimento, os sons estão no mundo e as crianças, à

medida que os vão vivenciando, passam a percebê-los, assimilá-los, porém eles não

são vistos de modo estruturado. Fazem parte do mundo e são reconhecidos,

embora ainda não pensados.

Guattari e Deleuze (2005) diriam que a criança construiu seu “em-casa”,

fazendo referência ao círculo criado por ela em seu entorno – o chamado território -,

povoado destes sons (re)conhecidos e que compõem o arquivo mental, remetendo

as mais variadas formas de relacionar-se com o mundo.

Apesar de a palavra território designar literalmente terreno, espaço físico,

localidade; a concepção dada pelos autores abarca um sentido além do geográfico,

caracterizando-se por “componentes do meio tornados qualitativos” (1998). O

território é um limitador entre dentro e fora. Ele marca propriedade, posse, domínio.

No entanto, as relações estabelecidas entre a criança e seu território vão além de

suas estruturas visíveis. A consciência fonológica invade este círculo trazendo novos

elementos para se pensar os sons pelos sons. O “em-casa” abre-se ao caos para

buscar a acomodação dos novos componentes neste território, agora distendido.

No âmbito dos trabalhos sobre o desenvolvimento cognitivo e metacognitivo,

o conceito de consciência fonológica começou a ser descrito e investigado no fim

dos anos 70 e início dos anos 80 (GUILLON, 2004). Este conceito pode ser

genericamente definido como a capacidade de manipular os elementos sonoros que

constituem as palavras orais (Gombert, 1990; Lamprecht et al., 2004; Tunmer &

Rohl, 1991, citado por Silva, 2003).

Ao ingressar na escola, mais especificamente nas classes de alfabetização, a

criança é “levada” a pensar nos sons produzidos pelas letras, pois somente depois

desta habilidade aprendida, estará apta a dominar o código de leitura/escrita

alfabética.

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É um sujeito que aprende basicamente através

de suas próprias ações sobre o mundo, e que constrói

suas próprias categorias de pensamento ao mesmo

tempo em que organiza seu mundo.

(FERREIRO e TEBEROSKY, 1985, p.21)

Ainda que a leitura e a escrita sejam aprendidas de forma estruturada na série

de alfabetização e, a partir do ano de 2012, nos ciclos que envolvem do 1° a 3° ano

do ensino fundamental*, percebe-se que, um trabalho que busque essa tomada de

consciência dos sons antes de se chegar a estas séries é possível, viável e, talvez o

mais eloquente, necessário se pensarmos nos benefícios que este trará aos alunos

que dele se utilizarem.

Estudos abordando esse tema têm afirmado que o

desempenho em tarefas de consciência fonológica

pode predizer como a criança irá desenvolver as

habilidades de leitura e de escrita, tendo sido

correlacionado o sucesso quanto à consciência

fonológica com o êxito no aprendizado da escrita

alfabética.

(GUEDES e GOMES, 2010, p.264)

Sendo assim, cabe aprofundarmos nosso conhecimento a respeito do quem

vem a ser a consciência fonológica e como se efetiva um trabalho que prime pelo

desenvolvimento desta habilidade metalinguística na educação infantil.

A consciência linguística ou metalinguagem refere-se à habilidade de refletir

sobre a língua, isto é, de tratar a língua como objeto de análise e observação, de

focalizar a atenção especificamente para as suas formas. As habilidades

metalinguísticas podem estar relacionadas a três níveis, segundo Cielo (2000):

fonológico, lexical e sintático, os quais têm-se mostrado relacionados tanto ao

desenvolvimento linguístico quanto à aquisição da linguagem escrita. A consciência

lexical diz respeito à capacidade da criança em segmentar a linguagem oral em

palavras. A consciência sintática refere-se à habilidade para refletir e manipular a

estrutura das sentenças em um enunciado. E, finalmente, a consciência fonológica

permite às crianças analisar a língua oral de acordo com as sequências de sons que

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a compõem. Assim, a habilidade em analisar a fala explicitamente em seus

componentes fonológicos é chamada de consciência fonológica, sendo um subtipo

da consciência linguística.

Sendo assim, devemos entender o conceito de consciência fonológica como

sendo a habilidade de perceber os sons da fala, independente de seus significados,

ou seja, entender, de modo consciente que, os sons associados às letras são os

mesmos sons produzidos pela fala e que esses sons podem ser manipulados

auditiva e oralmente.

O termo consciência fonológica foi definido como

a percepção de que as palavras são construídas por

diversos sons. Tal conceito diz respeito tanto à

compreensão de que a fala pode ser segmenta quanto

à habilidade de manipular esses segmentos.

(MEDEIROS e OLIVEIRA, 2008, p. 72)

E ainda:

É a de distinguir e manipular os sons

constitutivos da língua. A consciência fonológica

existe, de maneira mais ou menos grosseira, antes do

aprendizado da leitura e se reforça ao longo dos

diferentes tempos desta aquisição.

(RIVIERE, 2001 apud CARVALHO, 2007, p.98)

O trabalho de consciência fonológica na educação infantil consiste em

proporcionar aos alunos atividades direcionadas e específicas. Estas atividades são

sempre realizadas de forma lúdica e as crianças interagem e participam ativamente.

São utilizados jogos com regras que despertam o aprendizado das rimas,

aliterações, e ainda, fazem com que os alunos aprendam a dividir as palavras em

unidades menores (sílabas, letras), identificar palavras isoladas, ordená-las de forma

diferente, e, consequentemente, compreender que os sons falados podem ser

escritos e vice-versa.

Existem dois níveis de consciência fonológica: o primeiro diz respeito à

segmentação da língua, onde a frase pode ser segmentada em palavras, as

palavras em sílabas e as sílabas em fonemas; enquanto o segundo aponta que as

unidades segmentadas repetem-se em diferentes frases, palavras e sílabas.

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...

A sineta da escola... bateu... a sineta anuncia: é chegada hora de entrar!

A cidadezinha da Clarinha

era bem pequenininha,

nela, só vivia gente miudinha:

branquinha, pretinha, amarelinha,

quanta coisa nessa cidadezinha tinha

casinha, carrinho, ruazinha,

arvorezinha, frutinha, florzinha,

passarinho, borboletinha,

cachorrinho, gatinho, tartaruguinha

e nas casinhas...

fogaozinho, mesinha, cadeirinha,

e cada coisinha

seu lugar tinha.

