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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA-UNEB DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS I LETRAS VERNÁCULAS VANIA ANJOS DE SOUZA O SINCRETISMO AFRO-CATÓLICO EM O PAGADOR DE PROMESSAS SALVADOR-BAHIA 2008

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Trata-se de um tcc de conclusão do curso de letras com espanhol da uneb

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA-UNEB DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS I

LETRAS VERNÁCULAS

VANIA ANJOS DE SOUZA

O SINCRETISMO AFRO-CATÓLICO EM O PAGADOR DE PROMESSAS

SALVADOR-BAHIA 2008

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VANIA ANJOS DE SOUZA

O SINCRETISMO AFRO-CATÓLICO EM O PAGADOR DE PROMESSAS

Monografia apresentada à Universidade do Estado da Bahia, como requisito parcial à obtenção de nota na disciplina Trabalho de Conclusão de Curso, sob a orientação da Profa. Dra. Iraci Simões da Rocha.

SALVADOR-BAHIA 2008

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VANIA ANJOS DE SOUZA

O SINCRETISMO AFRO-CATÓLICO EM O PAGADOR DE PROMESSAS Monografia apresentada à Universidade do Estado da Bahia, como requisito parcial à obtenção do título de Licenciado em Letras Vernáculas.

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________ Iraci Simões da Rocha

UNEB

__________________________________________ Valdilene de Assis Ferreira

UNEB

___________________________________________ Carlos Augusto Magalhães

UNEB

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AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, Marina e Raimundo, por terem sempre acreditado na minha

vitória e no meu sucesso e por terem respeitado a minha escolha.

Ao meu amado irmão Valter, pelo

carinho e compreensão.

Ao meu querido, Osvaldo Júnior, pela compreensão, respeito e incentivo aos

meus projetos.

À minha amiga-irmã Nilda, pelas diversas palavras de incentivo e apoio.

Às minhas inesquecíveis amigas,

Vanessa e Viviane e ao meu amigo, Honorato que estiveram comigo em

todos os momentos da minha vida acadêmica.

A Edna, Kely, Joaquim Henrique,

Jaqueline, Ana Carla, Débora e Marília que tornaram minhas tardes mais

agradáveis.

A Ana Fátima, pelas sugestões e pela preocupação com o sucesso do meu

trabalho.

A minha Orientadora, Iraci Simões da Rocha, pela paciência, desprendimento

e carinho pelas minhas idéias.

A Deus, pela força e pelas pessoas maravilhosas que colocou em meu

caminho nesta jornada.

Aos não citados, porém não menos importantes para mim e que, de alguma

maneira, contribuíram para mais essa vitória em minha vida.

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RESUMO

Este trabalho apresenta uma análise do sincretismo afro-católico e de questões que se desdobram a partir desse tema, tais como: identidade, alteridade, etnocentrismo, estereótipo e racismo. O objeto de estudo desta pesquisa é a obra O pagador de promessas, escrita por Dias Gomes. Com ela, propõe-se um novo olhar sobre atitudes de alguns importantes segmentos da sociedade, que através de seu discurso estigmatiza comportamentos intrínsecos de uma dada população. Nesse sentido, busca-se, a partir de investigação teórica e crítica de matrizes sociológicas e antropológicas e da análise da obra de Dias Gomes, demonstrar que não se justifica, sob nenhuma hipótese, anulação de práticas sincréticas características, que foram adquiridas por um povo, através de um processo lento e gradual de interação e que agora integra sua identidade.

Palavras-Chave: Sincretismo; Racismo; Identidade; Alteridade; O pagador de promessas

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ABSTRACT

This work presents an analysis of the syncretism afro-catholic and questions that if they unfold from this subject, such as: identity, otherness, ethnocentrism ,racism and stereotypes. The object of study of this research is the workmanship the payer of promises, written per Dias Gomes. With it, a new is considered to look at on attitudes of some important segments of the society, that through its speech and attitudes, censures intrinsic behaviors of one given population. In this direction, Gomes searchs from theoretical and critical inquiry of sociological and anthropological matrices and the analysis of the workmanship of Dias Gomes to demonstrate that she does not justify yourself, under no hypothesis, the attempt of cancellation of characteristics, that had been acquired by a people, through a slow and gradual process of interaction and that now it integrates its identity. Word-Key: Syncretism; Racism; Identity; Alterity; The payer of promises

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO 1.1 UMA ABORDAGEM TEÓRICA-ANÁLITICA_________________________05 1.2 O AUTOR E SUA OBRA___________________________________________06 2. O EU E O OUTRO: IDENTIDADE, ALTERIDADE, ESTEREÓTIPO E ETNOCENTRISMO__________________________________________________08 3. O NEGRO E A DISCRIMINAÇÃO RACIAL NO BRASIL_________________14 4. O SINCRETISMO RELIGIOSOAFRO-CATÓLICO_______________________19 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS__________________________________________27 REFERÊNCIAS______________________________________________________30

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1. INTRODUÇÃO 1.1 UMA ABORDAGEM TEÓRICA - CRÍTICA

A presente pesquisa trata do sincretismo afro-religioso e de outras questões que

se desdobram a partir desse tema, a saber: alteridade, estereótipo, etnocentrismo e

preconceito racial. O objeto de estudo é a obra O pagador de promessas, escrita por

Dias Gomes, em 1960. O trabalho foi desenvolvido a partir de investigação teórica e

crítica de matrizes sociológicas e antropológicas e da análise da obra de Dias Gomes. O

percurso metodológico empreendido exigiu o cruzamento de operadores teóricos, com a

interpretação do texto literário.

Surgida há mais de quarenta anos no cenário brasileiro, num contexto sócio-

cultural amplamente diferenciado do de hoje, O pagador de promessas mantém sua

problemática cada dia mais atual, pois é um texto que trata de relações humanas,

relações do “eu” com o outro e do “outro” com o “eu” e de como essas relações são

mutáveis a partir da ameaça que o outro pode representar para o “eu”.

Privilegiou-se nesta monografia a relação dos dois personagens principais desta

obra com o propósito de melhor verificar as relações existentes entre eles. Dessa forma,

pretende-se analisar as atitudes tomadas por ambos acerca de suas singularidades,

através do papel cultural desempenhado por eles.

Neste trabalho de análise textual, trabalho de caráter teórico-crítico, o

sincretismo religioso é observado com base em considerações de autores selecionados,

pois este configura um traço que marca a cultura brasileira, particularmente a baiana.

Entende-se o sincretismo, neste trabalho, como traço intimamente ligado ao

sentimento de identificação e de pertencimento a um grupo, identificação esta que,

apesar de construída pelos vários discursos a que se está exposto, não aceita qualquer

justificativa para sua refutação.

A prática de fusão de elementos religiosos e a intolerância a esta fusão, apesar de

ter sido notada por Dias Gomes há várias décadas atrás, é algo que ainda se mantém

na contemporaneidade. Essas práticas sincréticas ocorrem de maneira natural para

populações herdeiras das culturas de matrizes africanas, mescladas a matrizes de

origem européia e ainda são muito presentes na sociedade brasileira atual. Entretanto

mantém-se a tentativa de negação das diferenças culturais existentes, muitas vezes

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num mesmo grupo social, na busca de uma uniformização de comportamentos e

crenças.

O sincretismo afro-católico, que motivará os acontecimentos principais da trama

e intriga desta obra, já despertou interesse em inúmeros estudiosos nos séculos XIX e

XX, dentre eles destacam-se nomes como os de Nina Rodrigues, Waldemar Valente,

Ordep Serra, Sérgio Figueiredo Ferreti, Vilson Caetano de Sousa Júnior, entre outros

teóricos, que expuseram suas impressões sobre o tema.

Questiona-se, neste trabalho, como numa sociedade estabelecida, pode-se

usufruir livremente de direito de escolha sem com isso esbarrar ofensivamente na

atitude do outro? Até que ponto pode-se manifestar convicções, pensamentos e

atitudes sem, para tanto, interferir nas crenças, costumes e verdades de alguém? Como

a liberdade de expressão de uma pessoa está condicionada à manutenção de fatores

exteriores a ela e a posições alheias?

Na mesma temática, embora sob perspectiva diferente, pretende-se aqui uma

reflexão sobre a postura adotada sobre a intolerância de alguns em relação ao

sincretismo e às crenças do “outro” e avaliar como a tragédia vivida pelo personagem

principal de O pagador de promessas poderia ser evitada, se o respeito pela sua

liberdade de escolha fosse posto em prática pelos que o rodeavam.

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1.2 O AUTOR E SUA OBRA

O pagador de promessas foi escrito por Alfredo de Freitas Dias Gomes,

romancista e dramaturgo brasileiro. Dias Gomes nasceu na cidade de Salvador, em 19

de outubro de 1922 e faleceu em São Paulo, em 18 de maio de 1999. Membro de uma

família de classe média, desde criança interessava-se pela literatura e por

representações teatrais. Aos quinze anos de idade, escreveu sua primeira peça teatral

intitulada A comédia dos moralistas. Foi casado com Janete Clair, conhecida autora de

telenovelas. Ganhou notoriedade com a peça O pagador de promessas1 que, mais

tarde, foi adaptada para a televisão e o cinema conquistando vários prêmios, inclusive

internacionais.

