TCC: MAPUCHE: (A)GENTE DA TERRA: Uma perspectiva espacial da situação indígena mapuche, en La...

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA FÁBIO MÁRCIO ALKMIN “MAPUCHE: (A)GENTE DA TERRA” Uma perspectiva espacial da situação indígena Mapuche, em “ La Araucanía” , Chile. SÃO PAULO Junho de 2011

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Trabalho de conclusão de curso para o curso de GEOGRAFIA.

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA

FÁBIO MÁRCIO ALKMIN

“MAPUCHE: (A)GENTE DA TERRA”

Uma perspectiva espacial da situação indígena Mapuche, em “La Araucanía”, Chile.

SÃO PAULO Junho de 2011

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FÁBIO MÁRCIO ALKMIN

“MAPUCHE: (A)GENTE DA TERRA”

Uma perspectiva espacial da situação indígena Mapuche, em “La Araucanía”, Chile.

Trabalho de graduação individual (TGI) apresentado ao Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo, sob orientação da Profª Drª Larissa Mies Bombardi.

SÃO PAULO Junho de 2011

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AGRADECIMENTOS

Primeiramente agradeço aos meus pais, Sebastião e Joana D’arc, migrantes do Sul de Minas Gerais, que por motivos da vida não puderam estudar para além do primário.

Aos próprios Mapuche, aos quais me comprometi a “divulgar a luta”. Saibam que fiz meu melhor e que aprendi muito com vocês.

Gratidão a todos que conheci em São Paulo: aos professores, aos cruspianos e especialmente à família geográfica. Um “haribol!” especial àqueles que acompanharam de perto esta caminhada: Fernando Corguinho, Gustavo Garibaldi, Rafa Zen, Cebola, Catatau e Chaves.

Muitos carinhos às encantadoras mulheres que me ensinam tanto sobre o amor, os sentimentos e a arte de viver.

“Saludos” ao pessoal da Argentina, da Bolívia, do Uruguai e do Chile, que me trataram tão bem e fizeram-me sentir tão vivo, ao ponto de perceber que os limites não eram geográficos, mas puramente mentais e ideológicos.

Agradeço aos gigantes aos quais, audaciosamente, ousei tentar subir aos ombros: Cervantes, Walt Whitman, Henry David Thoreau, Herman Hesse, Rilke, Jack London, Jack Kerouac, Cortázar, Guimarães Rosa, Ernesto Che Guevara, Modigliani, Erik Satie e por aí vai.

Aos colegas da fábrica, que me apoiaram a pedir demissão e adentrar ao mundo da Geografia. Aos que me chamaram de “louco” também.

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“Il tuo dovere è di non consumarti mai nel sacrificio. Il tuo dovere reale è di salvare il tuo sogno. La Bellezza ha anche dei doveri dolorosi: creano però i più belli sforzi dell’anima. Ogni ostacolo sormontato segna un accrescimento della nostra volontà, produce il rinnovamento necessario e progressivo della nostra aspirazione.”

Amedeo Modigliani, 1904.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Ilustração 01 - Mapa da territorialidade Mapuche/ Localização da Região de Araucanía ..................................11

Ilustração 02 - Concepção vertical do cosmos para a etnia Mapuche ....................................................................16

Ilustração 03 - Concepção horizontal do cosmos para a etnia Mapuche e representação do kultrun ..............17

Ilustração 04 - Jovem Mapuche diante do nillatúe ....................................................................................................18

Ilustração 05 - Lonko e mulher Mapuche (1890) .......................................................................................................19

Ilustração 06 - Mapa Político da América do Sul, na 1ª met. Séc. XIX...................................................................26

Ilustração 07 - Família Mapuche durante processo de radicação (final do século XIX).....................................27

Ilustração 08 - Mapa das “reduções” decorrentes do processo de radicação..........................................................28

Ilustração 09 - Túnel de ferrovia construída na Araucanía (1900)..........................................................................29

Ilustração 10 - Mapa Político da América do Sul, em 1900 ..................................................................................... 30

Ilustração 11 - Gráfico do uso do Solo na Região da Araucanía. ............................................................................. 36

Ilustração 12 - Mapa dos monocultivos florestais em relação às reduções indígenas .......................................... 39

Ilustração 13 - Mapa da população indígena em relação à população total, na América Latina, em 1995 ......42

Ilustração 14 - Mapa dos novos movimentos indígenas latino-americanos. ....................................................... 45

Ilustração 15 - Mapa das plantações florestais e das comunidades Mapuche na comuna de Lumaco...............50

Ilustração 16 - Paisagem predominante da comuna de Lumaco...............................................................................50

Ilustração 17 - Mapuches mortos em conflitos territoriais por ações repressivas do Estado chileno ................55

Ilustração 18 - Mapuches carregam o corpo de Alex Lemun, em protesto pela cidade de Temuco ...................56

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................. 06

1. OS MAPUCHE: a gente da terra

1.1 Breve história da etnia Mapuche ....................................................................................................... 09

1.2 Mapu: o significado da terra para os Mapuche ............................................................................... 12

1.3 Identidade Mapuche na modernidade: dificuldades e estratégias ............................................... 18

2. O ESTADO CHILENO: “por la razón o la fuerza”

2.1 Estado, nação, território e a questão indígena: aportes teóricos .................................................. 22

2.2 O processo de formação territorial chileno e suas conseqüências para com

os Mapuche .......................................................................................................................................... 25

3. A TERRITORIALIZAÇÃO DO CAPITAL: a desestruturação territorial dos Mapuche

3.1 A territorialização do capital na Região da Araucanía .................................................................. 33

3.2 O avanço por sobre as terras Mapuche ............................................................................................ 36

4. O CONFLITO: o direito de existir

4.1 A emergência indígena latino-americana: uma aproximação espacial........................................ 41

4.2 A emergência do movimento indígena Mapuche na contemporaneidade ............................... 48

4.3 A criminalização da demanda Mapuche contemporânea ............................................................. 53

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................................... 58

REFERÊNCIAS .............................................................................................................................................. 60

ANEXO A – CONVÊNIO OIT 169 ........................................................................................................... 64

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INTRODUÇÃO

Este trabalho nasce de uma experiência empírica, profundamente humana. Nasce de

profundos olhos negros, que na Patagônia argentina, num inverno gélido, atravessaram os meus,

dizendo-me: “ajude-nos a divulgar nossa luta”. O assentimento foi silencioso, denunciado apenas

pelos dentes que se travaram uns aos outros, de frio e indignação; pois sim, confesso, descobri nesse

momento que a indignação é um sentimento apátrida. Dos esforços, apenas posso dizer, com a

distância do tempo, que foram profundamente transformadores.

Após esta viagem, em setembro de 2009, voltei para a cidade de La Plata, próximo a

Buenos Aires. Ali resolvi arriscar e estender meu intercâmbio por mais seis meses, começando uma

pesquisa sobre os Mapuche, na Universidade Nacional. Logo na primeira leitura, viria saber que este

etnônimo significava “gente da terra”, e vim a conhecer seus laços profundos com esta. Quanto mais

estudava, mais sentia vontade de fazê-lo: interessava-me sua geografia, sua história, sua cosmovisão.

Quatro meses depois, como que na materialização de uma utopia, encontro-me com dois grandes

amigos da Universidade de São Paulo: Fernando Silva (Geografia) e Jamila Venturini (Jornalismo),

iniciando uma viagem de mais de 5 mil quilômetros, muitos destes de carona (outros de trem, de

ônibus, de barco ou mesmo a pé) pelo Chile e Argentina, para realizarmos um trabalho de campo e

coletarmos material para um documentário. E que bom que ainda existam pessoas assim,

sonhadoras, que, como dizia Kerouac, “estão loucos para viver, loucos para falar, loucos para serem

salvos, que querem tudo ao mesmo tempo, agora, aqueles que nunca bocejam e jamais falam chavões,

mas queimam, queimam, queimam como fabulosos fogos de artifício”. E assim fomos, queimando

como fogos de artifício por quase três meses, juntando-nos nesse meio tempo à Ana, uma chilena,

que entusiasmada largou sua vida de cantora em Santiago para se unir à nossa epopéia, tornando-se

grande companheira de viagem.

Penso que, não é pela busca de uma hipócrita neutralidade metodológica, enquanto

cientista social, que devemos relegar circunstâncias como as acima descritas. Pelo contrário,

pretendo que ela abra, desde já, um diálogo franco para quem porventura vir a ler as próximas

páginas. No mesmo sentido, não creio que devamos encarar como meros casos anedóticos, portanto

desprovidos de importância, certas situações as quais vivenciamos em nosso trabalho de campo.

Creio que muitas vezes são justamente nestes “pontos cegos” da ciência em que encontramos ricas

evidências dos fenômenos que nos dispomos a compreender. Cito por exemplo, o seguinte caso:

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Final de janeiro, crepúsculo, chegávamos em Curraueuhe, comuna chilena localizada na

fronteira com a Argentina. Para aqueles que haviam adentrado o Chile há um mês, sem conhecer

nada nem ninguém, terminávamos exitosamente esta parte de nosso trabalho de campo. Ali

seguíamos rumo à leste, donde pretendíamos através de um “paso” cruzar a cordilheira. Tamara, uma

Mapuche que conhecemos em Temuco e que nos abriu inúmeras portas, mediando contatos e

transmitindo confiança para com nossos interlocutores, recebia-nos novamente, agora em seu

trabalho de verão, num restaurante. Quando fechamos o comércio, já de noite, a fria chuva

orográfica já varria o sopé cordilheirano. Subimos na caçamba de uma caminhonete, sendo levados a

uma choupana nas montanhas, onde tomando mate ao pé de um fogão à lenha, nos aquecemos da

fria madrugada. Permanecemos ali por mais dois ou três dias, e pouco antes de partir, Tamara me

chamou de canto, pedindo em sigilo um grande favor: ajudarmos a um perseguido político Mapuche

a conseguir asilo na Argentina. “Como poderíamos fazê-lo?”, foi logo o que pensei. Em poucos dias

o jovem cruzaria a cordilheira andina a pé, por ocultas trilhas encravadas nas montanhas. O pedido

era para que o recebêssemos em Neuquén, já do lado argentino, ajudando-o com o que preciso fosse.

Iria se dirigir para La Plata, onde já possuía contatos. Prometi ajudar com o que estivesse ao meu

alcance. Dias depois, quando já estávamos na Argentina, ligamos preocupados para Tâmara, pois

não havíamos recebido um email com as orientações, como combinado: recebemos a notícia de que

Pascual, de 27 anos, havia sido preso em sua tentativa. Não mais deveríamos ligar, pois

possivelmente haviam rastreado aquele telefone. Apenas deveríamos seguir nosso caminho, já não

havia nada a fazer por Pascual.