Acontece que o tempinho

passou rapidinho

e Clarinha foi para a escolinha

pegou sua mochilinha

e saiu faceirinha

de longe avistou os coleguinhas

e a professorinha que aguardava no portão(zinho)...

entraram na salinha

e a professora pegou um livrinho

e começou uma estorinha

falou de um tal João

que plantou um pé de feijão

e fez tipo avião,

chegou nas nuvens de algodão...

cantou ainda uma canção

falou até de dragão

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e que com imaginação

o pequeninho vira grandão

e o “inho” vira “ão”

Clarinha saiu de lá cheia de satisfação,

pois tinha feito uma constatação,

O mundo não pode ser visto apenas com os olhos

É preciso que se ponha também o coração.

(Poema coletivo produzido pela turma do Pré II B da Escola Municipal Santo

Inácio, em agosto de 2012, a partir da gravura de Clarinha e da seguinte orientação:

sabendo que tudo que há na cidade de Clarinha termina com o mesmo som

presente no final do nome da menina, diga o que mais há nessa cidadezinha).

...

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Na escola, a professora fala através dos sons, sobre os sons e provoca seus

alunos a pensarem nestes, não apenas como barulhos, ruídos, mas como objetos

passíveis de serem capturados... a folha é o alçapão. O que eu escrevo nesta folha

são sim meros símbolos, mas esses símbolos tem o poder de transformar o som em

registro e assim, propagar os sons que me povoam. Quando registro um som, por

meio das letras, ele deixa de ser meu e passa a ser (com)partilhado. O som

(palavra) não está mais apenas para mim, ele está para o mundo. Deixa de ser pura

abstração e passa a adquirir funções, desde o simples comunicar/informar, indicar

caminhos/rotas, até passar histórias adiante.

...

A criança entra na sala e ao fazer a chamadinha a professora coloca sua ficha

juntamente com a de dois colegas. Então, ela vê que a letra M de seu nome, não é

apenas sua. Percebe que Manuela e Marcelo também possuem a mesma letra, no

mesmo local, o início da palavra, e se depara com a primeira dúvida de muitas que

irão surgir ao longo do processo: quer dizer que o M não é só de Mariani?

...

A professora afirma que não. E ressalta “com M escrevemos muitas coisas

Mariani: mar, martelo, maçã, manhã, mãe. E além dessas, ainda tem meia, milho,

moto e mundo”. Mariani até consegue perceber uma semelhança pequena entre

Mariani, Marcelo, Manuela e Mar... agora meia ou moto?... a professora só pode

estar brincando... essas não começam com M definitivamente.

...

Antes de se fazer um trabalho que provoque as crianças a pensar no som

das palavras e que remetam a regularidade da língua, hipóteses como a de que

cada pessoa possui uma letra e que esta letra não aparece no nome de ninguém

mais é muito aceitável, ou ainda, critérios de escrita que levam em consideração

apenas o objeto e não a sonoridade da palavra. Assim a palavra formiga é escrita

utilizando-se poucas letras, enquanto leão é escrito com muitas letras, porque o leão

é muito maior do que a formiga. Ou seja, a palavra é fruto de uma representação do

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objeto no mundo concreto. Somente um trabalho que vise à tomada de consciência

dos sons e o entendimento de que para se escrever é necessário pensar na palavra

a partir de sua sonoridade podemos evoluir no processo de apropriação da escrita.

...

Museu do Chulé

O museu do chulé

não dá pra acreditar

é uma inhaca só

meia fedida, tênis suado

sapato fedorento, coturno de soldado

pantufa xexelenta, chuteira chulepenta

chinelo de menino relaxado

tudo minuciosamente catalogado

pé rançoso, fedegoso, malcheiroso

pestilento, virulento, infecto contagioso

tem bodum de tudo quanto é bodoso

carpim de padre, sandália de pescador

frieira de freira, pezinho de princesa

bota catinguenta de estivador

a fedentina nunca acaba

os visitantes vão circulando

torcem o nariz, fazem caras

futum é o que não falta

pra quem não agüenta o fedor

tem prendedor

BRITO, Alexandre, Museu Desmiolado, Editora Projeto, Porto Alegre, 2011.

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A professora abre sua aula com um livro de poesias. Muitas rimas. Sons

repetindo-se e formando uma dança. Ela lê o livro “Museu desmiolado”. Os alunos

começam a se dar conta de que muitos sons se aproximam. Gostam da história.

Acham graça. As palavras fazem rir. Existem palavras engraçadas, diz um dos

alunos. E tem umas que dá até “angústia” no estômago - completa a colega - chulé e

lombriga são assim.

...

A professora propõe: que tal montarmos um texto sobre o que lemos? Os

alunos aprovam e começam a jogar frases, palavras soltas a princípio. A professora

passa a procurar sinônimos, inverte a ordem, organiza as palavras, para que a rima

se mantenha e a sonoridade seja preservada. Alguns alunos percebem as

mudanças e notam que as trocas tem uma função. Então, passam a se aproximar do

que a professora está fazendo, buscando adequar as palavras aos sons.

...

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O Museu do chulé que virou trabalho com o pé

Nossa turma leu o livro Museu Desmiolado de Alexandre Brito e

Gostou muito do “museu do chulé”.

O Nathan não gostou. Se assustou e chorou.

Falar do museu do chulé é muito engraçado.

É tanta ideia de fedor que a gente fica até enjoado.

Na cabeça muita ideia boa:

Que tal fazer o museu que a gente usa no pé?!

A profe achou uma músca que é “Pé com pé”.

Um pé pra lá, um pé pra cá.

É tanto pé que o pé parado não quer ficar!

Passamos lápis no pé.

Recorta e escreve o nome para não esquecer de quem é.

Alguns cheiraram o pé para ver se tinha chulé.

Só lápis não foi divertido.

Legal foi lambuzar o pé de tinta e fazer uma dança no papel.

A pintura ficou bonita, pegada pra todo lado.

A sala não escapou da arte.

Azul, verde, rosa, laranja, roxo, vermelho, fazem do chão agora parte.

O pé sujo não ficou.

Lavamos no balde com água e pano. Até massagem no pé todo mundo ganhou.

A tia da limpeza não achou na sala a mesma beleza!

(Texto coletivo produzido pela turma de Educação Infantil 03 (05 anos de idade),

para o Projeto de Leituração Escola Dr. Oswaldo Aranha, São Leopoldo – professora

Roseane Sfoggia Sochacki, agosto de 2012).

...

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As palavras tornam-se passíveis de manipulação; transformam-se em

brincadeiras e jogos. Elas são vivas. As crianças, ao mesmo tempo em que

descobrem a utilidade do som, percebem-no como uma possibilidade de

divertimento. Algumas palavras são engraçadas - disse o menino.

...