A trama de O pagador de promessas se desenrolará na cidade de Salvador, num

cenário tipicamente baiano: centro histórico, escadarias da igreja de Santa Bárbara. O

enredo da história girará em torno de uma promessa feita pelo personagem principal

Zé-do-Burro.

O protagonista é um homem de 30 anos de idade, ingênuo, bondoso, crédulo,

poder-se-ia dizer até simplório e que, em troca da saúde de seu burro, promete à

referida santa a divisão de seu sítio com lavradores pobres. Além disso, Zé promete

levar, até a Igreja de Santa Bárbara, uma cruz de madeira como a que Jesus Cristo

carregou nas costas. Entretanto, Zé-do-Burro fará essa promessa não num templo

católico, mas sim num terreiro de candomblé onde está se realizando uma festa para

Iansã, entidade desta religião e que, em Salvador, é sincretizada como Santa Bárbara.

Por conta da promessa, Zé-do-Burro, acompanhado de sua esposa Rosa, percorre

sessenta léguas do seu município até a capital, onde encontra finalmente uma igreja em

que possa realizar sua promessa. Mas é madrugada e será preciso esperar o dia

amanhecer para então finalizar o cumprimento daquela missão. Ao amanhecer, Zé-do-

Burro tenta chegar ao seu destino e assim pagar a dívida que adquiriu com a santa, mas

não consegue adentrar com sua cruz na nave da igreja. A ingenuidade e firmeza de Zé

vão bater de frente com a insensibilidade do padre católico, este formado pela

intransigência e os dogmas romanos acerca da pureza da fé e da prática cristã. Padre

1O pagador de promessas, obra de Dias Gomes, foi inicialmente criado para ser encenado no teatro. A estréia da peça ocorreu em São Paulo, em 1960. Após pouco tempo, a obra conquistou as telas do cinema sendo reconhecida pela crítica. Trata-se do primeiro filme brasileiro ganhador do prêmio “Palma de Ouro” em Cannes. Mais tarde foi adaptado para uma minissérie exibida pela rede Globo e, por fim, foi publicado em formato de livro, sendo bem recebido como texto literário.

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Olavo, responsável por aquela paróquia, não entende como autêntica a promessa

daquele peregrino, por esta ter sido feita em um local que ele denomina habitat do

demônio. Muito rebuliço e tumulto ocorrem em frente à igreja, alguns em defesa de Zé,

outros a favor do Padre Olavo, com várias pessoas querendo levar vantagem diante da

situação.

Zé, por sua vez, não consegue entender o porquê daquele representante da Igreja

Católica lhe negar o cumprimento de sua promessa, pois para ele nada há de absurdo em

fazer uma promessa para Santa Bárbara, num terreiro de Candomblé, já que, em sua

cabeça, Iansã e a santa Católica se equivalem. O padre Olavo continua irredutível e não

quer nem ouvir falar em deixar Zé do Burro entrar na igreja. Um outro representante da

hierarquia católica, o Monsenhor é chamado e tenta convencer Zé a renegar aquela

promessa e voltar ao seio da Igreja Católica, pois para ele, Zé estaria afastado da palavra

de Deus. Zé-do-Burro recusa e está cada vez mais convicto de que deverá cumprir o

prometido à santa. A polícia também é chamada a interferir no caso e quer levar Zé à

delegacia. Há uma confusão entre os que o defendem e os que são a favor do padre.

De repente, ouve-se um tiro, todos se afastam e Zé cai morto em praça pública.

O padre assustado e, como se começando a se arrepender da postura que adotara

aproxima-se do corpo, querendo encomendar sua alma, mas Rosa o repele.

O desfecho da trama é carregado de intensidade dramática, culminando com um

final trágico - a morte de Zé-do-Burro - e ao mesmo tempo, desencadeador da cena

seguinte com um desfecho de enorme efeito catártico sobre o leitor/espectador: morto,

Zé-do-Burro, finalmente consegue entrar no templo católico. Carregado sobre a cruz por

populares que estavam na praça, o pagador de promessas é colocado no altar da igreja

de Santa Bárbara. É a vitória do oprimido sobre o opressor.

A narrativa de Dias Gomes faz uma crítica social contundente e chama a atenção

para problemas existentes no Brasil, sem preocupar-se, no entanto, em demonstrar a

solução destes problemas. Em O pagador de promessas, o autor deixa claro, que a

“luta” entre as diferentes camadas sociais está longe do fim e que respeito pela crença

do outro, infelizmente não é uma atitude praticada pela maior parte da população.

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2. O EU E O OUTRO: IDENTIDADE, ALTERIDADE, ESTEREÓTIPO E

ETNOCENTRISMO.

A construção da identidade é algo que se dá a partir do discurso e esse discurso,

sempre impregnado de ideologias, forma sujeitos diversificados. Na obra de Dias

Gomes, os discursos e práticas simbólicas fornecem elementos para a discussão de

questões identitárias, quais sejam, o lugar do outro no contrato social, o olhar da

“cultura civilizada” sobre o “diferente” e nas crenças excludentes, a intolerância

religiosa e a hierarquização de valores culturais “O que somos, nossas identidades

sociais, portanto são construídas através de nossas práticas discursivas com o outro”

(MOITA LOPES, 2002, p.306).

Para Stuart Hall (2001, p. 47) a identidade não é característica inerente ao

homem apesar de ser pensada pelo senso comum como traço intrínseco ao indivíduo.

Entretanto o homem tem a necessidade de relacionar-se e criar uma rede de

significações na qual ele possa reconhecer-se e firmar-se. Dessa maneira, pode-se

observar a associação dos indivíduos em organizações tais como: igrejas, nações,

estados, entre outras que promovem, de certa maneira, a uniformização de todos:

A condição do homem (sic) exige que o indivíduo, embora exista e aja como ser autônomo, faça isso somente porque ele pode primeiramente identificar a si mesmo como algo mais amplo – como o membro de uma sociedade, grupo, classe, estado ou nação, de algum arranjo, ao qual ele pode até dar um nome, mas que ele reconhece instintivamente como seu lar (SCRUTON, apud HALL, 2001, p.48).

A partir disto, Stuart Hall em A identidade cultural na pós-modernidade,

seguindo a linha desconstrucionista do pensamento teórico, considera que a identidade é

formada e transformada no interior das representações (HALL, 2001, p.48) e que o

conceito de identidade ainda é demasiadamente incipiente para as ciências que se

propuseram a estudar esse traço do ser humano (ibid., p.8). Apesar disto, Hall expõe

que, para o sujeito sociológico, “a identidade é formada na ‘interação’ entre o eu e a

sociedade. O sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é o ‘eu’ real, mas este

é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais ‘exteriores’ e

as identidades que esse mundo oferece” (ibid., p.10).

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Dessa forma, observa-se que o meio a que o indivíduo pertence, as experiências

vividas por cada um e o modo como as pessoas interagem com o mundo a sua volta vão

corroborar profundamente para a construção de sua identidade e que, mesmo este

procurando identificar-se com algo “maior” que ele, inevitavelmente surgirão

características particulares a cada indivíduo. Diante disto, pode-se afirmar que o homem

se constrói no discurso, entretanto é necessário que se perceba que “é a presença do

outro que, em última análise, molda o que dizemos, e, portanto, como nos percebemos a

luz do que o outro significa para nós” (MOITA LOPES, 2002, p.306).

Na Obra O pagador de promessas, objeto de análise deste trabalho, percebe-se a

construção de dois personagens principais entre os quais se estabelecerá o conflito

fundamental para esses estudos: Zé-do-Burro, que representa as pessoas das classes

populares e Padre Olavo, que representa os poderosos, bem como o discurso religioso

da Igreja Católica. Estes irão constituir os dois pólos fundamentais da história contada

por Dias Gomes.

Diante das considerações teóricas esboçadas sobre a construção de identidade de

cada ser, torna-se relevante, para melhor aproveitamento desta análise o conhecimento

das características dos dois personagens.

O primeiro deles, Zé-do-Burro, morador da zona rural do Estado da Bahia é

possuidor de uma pequena propriedade de terra e tem aproximadamente 30 anos. Zé é

um tanto inocente perante as ações que se desencadeiam a sua volta, casado, religioso e

temente a Deus e as suas convicções religiosas, típico católico brasileiro - aquele que

tem a religião católica como substrato, mas que, à revelia das orientações desta

entidade, a sincretiza com outras religiões. “Tal religiosidade brasileira tem um

substrato católico, mas não coincide suficientemente com o ‘catolicismo romano oficial’

apesar de este ser tido como religião predominante no país.” (RIBEIRO, 1994, p.60).