Enfim, em nossa viagem tivemos muitas passagens como essa, e por isso, pretendo deixar

claro que por mais que esta pesquisa se ampare em fontes supostamente neutras, inclusive com

dados do próprio Estado chileno, o conflito está longe de sê-lo. São seculares interesses em jogo, com

contradições do Estado, dos latifundiários, dos próprios Mapuche e seguramente de mim mesmo.

Em relação o trabalho, apesar de a etnia Mapuche se encontrar localizada atualmente no

Chile e na Argentina, por questões metodológicas delimitamos nosso trabalho somente ao Chile,

especificamente à “Novena Región: La Araucanía”, lócus dos principais conflitos territoriais.

Ressaltamos que nesse caso, o uso do termo Região, usado amiúde em nosso trabalho, nada tem a ver

com o conceito geográfico. Na grande maioria das vezes que o usamos, nos referimos como o

utilizam no Chile, ou seja, fazendo menção à jurisdição administrativa, algo semelhante ao “estado”

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no Brasil.

Optamos por sistematizar o tema decompondo-o em três grandes eixos temáticos, que

apesar de desarticulados analiticamente, não devem ser entendidos por separado. No primeiro

capítulo falaremos especificamente dos Mapuche, abarcando questões como a história desta etnia,

sua localização, sua cosmovisão e sua identidade na modernidade.

No segundo capítulo trataremos do Estado Chileno, abarcando num primeiro momento

aspectos conceituais (Nação, Território, Estado etc.) e, num segundo, aspectos históricos, como a

formação territorial, a apropriação do território Mapuche no século XIX, a formação da

propriedade privada etc. Buscamos essencialmente traçar um panorama político que vai desde a

independência chilena, em 1818, até os dias atuais, dando especial enfoque à estratégia estatal que

abriu caminho ao avanço das relações capitalistas na região da Araucanía.

No terceiro capítulo veremos como o capital se territorializou neste território, avançando

por sobre as antigas terras Mapuche e tendendo, desde o início, a se reproduzir de maneira

concentrada. Buscaremos traçar um panorama econômico atual do território em questão.

Finalmente, num quarto capítulo, nomeado “O Conflito”, tentaremos buscar uma síntese

desta histórica relação entre os Mapuche, o Estado e o Capital. Traremos nossa análise para os

últimos 30 anos, dando especial enfoque às contradições que emergiram desta conflituosa relação.

Veremos como o Estado chileno vem respondendo à questão, basicamente criminalizando as

demandas políticas Mapuche. Tentaremos compreender este movimento não de maneira isolada,

mas sim como particularidade de um processo de emergência indígena à nível continental.

Acrescemos como anexo, a título informativo, o famigerado “Convênio 169”, da

Organização Internacional do Trabalho. Ratificado por grande parte dos países latino-americanos,

este tratado vem servindo como principal alavanca política das organizações indígenas, seja para

proteger seus territórios e preservar direitos já conquistados, seja para pressionar mudanças que

possam ampliá-los.

Ressaltamos que por uma questão de periodização analítica, quando nos referimos ao

termo contemporâneo, como o “Movimento Mapuche contemporâneo”, referimo-nos ao período

que vai desde a queda de Pinochet, em 1990, até os dias atuais. Pensamos haver uma coerência

interna para uma periodização deste tipo, visto questões de ordem constitucional e a fundação de

movimentos organizados que persistem desde então.

Por fim, qualquer falta ou equívoco neste trabalho é de minha única responsabilidade.

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1. OS MAPUCHE: A GENTE DA TERRA

or las noches oímos los cantos cuentos y adivinanzas a orillas del fogón

respirando el aroma del pan horneado por mi abuela, mi madre o la tía María, mientras mi padre y mi abuelo -Lonko de la comunidad- observaban con atención y respeto. Hablo de la memoria de mi niñez y no de una sociedad idílica. Allí, me parece, aprendí lo que era la poesía. Las grandezas de la vida cotidiana pero sobre todo sus detalles el destello del fuego, de los ojos, de las manos...

P

(Elicura Chihuailaf, Sueño azul)

1.1 BREVE HISTÓRIA DA ETNIA MAPUCHE 1 A existência de vestígios de uma "cultura Mapuche" nos remete há, pelo menos, cinco

séculos antes de Cristo (BENGOA, 2000, p. 20). Figura na história que estes resistiram ao domínio

Inca, na então expansão do império de Tawantsuyo, contendo-os nas margens do rio Bio-Bío, atual

Chile. Conformavam uma sociedade caçadora, coletora e horticultora, possuindo “um regime de

vida que os permitiu crescer enormemente em população, estabilizar-se num território determinado e

chegar a constituir uma cultura pré-agrária de grande força e desenvolvimento” (Ibidem, p. 363).

Estima-se que a população, no momento da chegada dos espanhóis, variava de 800 mil

(GALDAMES, 2008, p.76) a um milhão de indivíduos (BENGOA, 2000, p.21).

Com os sucessivos fracassos na tentativa de ocupação das terras ao sul do rio Bio-Bío2, o

1 Acerca da grafia do etnônimo “Mapuche”, utilizada por nós sem flexão de número e com a primeira letra maiúscula, adotamos as normas estabelecidas na 1ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada no Rio de Janeiro, em novembro de 1953. Conferir o artigo: "Convenção para a Grafia dos Nomes Tribais" In: Revista de Antropologia, vol. 2, nº 2. São Paulo, 1954, pp. 150-152. 2 A territorialidade Mapuche, à época da chegada dos espanhóis, compreendia o centro Sul do atual Chile. Tinha como

fronteiras o Rio Maule (ao norte), o Oceano Pacífico (a oeste) e a Cuesta de Loncoche (ao sul). Há indícios de que já

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que somou mais de cem anos de guerras e mortes de ambos os lados, os espanhóis se viram obrigados

a buscar um armistício. Assim, no ano de 1641, firmaram o chamado Tratado de Quilín, declarando

então as terras austrais ao rio Bio-Bío “território autônomo Mapuche". Cabe dizer que essa tenaz

resistência, que sacrificou três quartos de sua população -pela fome, guerra e infecções exógenas-

somente no século XVI, fez com que, dentre todos os outros grupos indígenas da atual da América

Latina, os Mapuche fossem os únicos a conseguir autonomia territorial frente ao império espanhol

(GALDAMES, 2008, p.76).

O contato com estes, entretanto, mudou a estrutura social dos Mapuche. Mercadorias

coloniais paulatinamente começaram a penetrar seu território, ao mesmo tempo em que a criação

extensiva de gado, grandemente adotada pelos indígenas, tornava-se o fio condutor de um expansivo

mercantilismo no interior da Araucanía. A organização social, que até então era descentralizada,

sem classes e sem acumulação iniciou um forte processo de transformação. A troca de mercadorias

incentivou a existência de uma divisão social do trabalho, assim como a criação de excedentes

produtivos provocou repercussões no sistema político, visto que o poder, que até então era

praticamente intrafamiliar, começou a se concentrar na mão dos chamados úlmenes3, indígenas que

começaram a acumular riquezas por meio do comércio com os espanhóis.

Essas e outras mudanças na sociedade Mapuche começaram a impulsionar um fluxo

migratório em direção ao planalto leste entre os séculos XVII e XIX, principalmente para as atuais

províncias argentinas de Las Pampas, Río Negro, Neuquén e Chubut (MORALES URRA, 1994, p.

26). Os historiadores chamaram este processo de “araucanização das pampas”, pois de certa maneira,

as outras etnias que aí viviam, predominantemente caçadores-coletores, tiveram forte influência da

cultura Mapuche. Entre outras repercussões, essa “transculturação” favoreceu a formação de uma

grande territorialidade Mapuche, desde o Oceano Pacífico até o Atlântico. Apesar de esta

territorialidade não alcançar uma efetiva unificação política, tornou-se um espaço de unidade

lingüística e cultural, permeada inclusive por uma complexa rede econômica (Ibidem, p.27).

Vejamos a figura 01:

nessa época cruzavam a cordilheira dos Andes, permanecendo, contudo, próximos de sua vertente oriental (BENGOA, 2000, p. 20-21; BOCCARA, 2005, p.7).

3 Ulmen, do mapundungun: Mapuche nobre, rico, culto, pessoa de influência por sua posição e fortuna (MOESBACH, 1987).

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Figura 01: na esquerda, em verde, a territorialidade Mapuche de acordo com o conhecimento ancestral, tendo

sido considerada toda parte à oeste da cordilheira dos Andes (atual Chile) “território autônomo Mapuche” pelos espanhóis. Em laranja, atual territorialidade Mapuche./ No mapa da direita vemos a região

administrativa de “La Araucanía”, objeto de nossa pesquisa, apontada como “coração” do território Mapuche. Alguns antropólogos e historiadores defendem, entretanto, que a etnia que conhecemos

como “Mapuche” se conformou exatamente no/pelo contato com os espanhóis, como estratégia de

defesa, num processo de etnogênese (BOCCARA, 1999). O caráter político descentralizado e a

distribuição espacial fragmentada, que incluíam o litoral, os planaltos, os vales centrais e a alta

cordilheira não favoreciam a comunicação e a unidade, necessários para a homogeneidade cultural

que conformaria um só grupo étnico. Inclusive existem fontes históricas que fazem menção há uma

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espécie de divisão interna da etnia Mapuche, pautada por identidades territoriais e adaptações

culturais aos meios naturais, os chamados Futalmapus. Fariam parte, por exemplo, os lafkenches

(lafke: “costa”, mar, che: “gente”, ou seja, a “gente do mar”) e os pewenches (pewén: araucária existente

na alta cordilheira, che: gente, ou seja, a “gente da araucária”).

Darcy Ribeiro, em seu livro “As Américas e a civilização”, enxergava certas características

nos Mapuche que os favoreceriam, em nossos dias, a conformar uma “nação”:

Como vimos, os araucanos, por seu montante populacional e por seu grau de desenvolvimento cultural ao tempo da conquista, deveriam estar amadurecendo, em nossos dias, para a condição de povos emergentes, tal como as tribos africanas e asiáticas que se transformam, agora, em jovens nacionalidades. Isso não ocorreu porque foram trucidados quando amadureceram para esse alçamento e, sobretudo, porque experimentaram uma subjugação mais feroz, mais continuada e mais eficaz do que aquela que se abateu sobre os africanos (RIBEIRO, 2007, p. 341).

Faz-se interessante relatar que em seu atual discurso político, muitos dos Mapuche não se

reconhecem como parte da nação chilena, mas sim como pertencentes à “nação Mapuche”.