A professora, ao trabalhar com os alunos a poesia o “Museu do Chulé”,

deixou-os mais livres para que fossem falando o que mais lhes chamou a atenção

na poesia, enquanto anotava as ideias e frases enunciadas pelos alunos. Naquele

momento, ela servia de escriba e os alunos, ao participarem de atividades como

essa, dão-se conta de que aquilo que falam pode ser escrito, e ainda mais, após

escrito, outras pessoas podem ler, transmitindo as informações para um número

cada vez maior de leitores. No entanto, as frases ditas por eles, apesar de terem

sentido e obedecerem a uma lógica de sequência do poema e dos acontecimentos

que nortearam a construção deste, não apresentavam rimas, reprodução de sons,

ou seja, não havia preocupação com a sonoridade. Percebendo isso, a professora

ouvia-os atentamente, e ao anotar as ideias captadas no grupo, modificava as

palavras de modo a preservar a sonoridade. Fazendo isso, e repetindo em voz alta

essas alterações, os alunos começaram a notar que a transformação das palavras,

ou a substituição das mesmas apresentava uma função: a preservação do som.

Sendo assim, alguns alunos começaram a buscar palavras que respeitassem o som,

dando sequencia as rimas e mostrando que haviam compreendido o que a

professora esperava.

Para a doutora em Liguística pela USP, Leonor Cabral, a habilidade da

consciência fonológica pressupõe um processo atencional, ou ainda, com

intencionalidade para exercê-la. Vejamos o que é colocado a respeito da

consciência fonológica e da habilidade metafonológica pela doutora:

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Incluem-se entre estas habilidades, a de fazer

julgamentos sobre igual e diferente e mesmo uma

habilidade que se implanta muito precocemente, por

volta dos 24 meses coforme Clarke (1978), a da

autocorreção: a criança em virtude da auto-regulação

total, se dá conta de que o que produziu não confere

com o alvo pretendido, o que não significa que, ao se

autocorrigir, esteja consciente sobre quais os

articuladores que deva acionar para as modificações

pretendidas, nem que já tenha completado o controle

dos gestos praticados pela variedade sociolinguística

com a qual interage.

(SCLIAR CABRAL, 1999, p.156)

...

A professora realiza uma atividade com a turma. Esta consiste em afixar

gravuras no quadro. Essas gravuras servem como base para o jogo. Os alunos

devem buscar em uma mesa outras gravuras e relacionar aquelas cujo som final

combine com as que estão afixadas no quadro, ou seja, devem formar rimas. Há no

quadro a gravura de um nariz e os alunos colam juntamente a ela as figuras de um

“giz”, uma “atriz” e um “chafariz”. Depois de relacionar todas as palavras, a

professora questiona se os alunos conhecem outras palavras que rime com aquelas

que estão no quadro. Nesse momento há uma chuva de ideias. A professora avalia

a atividade de forma positiva, então, findado o jogo a professora dá a seguinte

orientação: “Turma, é hora do lanche”. Neste momento um aluninho levanta de sua

cadeira e proclama “lanche - avalanche” e tão logo ele senta, uma de suas colegas

revida: “é, mas podia ser lanche – lancheira”. E a professora maravilha-se ao

presenciar o jogo saindo do tabuleiro e adentrando a rotina escolar.

...

Os sons não moram nas tabelas, cheias de imagem oferecidas pela

professora. Os sons moram em nós, basta que abramos a nossa boca e que

deixemos eles (re)visitarem os locais que habitamos.

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...

O trabalho de consciência fonológica é todo feito por meio de jogos que

buscam aprimorar essa sensibilidade auditiva. Fazer com que o aluno perceba que o

som das letras/sílabas repete-se em várias palavras e que é possível reconhecer

essas palavras à medida que ficamos mais atentos a essa regularidade.

Na situação descrita acima, os alunos conseguem vislumbrar que os sons não

estão apenas inseridos nas cartelas confeccionadas para que eles joguem em sala

de aula. Eles estão presentes nas palavras de cada dia, e mostram aos alunos que

eles próprios podem ser os autores de seus jogos, quando interferem em uma fala e

a complementam. Não há cartelas, não há regras, não há que se esperar a sua vez,

há apenas que se estar inserido em um ambiente que privilegie essa tomada de

consciência e que veja na sonoridade um grande degrau para a escalada rumo ao

topo do processo de aquisição da leitura e da escrita.

Estes jogos produzidos têm como finalidade desenvolver nos alunos a

capacidade de reconhecer os sons (sílabas) que se repetem no início (aliteração) ou

no fim (rima) das palavras.

Alguns jogos trazem palavras que mudam totalmente de significado alterando

apenas a letra inicial, como o caso de “rato-pato-mato”, “panela-janela-canela”,

“carro-jarro-barro”.

Para Freitas (2004), a consciência fonológica é uma habilidade que

desempenha um importante papel na aquisição da escrita de uma língua alfabética,

como é o caso do português. A autora realizou uma pesquisa que apontou que

crianças a partir de 4 anos são capazes de responder a testes metafonológicos.

A identificação de rimas por crianças pequenas

não-alfabetizadas, por exemplo, pode indicar a

existência de uma consciência implícita, ou seja, de

uma sensibilidade às similaridades fonológicas.

Pesquisas com crianças de 3 e 4 anos apontam nessa

fase da infância, que as crianças são capazes de

“brincar” com as palavras, identificando e produzindo

algumas que apresentem sons iguais.

(FREITAS, 2004, p.266)

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Mão, dragão, pião, rincão, chão, avião, colchão, verão, balão, cão, mamão,

pão, sabão, papelão, meditação, feijão, não, galpão, plutão, oração, leão, blusão,

grão, melão, porão, calção, fogão, lixão, leilão, cidadão, alemão, carvão, cordão,

gavião, paixão, pavão, perdão, pensão, solidão, decoração, roupão, estação,

lampião, algodão, educação, chimarrão, confusão, lotação, maldição, aparição,

artesão, natação, exposição, respiração, alfabetização, comunicação, ação...

...

Ao jogar com estas palavras o aluno vai percebendo que palavras que

produzem o mesmo som, são escritas da mesma forma. E a hipótese anterior, que

levava em conta o objeto real, dá lugar a uma nova hipótese, onde a escrita parte da

sonoridade da palavra. A superação de uma hipótese é sempre um salto.

...

Um salto sem paraquedas.

...