Zé-do-Burro representa o indivíduo pertencente às classes desfavorecidas da sociedade

baiana, que é a maioria da população. O segundo personagem é Padre Olavo, padre

moço, por volta dos quarenta anos, fanático pela sua convicção religiosa, chegando a

acreditar que a sua fé é o único caminho para Deus. Olavo é um religioso enérgico em

suas decisões e goza de certa autoridade perante as pessoas daquela comunidade. O

sacerdote é representante de uma das maiores Igrejas do mundo, a Igreja Católica que,

por muitos anos, foi detentora de um imenso poder não só no Brasil, como em vários

países, sobretudo na Europa.

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Os personagens da trama são moradores do Estado da Bahia, onde as religiões

africanas se expandiram e sedimentaram-se no nosso lastro cultural. Esta

contextualização torna-se necessária para que se possa perceber e compreender as

posturas adotadas pelos dois e a que tipos de discursos esses personagens foram

expostos em suas formações. “A identificação cultural de um povo é sempre produzida

a partir de seu papel social e em vista dele” (ibid., 1994. p. 92) o que demonstra que o

papel social que cada um desempenha perante a sociedade vai interferir na forma dos

dois conceberem as coisas ao seu redor. O papel social de cada um vai se constituir

através da oposição e ao mesmo tempo da interação com outros papéis sociais. Assim,

um papel social só adquire determinado destaque se for considerada a relevância (ou

falta desta) do papel desempenhado pelo outro. A essa relação existente entre o sujeito

social e a interdependência e interação com outros indivíduos dá-se o nome de

alteridade. Esse é um traço importante no estudo da obra, pois é através da alteridade de

Zé-do-Burro que a intriga se constitui e a trama se desenrolará.

A construção de alteridade se apóia no discurso da imutabilidade, idealizado por

alguém. Ou seja, o outro, na visão do “eu”, não se modifica a partir das ações ocorridas

a sua volta; ao contrário, esse sujeito sempre se comportará de maneira pré-estabelecida,

não importando a que situação está exposto. Essa alteridade vai culminar com aquilo

que chamamos de estereótipo. Hommi Bhabha define estereótipo como “uma forma de

conhecimento e identificação que vacila entre o que está ‘sempre no lugar’ já conhecido

e algo que deve ser ansiosamente repetido” (BHABHA, 1998, p.105), ou seja, através

de um discurso frequentemente proferido se define e estabiliza-se a imagem do outro,

mesmo que essa imagem não reflita a realidade.

O estereótipo é “validado”, portanto pela sociedade que o tem como verdade e

que reproduz o discurso de “alteridade estereotipada” ao longo dos anos, contribuindo

para a marginalização e discriminação de indivíduos, negando a possibilidade de

mudanças comportamentais do outro. A construção de um estereótipo não se dá

aleatoriamente; pelo contrário, existe quase sempre uma intencionalidade que não se

quer deixar transparecer, tornando evidente, assim, uma relação entre estereótipo e

conveniência. Para Bhabha o estereótipo também se relaciona com o fetichismo, pois

estes culminarão numa identidade apoiada tanto na “dominação e no prazer quanto na

ansiedade e na defesa, pois é uma forma de crença múltipla e contraditória em seu

reconhecimento da diferença e recusa da mesma” (ibid., p.116). Em outras palavras,

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tem-se consciência das singularidades culturais existentes entre os homens, entretanto

depreciam-se essas diferenças numa tentativa de negação dessas características.

O estereótipo torna-se, assim, uma forma de simplificar e minimizar o outro num

“modelo” pré-estabelecido, como se o outro fosse um ser de comportamento

programado e pré-determinado para obrigatoriamente ter essa ou aquela característica.

Em O pagador de promessas, percebe-se que a visão de Olavo em relação a Zé-do-

Burro e as suas crenças é uma visão “carregada” de estereótipos difundidos e validados

pela sociedade, ao longo do tempo, contra seus princípios, contra sua religião contra

suas convicções de vida.

O estereótipo não é uma simplificação porque é uma falsa representação de uma dada realidade. É uma simplificação porque é uma forma presa, fixa de representação que, ao negar o jogo da diferença (que a negação através do outro permite), constitui um problema para a representação do sujeito em significações de relações psíquicas e sociais. (ibid., p. 117).

É impossível não perceber que o ser humano é possuidor de uma dificuldade

imensa em aceitar as diferenças do outro e se relacionar com traços e comportamentos

divergentes e muita vezes contraditórios. De alguma maneira, busca-se a uniformização

dos costumes, desejos, crenças, talvez pela necessidade que o indivíduo tem de olhar

para o outro em busca de si mesmo. O fato é que mesmo havendo um “jogo frustrado”

pela igualdade das identidades, os indivíduos são portadores de características íntimas

que dizem respeito a sua individualidade.

Estando com preferência associados a uma organização ou grupo e sendo

negadores das diferenças, sobretudo culturais, alguns grupos se intitulam ou se

comportam como o centro das atividades humanas, ou seja, hiper-valorizam suas

características em detrimento das características do outro. É inocência acreditar que esse

jogo de identidade versus estereótipo do outro se constitua aleatoriamente e sem

nenhuma intenção camuflada. É lógico que na história dos homens, o discurso, criador

de identidades, alteridade, estereótipos provavelmente tenha sido utilizado em benefício

de um único indivíduo, grupo ou organização. Essa “fobia” pelo o que é inerente ao

outro é chamada de etnocentrismo, um comportamento facilmente detectado, sobretudo

em pessoas pertencentes a algum grupo social que goze de prestígio e influência perante

a sociedade.

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“Etnocentrismo é uma visão do mundo onde o nosso próprio grupo é tomado como centro de tudo e todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que é a existência. No plano intelectual, pode ser visto como a dificuldade de pensarmos a diferença; no plano afetivo, como sentimentos de estranheza, medo, hostilidade etc.” (ROCHA, 1994, p.7).

O comportamento etnocêntrico sugere que a cultura do outro é inferior e que a

nossa forma de ver e agir deveriam ser compartilhadas por todos, mesmo que para isso

seja necessário subjugar e discriminar povos que não compartilhem do mesmo modo de

pensar e agir. “No etnocentrismo estes dois planos do sentido humano – sentimento e

pensamento – vão juntos compondo um fenômeno não apenas fortemente arraigado na

história das sociedades como também facilmente encontrável do dia-a-dia das nossas

vidas.” (ibid., p.7). Esta afirmação de Everardo Rocha é facilmente comprovada quando

se procura refletir sobre os discursos do colonizador do Brasil e que ainda hoje são

reproduzidos pelos habitantes desta terra. É necessário se pensar sobre as implicações

do discurso etnocêntrico e o que está por trás desta prática discursiva. Quando alguém

desqualifica o outro por conta da diferença existente entre suas culturas, está querendo,

nada mais que se auto-afirmar perante o dessemelhante, talvez por medo de o outro

adquirir lugar de destaque em uma dada sociedade ou por não se querer que esse outro

ofereça riscos em relação a um poder já adquirido. “A diferença é ameaçadora porque

fere nossa própria identidade cultural”. (ibid., p. 9). A existência do diferente pode

representar para muitos a negação de tudo o que se acredita ou o que se quer que as

“massas”, amplamente manobradas pelos poderes sociais, acreditem e tenham como

verdade única e incontestável. Desta forma, garante-se a manutenção do poder tão

desejado e causador de inúmeros conflitos, ao longo da história.

Dante Moreira Leite (1992), em O Caráter nacional do brasileiro, faz

equivalência entre etnocentrismo e autoritarismo. Para ele “a personalidade autoritária

caracteriza-se pelo julgamento negativo do grupo estranho; tende a atribuir a este todas

as más qualidades enquanto as boas são atribuídas ao próprio grupo” (LEITE, 1992,

p.22). Tal associação pode ser remetida ao Pagador de Promessas, onde se observa que

a postura adotada pelo Padre Olavo perante a promessa de Zé-do-Burro configura-se

como uma atitude etnocêntrica e autoritária, pois o sacerdote não reconhece na atitude

do outro, traços positivos; pelo contrário, classifica Zé como inferior e atrasado. Olavo

julga-se superior ao homem do povo e supõe que a Igreja seja detentora de uma verdade

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absoluta, tornando evidente em seu discurso suas visão de mundo etnocêntrica, suas

idéias pré-concebidas, seu temor pelo o que é do outro. Seu julgamento do mundo se faz

pelos dogmas da Igreja e suas atitudes revelam sua reprovação por atos que não estejam

de acordo com sua maneira de ser e agir.