2.2 MAPU: O SIGNIFICADO DA TERRA PARA OS MAPUCHE

Apesar das evidentes dificuldades epistemológicas de adentrarmos a um campo científico

diferente do que o de nossa formação, ou seja, sairmos do âmbito específico da ciência geográfica ou

da geograficidade para buscarmos aportes também antropológicos e históricos, acreditamos na

importância desta tentativa para uma correta compreensão do valor simbólico da terra para os

Mapuche. Entre outras coisas, esta postura poderia nos ajudar a compreender os fatores que direta

ou indiretamente contribuiriam para seu longo histórico de defesa por seu território.

A terra para a maioria das etnias indígenas transcende o campo meramente físico e

material, possuindo um valor sagrado, o qual abarca dimensões simbólicas que permeiam do

cotidiano aos próprios mitos fundadores. No caso dos Mapuche, a terra os caracteriza e dá sentido

existencial, fazendo parte desde seu etnônimo (Mapuche significa “homens da terra”, “gente da

terra”) até a espécie de seus sobrenomes, geralmente toponímias do lugar em que historicamente

vivem (ou viviam) as diferentes linhagens de parentesco.

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Baseamo-nos nesta parte de nossa investigação em referências bibliográficas, tanto de

especialistas no tema como dos próprios Mapuche, além é claro, dos relatos coletados em nosso

trabalho de campo.

Como salienta Muñoz, em estudo acerca da cosmovisão Mapuche, "a terra, não como

espaço propriamente geográfico, mas enquanto instância simbólica e hiperestrutural, figurativamente

invade, preenche e excede o espaço textual das manifestações artísticas e culturais dos Mapuche"

(MUÑOZ, 1992, p.10, tradução nossa). O autor propõe que a terra significaria ao mesmo tempo

um “espaço próprio” (I), “um espaço de encontro intercultural” (II) e um “espaço de encontro com

o sagrado” (III). Expliquemos os significados:

I)- Um “espaço próprio”, no sentido de que esta terra sempre pertenceu aos Mapuche, passando a

formar parte de sua identidade e cultura autônoma. Para embasar esta caracterização, o autor

bosqueja uma recomposição do mito de criação do mundo Mapuche, mediante revisão bibliográfica

histórica e depoimentos de comunidades isoladas. Não obstante o difícil trabalho de se resgatar a

história mítica de uma sociedade sem escrita, com resguardos na transmissão de conhecimentos

tradicionais aos não Mapuche e com cada vez maior influência da cultura ocidental4, Munõz em seu

trabalho chega ao seguinte ponto:

-A Terra teria surgido de um “criador” (os nomes variam entre Dios, Ngünechen, Chaw Ngünechen,

Chaochao, Chav Dios, Ngünemapun), a partir de um punhado de terra (solo). A princípio esta era

fria e úmida, sendo obra deste mesmo ser superior as condições para o assentamento humano

(Ibidem, p. 16).

-A partir desta Terra então formada, o “criador” teria concebido, também por meio de terra (solo),

os Mapuche, os primeiros seres humanos então existentes. Por isso dizem os Mapuche serem os

verdadeiros donos da terra. Em entrevista feita por Muñoz, um Mapuche relata:

Os homens eram de terra, claro, dizem que só meu Deus fez todo estre trabalho para que existam Mapuche nesta terra. Quando ele começou era só um pelote de

4 O autor faz menção ao fato da existência de um forte sincretismo Mapuche-cristão, o qual reúne de forma muito

variada e heterogênea elementos de ambas as tradições, podendo muitas vezes ser impossível desassociá-las.

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terra. Mais tarde se fez o campo, tudo. E depois produziu os Mapuche, primeiro. Nós somos os primeiros. Deus fez os Mapuche. (Ibidem p. 16-17, tradução nossa).

Além dos Mapuche, o “criador” haveria deixado muitos outros espíritos na Terra: o da

água, dos vulcões, do ar, por exemplo. Estes seres possuiriam a função de mediadores quando Deus

se zangasse com os homens, por romperem as relações de reciprocidade (Ibidem, p.17).

Cabe-nos neste momento ressaltar dois pontos fundamentais da cosmovisão Mapuche. O

primeiro é o caráter animista desta cultura, ou seja, a idéia de que todos os elementos da natureza são

vivos, conscientes e possuem ânima (espécie de energia, o qual os Mapuche chamam de newén).

Assim, por exemplo, uma planta medicinal possui em sua essência um determinado newén; sendo

justamente este, incorporado por aquele que ingere a planta, o responsável pela cura do enfermo. O

segundo aspecto importante é o da reciprocidade, idéia fundamental no “Kimün Mapuche”

(sabedoria Mapuche), na qual pauta-se a idéia do equilíbrio das relações, fundamental a sua

perpetuidade.

II)- Um “espaço de encontro intercultural”, no sentido de que os Mapuche dialogaram e dialogam,

através da mapu, com a história de outras culturas, a história dos winkas5. Faz-se menção ao contato

interétnico, num primeiro momento com outros povos indígenas, onde se destacam os Incas, e num

segundo, entre os europeus colonizadores e chilenos.

Em suas terras ao que parece, nunca fora dela, os Mapuche têm lutado com estranhos, têm realizado seus conselhos e parlamentos, têm enfrentado a tecnologia, as concepções jurídicas, econômicas, sociais, religiosas e culturais de outras sociedades e culturas alheias, têm estabelecido relações interétnicas com homens e mulheres vindos de outras terras. (Ibidem, p. 11, tradução nossa).

III)- Um “espaço de encontro com o sagrado”. É nessa mesma terra que os Mapuche se encontram

com os seres sobrenaturais de sua cosmovisão, na qual se desenrola a maior parte de sua

macrohistória mítica. “Como uma réplica em escala reduzida do universo, a terra, aberta e interligada

5 “O vocábulo winka significa etimologicamente, segundo o idioma Mapuche, ladrão, salteador, invasor e deriva do

verbo winkün, que expressa roubar e invadir à força, introduzir-se sem autorização”. (PIUTRÍN, 1985, p.143, tradução nossa).

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diretamente com os espaços sobrenaturais é o cenário onde se resolve a grande aventura humana da

vida e da morte em toda sua realidade e transcendência”. (Ibidem, p. 12, tradução nossa).

Neste sentido, torna-se fundamental compreendermos a noção de “mapu”. Os Mapuche

usam esta para designar a Terra, compreendida enquanto seus territórios tradicionais, contudo não

somente no simples plano material6. A idéia de mapu não faz “só uma referência ao tangível, ao

material, senão que possui uma dimensão espacial que permite situar todas as dimensões da vida no

universo. Ou seja, possui também uma dimensão transcendente” (PAILLAL, 2006, p. 31, tradução

nossa). O conceito de Mapu alude assim a um espaço tanto físico como metafísico, onde as forças do

bem e do mal se complementam e interagem.

O universo Mapuche possuiria duas dimensões: uma vertical e outra horizontal. A

primeira faz referência a uma série de plataformas que estariam superpostas no espaço, possuindo

certa hierarquia, sendo as superiores relacionadas ao bem e as inferiores ao mal. A mapu, estaria em

um grau intermediário, espaço de intersecção, lugar onde o bem e o mal permeiam sincronicamente

(Fig. 02). Como assinala Grebe et alli:

Em resumo, a visão cósmica Mapuche é dualista e dialética: o wenu mapu contém apenas o bem (tese); o anka wenu e minche mapu representam apenas mal (antítese) e na terra coexistem o bem e o mal em uma síntese que não implica a fusão, mas a justaposição dinâmica. A verdadeira polaridade tende à união, e a conjunção de duas forças opostas é uma condição necessária para alcançar o equilíbrio cósmico dualista (GREBE et alli, 1972, p. 48, tradução nossa).

6 No caso da “terra”, indicando a idéia de solo, o mapundungun possui o conceito específico de “Pvji Mapu”.

(QUIDEL apud PAILLAL, 2006, p.31).

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Figura 02: concepção vertical do cosmos para a etnia Mapuche (Fonte: GREBE et alli, 1972, p.49) Em relação à dimensão horizontal, estas plataformas seriam todas quadradas e de igual

tamanho. Geograficamente, esta plataforma que é a mapu, está orientada segundo os quatro pontos

cardiais, tomando como referência o leste, materializado pela cordilheira dos Andes, direção sagrada

e positiva de onde nasce o sol, matriz da presente concepção espacial (Ibidem, p.51) (Fig. 03):

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Figura 03: concepção horizontal do cosmos, divisão da plataforma terrestre e representação do kultrun. (Fonte: GREBE et alli, 1972, p.51)

A idéia do mundo quadrado, sendo os vértices os pontos cardeais é representada no

kultrun, um dos instrumentos musicais mais importantes da cultura Mapuche, utilizado

tradicionalmente em rituais xamânicos. “O kultrun é o resumo do conjunto da criação que a machi7

utiliza para seus serviços como símbolo e expressão do poder” (PIUTRÍN, 1985, p.121). É justamente

no centro deste quadrado, o centro do universo, que as comunidades Mapuche localizam sua

morada. Este ponto é demarcado fisicamente no terreno por meio do nillatúe, um monumento

antropomórfico de madeira colocado em um campo aberto na comunidade Mapuche, sendo um

espaço sagrado onde se celebram de tempo em tempo rituais de fertilidade (nillatún) (Fig. 04):

7 “Machi são as pessoas que se dedicam e se consagram ao serviço da saúde [...] para servir e ajudar a seus semelhantes

em suas enfermidades corporais”. (PIUTRÍN, 1985, p.47, tradução nossa).

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Page 19: TCC: MAPUCHE: (A)GENTE DA TERRA: Uma perspectiva espacial da situação indígena mapuche, en La Araucanía, Chile.

Figura 04: jovem Mapuche diante do nillatúe, totem sagrado que indica o centro da mapu. Créditos: Luis Fuentes Ampuero

Em síntese, podemos nos aproximar mediante esta breve caracterização do cunho

etnocêntrico da cosmovisão Mapuche e da posição central que a mapu ocupa nesta: ocupam o

centro de um determinado território sagrado, criado e destinado para eles por um poderoso Criador

(GREBE et alli, 1972, p.71).

2.3 IDENTIDADE MAPUCHE NA MODERNIDADE: DIFICULDADES E ESTRATÉGIAS

O estudo de temas relacionados à questão indígenas requer, na maioria das vezes, uma

abordagem acerca da cultura e da identidade. Como já levantamos, para se compreender o valor

contemporâneo que dão às suas terras ancestrais, resulta um erro grosseiro pautar-se somente pela

lógica econômica.