A professora entrega aos alunos um jogo de cartas. A proposta consiste em

unir as cartas em pares. Para formá-las devemos seguir a seguinte instrução: uma

das palavras deverá “morar” dentro da outra. Como em “uva-luva”. A palavra “uva”

mora dentro da palavra “luva”, pois o aluno consegue identificar que o som de uma

está presente quando eu enuncio a outra. Os alunos estão separados em grupos,

cada grupo recebe suas cartas. Ao virá-las, o grupo A, composto por quatro alunos,

faz a seguinte sequência “asa-casa, cano-tucano, olho-repolho”, mas para o aluno

Victor restam duas cartas; uma delas com a imagem de uma vela e a segunda com

a figura de um cinto. O aluno olha para os colegas, pois sabe que seus colegas

uniram corretamente seus pares, e olha atentamente as duas cartas que têm em

suas mãos. Não consegue compreender porque os sons não combinam, está

inquieto... a professora percebe que não está confortável com a constatação de que

aquelas duas cartas não podem formar um par. Então, a professora pergunta:

“Quais as cartas que tens?” e o aluno responde “Um cinto e uma vela”. A professora

então questiona: “Será que a carta mostra o cinto ou a fivela que está no cinto?” e o

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aluno satisfeito une as duas cartas, e os sons, antes desordenados, voltam a fazer

todo sentido para ele. O caos se desfez.

...

É muito comum que as crianças nas turmas de pré-escola trabalhem com

classificação, seriação, sequenciação. Todos esses itens são muito trabalhados

nessa fase do desenvolvimento das crianças. E elas já fazem esse tipo de exercício,

ainda que não haja uma solicitação direta da professora, como quando separam os

lápis da turma pelas cores, ou separam os lápis de cor dos gizes de cera. Há

inclusive testagens realizadas para analisar quais desses conceitos a criança já

assimilou. No início do ano letivo é comum que se faça uma sondagem, aplicando

alguns exercícios e analisando as respostas dos alunos a estes testes. Em uma das

atividades os alunos ganham fichas, as quais devem organizar conforme seus

critérios. Ao fazer esta testagem em março, início do ano, todos os alunos separam

as fichas levando em consideração critérios que evidenciam o uso deste objeto no

mundo real. Assim, separam as fichas em grupos como os apresentados a seguir:

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Esta sequencia foi formada por um dos alunos. Ele juntou primeiro pato-leão-

passarinho, depois sapato-chapéu-anel e por fim, pião-bola-avião.

...

Ao questioná-lo sobre quais foram os grupos formados por ele, o aluno me

responde: “o primeiro é de bichos, o outro de coisas de usar e o debaixo de

brinquedos”.

Ao observar as figuras o aluno levou em consideração o uso dos objetos

apresentados, suas funções e utilidades.

Após um trabalho efetivo de consciência fonológica com essa turma, a

professora ao chamar o aluno para nova testagem, mostra o trabalho que ele havia

realizado em março e interroga se não há outra forma de separarmos estas

imagens. O aluno pensa um pouco, mas parece indeciso. A professora questiona e

se pensarmos nos nomes dessas figuras e pensarmos no som que elas têm quando

as falamos, será que os grupos ficariam desse jeito. E o aluno resonde logo “não,

tem que mudar”. Então o aluno começa a reorganizar as gravuras e separa-as da

seguinte forma:

Pato – sapato

Leão – pião – avião

Chapéu – anel

Bola

Passarinho

O aluno diz “bola e passarinho não tem par”. E depois prossegue: “ah, mais

um grupo tem três.” “Avião se diz avião ou aviãozinho?” A professora responde

“como você preferir”. Então o aluno coloca a gravura do aviãozinho ao lado de

passarinho e comenta “acho melhor ele (aviãozinho) ficar com esse (passarinho),

para ele (passarinho) não ficar sozinho”.

...

Ao separar as gravuras levando em consideração a sonoridade das palavras,

a criança está exercendo uma habilidade diferente daquela utilizada em março,

porque ainda que nas duas testagens ela estivesse utilizando-se do processo de

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classificação, ao sair da concepção da gravura como o real (testagem um) e utilizar

como critério a palavra e seu som (testagem dois), devemos ter consciência de que

a abstração é muito maior no segundo caso e esse resultado só será atingido após a

realização de um trabalho de consciência fonológica anterior.

...

A primeira vez que a professora chamou Victor para uma testagem de escrita

em abril, ele demonstrou nervosismo, até mesmo um certo desconforto com a

situação. Começou escrevendo seu nome na parte superior da folha. Victor

escreveu seu nome espelhado. Isso acontecia algumas vezes, afinal o terreno das

letras era ainda território novo para ele, e aquele amontoado de letras que formavam

seu nome não passava de mera convenção. Escrevia-o de memória, não que as

letras fizessem sentido ou que compreendesse que elas precisassem obedecer a

uma ordem rigorosa. Após, a professora solicitou que Victor escrevesse a palavra

“bola” e ele falou “primeiro eu vou desenhar a bola, tá? Mas eu não sei escrever. Eu

vou usar qualquer letra tá?”. Victor usou as letras “CORT” para a escrita de bola.

Então a professora pediu “agora escreve boneca” e Victor retrucou desolado “eu não

sei desenhar boneca nem escrever. Vou usar qualquer letra tá?” E Victor usa as

mesmas letras, mas em uma nova sequência “RTOC” e olha a professora com olhos

que dizem “é o melhor que sei fazer”!

...

Eis a primeira produção escrita do Victor:

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...

Victor sabe que desenhar não é escrever, mas está inseguro. Acredita que a

professora não conseguirá ler sua produção e precisará do desenho como referência

para se guiar, “desvendando” assim sua escrita. As letras que Victor usa são as

letras do seu nome. Nas duas escritas utiliza quatro letras e não as repete. Essas

são características do nível pré-silábico. A criança sabe que a escrita é produzida

por sinais gráficos (letras), mas ainda não faz vínculo destas com o som. Leva

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assim, em consideração, aspectos quantitativos como o número de letras (nunca

menos de três), o tamanho do objeto no mundo e a questão da repetição de letras

na mesma palavra (as letras não se repetem).

Em agosto Victor apresenta mudanças na forma de pensar a escrita.

Vejamos:

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Victor utiliza agora letras com valor sonoro para escrever as palavras ditadas

pela professora. Na maioria delas, Victor utiliza uma letra para cada sílaba, como em

TAUA para “tartaruga”, ATO para “macaco” e OI para “boi”, sendo apenas a escrita

de pato (ATO) a que foge a essa regra, nela Victor utiliza a letra “A” fazendo

correspondência a sílaba “pa” e a sílaba “to” é grafada corretamente, obedecendo a

escrita alfabética. Qualquer professor alfabetizador consideraria esse um grande

progresso, e ele sem dúvida o é. No entanto, creio que o divisor de águas entre

essas duas testagens reside naquilo que não apareceu - os desenhos. O aluno

Victor não titubeou ao ser cobrado que escrevesse uma lista de palavras; não falou

em momento algum que não sabia escrever ou que usaria quaisquer letras; tão

pouco falou que desenharia a tartaruga, o macaco, o pato e o boi. Victor acreditava

que a referência da imagem não era mais necessária, não para ele – afinal, o

desenho da bola como uma referência nunca foi uma necessidade para o Victor

(crianças sempre sabem ler seus escritos); o desenho era uma referência para a

professora, para os adultos e Victor não se sentia preparado para escrever a eles.