Nota-se que, em alguns trechos do diálogo entre os personagens principais da

obra, Padre Olavo deixa claro seu preconceito perante atitudes que se distanciam de seu

modo de levar a vida, ou seja, não aceita os diferentes estilos de se cultuar, entender e

realizar ações que digam respeito à intimidade de cada um e tenta, através de seu

discurso, unificar as identidades de todos. Dessa forma, Padre Olavo se coloca numa

posição de superioridade quando adquire postura de dono de uma suposta “verdade”

existente apenas, em sua limitação, ao olhar os acontecimentos à sua volta e a julgar as

características do outro. “Aqueles que são diferentes do grupo do eu - os diversos outros

deste mundo - por não poderem dizer algo de si mesmos, acabam representados pela

ótica etnocêntrica e segundo as dinâmicas ideológicas de determinados momentos.”

(ROCHA, 1994, p.15).

Pode-se observar ainda a visão estereotipada que padre Olavo tem de pessoas

que manifestam sua fé, suas crenças de forma não parecida com a sua, provavelmente

numa tentativa de promover descrédito de atitudes que, em sua cabeça, ofereçam algum

risco a sua autoridade perante aquele seu “pedaço de mundo”:

ZÉ: Para o inferno? Como pode ser, padre, se a oração fala em Deus?(Recita) “Deus fez o Sol, Deus fez a Luz, Deus fez toda claridade do Universo grandioso. Com Sua Graça eu te benzo, te curo. Vai-te, Sol, da cabeça desta criatura para as ondas do Mar Sagrado, com os santos poderes do Padre, do Filho e do Espírito Santo.” Depois rezou um padre-nosso e a dor de cabeça sumiu no mesmo instante. SACRISTÃO: Incrível! PADRE: Meu filho, esse homem era um feiticeiro. ZÉ: Como feiticeiro, se reza é para curar? PADRE: Não é para curar, é para tentar. E você caiu em tentação. (GOMES, 2003, p.28).

Este trecho acima deixa perceptível que o discurso de Zé causou impressões ao

sacristão (claramente subordinado ao padre), mas o Padre imediatamente o repreende e

promove, utilizando-se do recurso do estereótipo, o descrédito do discurso de Zé, e da

atitude do Preto Zeferino, numa tentativa de manter o conteúdo de seu discurso como

única verdade possível e aceitável. “Na nossa chamada ‘civilização ocidental’ nas

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sociedades complexas e industriais contemporâneas, existem diversos mecanismos de

reforço para o seu estilo de vida através de representações negativas do outro.”

(ROCHA, 1994, p.15) e “macular” a imagem do outro é um dos mecanismos mais

utilizados por esta sociedade. O temor do representante da Igreja católica pela

repercussão das atitudes de Zé e da influência que este pode causar a seus fiéis torna-se

evidente no diálogo que se segue:

PADRE: (Dá alguns passos de um lado para o outro, de mão no queixo, e por fim detém-se diante de Zé-do-Burro, em atitude inquisitorial.) Muito bem. E que pretende fazer depois... depois de cumprir a sua promessa? ZÉ: Que pretendo? Voltar para minha roça, em paz com a minha consciência e quite com a santa. PADRE: Só isso? ZÉ: Só. PADRE: Tem certeza? Não vai pretender ser olhado como um novo Cristo? ZÉ: Eu?!(GOMES, 2003, p.30).

Ao longo do texto de Dias Gomes, observa-se que as falas do Padre Olavo são

construídas sempre no sentido de ridicularizar o outro. Tais gestos ratificam assim o que

Everardo Rocha diz: “O grupo do ‘eu’ faz, então, da sua visão a única possível ou, mais

discretamente se for o caso, a melhor, a natural, a superior, a certa. O grupo do ‘outro’

fica, nessa lógica, como sendo engraçado, absurdo, anormal ou ininteligível. Este

processo resulta num considerável reforço de identidade do ‘nosso’ grupo.” (ROCHA,

1994, p.9). Dessa forma pode-se dizer que Olavo e sua representabilidade social se

constituem através da oposição entre o “eu” e outras representações sociais que, na

trama, é representada por Zé-do-Burro.

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3. O NEGRO E A DISCRIMINAÇÃO RACIAL NO BRASIL

O Brasil foi formado por povos de diferentes etnias: índios, africanos, asiáticos e

europeus, mas apesar de toda essa mistura étnica, alguns grupos se rebelam contra

outros na tentativa de impor seus valores, contribuindo, assim, para a proliferação de

atitudes de intolerância. Este comportamento se mantém presente desde a chegada dos

portugueses, em 1500, até os dias atuais. Dessa forma, alguns grupos foram, ao longo da

história deste país, e de outros, humilhados, estereotipados e discriminados em função

de diferenças existentes entre os grupos sociais e étnicos que aqui se instalaram. Os

negros, descendentes de escravos, formaram uma grande massa pobre enquanto que o

branco, em território brasileiro, geralmente esteve em lugares privilegiados. Com isso o

negro e também pobre sempre foi vítima, desde os tempos coloniais. de preconceito

contra sua condição social e racismo pela cor de sua pele.

No Brasil dos tempos atuais, o racismo é sentido por muitos apesar de sua

existência ser questionada por alguns segmentos da sociedade. Dessa forma,

ponderando que ele não deixou jamais de existir, o racismo é considerado aqui como “...

uma doutrina que afirma haver relação entre características raciais e culturais e que

algumas raças são, por natureza, superiores a outras.” (CARNEIRO, 2007, p.7). Pode-

se, a partir desse conceito, observar a íntima relação existente entre racismo e

etnocentrismo, pois ambos são construídos levando-se em consideração a necessidade

de alguns grupos sociais ou raciais sobressairem-se sobre outros. O racismo foi e ainda

é amplamente disseminado entre os povos que aqui se encontram, sobretudo contra os

negros que são, ainda hoje, um dos grupos que mais sofrem com esse tipo de

comportamento no Brasil:

“Durante cinco séculos consecutivos, negros, mulatos, indígenas, judeus e ciganos, uns mais, outros menos, foram discriminados pelo branco cristão. Foram em momentos distintos e sob diferentes justificativas, tratados como seres inferiores, em função de sua cultura, raça ou condição social.” (ibid., p.9).

Lília Moritz Schwarcz em Raça e Diversidade (1996) revela que a segregação

racial e rejeição pelo outro já acontecia desde o antigo império romano, passando pelo

aparecimento da Igreja Católica, até a descoberta da América, onde os povos de culturas

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diferentes tratavam sistematicamente o outro como bárbaro, pagão e primitivo. A autora

deixa claro que a preocupação com as diferenças culturais já existia há muitos séculos:

“A antiguidade clássica estava interessada na questão. Podemos fazer um pequeno passeio e dizer que os romanos chamavam de bárbaros todos aqueles que não fossem eles próprios, ou seja, todo o restante da humanidade (...). Também a cristandade chamou de pagãos todos os que não fossem ela própria, numa clara referência à idéia de que os outros eram inúmeros, e nós éramos poucos. Foi assim também que a Europa, na época da exploração do Novo Mundo, designou como ‘primitivos’ os homens que ela recém descobria.” (SCHWARCZ, 1996, p.148).

No solo brasileiro, entre as etnias mais desprestigiadas, estão aqueles que

formam, em muitos estados, incontestavelmente a maior parte da população: os negros -

descendentes dos africanos - que se estabeleceram aqui, forçadamente, para servir de

escravos aos senhores brancos que sempre desfrutaram das melhores condições sociais,

ao contrário daqueles, que viviam em péssimas condições. Aqui foram tratados como

animais, sem voz nem vez, sendo vítimas de discursos etnocêntricos e estereotipados.

Esses discursos proferidos e transmitidos de geração a geração eram autenticados pelas

falas e práticas de organizações sociais importantes na sociedade brasileira, dentre elas a

Igreja Católica que, juntamente com o Estado, procuravam legitimar a idéia de que a

raça branca era uma raça superior às outras existentes aqui, principalmente à raça negra.

“A Igreja Católica e o Estado sempre defenderam a posição superior dos brancos,

valendo-se de leis e convenções que lhes garantiam os melhores cargos, títulos e outros

privilégios.” (CARNEIRO, 2007, p.10). Nota-se a importância do discurso religioso

para a legitimação ou não de algo, pois este (o discurso religioso) levou a vantagem,

durante muitos anos, de não “poder” ser contestado por ninguém. Através de sermões e

ensinamentos eram disseminados, em toda a sociedade, dogmas que pertenciam apenas

a um grupo social. “Os ensinamentos da Igreja, suas normas e o que ela considerava ser

a verdade, os dogmas, não podiam ser questionados ou modificados.” (ibid., p.10).

Dessa maneira, a Igreja, que passava a idéia de ser intermediadora da vontade de Deus,

sustentava sua posição e influenciava o pensamento de uma grande parte das pessoas, de

acordo com suas necessidades:

“As idéias segregacionistas foram veiculadas através de sermões, contos, canções, crônicas, poemas, anedotas, textos teatrais e pintura.