Porém, como poderíamos definir os povos indígenas? Nesse sentido, para entendermos a

questão, pensamos ser útil a contribuição de Viveiro de Castro, que aponta que toda definição seria

uma pseudo-definição – já que a “indianidade" é performativa e não demonstrativa. Esse ponto de

vista nos permite definir as “comunidades indígenas” como comunidades fundadas em relações de

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parentesco ou vizinhança, que possuem “laços históricos ou culturais com organizações sociais pré-

colombianas” (Viveiro de castro, s/d). Também nos parece útil a abordagem intitulada como

“antropologia diacrônica”, que propõe Guillaume Bocarra, compreendendo a cultura e seu sistema

de sentidos/significados enquanto algo dinâmico, “que reconhece que nenhuma cultura existe em

estado puro, idêntica a si mesma desde sempre” (2005, p. 12). Destarte, a cultura insere-se num

complexo jogo de relações de força e de poder, entre distintos agentes, com distintos interesses,

sofrendo por isso influências diversas. Em suma, adotamos a abordagem da cultura enquanto um

processo de “permanente construção, desconstrução e reconstrução” (Ibidem, p. 12, tradução nossa).

Tais esclarecimentos se fazem importantes no sentido de compreendermos que a atual “cultura

Mapuche” não é a mesma que a do período pré-hispanico, estando inserida na modernidade e

sofrendo por isso toda influência da mesma. Não obstante, a existência de uma lógica cultural

mestiça, como atualmente é a dos Mapuche, não significa necessariamente a perda do caráter

indígena. Percebemos um caráter sincrético já no século XIX, onde os Mapuche adotaram signos de

riqueza e diferenciação social, como os ostentosos colares de prata, considerados atualmente

tradicionais de sua cultura (Fig. 05)

Figura 05: à esquerda, cacique lonko. À direita, mulher Mapuche com jóias de prata, possivelmente por influência do contato com os espanhóis. Ambas fotos de 1890.

Créditos: Gustavo Milet Ramirez. Fonte: Biblioteca Nacional Chilena (www.memoriachilena.cl)

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Também poderíamos ilustrar tal compreensão a partir da questão da “religião”,

especificamente a grande influência que teve e tem o cristianismo no sistema simbólico Mapuche.

Dos Mapuche que responderam a questão acerca da religião no Censo chileno de 2002, 94 % se

disseram cristãos, sendo que destes, 32% se professavam evangélicos. Contudo, não podemos dizer a

priori que abandonaram seu sistema simbólico de antes do cristianismo, que como vimos era

politeísta e se baseava na noção da “mapu”. Tais sistemas se fusionaram, gerando um interessante

amálgama. Como elucida Bocarra,

durante a celebração de São Francisco, os Mapuche fincam cruzes no meio do roçado e oram para obter boas colheitas [...] mas se prestarmos atenção ao ritual de São Francisco, daremos conta que as cruzes estão feitas exclusivamente de foye ou külon (árvores que entram na confecção do altar da machi), que eles não retiram as folhas dos ramos, dando a aparência de uma “cruz não-domesticada”, que a cruz está molhada com mudai (típica bebida ritual fermentada que funciona como símbolo de autenticidade autóctone), que a oração se efetua em mapundungun, olhando-se para o oriente (ponto cardeal conotado como positivo) e que a oração se dirige a entidade celestial Mapuche Ngünechen (2005, p. 10, tradução nossa).

Nesse mesmo sentido, poderíamos pensar a questão da língua nativa, o mapundungun (em

português, “som da terra”). Sendo as crianças forçadas pelo sistema público de ensino chileno a só se

comunicar em espanhol, a língua nativa Mapuche está em vias de extinção. Contudo, apesar desta

contenção histórica, o fato da maioria deles já não falarem mapundungun não os fazem mais

“chilenos” e menos “indígenas”.

Em relação à demografia, no ano de 2002, o censo chileno contabilizava uma população de

pouco mais de 15 milhões de pessoas, sendo que por volta de 604 mil se definiram como Mapuche,

representando assim 4% da população chilena. Na Argentina, os números oficiais8 eram de 105 mil

indígenas Mapuche9. Como conseqüência de processos de migração interna, verificados a partir da

desestruturação do território Mapuche no século XIX, muitos indígenas foram viver na cidade.

8 De acordo à Pesquisa Complementar dos Povos Indígenas (PCPI, em espanhol ECPI) 2004–2005, que foi finalizada pelo Estado argentino através do Instituto Nacional de Estatística e Censos. 9 Contudo, estes números são altamente criticados pelas associações e agrupamentos Mapuche, que dizem haver vários

problemas metodológicos na pesquisa. De acordo com as mesmas, esta população, no Chile e na Argentina, não seria menor que 1 milhão.

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Ainda de acordo com o censo de 2002, estima-se que 62% dos Mapuche vivam em cidades, sendo

que só a região metropolitana de Santiago abrigaria mais de 180 mil indivíduos (30% de toda a

população Mapuche).

Sem embargo, um terço da população Mapuche (por volta de 200 mil pessoas) ainda vive

na região administrativa da Araucanía, considerada o coração de seu território ancestral, fazendo

com que, uma de quatro pessoas que vivem nesta jurisdição seja Mapuche. A maioria desta

população, entretanto, encontra-se socialmente marginalizada, sendo que segundo pesquisa oficial

42% dos Mapuche da Araucanía se encontravam no nível da pobreza (ODPI, 2004).

Atualmente os Mapuche vêm se apropriando de modernas ferramentas de comunicação,

como a internet e os recursos audiovisuais, buscando registrar traços essenciais de sua cultura,

conservar sua língua original e acima de tudo tentando difundir os conflitos territoriais e a repressão

pela qual vêm passando.

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Page 23: TCC: MAPUCHE: (A)GENTE DA TERRA: Uma perspectiva espacial da situação indígena mapuche, en La Araucanía, Chile.

2. O ESTADO CHILENO: “POR LA RAZÓN O

LA FUERZA”

om a independência do Chile, de início, a situação só se altera para pior. Em nome de ideais de “liberdade, igualdade e fraternidade”, toda uma legislação

igualitarista foi promulgada, visando destruir as bases da vida tribal, assentada na propriedade comunal da terra. Nominalmente, se igualara o araucano a todos os demais chilenos, mas, efetivamente, se liquidava com a condição fundamental de sobrevivência autônoma. Desencadeia-se, desse modo, um processo de competição entre os índios, de um lado e, do outro, os latifundiários, que tinham nas terras comunitárias vizinhas sua fronteira mais flexível, e todos os que queriam fazer-se proprietários. É a época das compras fantasiosas, das sucessões e cessões ‘livres’ de territórios tribais que permitiram arrebatar aos araucanos a quase totalidade de seus antigos territórios e a engajar mais índios despojados na camada mais miserável da população rural.

C

(Darcy Ribeiro, 2007, p. 340).

3.1 ESTADO, NAÇÃO, TERRITÓRIO E A QUESTÃO INDÍGENA: APORTES TEÓRICOS

Para podermos compreender corretamente a relação entre o Estado chileno e a etnia

Mapuche, devemos antes disso, compreender os processos históricos de colonização dos territórios

sobre os quais este Estado atualmente se assenta. A análise deve necessariamente abordar os aspectos

da formação territorial e nacional, ao mesmo tempo em que deve tentar compreender a dinâmica

espacial desta formação.

Antes de tudo, devemos ter presente que conceitos como “Território”, “Estado” e “Nação”

não são atemporais, mas historicamente determinados, frutos do processo de modernização

capitalista10 e intrinsecamente atrelados a ele (HAESBAERT, 2006, p.134). Como ilustração das

10 Cf. MARTINS, André, 1992. Para o autor, o Tratado de Paz de Westfália (1648) marca o início da constituição de um

sistema “moderno” de fronteiras na Europa, baseado na idéia de nação. Após este tratado firma-se a noção de que a fronteira marca o limite territorial onde o Estado-Nação exerce sua soberania.

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Page 24: TCC: MAPUCHE: (A)GENTE DA TERRA: Uma perspectiva espacial da situação indígena mapuche, en La Araucanía, Chile.

limitações espaço-temporais destes conceitos, poderíamos tomar a concepção clássica de “Nação” de

Voltaire, em meados do século XVIII, onde diz que “a nação é um grupo de homens estabelecidos em

um território definido, que forma uma comunidade política e se caracteriza pela consciência de sua

unidade e sua vontade de viver em comum” (1980, p.33). Qual seria a validade da definição para o

período contemporâneo, especialmente nos países que sofreram processos coloniais, onde a idéia de

identidade nacional foi inserida predominantemente pela via ideológica estatal, motivado por claros

interesses políticos integracionistas?

Deste modo, muitas investigações vêm sendo desenvolvidas buscando compreender as

particularidades da formação das sociedades coloniais, no que se convencionou chamar de “estudos

pós-coloniais”. No que confere ao continente americano, a questão indígena seria um dos temas

relevantes dentro destes estudos, visto sua importância para a compreensão das complexas

sociedades mestiças aí desenvolvidas.

A mobilização de mão-de-obra indígena, baseado em preceitos teológicos e raciais, teve

como objetivo o incipiente processo de acumulação européia e como conseqüência, a uma massiva

desterritorialização destas populações (BENGOA, 2007). Desconsiderou-se neste processo, por

suposto, a territorialidade ancestral indígena e a particularidade identitária predominantemente daí

derivada. Fazemos menção aos processos de “identidade territorial”, tão presentes nas sociedades

tradicionais. Para estas, de maneira geral, a territorialidade “além de conter dimensões sócio-políticas,

também contém uma ampla dimensão cosmológica, o que não ocorre na concepção de território do

Estado” (FARIA, 1997, p. 16). Predomina-se nesta concepção, não o valor-de-troca, mas sim o valor

simbólico do espaço, a fusão de recursos materiais, morais e espirituais. Haesbaert identifica estes

territórios como culturalistas, ou seja, “produto da apropriação resultante do imaginário e/ou

identidade social sobre o espaço” (HAESBAERT, 2006, p. 39-40).

Em relação à ciência geográfica, o conceito de território nos remete à Friedrich Ratzel, que

deu importantes aportes teóricos para a compreensão das relações entre o Estado, as fronteiras

territoriais e a soberania, ainda no final de século XIX. Para o autor, o Estado seria um tipo de

organismo espiritual e moral que articularia o “povo” e o “solo” (RATZEL, 1987). A partir deste

aporte inicial, o conceito teve inúmeras outras interpretações, não obstante, sempre se atendo à

dimensão política do espaço. Buscando uma essência comum a estas formulações, poderíamos dizer

que o território sintetiza a “apropriação de um determinado espaço, onde se estabelecem relações de

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Page 25: TCC: MAPUCHE: (A)GENTE DA TERRA: Uma perspectiva espacial da situação indígena mapuche, en La Araucanía, Chile.

poder” (LOPES, 2005). Sem embargo, como nos adverte Raffestin, a geografia política quase sempre

tomou estas relações de poder como derivadas unicamente do Estado, em detrimento de outras

instâncias, um equívoco a seu ver (RAFFESTIN, 1993, p.17). Como a geografia política encararia

então, a idéia de “território indígena”?