Na segunda testagem isso mudou.

...

Victor se autoriza a escrever apenas com letras, ele sente-se capaz e a

professora percebe a mudança. O lápis preso por mãozinhas pequenas, mas firmes,

traçam agora letras com sentido. Há um motivo para que elas sejam as escolhidas.

Em um alfabeto que consta de 26 sinais gráficos, Victor escolhe quatro delas para

registrar a palavra tartaruga. Pega o lápis, olha o papel e redigi TAUA e volta a olhar

a professora, orgulhoso de seu feito.

...

A professora chama agora o aluno Lucas. Ele senta-se timidamente. A

professora solicita também que ele escreva “pato”. Ele diz “patu é com ‘a’ e com ‘u’,

mas eu não sei quem é o u’”. A professora o orienta, afirmando “coloca a letra que tu

pensas que seja” e ele, decidido, responde “mas daí fica errado, cada uma tem um

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barulhinho, eu preciso que me mostre qual faz o barulho do U.” O aluno vence a

batalha e a professora, veja a contradição, saí feliz derrotada, apontando-lhe a letra

no quadro, ela sorri.

...

Alguém pergunta “por que escrever? pra quê escrever?” e o interlocutor só

consegue pensar “como não escrever?” Há o mundo que se vê, o mundo que se

ouve, o que se tateia e aquele que se lê. Sim, o mundo também pode ser lido.

...

O TEMPO DAS LETRAS

Esther Pillar Grossi, Doutoura em Psicologia da Inteligência em uma coluna

de Zero Hora de 19 de agosto de 2012, abordando a questão do Ideb, afirma que

competências não resultam de memorização de conteúdos, mas de construção de

esquemas de pensamento que são os motores das aprendizagens.

“A conquista de uma competência,

metaforicamente, é o que nos alonga a passada e nos

permite subir degraus mais altos do que os anteriores.

Uma tal conquista é a da alfabetização, entendida

como a possibilidade de ler com compreensão um

texto escrito por outro e de escrever um texto que

alguém medianamente instruído logre compreender.

Quando isto ocorre, o aluno adquire a possibilidade

de aprender novas coisas, porque está

instrumentalizado com mais dispositivo, fruto de uma

síntese qualitativa de conhecimentos e não de um

acúmulo quantitativo de conteúdos linearmente

memorizados.”

(GROSSI, Esther Pillar, Zero Hora, agosto de

2012)

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Grossi entende a apropriação do processo de leitura e escrita como uma

competência. Para ela nosso cérebro só registra e guarda estavelmente esquemas

de pensamento. A leitura e a escrita resultam desta construção e, quando se dá este

registro, quem aprende passa de um patamar a outro na escalada do conhecimento.

Para Esther Pillar Grossi a escalada rumo à aquisição desta competência pode ser

representada melhor por escadas do que por rampas, porque aqueles que as

sobem, não o fazem sem que haja rupturas.

Voltando a Deleuze e Guattari, e a concepção do “em-casa” , podemos

analisá-la como sendo a construção de um território que vai sendo preenchido à

medida que se adquirem vivências. O “em-casa” não preexiste, ele é formado por

meio dos componentes, referências e marcas que incorporamos e que funcionam

como um círculo que nos entorna. Ao formá-lo, temos como objetivo organizar e

delimitar nosso espaço; um espaço tranquilo com a finalidade de nos afastar do

caos.

Pensamos que o som está dentro deste círculo. Os sons compõem o “em-

casa” e, portanto marcam também o nosso território. A criança conhece os sons que

povoam seu círculo e faz uso destes para que sua canção a transporte a um mundo

equilíbrado. No entanto, não há como manter-se preso a este círculo; ainda que

seguro é necessário conectar-se com que há no exterior. É necessário deixar que

novos elementos habitem este círculo, ampliando-o.

Nem sempre esta abertura àquilo que nos é estranho é fácil. É muito comum

que estes novos componentes tragam uma desestruturação, desequilibrando o que

antes era de domínio. Então, será preciso acomodar novamente esses elementos

diversos que adentraram o círculo e buscar novo ponto de equilíbrio, adicionando-

os.

Esther Pillar Grossi ao abordar a aquisição da leitura e da escrita como o

resultado de um processo de rupturas vai ao encontro da concepção de “em-casa”

de Deleuze e Guattari. A análise implica em pensarmos primeiramente em um

círculo com componentes elementares (os sons), que vai sendo aprimorado à

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medida que novos componentes são inseridos neste círculo (vivências com os jogos

de consciência fonológica). Estes, por sua vez, desestabilizam o que já havia sido

construído, já que se faz necessário uma reorganização dos elementos anteriores

frente à chegada dos novos - mais elaborados -, no entanto a alavancada, a subida

ao próximo degrau, a expansão do círculo, só será possível com esta distensão do

território. Com a ampliação desta superfície e o aparecimento de novos elementos, a

criança será capaz de evoluir em suas hipóteses.

Para Grossi a criança galga degraus. O conhecimento parte de algo mais

simplicado e a medida que a criança adquire um conhecimento mais complexo ela

sobe para o próximo degrau, ou seja, vai agregando informações que a auxiliam

rumo a escalada. Já Deleuze e Guattari partem de um território criado pela criança,

o qual vai sendo ampliado/expandido.

...

O caos é revertido. A criança, depois de se desacomodar, encontra

novamente a estabilidade. De mãos dadas com outras crianças, canta uma cantiga

de roda, reproduzem ritmo e letra. Giram em harmoniosa ciranda, repetindo a

sinfonia aprendida. A uniformidade na dança aponta: o que antes era revoada, agora

é calmaria.

...

Uma menina de três anos vai até a prateleira de livros e pega um livro sem

gravuras. Sua mãe apressada lhe diz “filha, os seus são da prateleira de baixo, esse

que você pegou não tem desenho” ao que a filha responde “mas eu vou ler só com

as letras hoje”.

...

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Emília Ferreiro em seu livro “Reflexões sobre a alfabetização” toca nesse

ponto que considero crucial sempre que adentramos o campo da importância de ler

e escrever, ao abordar o quanto as crianças são seres porosos em relação às

diversas aprendizagens que vão tendo ao longo de suas vidas e ao tempo em que

elas ocorrem ou deveriam ocorrer.

“Se pensarmos que a criança aprende só

quando é submetida a um ensino sistemático, e que

sua ignorância está garantida até que receba tal tipo

de ensino, nada poderemos enxergar. Mas se

pensarmos que as crianças são seres que ignoram

que devem pedir permissão para começar a aprender,

talvez comecemos a aceitar que podem saber,

embora não tenha sido dada a elas a autorização

institucional para tanto.”