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Em todas as formas de expressão a figura do negro emerge como a de um ser inferior, animalizado, serviçal; e o judeu como inimigo da humanidade, identificado com a encarnação do demônio, como Anticristo. A elite dominante, representada pelo homem branco cristão, manipulava os meios de divulgação e expressão, impondo suas leis e seus valores.” (ibid., p.11).

A motivação para esses discursos faz parte da busca da manutenção do poder nas

mãos de poucos em detrimento da maior parte da população, que fica exposta aos

mecanismos escolhidos pelas classes dominantes para proteger-se de uma possível

“tomada do poder” por aqueles que sempre foram tratados como seres menores. “Ao

atribuir qualidades negativas ao pólo contrário, a elite dominante encontrou uma

fórmula para se defender e valorizar. As qualidades, boas e más, eram apresentadas

como hereditárias e características de uma certa raça.” (ibid., p.13). Logo as

características inerentes ao branco eram hiper-valorizadas por toda sociedade, inclusive

até por negros que ficaram por muitos e muitos anos expostos àqueles discursos que

desprestigiavam seus traços, sua língua, sua religião, seus costumes. Dessa forma as

características identificadas com o povo negro eram depreciadas por todos e ainda hoje

o são, alimentando não apenas o imaginário social, mas, sobretudo um comportamento

vergonhoso e não condizente com as transformações sociais e científicas pelas quais

passou o mundo. “Para alcançar pequenas regalias, fosse como escravo ou como homem livre, os descendentes de negros precisavam ocultar ou disfarçar seus traços de africanidade, já que o homem branco era apresentado como padrão de beleza e de moral. Desse passado de opressão e preconceito, herdamos a discriminação que se pratica ainda hoje contra negros e mulatos.” (ibid., p.15).

Muitos foram os que buscaram ou inventaram formas de legitimar o preconceito

racial existente entre os povos, durante séculos. No Brasil surgiram alguns nomes

importantes como Silvio Romero2, que acreditava na existência de uma “sub-raça” que

desapareceria sobre a ação de uma seleção natural, Raimundo Nina Rodrigues3 que

acreditava que os índios e negros eram raças menores, entre outros que se propuseram a

2 Silvio Romero foi crítico literário, ensaísta, poeta, filósofo, professor e político brasileiro. Escreveu muitas obras, entre elas Etnografia Brasileira, em 1888, Ensaio de sociologia e literatura, e outras. 3 Raimundo Nina Rodrigues foi psiquiatra, professor, antropólogo brasileiro e médico legista que por meio de suas pesquisas, defendeu teses racistas consideradas pertinentes na sua época. Autor de obras como Os africanos no Brasil, Degenerescência física e mental entre os mestiços nas terras quentes, entre outras obras nas quais defendeu a inferioridade do negro.

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“estudar” as diferenças existentes entres as raças e ratificar todo o discurso já dito sobre

esse assunto. Ecos dessas vozes internalizaram-se entre os povos aqui viventes e que

eram responsáveis por mais um etapa do racismo no Brasil - o racismo com aval da

ciência. Intelectuais, não só brasileiros, mas também de outros países, procuravam a

ratificação não só no discurso religioso, como a comprovação científica que

responsabilizava o negro por todas as mazelas existentes no país.

“... novas idéias científicas o classificaram como membro de uma raça inferior, incapaz para o trabalho livre e responsável pela desordem social e pelo crime: um novo racismo emergia sustentado pelo avanço da ciência. Substituía-se a irracionalidade do regime escravagista pela racionalidade científica, colocada, mais uma vez, a serviço da discriminação.” (ibid., p.18).

Diante de tudo que já foi exposto até aqui, reitera-se que o homem não consegue

conviver bem com as diferenças existentes entre os seres humanos e que, a partir dessas

diferenças, sejam elas culturais raciais ou sociais, alguns grupos buscam “auto-afirmar-

se” perante o outro para garantir, de certa forma, seu lugar na sociedade. Para isso se

utilizaram, conforme já assinalado, de vários mecanismos, tais como: o estereótipo, o

discurso religioso e até mesmo o conhecimento científico que também foi utilizado para

a manutenção do racismo infundado. “O avanço da ciência não foi suficiente para levar

o homem branco a aceitar a idéia de diversidade racial e cultural e conviver com ela. Ao

contrário, os conhecimentos científicos ajudaram a reforçar o imperialismo e o

etnocentrismo dos europeus.” (ibid., p.19) e, dessa maneira, “Os africanos foram

apontados como seres biologicamente inferiores.” (ibid., p.21).

Sabe-se que traços como a língua, a religião, a cultura são os principais

identificadores de um povo. O Brasil, por muito tempo, buscou traços que o

identificassem, que o representassem. Tendo em vista que, não se pretendia que o negro

fosse essa representação que tanto se procurava para o Brasil, apesar de compor a maior

parte da população brasileira, o negro e todas as suas características foram vistas com

“maus” olhos pela população branca que não queria que seu país fosse associado a uma

raça tida como inferior e sinônimo de atraso, mas sim por uma raça que se constituía por

traços próximos aos padrões europeus: Defendia-se a homogeneidade racial em favor dos arianos, símbolo de raça pura. O povo foi sendo seduzido aos poucos, através dos meios de comunicação de massa encarregados de veicular a ideologia

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oficial. Para isso prestavam-se a música, a fotografia, a propaganda comercial, os livros didáticos, as revistas cientificas, as revistas de educação física. (ibid., P.38).

A língua, os costumes e principalmente a religião negra foram, dessa forma,

sendo ridicularizadas e desrespeitadas, tratadas como folclore pela maior parte da elite

brasileira, mas, em contrapartida, sua conservação foi tratada por muitos negros como

forma de resistência cultural e como um meio de auto-afirmação na sociedade. “Entre as

idéias correntemente admitidas na literatura (...) destaca-se a noção de religião

considerada como foco de resistência cultural e de preservação de identidade étnica.”

(FERRETI, 1995, p.95).

A religião negra, dentre todas as características do povo africano, foi uma das

que mais sofreu perseguições e discriminações, sendo vítima de caracterizações

pejorativas, talvez por esta ser uma das marcas mais gritantes da ascendência africana

nas pessoas. “A religião constitui fator de preservação da identidade étnica do negro,

mesmo que se encontre sincretizada com outras tradições, porque nela predominam

tradições negras africanas (...) assim as religiões afro-brasileiras podem ser consideradas

como fator de resistência cultural.” (FERRETI, 1995, p.113).

Em O Pagador de Promessas, percebe-se claramente a rejeição e o desprezo do

Padre Olavo pela religião de origem africana ou por qualquer atitude que se aproxime

dela, quando este associa a religião negra ao diabo, reproduzindo o discurso da elite

branca que sempre depreciou os traços caracterizadores da raça negra – seus costumes e

sua religião, mostrando que as teorias raciais e suas idéias se mantêm presentes na

contemporaneidade, mesmo que de forma disfarçada e que estão inclusas nos diálogos

que se segue: ZÉ: Mas mesmo que soubesse, eu não deixava de fazer a promessa. Porque quando vi que nem as rezas do preto Zeferino davam jeito... PADRE: Rezas? Que Rezas? ZÈ: Seu vigário me desculpe, mas eu tentei de tudo. Preto Zeferino é rezador afamado na minha zona: sarna de cachorro, bicheira de animal, peste de gado, tudo isso ele cura com duas rezas e três rabiscos no chão. Todo mundo diz. E eu mesmo, uma vez, estava com uma dor de cabeça danada, que não havia meio de passar. Chamei Preto Zeferino, ele disse que eu estava com o sol dentro da cabeça. Botou uma toalha na minha testa, derramou uma garrafa d’água, rezou uma oração, o sol saiu e eu fiquei bom. PADRE: Você fez mal, meu filho. Essas rezas são orações do demo. ZÉ: Do demo, não senhor. PADRE: Do demo sim. Você não soube distinguir o bem do mal. Todo homem é assim. Vive atrás do milagre em vez de viver atrás de

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Deus. E não sabe se caminha para o céu ou para o inferno. (GOMES, 2003, p.28).

Percebe-se ainda que até mesmo Zé- do –Burro sente-se desconfortável ao

admitir que foi a um terreiro de candomblé. Assim, é correto afirmar que “no Brasil o

racismo não está nas leis, não está no Estado, mas disseminado no cotidiano.”

(SCHWARCZ, 1998, p.95) e que até mesmo de onde menos se espera podem surgir

manifestações internalizadas de um preconceito velado e resistente à passagem do

tempo e implacável com as misturas culturais ocorridas na sociedade brasileira.

Pode-se afirmar, portanto, que há vários anos, são proferidos discursos

depreciativos acerca do negro e de seus traços, sua cultura e especialmente sua religião.

Isso, de certa forma, explica, embora não justifique a atitude discriminatória e

intolerante do Padre Olavo e o sentimento de culpa demonstrado por Zé-do-Burro, ao

procurar o Preto Zeferino e a casa de candomblé, pois ambos estão expostos a discursos

disseminados pelas mais variadas instituições e revalidados das mais variadas formas,

mesmo que de maneira arbitrária.