A nosso ver, ao tratarmos dos Mapuche, o conceito de “territorialidade” faz sentido até o

já mencionado Tratado de Quilín, em 1641, quando a Coroa Espanhola acordou a autonomia das

terras ao Sul do rio Bío-Bio, definindo assim um “território Mapuche”. Entendemos territorialidade

enquanto o conjunto de mediações espaciais e seus referenciais simbólicos nascidos na relação de

apropriação de determinado espaço. Em outras palavras, a dinâmica espacial destes grupos, ou seja, a

ação sobre um espaço, que por ser poroso, subjetivo, ainda não se consolida totalmente como um

território. Tudo indica que até o contato com o outro –os “winka”, isto é, os espanhóis- e

especificamente até o acordo político que acordou a autonomia, as relações de apropriações espaciais

indígenas prescindiam de uma dimensão material delimitada.

No mesmo sentido, o conceito de “território” nos parece o mais apropriado para se

discutir as relações espaciais de poder que vão de 1641 até o período contemporâneo, visto a

delimitação física de fronteiras e apropriação política das terras delimitadas. Este conceito, que

enquanto discurso dos movimentos indígenas cada vez mais substitui a antiga demanda pela “terra”,

acaba neste âmbito por resignificar o conceito geográfico, querendo comunicar que reclamam não

só à superfície da terra, mas também tudo o que está abaixo e acima dela, seja do mundo material ou

metafísico, como, por exemplo, a água, os minerais, a vegetação, os espíritos dos antepassados etc. O

território para as populações indígenas conota tanto meio de reprodução material como

possibilidade de perpetuação cultural

A identidade territorial, fruto da relação dialética entre determinado espaço e cultura,

parece ser o propulsor do atual atvismo em defesa dos “territórios ancestrais indígenas”. Evidencia-

se nestas reivindicações o caráter conflitivo da histórica sobreposição entre as territorialidades

indígenas e os territórios do Estado-Nação, cada qual com uma lógica, embasados por distintos

sensos de pertencimento e identidade11. Tal é o exemplo dos Mapuche, que foram divididos entre os

territórios argentino e chileno, ou ainda de muitos outros grupos indígenas, como os Quéchua ou os

Guarani.

11 Sendo esta por nós entendida como um sistema de relações e representações (GIMÉNEZ, 2004).

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Page 26: TCC: MAPUCHE: (A)GENTE DA TERRA: Uma perspectiva espacial da situação indígena mapuche, en La Araucanía, Chile.

2.2 O PROCESSO DE FORMAÇÃO TERRITORIAL CHILENO E SUAS CONSEQUÊNCIAS

PARA COM OS MAPUCHE

Após a independência chilena do jugo espanhol, em 1818, iniciava-se um intensivo

processo de formação nacional, de criação de símbolos e mitos que pudessem agregar o contingente

de pessoas que ali viviam, em torno de um projeto comum. Enquanto os “brasileiros” elegiam a

“ordem e o progresso” como divisa nacional, os “chilenos” optavam 70 anos antes, pelo lema “Por

la razón o la fuerza” (pela razão ou pela força), como estampa de seu escudo pátrio, presente até hoje

em dia. Nada mais verdadeiro para justificar o espírito daqueles que queriam conformar a nação

chilena, e que recorreriam, assim como ainda hoje recorrem, à virulência da força na falta de uma

suposta razão para seus propósitos.

Nesse sentido, ainda que o Estado chileno formalmente ratificasse o “território autônomo

Mapuche” (Tratado de Tapihue, 1825), a existência deste se tornou um obstáculo para o projeto

nacionalista, que requeria além da homogeneidade cultural, uma plena unificação territorial.

Somava-se ainda a importância geopolítica da Patagônia e do Cabo de Hornos, no extremo sul do

continente, espaço ainda fora de sua jurisdição –e da jurisdição do Estado Argentino- à época da

independência (Fig. 06):

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Page 27: TCC: MAPUCHE: (A)GENTE DA TERRA: Uma perspectiva espacial da situação indígena mapuche, en La Araucanía, Chile.

Figura 06: América do Sul independente, no começo do século XIX. Atentar para a República de Chile, que

não considerava o território Mapuche como parte de seu território. (Fonte: www.atlas-historique.net). Desde meados do século XIX, a expansão da fronteira austral para além do rio Bío-Bío e a

definitiva incorporação do território Mapuche se tornaram um dos grandes objetivos da incipiente

república. O projeto foi efetivado pelo coronel Cornélio Saveedra, a partir de 1857, na intervenção

militar que ficou conhecida eufemisticamente como a “Pacificação da Araucanía”. Esta durou 21

anos (1862-1883) e incorporou a totalidade do território Mapuche, tendo ocasionado a morte de

milhares de indígenas e a pilhagem de grande parte dos bens dos que sobreviveram.

Certa parte da fração sobrevivente, por volta de 77 mil Mapuches, foi transferida às

chamadas “reduções”, propriedades cedidas pelo Estado por meio dos “títulos de merced”, que numa

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Page 28: TCC: MAPUCHE: (A)GENTE DA TERRA: Uma perspectiva espacial da situação indígena mapuche, en La Araucanía, Chile.

tradução ao português se aproximaria a um “título de misericórdia, de perdão” (BENGOA, 2000, p.

355). Assentada nas terras mais pobres12 e desconsiderando todo o vínculo cosmogônico dos

Mapuche com seus lugares de nascimentos, este processo –que ficou conhecido como radicação-

significou a diminuição a 13% do território Mapuche delimitado em 1641. De um vasto espaço, sem

cercas, os Mapuche se reduziram a pequenas propriedades, numa média de 6,5 hectares por

indivíduo, no que concerne a região administrativa da Araucanía (CORREA et alli, 2005, p.52;

BENGOA, 2000, p. 355). (Figura 07 e 08):

Figura 07: Família Mapuche fotografada durante processo de radicação, no final do século XIX.

Fonte: Biblioteca Nacional Chilena, autor desconhecido (www.memoriachilena.cl)

12 A esse respeito Bengoa defende que é “a partir da Pacificação [que] surge o tema da pobreza Mapuche; o indígena é obrigado a se tornar camponês sem ter a preparação para isso, não tem a tecnologia nem a cultura agrária necessária para aproveitar adequadamente sua pequena propriedade. A criação extensiva de gado vai se transladando a pequenos espaços onde se abriram pastos; a rotação natural de terras se vê reduzida tendo como conseqüência a erosão e o desgaste dos solos. As terras dos “títulos de merced” se dão nas terras de pior qualidade” (BENGOA, 1983, p.131, tradução nossa).

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Page 29: TCC: MAPUCHE: (A)GENTE DA TERRA: Uma perspectiva espacial da situação indígena mapuche, en La Araucanía, Chile.

Figura 08: Em azul, as reduções destinadas ao confinamento dos Mapuche após a intervenção militar da

“Pacificação da Araucanía”. (Fonte: Sistema Nacional de Coordinación de Información Territorial [SNIT] CHILE)

A parcela dos indígenas que não foram transferidos às reduções -mais de 30 mil- ficou

simplesmente sem direito algum à terra, sendo obrigados a se transladarem às já restritas

propriedades daqueles que conseguiram o título de merced ou então migrarem às cidades. Os 87% do

território o qual o Estado chileno se apropriou tiveram diversos fins: tornaram-se terrenos públicos,

foram transpassados aos militares da campanha, foram cedidos a colonos nacionais e europeus13 ou

ainda foram tornados privados por meio de leilões públicos, conformando os tradicionais

latifúndios do centro sul do Chile, legalmente institucionalizados desde sua gênese.

Seguindo seu próprio ideal constitucional, que apregoava haver uma só nação no interior

13 A maioria dos colonos europeus era de procedência alemã. O discurso da época possuía um matiz eugenista,

defendendo que o “branqueamento” da população por europeus, traria consigo a civilização, o desenvolvimento e o progresso.

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Page 30: TCC: MAPUCHE: (A)GENTE DA TERRA: Uma perspectiva espacial da situação indígena mapuche, en La Araucanía, Chile.

de seu território, o Estado chileno trabalhou ideologicamente de diversas maneiras tentando

integrar e nacionalizar os antigos donos da terra, seja pela coação das crianças nas escolas, que já não

eram mais “índias” e sim “chilenas”, ou através da proibição do mapundungun enquanto idioma ou

ainda por meio das cada vez mais freqüentes missões religiosas e catequeses.

No ano de 1900, de maneira geral, as fronteiras territoriais dos Estados sul-americanos já

estavam praticamente definidas, tendo o Chile levado a cabo seu projeto de dominação e posterior

integração física da atual porção austral de seu território, estendendo sua fronteira até o Cabo de

Hornos (Fig. 09 e 10):

Figura 09: Túnel de ferrovia construída na Araucanía, após a tomada do território Mapuche, 1900.

Fonte: Biblioteca Nacional Chilena, autor desconhecido (www.memoriachilena.cl).

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Page 31: TCC: MAPUCHE: (A)GENTE DA TERRA: Uma perspectiva espacial da situação indígena mapuche, en La Araucanía, Chile.

Figura 10: América do Sul em 1900. Atentar para a República de Chile, que logrou a posse do estratégico Cabo de Hornos, ao sul, assim como a região salitreira ao norte, anexado pela Guerra do Pacífico. (Fonte:

www.atlas-historique.net). A condição agrária dos Mapuche se agravou nas primeiras décadas do século XX, já que

por meio de falsificações diversas (as chamadas “corridas de cerco”) as reduções sofreram uma nova

diminuição, desta vez por volta de um quarto (CORREA et alli, 2005, p. 62). Não obstante, como

assinala Bengoa, vale assinalar que já nessa época se observava um fenômeno de concentração de

terras, num processo consentido de formação de latifúndios, pois até 1910 os colonos ocupavam

somente 10% do antigo território Mapuche (BENGOA, 2000, p. 357).

Posteriormente, um novo processo de redução se deu por uma lei (Nº 4.169) que permitia

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Page 32: TCC: MAPUCHE: (A)GENTE DA TERRA: Uma perspectiva espacial da situação indígena mapuche, en La Araucanía, Chile.

e incentivava a divisão das comunidades, em vigor por diferentes estratégias políticas de 1927 a

1972. Esta significou a legalização jurídica da fragmentação das propriedades comunais em

propriedades privadas, passível de livre compra e venda e assim regulamentada pelas leis de mercado.