(FERREIRO, 2001. P.17)

Pensar que crianças só possam participar de práticas que envolvam a

consciência fonológica e a apropriação de leitura e escrita no 1° ou 2° ano do ensino

fundamental é acreditar que o conhecimento, as aprendizagens são próprias de um

ensino formal e institucionalizado. Sabemos que as crianças aprendem em casa,

aprendem brincando, aprendem na troca e interação com os outros e com o mundo

e o mais relevante, aprendem ainda que não tenham recebido autorização para

aprender. Suas vivências são produtoras das mais variadas hipóteses. E estas

hipóteses serão utilizadas para solucionar os problemas que irão se interpor ao

longo de seu desenvolvimento. Crianças de quatro e cinco anos tem total

capacidade de brincarem com os sons e, por meio desta brincadeira prazerosa,

começar a pensar o processo de escrita.

...

A professora propõe aos alunos que participem de um jogo de tabuleiro. A

brincadeira consiste em jogar um dado, verificar o número obtido e observar o

animal que se encontra na tabela e que possuí o mesmo número alcançado pelo

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jogador. Ao verificar o nome do animal, o aluno deveria buscar outra cartela que

começasse com o mesmo som inicial do animal do tabuleiro. Por exemplo: um

jogador atira o dado e consegue o número quatro. O animalzinho do tabuleiro que

corresponde ao quatro é um pavão. O aluno deverá procurar cartelas em torno do

tabuleiro que comessem com o mesmo som inicial de “pavão”. Ao propor esta

atividade a turma do Pré, obtivemos a seguinte situação...

...

O aluno Victor é o primeiro a jogar o dado. Joga-o e o número que cai é o

oito. Victor olha o tabuleiro e diz a professora “O oito é o dinossauro”. A professora

questiona: “e o que tem nas cartelas com o mesmo som de dinossauro?” Victor

pensa por algum tempo. De repente ele complementa: “Eu vou falar o nome das

coisas, tá bom?”... e começa “cadeira, folha, tábua, galinha, bacia, dinheiro...

DINHEIRO”.

...

O aluno Victor da pré-escola obteve sucesso no jogo. Ele conseguiu encontrar

uma outra palavra que começava com o mesmo som da palavra “dinossauro”, mas

para isso ele precisou ouvir. O aluno precisou repetir as palavras em voz alta para

ouvir seu som. E assim poder compará-las. Ao enunciar as palavras das cartelas o

aluno ia analisando se o som inicial era compatível ao som da palavra sorteada e,

aquelas que não se encaixavam, eram imediatamente eliminadas. Ao enunciar a

palavra “dinheiro” o aluno repete-a mais uma vez para ter certeza que o som é o

mesmo. E após pega a ficha e a coloca sobre a figura do dinossauro, seguro de sua

escolha. O que move sua escolha é somente o som. O som é o elemento que o

Victor possui e só o som poderá guiá-lo na alternativa de qual ficha escolher.

...

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Ao propor o mesmo jogo para uma turma de 1° ano, o resultado é bastante

diferente, embora os alunos de pré-escola sejam apenas um ano mais novos do que

os alunos do 1° ano (6 anos de idade).

O aluno Pedro joga o dado e tira o número quatro. O tabuleiro apresenta a

figura de um pavão neste número. O aluno Pedro fala “pavão começa com a letra p”,

e então começa a procurar nas demais cartelas alguma que tenha a letra “p” como

letra “inicial”. O aluno encontra uma cartela e diz “essa aqui”. A professora

questiona: “qual cartela você pegou Pedro?” e o aluno lhe diz “peguei a cartela do

palito, porque tem o “p” aqui no início”.

O aluno não se deixou guiar pelo som. Ainda que as palavras “pavão” e

“palito” tenham a mesma sonoridade inicial, o que moveu a escolha do Pedro foi a

letra inicial, ou seja, seu guia foi o sinal gráfico; esse fato poderia fazer com que o

aluno cometesse um possível erro, já que ele poderia pegar outras cartelas que

estavam dispostas na mesa, como “peixe” ou “pipoca”, que apesar de iniciarem com

a letra “p”, não possuem a mesma sonoridade de “pavão”, afinal, sua escolha não

obedecia o critério do som e sim o da letra que iniciava a palavra.

Desta forma, podemos verificar que quanto menos estruturada for a

linguagem escrita e quanto menos elementos uma criança tem sobre a mesma, mais

profundo é o seu mergulho nas questões sonoras.

...

Uma folha é entregue aos alunos. Após eles cantarem muito a música

folclórica “caranguejo não é peixe, caranguejo peixe é, caranguejo só é peixe na

enchente da maré” a professora pede a eles que observem os desenhos que estão

representados em suas folhas. São eles: um cavalo, uma casa e uma bota. Os

alunos devem circular quais desses desenhos apresentam o mesmo som inicial de

“caranguejo”. Enquanto os colegas fazem, Jair questiona a professora “bota começa

igual caranguejo?”, antes que a professora esboce uma resposta, Jaqueline

intervém “claro que não, né. Senão ia ficar ‘cabota’”. O grupo ri.

...

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A aluna Jaqueline consegue compreender que as palavras são formadas por

sílabas e que ao pronunciar a palavra “bota” preciso abrir minha boca duas vezes, o

que faz com que a palavra seja formada por duas sílabas, enquanto para pronunciar

“caranguejo” é necessário abrir a boca quatro vezes, o que demonstra que a palavra

é formada por quatro sílabas Jaqueline não sabe que “bota” é uma palavra dissílaba

e que “caranguejo” é uma palavra polissílaba, e estes conceitos para ela são

irrelevantes. A aluna sabe apenas que a palavra “caranguejo” é maior do que a

palavra “bota”. No entanto, quando ela pensa no som inicial, apenas consegue

identificar a sílaba “ca” como sendo o som inicial de caranguejo e transpô-la ao início

da palavra “bota”. Ela percebe que os sons não se assemelham, mas não consegue

transformar a sílaba inicial de uma em objeto substituto da outra. Essa hipótese

perdurará por algum tempo. Até o dia que...

...

“A professora faz uma roda e as crianças dispostas nesta rodinha estão

conversando sobre as palavras, seus sons, analisando o que é uma rima. Ao falar

das rimas que estudaram ao formar o poema da Cidade de Clarinha, as crianças

lembram que muitas palavras rimavam. Uma das colegas cita as palavras mesinha e

casinha. É quando a professora os interroga “será que estas duas palavras se

escrevem da mesma forma, de forma parecida ou de forma diferente?” Em coro

muitas respostas. Alguns pensam que as palavras devem ser escritas da mesma

forma e alguns acreditam que são escritas de forma parecida. É quando a aluna

Jaqueline pede a palavra e diz: “não são iguais... casinha começa com “Ca” e

mesinha começa com o som do “M”.”