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4. SINCRETISMO RELIGIOSO AFRO-CATÓLICO

O Brasil foi constituído por povos de diferentes etnias. As culturas e costumes

desses povos se auto-influenciaram, sobretudo a cultura africana, que aqui se instalou e

se modificou influenciando e sofrendo influência de outras culturas. Várias marcas são

consideradas identificadoras de um dado povo, tais como a língua, os costumes e a

religião, que segundo o professor de antropologia Sergio Ferreti (2007, p.2) é um dos

elementos básicos, constitutivos da cultura de toda sociedade. Quando os negros

chegaram ao Brasil, com sua religião, depararam-se com a religião dos senhores

brancos: a religião Católica. O substrato católico pretendia converter todos a sua fé, não

aceitando como autênticas outras formas de crenças e se colocando no lugar de único

caminho possível para Deus. Assim, todas as outras maneiras de religiosidade eram

vistas como coisas atrasadas e falsas.

No Brasil contemporâneo, a religiosidade se constitui como um traço marcante

da população, sobretudo na Bahia e, particularmente, na cidade de Salvador, onde o

contato entre diferentes povos deu-se em grande intensidade. Cada um desses povos

trazia, para a sociedade em construção, elementos diferentes de suas culturas e que aqui

foram interagindo uns com os outros. Esse fator contribuiu para o surgimento do que se

convencionou chamar de sincretismo religioso. “O termo ‘sincretismo’, neste país, é

usado quase exclusivamente para designar os cultos de origem africana – aqui, qualquer

um que ouça a palavra, pensa logo em terreiros.” (SERRA 1995, p.197). “Desde seu

início, as religiões afro-brasileiras formaram-se em sincretismo com o catolicismo e em

grau menor com religiões indígenas. O culto católico aos santos, de um catolicismo

popular de molde politeísta, ajustou-se como uma luva ao culto dos panteões africanos.”

(PRANDI, 1999, p.93). É inegável que sistemas religiosos aqui se interpenetraram

dando uma nova característica às religiões envolvidas. Assim, o sistema católico de

origem européia sofreu influências e também influenciou as religiões africanas, mais

precisamente o candomblé. Sistemas religiosos não têm existência independente dos indivíduos que os vivenciam por meio da prática de atos e da adesão a crenças a eles correspondentes. Doutrinas que ficam invariáveis enquanto seus usuários as interligam ou alternam, onde é que existem assim? No céu das idéias platônicas? É possível mesmo manter em paralelo duas religiões, duas visões de mundo distintas, sem que uma interfira com a outra? (SERRA, 1995, p. 263).

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A palavra sincretismo está dicionarizada como uma fusão de elementos culturais

diferentes, ou até antagônicos, em um só elemento, continuando perceptíveis alguns

traços originários. Definição aceita por muitos quando se pensa em algo sincrético, mas

que nem sempre é unânime entre os estudiosos do assunto. Para Waldemar Valente, em

seu livro Sincretismo Religioso Afro-Brasileiro(1997), o sincretismo caracteriza-se

fundamentalmente por uma intermistura de elementos culturais. Uma íntima interfusão,

uma verdadeira simbiose, em alguns casos, entre componentes das culturas que se põem

em contacto. Simbiose que resulta em fisionomia cultural nova, na qual se associam e se

combinam, em maior ou menor proporção, as marcas das características das culturas

originárias. (ibid., p.11). Para ele o sincretismo deu-se no Brasil como uma forma de

anular os conflitos existentes entre o catolicismo e as religiões africanas através de um

processo lento de fusão de costumes, emoções e atitudes de grupos diferentes que

compartilham do mesmo espaço social. Valente caracteriza preconceituosamente as

religiões africanas como “fetichistas”, “simplórias” e recheadas de conceitos que ele

chama de “grosseiros” e o catolicismo como uma religião complexa, que lança mão de

conceitos eruditos, tênues e delicados e que dificilmente seriam entendidos pelo povo

que aqui se encontrava. Pode-se perceber que Waldemar Valente atribui à atitude

sincrética a impossibilidade de o povo africano e de seus descendentes compreenderem

a religião católica em sua complexidade mesmo admitindo que “é a religião uma

manifestação de cultura espiritual. Manifestação de vida espiritual persistente e capaz de

resistir, mais que qualquer outra, à obra de esfacelamento e dissolução imposta por

vezes pelos conflitos de cultura.”. (ibid.,p.9) e que “de fato, as culturas africanas não

podiam se manter intactas no novo ambiente (...). No Brasil puseram-se em contato com

culturas ameríndias e européias, e desse contacto haveriam de surgir, como surgiram,

transformações de graus diversos” (ibid., p.4).

Para Sérgio Ferreti (1995, p.18) o sincretismo foi o meio pelo qual o negro se

utilizou para conseguir adaptar-se ao catolicismo dominante e à sociedade colonial,

ajudando-o a lidar com as suas dificuldades pouco importando se a lógica do

sincretismo era coerente ou não. No entanto, essa prática se enraizou na sociedade

brasileira e se mantêm até os dias atuais, mesmo sendo julgado como algo ruim por

muitos estudiosos e até mesmo por adeptos das duas religiões. “Não há como negar que

o fenômeno do sincretismo religioso afro-brasileiro encontra-se inapelavelmente ligado

ao processo de inserção do negro na sociedade brasileira e, consequentemente, ao da

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(re)construção da sua identidade, revestindo-se da maior complexidade devido à

multiplicidade de suas implicações. ”. (CONSORTE, 1999, P.79).

Muitas pessoas consideram o termo sincretismo inapropriado, pois se baseiam no

sentido negativo que alguns estudiosos atribuíram ao vocábulo. “Sincretismo é palavra

para muitos considerada maldita, que provoca mal estar em muitos ambientes e autores.

Diversos pesquisadores evitam mencioná-la, considerando seu sentido negativo, como

sinônimo de mistura confusa de elementos diferentes” (FERRETI, 2007, p.12). Para

Vilson Caetano de Sousa Júnior, em Orixás, Santos e festas: encontros e desencontros

do sincretismo afro católico na cidade de Salvador(2003), o sincretismo religioso,

fenômeno observado em todas as religiões, ganhou uma conotação pejorativa e passou a

designar as religiões de origem africana reorganizadas no Brasil. (SOUSA JÚNIOR,

2003, p.17). É absurdo acreditar que povos em contato não troquem sensações,

experiências e crenças e que esse contato vá resultar em algo negativo para ambos os

lados: “Talvez, não se avance na compreensão de tal assunto, em primeiro lugar, porque

se pressupõe que aconteçam de baixo para cima e depois, porque sempre se considera o

contato dos cultos de origem africana com o catolicismo algo que resulta em perda”.

(ibid., p.19). Mas que perdas são essas? Seria interessante se os povos vivessem suas

verdades isoladamente? Não é característica do ser humano a interação com o outro?

Segundo Sousa Júnior (ibid., p.31) “Nina Rodrigues acreditava que as práticas

religiosas de cada povo podiam se manter relativamente puras, senão, eivadas de

influências estranhas” mas não foi o que aconteceu com as religiões católica e o

candomblé que, indiferentes às pretensões deste ou daquele, interagiram dando uma

nova perspectiva para aqueles que vivenciam e compartilham de tais comportamentos.

Assim, apesar de toda polêmica em relação à originalidade ou não do sincretismo

religioso afro-católico, pode-se perceber que este acontece à revelia dos que se acham

aptos a contestá-lo.

O sincretismo deve ser entendido como expressão de um momento. Até mesmo as religiões tidas como padrões de religiões mundiais são sincréticas nas suas versões locais. Assim como a cultura, o sincretismo é algo construído que vai estar sendo redefinido o tempo todo. Na origem todas as religiões são sincréticas e por isso são constantes reconstruções. O sincretismo e o anti-sincretismo devem ser entendidos como discursos de sujeitos históricos, concretos que dizem respeito mais as suas histórias de vida. Você pode ser autêntico sem ser puro. A própria identidade é um processo de contínua reconstrução. Tanto a tradição tida como pura, quanto a misturada podem se tornar únicas. O que as torna

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autênticas é um discurso que as defende como tais. É a partir dele que a chamada incompatibilidade simbólica pode ser dissolvida, até mesmo nos momentos em que mais se está certo de que o candomblé e catolicismo, como água e óleo são realidades que se tocam mas não se misturam. (ibid., p.187).

Dentre tantas considerações acerca do sincretismo, resta entender porque este

fenômeno amplamente disseminado, na população de Salvador e de outras localidades,

é tão polemizado e contestado por muitos, já que este se faz presente em tantos rituais

católicos ou do candomblé.