Até o ano de 1949, por volta de 25% dos terrenos comunais Mapuche já tinham sido divididos em

propriedades particulares e caído na mão de proprietários não indígenas. Igualmente inumeráveis

famílias Mapuche perderam suas terras por dívidas contraídas em bancos e agiotas, na tentativa de

fazer produzir a terra, ou ainda por tributos territoriais a que se viram obrigados a pagar ao Estado,

após serem confinados nas reduções (Ibidem, p. 365).

Em suma, pode-se constatar que na metade do século XX as “reduções” teriam significado

a redução de 95% das terras Mapuche em relação ao “território autônomo Mapuche” do período

colonial (PDI, 2002, p. 02; MORALES URRA, 1994, p. 97). Assim como podemos constatar que o

processo de formação dos latifúndios na região da Araucanía teve sua formação original

legitimada e induzida pelo próprio Estado chileno. As conseqüências desse processo foram

diversas, sendo a principal delas desestruturação de sua organização sócio-espacial. Os Mapuche que

conseguiram permanecer nas reduções, foram fadados ao minifúndio e à produção de subsistência.

Em relação aos aspectos culturais, já não podiam exercer a antiga mobilidade que a mapu

representava, já que o “território foi convertido de uma unidade entre dois grandes rios, a mais de

3.000 pedaços dispersos entre o mar e a cordilheira; e a natureza [que era] assumida integralmente foi

fraturada em múltiplas zonas e nichos.” (MORALES URRA, 1994, p.97)

A situação política teve alguma mudança na década de 1960 e inícios dos anos 1970. Os

governos de Jorge Alessandri, Eduardo Frei Montalva e de Salvador Allende abriram o debate da

Reforma Agrária no Chile e por meio de mobilizações dos setores indígenas, estas tenderam a abrir a

discussão da questão agrária, buscando incorporar não só os “camponeses sem terra”, como também

os “indíos usurpados”. As expropriações na região da Araucanía durante este processo chegaram à

cifra de 739 mil hectares, sendo que 20% destas foram repassadas aos Mapuche e o resto a

camponeses (CORREA et alli, 2005, p. 219).

Não obstante as esperanças duraram até o dia 11 de Setembro de 1973: o golpe de

Pinochet iniciou um processo de contra reforma-agrária. Os líderes das agrupações foram

perseguidos, a maquinaria agrícola destinada aos Mapuche foi confiscada, as redes produtivas foram

desarticuladas. De acordo com dados da “Comissão Verdade e Reconciliação”, de 1991 (apud

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Page 33: TCC: MAPUCHE: (A)GENTE DA TERRA: Uma perspectiva espacial da situação indígena mapuche, en La Araucanía, Chile.

MORALES URRA, 1994, p. 104), só na região da Araucanía, 113 Mapuche foram mortos pela

repressão estatal, durante a ditadura. De maneira geral, para propiciar o retorno de terras ao

mercado, o regime ditatorial devolveu 1/3 da terra apropriada aos antigos donos, vendeu outro 1/3

às corporações internacionais e repartiu o outro 1/3 em parcelas individuais. (Ibidem, p.62). Deste

último terço, estima-se que somente metade foi entregue a assentados de origem Mapuche, sendo o

restante entregue a camponeses chilenos. As terras vendidas destinaram-se predominantemente às

grandes corporações florestais estrangeiras, que tiveram todo o apoio técnico e político para se

instalarem nestas terras. Soma-se o fato que

em conjunto com a perda de terras, os assentamentos, cooperativas, centros de reforma agrária e centros de produção Mapuche sofreram a confiscação de seus bens móveis, que eram fruto da capitalização acumulada durante todo o processo de reforma Agrária. Como conseqüência do expressado, se produziu a perda de maquinário, infra-estrutura produtiva, animais, colheita, valores e diversos tipos de bens (CORREA et alli, 2005, p. 299).

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Page 34: TCC: MAPUCHE: (A)GENTE DA TERRA: Uma perspectiva espacial da situação indígena mapuche, en La Araucanía, Chile.

3. A TERRITORIALIZAÇÃO DO CAPITAL: A DESESTRUTURAÇÃO TERRITORIAL DOS

MAPUCHE

iniendo desde Temuco, me adormezco en el viaje.

jos, com

Súbitamente, me despiertan los fulgores del paisaje. El valle de Repocura aparece y resplandece ante mis

o o si alguien hubiera descorrido, de repente, el telón de otro mundo.

VPero estas tierras ya no son, como antes, de todos y de

nadie. Un decreto de la dictadura de Pinochet ha roto las comunidades, obligando a los indios a la soledad. Ellos insisten, sin embargo, en juntar sus pobrezas, y todavía trabajan juntos, callan juntos, dicen juntos:

-Ustedes llevan quince años de dictadura – explican a mis amigos chilenos-. Nosotros llevamos cinco siglos.

Nos sentamos en círculo. Estamos reunidos en un centro médico que no tiene, ni jamás tuvo, médico, ni practicante, ni enfermero, ni nada.

-Una es para morir, no más –dice una de las mujeres. Los indios, culpables de ser incapaces de propiedad privada,

no existen. En Chile no hay indios: sólo hay chilenos – dicen los carteles

del gobierno. (Eduardo Galeano, “Los indios/1”, Libro de los abrazos)

3.1 A TERRITORIALIZAÇÃO DO CAPITAL NA REGIÃO DA ARAUCANÍA

Como dito, a investida militar e o conseguinte processo reducionista levado a cabo pelo

Estado chileno, na segunda metade do século XIX, repartiu o antigo território Mapuche em três

diferentes classes de propriedade: pública, privada e reducional (indígena). Vale dizer que a

constituição da propriedade seguiu exatamente esta seqüência, sendo as terras Mapuche aquelas que

por sua baixa fertilidade não possuíram interesse econômico por parte da iniciativa privada e

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Page 35: TCC: MAPUCHE: (A)GENTE DA TERRA: Uma perspectiva espacial da situação indígena mapuche, en La Araucanía, Chile.

conseqüentemente, não foram arrematadas nos leilões públicos.

Ao mesmo tempo em que tal processo favoreceu uma estrutura agrária de tipo latifundista,

destinada à produção agropecuária e posteriormente ao plantio florestal, radicou os Mapuche em

pequenas propriedades, num regime de produção intensiva de gêneros alimentícios, com mão de

obra familiar e destinada à subsistência. Obviamente tal regime era totalmente alheio à estrutura

produtiva anterior, baseada numa criação extensiva de animais, em territórios maiores.

As contradições deste processo se recrudesceriam por quase cem anos, encontrando

condições políticas de distensão no processo de reforma agrária da década de 1960/1970. Este

favoreceu, além da desapropriação de terras a favor dos Mapuche e de sua organização em torno de

cooperativas, um significativo financiamento estatal de maquinaria agrícola, ferramentas, insumos

etc.

Após o golpe militar, o governo de Pinochet adotou imediatamente um plano de ação

neoliberal, preparado por um grupo de economistas que ficaria conhecido como “Chicago Boys”, por

serem provenientes da Universidade de Chicago. Seu plano econômico era antípoda ao da Unidade

Popular, isto é, defendiam uma forte liberalização da economia como meio de “desenvolvimento

social”. Destarte, levaram adiante uma série de privatizações, diminuíram drasticamente as

atribuições do Estado e guinaram uma rápida abertura do Chile ao mercado mundial. Sobre as

políticas fundiárias, o posterior processo de contra-reforma agrária viria a confiscar todas as terras e

bens adquiridos, desestruturando a incipiente organização produtiva que havia sido lograda. Em

relação à balança comercial, o governo buscou uma diversificação da exportação cuprina,

historicamente predominante na economia chilena, mas sem, contudo, alterar o caráter dependente

destas exportações, no caso optando por matérias-primas com pouco valor agregado ou gêneros

alimentícios semi-processados, como por exemplo, o vinho e o salmão (PDI, 2002, p. 28-34).

Como sabemos, uma premissa para o avanço espacial das relações capitalistas é a formação

da propriedade privada da terra, regulamentada por um corpo jurídico que possa legitimar, regular e

assegurar a existência de tais relações. Tal medida foi definitivamente levada a cabo em 1978: o

decreto-lei 2.568 liquidaria a figura jurídica da propriedade comunitária da terra Mapuche,

desestruturando por completo a apropriação coletiva por dos mesmos.

Através dessa disposição se pretendia não só despojá-los de suas terras ancestrais, senão também privar o povo Mapuche do direito de ser reconhecido como tal. [...]

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Sobre a base dessa legislação, verificou-se desde então um processo divisório das comunidades indígenas, sem precedentes em nossa história. Assim, somente entre 1979 e 1986 dividiram-se um total de 1.739 comunidades (59,6% do total existente) entre as províncias de Arauco e Osorno (COMISIÓN VERDAD HISTÓRICA Y NUEVO TRATO, 2003, p. 7, tradução nossa)

O decreto-lei 2.568 foi o golpe derradeiro para a concentração de terras na região. De

acordo com o “VII Censo Nacional Agropecuario y Forestal” de 2007, no que concerne à

concentração da terra na Região da Araucanía, 64 proprietários detinham 22% (306.680 ha.) da

superfície explorada com atividades agropecuárias, enquanto 27.418 produtores detinham apenas

6,56 % da superfície (127.268 ha.) (GOBIERNO DE CHILE, 2007). Da mesma forma, a política

neoliberal vem favorecendo uma acentuada concentração de renda no Chile, onde os 10% mais ricos

da população possuem 47% da riqueza do país14 (SADER & NOBILE, 2006, p. 288).

Ainda sobre o decreto-lei, percebe-se que este se alicerçava numa estratégia de

modernização produtiva muito maior, uma vez que em 1978, o governo Pinochet já havia

privatizado grandes empresas relacionadas à produção de madeira e celulose15. Assim, quando o

Estado espacialmente abriu caminho ao capital, por meio da divisão das propriedades, já havia uma

prévia capitalização das indústrias do ramo florestal, que rapidamente territorializaram este capital

por meio de extensivas plantações. Surgiram assim, dos antigos latifúndios e terras do estado as

grandes empresas florestais, que atualmente lideram o mercado, cujos donos são dois dos mais

importantes grupos econômicos chilenos: O grupo Angelini que controla o maior investimento

florestal no Chile, através da Forestal Arauco e Celulosa Arauco e o grupo Matte, que controla a

Forestal Mininco e a Celulosa CMPC. Ambos os grupos controlam mais de 60% da atividade

florestal no Chile, liderando as exportações no ramo da madeira e derivados, tendo inclusive

investimentos na Argentina (CORNEJO, 2003, p.2-3).