...

A aluna não fez mais a transposição da sílaba inicial de uma para o início da

outra palavra, formando algo como “camesinha” ou “mecasinha”. Ao contrário,

pensou no início de ambas as palavras e viu que a diferença da escrita delas residia

exatamente ali.

...

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Quando a professora perguntou sobre como ficava o resto da palavra

Jaqueline retrucou “não sei como se escreve, mas sei que são iguais. Parece que

tem barulho de Z”.

...

Sopa, sol, soar, sofá, sócio, somar, sonso, sótão, sobrar, sofrer, solene,

sólido, soltar, soneca, sonhar, soprar, solário, solitário, solução, soluçar, soberano,

sonífero, sobremesa, sobrenome, soletrar, songamonga, solucionar, sonoplasta,

soterrar, sorvete, sobrancelha, só?

...

Nas próximas semanas, ao fazer um sorteio dos alunos que iriam apresentar

uma peça de teatro de fantoches para os demais colegas, a mesma aluna se

pronuncia quando a professora sorteia o colega Jair para começar a apresentação:

“Puxa, pensei que fosse eu quando a profe disse JA-IR, porque começa igual meu

nome. O “Ja” de Jaqueline é igualzinho o do Jair.”

...

Cabe ressaltar que a consciência fonológica não é um método de

alfabetização. Acredita-se que a consciência fonológica atua como facilitador para o

aprendizado da leitura e da escrita, ao passo que esse aprendizado desenvolve e

aprimora as habilidades metafonológicas.

...

Duas alunas criam com os blocos de construção. Montam. Desmontam.

Formam pilhas, para depois destruí-las. É a hora do brinquedo e há apenas três

alunos em sala de aula. Lá fora, chove muito. Enquanto o menino brinca com

carrinhos, Thamara e Jaqueline seguem absortas em seu trabalho com os blocos.

De repente vão até a mesa da professora, que fazia algumas anotações e a

chamam: “profe, vamos ver se você advinha o que construímos?” No meio da mesa

redonda muitas casas, enfileiradas. A professora olha e responde rápido “casas”. As

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meninas respondem negativamente. A professora tenta mais uma vez “castelo” e

elas respondem novamente que não. Então elas se afastam, cochicham uma no

ouvidinho da outra e voltam: “profe, nós vamos te dar uma pista”... “Começa com ‘s’”.

A professora pensa, mas não consegue associar casas a nenhuma palavra que

comece com esta letra. Então depois de algum tempo a professora fala: “está muito

difícil” e Thamara retruca “mas, agora ficou mais fácil, afinal nós demos uma dica”...

passado mais alguns segundos Jaqueline fala: “Profe, é uma cidade”... A professora

sorri e lhes responde “uma cidade, como eu não pensei nisso”.

...

Pereira (2004) também faz referência aos níveis de consciência fonológica,

observando que as habilidades que representam a consciência fonológica das

crianças se encontram em um contínuo de complexidade. Na ponta de menor

complexidade desse contínuo, estão atividades como as rimas e a segmentação de

sentenças. No centro desse contínuo, estão as atividades relacionadas à

segmentação de palavras em sílabas. Posteriormente, as atividades como

segmentar as palavras em rimas e aliterações. E, finalmente, o mais sofisticado nível

de consciência fonológica: a consciência fonêmica, que se refere à compreensão de

que as palavras são constituídas de sons individuais ou fonemas e à habilidade de

manipular esses segmentos.

O nível de consciência fonológica utilizado pelas alunas Thamara e Jaqueline

fazem parte desse último grupo, pois ambas identificaram o som do fonema inicial

da palavra “cidade” (ainda que elas tenham dito que o som era o de “s”), afinal a

letra “c” na palavra cidade, realmente apresenta esse som. O objetivo da

consciência fonológica é sempre o de pensar a questão da sonoridade, portanto,

casos como este, em que uma mesma letra pode apresentar mais de um som, não

são analisadas como erro e sim como uma hipótese sonora.

Ao jogar um jogo de tabuleiro em que a professora sorteia uma palavra e a

criança deve marcar em sua ficha uma outra que comece com a mesma sílaba

sorteada (aliteração), ao sortear a palavra “xale”, alunos que possuem cartelas com

as gravuras “chaleira”, “chapéu”, “chave” podem/devem assinalar estas palavras,

pois como foi citado no parágrafo acima o que importa, em exercícios deste modelo,

é a percepção sonora, não sendo relevante a escrita ortográfica.

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Na escala de complexidade da consciência fonológica, o nível fonêmico

parece ser o que traz maiores dificuldades para a criança. Conforme afirma Freitas

(2004), essa parece ser uma tarefa que exige um alto nível de consciência

fonológica, pois a criança está lidando com unidades abstratas. O fato de a fala ser

um contínuo sonoro dificulta a percepção dos fonemas individualmente.

Isso somente comprova que as duas alunas estão no nível mais alto da

consciência fonológica, pois conseguem identificar o som inicial, pensando no

fonema e não mais na sílaba. Jaqueline e Thamara identificavam também o som o

inicial ao preencher o quadro do calendário, afixando os dias da semana, os meses

e as estações corretamente.

...

As crianças amam os sons. Amam as rimas. Amam os poemas. Palavras

curtas, sonoras, que contam histórias. Atentos, eles sentam em círculo para ouvir

poesia, viajar pelas letras e transportar-se ao mundo do imaginário. Sabe o que é o

melhor da poesia? Tudo vale, tudo pode, tudo é permitido. As lógicas não moram

dentro dos poemas.

...

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A MOCHILA DE MARIELA

A mochila de Mariela é uma mochila amarela. Que é que ela guarda nela? Guarda álbum de figurinhas guarda um colar de conchinhas um chaveiro, uma fivela, dois cadernos, três canetas, tinta verde, tinta preta e um estojo de aquarela. Ainda tem mais, Mariela, nessa mochila amarela? Tem boneca de flanela, um diário e um bilhete de Isabela. Um chocolate em tablete, dois chicletes e um pão com mortadela. Um dia, me dá carona, Mariela, nessa mochila amarela?

Glaucia Lemos, do livro O cão azul e outros poemas. São Paulo: Formato,

2004.

Depois de trabalharmos com o poema “A mochila de Mariela”, os alunos

deveriam pensar nos nomes de seus colegas e buscar algo que rimasse com estes

nomes para construirmos um poema da turma. Eles ficaram livres para pensar em

qualquer palavra desde que a sonoridade final fosse mantida. Como resultado um

texto sonoro, criativo e engraçado.

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As riminhas da turminha

Na mochila da Thamara,

tem uma arara.

A mochila da Mariana,

Tem uma banana.