Após anos de insucesso da Igreja Católica, na tentativa de combater o

sincretismo religioso, algumas representações do candomblé, numa atitude inesperada,

agora também se contrapõem a essa prática religiosa e buscam a pureza do culto

africano, negando à religião e às pessoas que a constituem a possibilidade de adaptar-se

ao tempo em que vivem. Entretanto, após séculos de existência, o sincretismo já

instalado no íntimo de muitos baianos, não deixará de existir tão facilmente, pois entre

os maiores representantes das duas vertentes está o povo, que vivencia a sua fé de

acordo com as tradições já adquiridas e internalizadas ao longo dos anos. “O

sincretismo é muitas vezes menosprezado, com desprezo pela mistura, considerando-se

que a pureza é superior e que o ecletismo seria incoerente”. (FERRETI, p. 89, 1995).

Não se deve acreditar que a “inter-influência” de vertentes diferentes cause

necessariamente prejuízos para ambas. Dificilmente encontrar-se-ão traços culturais

estáticos que não troquem impressões com outro com os quais se tem íntimo contato.

Tudo na sociedade é mutável, até mesmo os indivíduos, durante sua vida sofrem

mudanças comportamentais. Entretanto, em épocas diferentes, essas “trocas” entre o

catolicismo e o candomblé foram se equilibrando de maneira que, ora uma era mais

influenciada que outra, ora a outra era a que exercia maior influência. “Assim, até final

dos anos 1950, a história das religiões afro- brasileiras é uma história de apagamento de

características de origem africana e sistemático ajustamento à cultura nacional de

preponderância européia, que é branca.Mas, no processo de branqueamento , muitas

práticas rituais e concepções negras impuseram-se na sociedade branca.”. (PRANDI,

1995, p.100). Nesse contexto entra em cena o sincretismo afro-católico, facilmente

encontrado nos rituais religiosos, principalmente aqueles de maior destaque no

calendário católico, como a festa de Santo Antônio, a festa de Nossa senhora dos

navegantes, a festa de Santa Bárbara.

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Em O pagador de promessas pode-se visualizar o quão enraizada está a prática

do sincretismo afro-católico na região de Salvador. Para as pessoas que compartilham

dessa prática pouco importa a discussão acerca da autenticidade ou não do fenômeno,

interessando-lhes apenas a fé que os move a determinadas atitudes. “A explicação do

fenômeno do sincretismo afro-católico deve mesmo sair da velha oposição certo ou

errado, verdadeiro ou falso, pureza versus mistura e inserir-se na noção de tradição

construída e redefinida.” (SOUSA JÚNIOR, 2003, p.178), pois já se tornou tradição na

cidade de Salvador, não se podendo negar sua existência.

“Não concordamos que se deva simplesmente negar ou esconder o sincretismo, dizendo que foi um fenômeno que só funcionou no passado e que hoje está em desaparecimento. Pode ser até que no futuro o sincretismo afro-católico venha a se reduzir, por exemplo, na identificação de exterioridades entre santos e orixás. Mas no momento atual, não se pode negar sua existência, por se pretender ou desejar que ele desapareça, por refletir aspectos que são hoje considerados por alguns como obscurantistas. Esta estratégia de querer tapar o sol com a peneira no fundo pode até ser prejudicial às tentativas de superação do sincretismo, refletindo intolerância religiosa que não está de acordo com o espírito das religiões africanas.” (FERRETI, 1995, p.119).

E podemos confirmar o enraizamento dessa prática neste trecho do diálogo entre

Zé-do-Burro e o Padre Olavo quando aquele tenta explicar ao Padre onde teria feito sua

promessa: PADRE: Candomblé?! ZÉ: Sim, é um candomblé que tem duas léguas adiante da minha roça. (Com a consciência de quem cometeu uma falta, mas não muito grave). Eu sei que seu vigário vai ralhar comigo. Eu também nunca fui muito de freqüentar terreiro de candomblé. Mas o pobre Nicolau estava morrendo. Não custava tentar. Se não fizesse bem, mal não fazia. E eu fui. Contei para mãe-de-santo o meu caso. Ela disse que era mesmo com Iansã, dona dos raios e das trovoadas. Iansã tinha ferido Nicolau, pra ela eu devia fazer uma obrigação, quer dizer: uma promessa. Mas tinha que ser uma promessa bem grande, porque Iansã, que tinha ferido Nicolau com um raio, não ia voltar atrás por qualquer bobagem. Eu me lembrei então que Iansã é Santa Bárbara e prometi que se Nicolau ficasse bom eu carregava uma cruz de madeira de minha roça até a igreja dela, no dia de sua festa, uma cruz tão pesada como a de Cristo. (GOMES, 2003, p.29).

Percebe-se que Zé-do-Burro sabe que o Padre Olavo não iria aprovar a sua ida

ao candomblé, mas, em nenhum momento, ele questiona o sincretismo entre Santa

Bárbara e Iansã. “O sincretismo, elemento essencial de todas as formas de religião, está

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muito presente na religiosidade popular, nas procissões, nas comemorações dos santos,

nas diversas formas de pagamentos de promessas, nas festas populares em geral.

Constatamos que o sincretismo constitui uma das características centrais das festas

religiosas populares.” (FERRETI, 1995, p.127). Entretanto muitos tentam ocultar a

existência desse fenômeno na cidade de Salvador e em outras localidades brasileiras,

tendo em vista que o catolicismo branco misturou-se com uma das religiões menos

prestigiadas pela população que representa a elite brasileira e cultural do país. “Apesar

de abordado e de ser muito encontrado na realidade, nota-se que existe certo tabu contra

esse fenômeno. Parece que se procura negá-lo ou ocultá-lo, embora se reconheça que

todas as religiões são sincréticas.”(Ibid.,p.87). Essa afirmação de Sérgio Figueiredo

Ferreti, pode ser observada na obra de Dias Gomes no seguinte diálogo: PADRE: (Como se anotasse as palavras.) Tão pesada como a de Cristo. O senhor prometeu isso a ... ZÉ: A Santa Bárbara PADRE: A Iansã! ZÉ: É a mesma coisa... PADRE: (Grita) Não é a mesma coisa!(Controla-se.) Mas continue. (GOMES, 2003, p.30).

Não há como negar a existência de um laço forte entre alguns pontos da

simbologia católica com o candomblé e que esse traço já faz parte da cultura da

população, mesmo que muitas vezes inconscientemente. “Temos observado que com a

mesma devoção veneram a divindade negra e o santo do catolicismo que a ela fizeram

corresponder. Assim, por exemplo, adoram a Oxum, do mesmo modo que adoram,

conforme os princípios católicos, a Nossa Senhora do Carmo. Enquanto demonstram

seu fervor religioso com pedidos a Oxum, fazem suas promessas, cheias de esperanças,

a Nossa senhora do Carmo”. (VALENTE, 1977, p.77). E assim, Zé-do-Burro, em sua

promessa, realiza um ato sincrético, mesmo sem ter a consciência disso, até porque as

origens e a autenticidade dessa ou daquela religião não lhe interessavam. Mas o diálogo

continua: PADRE: (Procurando inicialmente, controlar-se.) Em primeiro lugar, mesmo admitindo a intervenção de Santa Bárbara, não se trataria de um milagre, mas apenas de uma graça. O burro podia ter-se curado sem intervenção divina. ZÉ: Como, padre, se ele sarou de um dia pro outro... PADRE: (Como se não o ouvisse) E, além disso, Santa Bárbara se tivesse de lhe conceder uma graça, não iria fazê-lo em um terreiro de candomblé!

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ZÉ: É que na capela do meu povoado não tem uma imagem de Santa Bárbara. Mas no Candomblé tem uma imagem de Iansã, que é Santa Bárbara... PADRE: (explodindo) Não é Santa Bárbara! Santa Bárbara é uma Santa católica. O senhor foi a um ritual fetichista. Invocou uma falsa divindade e foi a ela que prometeu esse sacrifício! ZÉ: Não, padre, foi a Santa Bárbara. Foi até a igreja de Santa Bárbara que prometi vir com a minha cruz! E é diante do altar de Santa Bárbara que vou cair de joelhos daqui a pouco, pra agradecer o que ela fez por mim!(GOMES, 2003, p.30).

Nota-se aí que Zé não consegue perceber a distinção entre um simbolismo e

outro e que dificilmente o Padre Olavo, apesar de seu discurso elaborado, iria conseguir

que Zé entendesse seu ponto de vista, pois em seu interior aquela crença já havia se

instalado e criado raízes não tão fáceis de anular. “A possibilidade de conjugar

elementos católicos dentro da tradição afro-brasileira não é dissolvida nem mesmo pelo

atento discurso político anti-sincretista.” (SOUSA JÚNIOR, 2003, p.195). E assim, em

nenhum momento, o Padre Olavo reflete sobre o fervor de Zé-do-Burro que vê sua

crença sendo ridicularizada e desrespeitada em praça pública: PADRE: A igreja é de Deus, Candomblé é o culto do Diabo! ZÉ: Padre eu não andei sessenta léguas para voltar daqui. O senhor não pode impedir a minha entrada. A igreja não é sua, é de Deus! PADRE: Vai desrespeitar minha autoridade? ZÉ: Padre, entre o senhor e Santa Bárbara, eu fico com Santa Bárbara. PADRE: (Para o Sacristão) Feche a porta. Quem quiser assistir à missa que entre pela porta da sacristia. Lá não dá para passar essa cruz. (Entra na igreja) (GOMES, 2003, p.32).