Em relação ao uso do solo na Região da Araucanía, devido às características geográficas e

aos incentivos políticos, predomina-se o uso agropecuário (principalmente o plantio de aveia, de

trigo e a criação de bovinos) e as explorações florestais (Fig. 11):

14 Nada diferente do Brasil, onde como no Chile ovaciona-se o crescimento do PIB e cantam-se hinos de louvor ao “capitalismo que têm dado certo”. No Brasil 10% da população detêm 75,4% de toda a riqueza nacional, restando 24,6% dos bens e dinheiro para ser dividido entre os 165 milhões de brasileiros restantes. (POCHMANN et alii, 2005). 15 Estas empresas eram a Celulosa Arauco, Celulosa Constitución, Forestal Arauco, Inforsa, Masisa y La Compañía Manufacturera de Papeles y Cartones (CMPC). (CORNEJO, 2003, p. 02)

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Page 37: TCC: MAPUCHE: (A)GENTE DA TERRA: Uma perspectiva espacial da situação indígena mapuche, en La Araucanía, Chile.

Figura 11: Uso do Solo na Região de Araucanía.

(Fonte: VII Censo Nacional Agropecuario y Forestal, 2006-2007) Em nossa interpretação, o capital e o Estado estiveram atrelados no processo histórico de

desestruturação dos territórios Mapuche. O Estado, tentando desde sua gênese descaracterizar sua

identidade indígena Mapuche, buscando transformá-los em camponeses chilenos. Ao mesmo

tempo, cumpriu a função de abrir caminho aos investimentos capitalistas, propiciando estabilidade

e segurança aos mesmos, à custa do despojo e da miséria indígena. Ainda cumpriu a função de

propiciar a infra-estrutura para estes capitais, por meio de grandes investimentos em energia e

transportes. O capital, por sua vez, territorializou-se de maneira a tirar proveito das especificidades

geográficas da região da Araucania.

3.2 O AVANÇO POR SOBRE AS TERRAS MAPUCHE

3.2.1 Intervenções Estatais em nome do capital: o Estado como abre-alas aos setores

menos rentáveis.

As políticas públicas em “investimentos produtivos” e de infra-estrutura, aplicadas à

Região administrativa da Araucanía, como por exemplo, o do Ministério de Obras Públicas (MOP),

vêm possuindo prioridade política e orçamentária, inclusive com respaldo constitucional para isso.

Fundamentalmente as intervenções territoriais neste sentido são as de caráter energético e de

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transportes, setores estratégicos à modernização capitalista e à integração comercial destas áreas.

Vejamos os principais projetos deste tipo atualmente levados a cabo:

a)- Setor energético

Desde a década de 1980 a Empresa Nacional de Energia (ENDESA) -hoje privatizada na

mão do capital espanhol- desenvolve um projeto para a construção de seis centrais hidroelétricas na

bacia hidrográfica do Alto Bío-Bio. A segunda desta série, a hidroelétrica “Ralco”, foi inaugurada em

2004, inundando mais de 3.500 has e desapropriando ao redor de 500 indígenas.

b)- Setor de transporte

O Ministério de Obras Públicas vem planificando e executando dois projetos de rodovias

que cruzam a Região de Araucanía. A primeira é a “Carretera de la Costa”, projetada pela ditadura

militar, visando integrar economicamente áreas de difícil acesso16, facilitando o fluxo de

mercadorias e a exploração de recursos naturais aí existentes. O segundo projeto é uma variante da

“carretera panamericana sur” e seu trajeto se localiza na altura da cidade de Temuco, numa área

densamente povoada por comunidades Mapuche-huenteche.

a)- Empresas florestais

3.2.2 Principais investimentos capitalistas na Região da Araucanía

O Estado gerou uma série de instrumentos para transferir recursos ao setor privado,

beneficiando grandemente o setor exportador, particularmente aqueles vinculados a exploração de

bens primários e de recursos naturais pouco processados. Diversos acordos de livre comércio

(China, Nafta, Mercosul e União Européia) foram assinados, a contar da década de 1990, por

distintos governos. Como conseqüência, produziu-se uma expansão do investimento estrangeiro no

Chile, sendo que no caso da Região da Araucanía, os setores florestais, pesqueiros, minerais e

frutícolas foram os que mais se capitalizaram.

16 Como a remota região do Lago Budi, a qual tivemos possibilidade de visitar. Esta é uma área de ocupação

predominantemente Mapuche, a qual ainda mantém relações sociais pouco capitalizadas.

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Page 39: TCC: MAPUCHE: (A)GENTE DA TERRA: Uma perspectiva espacial da situação indígena mapuche, en La Araucanía, Chile.

Atualmente o Chile é o segundo maior produtor de celulose da América Latina, só

perdendo para o Brasil, sendo a produção de madeira e seus derivados um dos principais produtos

nas exportações chilenas. As plantações de pinus e eucaliptos se concentram em duas regiões

administrativas (ambas pertencentes ao território ancestral Mapuche): Bío-Bío e Araucanía. Em

relação à última, as explorações florestais estão localizadas em toda a parte centro-oeste,

especialmente na depressão intermediária, entre a Cordilheira dos Andes e a Cordilheira da Costa

(e nesta última, inclusive). De acordo com o censo de 2007, a silvicultura ocupa cerca de 650 mil

has., dividida entre espécies nativas e exóticas, sendo a área da última estimada em 327 mil hectares

(Pinus radiata e Eucalyptus globulus) (CORNEJO, 2003, p.03), A contradição se evidencia quando

tomamos em conta que após a invasão militar do tradicional território Mapuche, somente cerca de

500 mil hectares foram a eles destinados por meio dos “títulos de merced” (AYLWIN, 2005, p. 07)

(Fig 12):

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Page 40: TCC: MAPUCHE: (A)GENTE DA TERRA: Uma perspectiva espacial da situação indígena mapuche, en La Araucanía, Chile.

Figura 12: Monocultivos florestais em relação às propriedades Mapuche outorgadas pelos “títulos de merced Não encontramos um mapeamento das propriedades Mapuche atualizado, tampouco pensamos que exista, visto a desregulamentação do “caráter indígena da terra” promovida pelo governo Pinochet. Seguramente o

número de terras Mapuche é sobreestimado no mapa. Fonte: Adaptado por nós de Sistema Nacional de Coordinación de Información Territorial [SNIT] CHILE.

É fato que a produção florestal e a exportação da celulose daí derivada tem significado um

incremento a balança comercial chilena: estima-se que no ano de 2011 as exportações chegarão a

5.600 milhões de dólares. No entanto, não há qualquer indício de melhoria nas condições de vida

das populações rurais, na maioria Mapuche, que vivem próximas das áreas de plantio do pinus e

eucalipto. As conseqüências da substituição do bosque nativo pela monocultivo madeireiro são bem

conhecidas: erosão e desestruturação do solo, diminuição da quantidade de água no solo (podendo

inclusive eliminá-la por completo), perda da biodiversidade etc. (PDI, 2002, p. 29-30; CORNEJO,

2003).

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Page 41: TCC: MAPUCHE: (A)GENTE DA TERRA: Uma perspectiva espacial da situação indígena mapuche, en La Araucanía, Chile.

No caso específico dos Mapuche, as plantações florestais geram ainda outras

conseqüências, como as da ordem cultural. Fazemos menção à cosmovisão, aos newéns da mata, a

noção de equilíbrio e reciprocidade, o acesso à caça, ao mel selvagem. Inclusive em nosso trabalho de

campo nos foi relatado a crescente dificuldade de acesso aos medicamentos tradicionais Mapuche,

só encontrados na vegetação nativa: as machis (xamãs), nas funções de “médicas” da comunidade, já

não podiam realizar a coleta de suas plantas de poder, perdendo assim sua própria razão de ser.

b)- O setor pesqueiro

O setor pesqueiro se divide em dois ramos de atividade, relacionados ao ecossistema de

produção: o mar e as águas superficiais do interior. Em relação ao primeiro, entre 1975 e 1994 as

capturas aumentaram quase 800%, isto é, de 930 mil toneladas a mais de oito milhões de toneladas

por ano, nas regiões administrativas VIII, IX e X (PDI, 2002, p. 34).

Em relação às criações de água doce, a atividade que se destaca é a salmonicultura, quase

que exclusivamente destinada à exportação. No período 1999-2006, no que se refere a produção de

salmão, La Araucanía registrou investimentos na ordem de 52 milhões de dólares. Os impactos

ambientais desta atividade ainda não foram rigorosamente estudados, entretanto já se pode perceber

a contaminação das águas nas áreas de maior densidade produtiva.

A expansão pesqueira tem provocado um grande lobby de investidores privados nas

instâncias políticas, evidentemente pelo interesse do controle dos recursos hidrobiológicos e do

direito à exploração da área costeira, ambos regulamentados pelo Estado. No fundo, estamos diante

da privatização de recursos naturais, nesse caso o mais fundamental à reprodução humana: a água.

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Page 42: TCC: MAPUCHE: (A)GENTE DA TERRA: Uma perspectiva espacial da situação indígena mapuche, en La Araucanía, Chile.

4. O CONFLITO: O DIREITO DE EXISTIR

o hay verdades universales y eternas, sino con relación a un determinado tipo de hombres y a una época. En haber creído en ellas, en mirarse con los ojos del

conquistador, está el pecado mortal de América, la causa de las distorsiones que durante tanto tiempo cerraron el camino a la plenitud.

N (Adolfo Colombres, 1976)

4.1 A questão indígena latino-americana: uma aproximação espacial

A questão Mapuche contemporânea se constitui enquanto particularidade de um processo

espacialmente mais amplo e historicamente mais extenso. Fazemos referência aos específicos

processos políticos que ocorreram na América Latina, processos estes que explicam a atual condição

social em que se encontram as populações indígenas aí residentes. A emergência indígena Mapuche

só pode ser compreendida, a nosso ver, enquanto parte de um fenômeno mais abrangente: a

contemporânea emergência indígena latino-americana.

Devido a processos históricos coloniais17 e da formação das repúblicas latino-americanas,

algumas delas com nítidos projetos eugenistas18, muitos povos originários sofreram a ação de uma

verdadeira política etnocída. Tais processos explicam a espacialidade desta população no atual

contexto continental, já que a maioria da massa populacional indígena –atualmente em torno de 25

milhões– se concentra em apenas quatro países: Peru, México, Guatemala e Bolívia. Isto não

significa, é claro, que em outros países esses povos são inexistentes: Colômbia, Brasil, Equador e

Chile, por exemplo, estimam que ultrapassem os 600 mil. No entanto, devido à grande magnitude

populacional de não-indígenas nestes países, a parcela indígena tende a se diluir proporcionalmente.