Na mochila da Sara,

Tem uma cara.

A mochila da Sofia,

Tem uma tia.

A mochila do José,

Tem chulé.

A mochila da Gabriela,

Tem uma panela.

A mochila do Felipe,

Tem um jipe.

A mochila do Luca

usa peruca.

A mochila da Cris

Tem um giz, um bis, um nariz,

Uma atriz bem feliz.

...

Trabalhar com o som das palavras é um passo importante na tomada de

consciência das crianças de que som e escrita estão intimamente ligados. As

crianças que são inseridas em um ambiente de letramento onde as rimas, a poesia,

a sonoridade são privilegiadas, certamente trilharão um caminho mais suave rumo

ao processo de aquisição da leitura e da escrita, pois, o que se pretende ao utilizar

os jogos de consciência fonológica em sala de aula é a inserção de perguntas que

levem os alunos a refletirem e buscarem as respostas por si só.

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CONCLUSÃO

Pode-se concluir que as questões abordadas por Deleuze e Guattari sobre o

ritornelo podem associar-se a muitas situações. Ao relacioná-las com o processo de

aquisição da leitura e escrita por meio de um trabalho de consciência fonêmica,

podemos utilizar a mesma tríade dos autores de Mil Plâtos. Onde 1) procura de um

território seguro para conseguir lidar com o caos; 2) filtrar o caos e habitar este

território (desterritorializar) 3) reterritorializar.

O trabalho com a consciência fonológica propõe que sigamos, de certo modo,

os passos a seguir estruturados: Em um primeiro momento cria-se o território,

formado pelos elementos que vão tornando-se de domínio à medida que me

aproprio deles e faço com que estes componham o círculo que me entorna (os

sons). No segundo momento, novas informações são filtradas, pensadas, refletidas,

promovendo deste modo uma desterritorialização dos elementos que já estavam

acomodados (trabalho efetivo de consciência fonológica a partir de jogos elaborados

para desenvolver esta habilidade). E finalmente, no terceiro momento, após essa

inserção dos jogos, a elaboração de novas hipóteses tem o caráter de

reterritorializar, expandindo o território e ampliando os elementos que o compunham.

Pensar no processo de tomada de consciência da linguagem escrita com o

uso da consciência fonêmica é pensar, um pouco, em um grande ritornelo. O

ritornelo como repetição periódica de um determinado código. Essa repetição tende

a constituir territórios que demarcam registros, e como já afirmado anteriormente,

não se pode pensar nestes como espaços físicos, mas sim como um ambiente

deflagrador de uma série de códigos, repetidos, ressoados.

Sendo assim e partindo de uma concepção de criança como ser pleno de

capacidade, sujeito de sua aprendizagem e capaz de criar suas próprias hipóteses,

reformulando-as quando da percepção de que as antigas não são mais razoáveis, a

interrogação que soa pertinente é a seguinte: oferece-se meios para que ela possa

abrir seu círculo, lançando-se ao caos, para conjecturar e principalmente, pensar os

sons e, mais adiante, o processo de leitura e escrita por si mesma, ou deixo-a à

margem daquilo que já lhe é de domínio.

Deleuze também já se questionava em seu Abecedário de Gilles Deleuze

(1997) sobre essa questão da ampliação de seu círculo: “Volto para o meu território,

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que eu conheço, ou então, me desterritorializo, ou seja, parto, saio do meu

território?”

Pensar que podemos expandir o território das crianças, lançando-as ao caos,

mas sabedores de que obterão êxito ao buscar suas respostas é o que move o

trabalho de consciência fonológica. Não creio que haja forma mais prazerosa de

aprender (qualquer coisa, ainda que nesta pesquisa a ênfase seja a escrita) do que

hipotetizar por si próprio. Colocar os instrumentos em suas mãos e deixá-las que

construam o caminho que irão trilhar até o fim, é fazer com que a relação com a

escrita seja mais do que um simples decodificar, mas envolva aprendizado, relação

de pertença e de prazer.

...

“Pode acontecer que a criança salte ao mesmo tempo que canta, ela acelera

ou diminui seu passo; mas a própria canção já é um salto: a canção salta do caos a

um começo de ordem no caos, ela arrisca também deslocar-se a cada instante. Há

sempre uma sonoridade no fio de Ariadne. Ou o canto de Orfeu...”

(DELEUZE e GUATTARI, Mil Plâtos, 2005, p.116)

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Nota final

Sobre o Ciclo da alfabetização:

O Ciclo da Alfabetização nos anos iniciais do Ensino Fundamental é um

tempo sequencial de três anos (seiscentos dias letivos), sem interrupções,

dedicados à inserção da criança na cultura escolar, à aprendizagem da leitura e da

escrita, à ampliação das capacidades de produção e compreensão de textos orais

em situações familiares e não familiares e à ampliação do universo de referências

culturais dos alunos nas diferentes áreas do conhecimento.

Retirado do site: http://pacto.mec.gov.br/esclarecimentos.html

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix, Mil Plâtos, Capitalismo e Esquizofrenia. Volume 4. Rio de Janeiro: Editora 34, 2005. CIELO, C. A. Habilidades em consciência fonológica em crianças de 4 a 8 anos. Tese (Doutorado em Lingüística Aplicada) – Faculdade de Letras, PUCRS, Porto Alegre, 2000. GUEDES, Mariana Chaves Ruiz e GOMES, Christna Abreu, Consciência fonológica em períodos pré e pós-alfabetização. Cadernos de Letras da UFF, 2010. FERREIRO, Emília. Reflexões sobre a alfabetização. 24 ed. São Paulo: Cortez, 2001. Byrne B. Treinamento da consciência fonêmica em crianças pré-escolares: por que fazê-lo e qual seu efeito? In: Cardoso-Martins C, organizador. Consciência fonológica e alfabetização. Petrópolis: Vozes; 1996. GILLON, G.T. (2004). Phonological awareness: from research to practice. New York: Guilford Press. SILVA, A. C. (2003). Até à descoberta do princípio alfabético. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. FREITAS, G. C. M. Consciência fonológica e aquisição da escrita: um estudo longitudinal. Tese (Doutorado em Lingüística Aplicada) - Faculdade de Letras, PUCRS, Porto Alegre, 2004 SCLIAR CABRAL, L. Princípios do sistema alfabético do português do Brasil, versão expandida. In: Congresso da Associação Brasileira de Linguística, ABRALIN, 1999. VARELLA, Noely K. Leitura & escrita: temas para reflexão. Porto Alegre: Premier Editora, 2004. Marilyn Jager Adams & cols. Consciência Fonológica em Crianças Pequenas. Porto Alegre: Artmed, 2006.

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REFERÊNCIAS BIOGRÁFICAS

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