Observa-se aí a incapacidade de reflexão diante da individualidade do outro, não

há porque todos comungarem das mesmas crenças e realizá-las de maneira semelhantes.

Como se pode negar o que está em tamanha evidência? Zé acredita em algo e esse algo

precisa ser respeitado, ele não inventou o sincretismo, mas este se faz presente na

realidade do povo. Qual a necessidade dessa negação? “Este processo não se deu de um

dia para a noite, mas seguiu diversos caminhos e segue rumos imprevisíveis,

compreendidos apenas a partir da história particular de cada grupo e suas relações

internas e externas.” (SOUSA JÚNIOR, 2003, p.177). Portanto esse processo lento e

gradativo explica a relutância de Zé-do-Burro em abandonar suas crenças, por conta de

um discurso, que ele não reconhece como “sua verdade”, apesar das tentativas da Igreja

em persuadi-lo, rotulando-o de “transgressor” de uma lei que não é sua.

Observa-se o conflito de Zé neste dialogo com sua esposa:

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ROSA: Você ainda está aí?(Nota a igreja fechada) A igreja não abriu? ZÉ: Abriu, sim. Mas o padre não quer me deixar entrar com a cruz. ROSA: Por quê? ZÉ: (Balança a cabeça na maior infelicidade.) Não sei, Rosa, não sei... Há duas horas que tento compreender... mas estou tonto, tonto como se tivesse levado um coice no meio da testa. Já não entendo nada. Parece que me viraram pelo avesso e estou vendo as coisas ao contrário do que elas são. O céu no lugar do inferno, o demônio no lugar dos Santos. (GOMES, 2003, p.37).

O sincretismo religioso é um traço que se destaca em O pagador de promessas.

Dias Gomes, com a história de Zé-do-Burro, critica a intolerância religiosa de setores

conservadores da Igreja Católica que, ainda hoje, repelem as práticas resultantes da

fusão das crenças, valores e ritos das principais matrizes culturais que se desenvolveram

no Brasil, sobretudo na cidade de Salvador, e que marcam profundamente a identidade

do nosso povo.

É inevitável, portanto, perceber que o sincretismo religioso é uma marca

importante da população e que sua negação acarretará às pessoas que o vivenciam,

conflitos externos e internos. Zé-do-Burro, um personagem que poderia ser encontrado

na “vida real” em qualquer parte de Salvador, em nome de suas convicções religiosas,

não cedeu ao discurso elaborado e às pressões para o abandono de sua fé. O

protagonista de O Pagador de Promessas consegue fazer valer seu direito de escolha e

sua opção por ser livre, apesar das tentativas de limitar essa liberdade, pagando com a

própria vida pela sua ousadia em contestar algo que já se fazia costume na sociedade em

que vivia, sociedade esta que, muitas vezes, cede aos apelos dos grupos de maior

prestígio. O padre Olavo, por sua vez, se mostrou preconceituoso, incapaz de perceber o

teor autoritário e etnocêntrico de seu discurso, negando ao outro a possibilidade de

exercer sua liberdade. A trama desenrolada no livro pode ser perfeitamente identificável

no cotidiano vivenciado pelos habitantes das cidades brasileiras, sobretudo Salvador,

onde o discurso contra as características do outro nesse caso o sincretismo se faz

presente no cotidiano de muitos populares e que vão pouco a pouco tornando-se armas

poderosas contra a alteridade e a diferença.

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A obra O pagador de promessas proporcionou para esta monografia, através de

sua linguagem simples e clara, reflexões acerca de elementos destacados por Dias

Gomes, sobretudo o sincretismo afro-católico. Elementos estes, que fazem parte,

indiscutivelmente, do dia-a-dia de muitos brasileiros,

A partir de investigação teórica e crítica de matrizes sociológicas e

antropológicas e da análise da obra de Dias Gomes, a pesquisa revelou o quão

conflituoso é o ser - humano e que esses conflitos se dão de forma muitas vezes

contraditórias. Ao investigar o sincretismo afro-católico na obra, através de

considerações de teóricos do assunto, percebeu-se que longe de ser uma manifestação

irrelevante, o sincretismo instiga debates importantes para a sociedade, pois, apesar da

insistência de alguns em negar a sua existência ou classificá-lo como algo de menor

valor, se faz inegavelmente presente entre os costumes de muitos membros da

população do Brasil e, sobretudo da sociedade baiana, que é inclusive retratada pela

trama de Dias Gomes.

O exame da obra sugere que o respeito ao “outro”, à sua liberdade de expressar-

se e relacionar-se com outras pessoas ou com as diferentes simbologias existentes a sua

volta, ainda está distante de ser cumprido. Muitos desses comportamentos repreensíveis

estão ligados diretamente a atitudes autoritárias, que visam ao bem estar de poucos em

detrimento de alguns setores sociais e que buscam incansavelmente a manutenção de

regalias adquiridas, ao longo dos anos. Dessa forma, como se verificou nessa análise,

atitudes como o etnocentrismo, racismo, a construção do estereótipo são incentivadas

por aqueles que, de alguma maneira, pretendem manter possíveis privilégios para

poucos.

Notou-se ainda, que por meio do reforço de alguns “mitos”, as classes

dominantes se beneficiaram e humilharam grande parcela da sociedade, se utilizando de

idéias racistas e etnocêntricas para legitimarem suas posições sociais. Dessa forma,

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percebe-se que a posição adotada pelo religioso de O pagador de promessas reflete o

comportamento dessas classes favorecidas e que através de seu discurso propaga

pensamentos segregacionistas.

A intolerância religiosa percebida na atitude da Igreja Católica, representada

pelo padre Olavo, deixa evidente a insatisfação existente em relação à liberdade de

escolha do outro e a busca pela “uniformização” dos costumes e crenças dos indivíduos.

Zé-do-Burro representa os populares, que muitas vezes não vêem seus direitos

respeitados e são constantemente ridicularizados e desrespeitados em suas crenças mais

íntimas e particulares. Zé-do-Burro, entretanto, também representa aqueles que não se

entregam nunca, que confiam em suas convicções e jamais as abandonam.

Pôde-se observar, nesta pesquisa, através da trama de O pagador de promessas,

que o sincretismo religioso é uma prática que ainda se mantêm presente nas

manifestações populares e religiosas de algumas cidades brasileiras, principalmente

naquelas em que o contato com os escravos, vindo da África, se tornou mais forte e que

a tentativa de alguns setores das duas religiões envolvidas: - catolicismo e candomblé -

em negá-lo está muito longe de ser considerada importante por aqueles, que à revelia

desses segmentos, vivenciam sua fé e a concebem como legítima e autêntica. O Padre

Olavo e Zé-do-Burro, juntos, representam o jogo protagonizado por muitos indivíduos

da sociedade brasileira, sobretudo baiana, onde se busca avaliar o comportamento alheio

com base em conceitos, costumes íntimos, que só fazem sentido para o “eu” e não para

o “outro”, já que a construção da identidade é algo que se dá individualmente e de

acordo com fatores interiores e exteriores, aos quais tenham sido expostos os

indivíduos.

O debate acerca de práticas religiosas como o sincretismo afro-católico e da

relação deste com o povo que o manifesta, longe de se esgotar nessa monografia, ainda

será, provavelmente, alvo de inúmeras pesquisas nas academias brasileiras, quiçá do

mundo. Observou-se aqui, que a intolerância religiosa é mais uma tentativa de subjugar,

menosprezar e ridicularizar traços não pertencentes a si próprio, traços esses, que muitas

vezes vão de encontro com o que se acredita ou que se quer que o outro acredite, para

que este se submeta aos desejos e anseios de alguns, com maior facilidade e sem

oferecer a resistência personificada na pessoa de Zé-do-Burro. O trabalho demonstrou

ainda que Dias Gomes, através da saga de Zé-do-Burro, defende a idéia de que, com

coragem e determinação, pode-se lutar contra aqueles que buscam a anulação de

direitos inerentes ao homem social e que a diversidade cultural necessita ser respeitada e

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debatida entre todos os integrantes da sociedade. Por fim, com base em considerações

teóricas dos autores citados, conclui-se que o “eu” e o outro interagem e, ao mesmo

tempo, distanciam-se para comporem sua individualidade e suas convicções. Esse

entrecruzamento precisa ser tratado com seriedade e respeito por todos aqueles que se

propuserem a estudar assuntos direcionados ao íntimo do ser humano para que a

tragédia vivida por Zé-do-Burro não se repita na sociedade atual.

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