Apesar desta concentração, pode-se dizer com segurança que os povos originários, como também

são chamados, existem em praticamente todo território latino-americano, em maior ou menor

17 No período colonial os indígenas tiveram, em média, sua população reduzida na proporção de 25 para 1. 18 Vide como exemplo Domingo Faustino Sarmiento (Conflictos y armonías de las Razas en América, 1833), Carlos

Octávio Bunge e José Ingenieros, para o debate argentino; em Chile o históriador Francisco Antonio Encina; na Bolívia, Alcides Arguedas (Pueblo Enfermo, 1909); no Brasil, Euclides da Cunha (Os Sertões, 1902) e Monteiro Lobato.

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número (Fig. 13).

Figura 13: Porcentagem da população indígena em relação à população total, em 1995. Fonte: LAROSA & MEJIA, 2007a

O termo “índio” nasce no período colonial, em clara oposição ao branco europeu,

colonizador. Foi utilizado como ferramenta de submissão, mediante a racialização da relação entre

os colonizadores e os colonizados. Como nos elucida Aníbal Quijano (2008, p. 108), a construção

do conceito de “raça” e sua hegemonização, gerada para naturalizar as relações sociais de exploração

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produzidas pela conquista, funcionou como pedra basal do novo sistema de dominação colonial.

Devemos lembrar que este sistema funda-se como premissa histórica para a instauração do moderno

sistema produtor de mercadorias19, em escala mundial, desta vez em torno da hegemonia não mais

da raça, mas do capital. Para o autor, a questão indígena na América só faz sentido se discutidas em

relação à colonialidade do “padrão de poder” vigente. Uma das principais conseqüências da

experiência colonial foi então o “eurocentrismo”, que

A eurocentragem (sic) do controle do novo padrão de poder fez com que a elaboração intelectual sistemática do modo de produção e do controle do conhecimento tivesse lugar precisamente na Europa Ocidental, que por sua vez, vai se formando ao mesmo tempo e no mesmo movimento histórico. A expansão mundial do colonialismo europeu leva também à hegemonia mundial do eurocentrismo. (QUIJANO, 2008, p. 108, tradução nossa).

As posteriores repúblicas se formariam partindo do modelo iluminista moderno, ou seja, a

partir da indissociabilidade do Estado, do território e da nação. A formação destas nações no

contexto colonial exigiu a necessidade de conformação de uma multiplicidade de culturas, etnias,

línguas e classes sociais, todos com todas contradições internas. A especificidade desta formação

instalou na América um paradoxo histórico específico, que traz conseqüências até os dias de hoje: a

existência de Estados independentes articulados a sociedades coloniais.

O estigma da “raça”, tão naturalizado socialmente durante mais de três séculos, fez com

que simples alterações nas relações de produção (como a eliminação das formas não salariais de

divisão do trabalho, entre elas a escravidão, por exemplo) não fossem suficientes para integrar a

população indígena à “sociedade nacional”. A solução para tal questão histórica implicava a

subversão e desintegração completa do padrão de poder, com os objetivos de aproximar a nação, a

identidade e a democracia. Obviamente tal desintegração não aconteceu, pois feria os interesses

sociais de perpetuação da dominação, levados a cabo pelas classes –branca, culturalmente

europeizadas– que protagonizavam os processos políticos de então (Ibid. p. 110).

A partir do final do século XIX e durante praticamente todo o século XX a “assimilação”,

ou melhor, a “des-indianização” do indígena começou a fazer parte do pensamento republicano,

19 Visto o gigantesco fluxo de metais preciosos que se dirigia das colônias às metrópoles, aliado ao “exclusivo

metropolitano”, que foi o pacto colonial que dava o direito do monopólio comercial. Ambos foram imprescindíveis à acumulação primitiva e a posterior Revolução Industrial.

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principalmente por meio do sistema institucionalizado da educação pública e secundariamente

mediante o trabalho de instituições religiosas e militares. Tal problemática e suas contradições

receberam o nome de questão indígena, e a solução adotada pelos Estados para tal questão consistia,

e predominantemente ainda consiste na assimilação dos índios à cultura dos que lograram sua

dominação, cultura essa conhecida comumente pelo epíteto “nacional”.

Nesse complicado contexto histórico e espacial é que podemos compreender a

particularidade do movimento Mapuche, especialmente sua emergência nos últimos trinta anos.

Justamente na conjuntura dos processos neoliberais e de globalização, quando ideólogos defendiam

a ocorrência de uma homogeneização cultural e social, vemos a ocorrência do oposto, isto é, um

notável renascimento étnico e identitário ao redor do mundo:

A globalização funciona melhor como uma gigantesca máquina de "inclusão" universal que visa criar uma superfície lisa, livre de rugosidades, em que as identidades possam deslizar se articularem e circular em condições que sejam favoráveis ao capital globalizado. Assim a globalização procura aproveitar a diversidade, ainda que no transe globalizador buscará, é claro, isolar e eventualmente eliminar as identidades que não são domesticáveis ou digestíveis. A diversidade pode ser nutritiva para a globalização, descontando algum tipo de identidade que lhe possa ser indigesta. A globalização é, em suma, essencialmente etnófaga. (DIAZ-POLANCO, 2006, p. 01, tradução nossa).

É a partir da década de 1980 que percebemos a ascensão dos movimentos indígenas

enquanto sujeitos históricos, num processo de resgate étnico e de criticidade em relação aos

fundamentos dos Estados republicanos20 (Fig. 14).

20 Como exemplo, poderíamos citar os levantes zapatistas de 1994, no México; a conformação da Confederação de

Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE) em 1986 e sua posterior insurgência em 1990 ("Levantamiento del Inti Raymi); o renascimento do movimento katarista na Bolívia e toda a discussão constitucional levantada por Evo Morales; o congresso continental de 1990 em Quito, no Peru; os acordos de Paz e a revisão dos direitos indígenas, na Guatemala, em 1995; os protestos Mapuche contra a construção de represas no Alto Bío-Bío (Chile); as reivindicações também dos Mapuche contra a existência de latifúndios em posse de estrangeiros, na patagônia argentina; a pressão indígena por mudanças constitucionais na Colômbia etc. Especificamente no Brasil, podemos verificar os conflitos pela homologação da Área Indígena Raposa Serra do Sol em Roraima e as ocupações de 14 fazendas simultaneamente pelos Guarani-Kaiowá, no Mato Grosso Sul, ambas em 2003. Soma-se a contra-ofensiva dos Cinta-Larga, em Rondônia, que repeliu a ação predadora de milhares de garimpeiros na Área Indígena de Roosevelt, resultando na morte de 29 invasores.

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Figura 14: Novos movimentos indígenas latino-americanos.

Fonte: Adaptado por nós de LAROSA & MEJIA, 2007b Não poderíamos associar este fenômeno a uma única causa, tampouco estabelecer um

esquema determinista de causa e efeito. A questão da irrupção destes movimentos indígenas sugere a

atualidade de suas históricas demandas, tensionadas durante séculos. Destarte, para efeito analítico,

poderíamos pensar em fatores estruturais e fatores conjunturais, estando os dois relacionados

dialeticamente. Os primeiros fariam menção, por exemplo, ao peso demográfico da população

indígena, sua condição social e econômica, seu acesso à terra, as condições de fazê-la produzir, sua

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maior ou menor organização política, a valorização geopolítica e econômica dos territórios

reivindicados por parte dos poderes hegemônicos etc. Evidentemente estes fatores não possuem

homogeneidade espacial (no caso, da América Latina) ainda que possam historicamente conformar

certa unidade. Em outras palavras, cada etnia, em cada movimento organizado, em cada país, sob

cada constituição, possuiria diferentes condições efetivas de avançar em suas demandas políticas e

culturais. A do caso específico dos Mapuche será apresentada no próximo subcapítulo.

Por outro lado, como fatores conjunturais, poderíamos considerar situações/processos

que favoreceriam ou desfavoreceriam a eclosão e efetivação dessas demandas, ou ainda um

desenvolvimento político das mesmas. Essas últimas, em nosso entendimento, possuem maior

homogeneidade, fazendo parte de processos espacialmente mais abrangentes. Entre as hipóteses

levantadas pelos autores consultados estão:

A.- O processo de neoliberalização econômica e ajustes estruturais, instaurado pelos governos (na

maioria militares) da América Latina, de maneira geral, a partir da década de 1970. Estes

provocaram aumento de fluxos informacionais e conseqüentes mudanças no que concerne à

identidade, principalmente naquelas que se encontravam tencionadas e/ou mal consolidadas, como

a do caso indígena (QUIJANO, 2008, p. 114). O posterior contexto de crise econômica e

enfraquecimento dos Estados em seus projetos modernizadores, somado à posterior abertura

democrática e reformas constitucionais, trouxeram o tema indígena ao centro do debate nacional

(TOLEDO, 2005; BENGOA, 2007);

B.- Com maior acesso aos recursos tecnológicos, populações rurais que viviam praticamente

isoladas puderam se organizar enquanto coletivo, ou ainda populações urbanas que haviam migrado

e que vivenciavam processos de aculturação puderam reverter este processo (TOLEDO, 2005;

BENGOA, 2007);

C.- Alguns autores defendem que o fim da Guerra Fria enfraqueceu as concepções identitárias

classistas, ao mesmo tempo em que fortaleceu as de caráter étnico, regional ou local. Estaríamos

assim diante de um processo de resignificação identitária indígena, que muitas vezes se

identificavam e/ou eram identificados meramente como “camponeses” (TOLEDO, 2005;

BENGOA, 2007);

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D.- Por último, mas provavelmente uma das maiores influências, foi o desenvolvimento da doutrina

internacional de direitos indígenas e a criação/ratificação destes pelos Estados, como o convênio 169

da Organização Internacional do Trabalho, de 1989 [vide ANEXO A] e a Declaração das Nações

Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, de 2007. Entre as normas internacionais básicas relativas

aos direitos coletivos dos povos indígenas encontram-se os “direitos de propriedade, uso, controle e

acesso às terras, territórios e recursos; os direitos de integridade cultural e os direitos à participação

política, consentimento livre, prévio e informado” acerca de intervenções em seus territórios (CEPAL,

2006, p. 150). Soma-se a este contexto jurídico a força do discurso ambientalista internacional, que

apesar de não se ater especificamente às questões indígenas, amplia indiretamente a força dos

discursos indigenistas preservacionistas.

O avanço no protagonismo dos movimentos indígenas chegou inclusive a gerar

preocupações entre os dirigentes latino-americanos. Em junho de 2004, no marco do projeto “Global

Trends 2020”, realizava-se em Santiago do Chile o seminário “Latinoamérica 2020: pensando en los

escenarios de largo plazo”; tal projeto, deve-se dizer, foi financiado pelo National Intelligence Council

(NIC), agência de informação dos Estados Unidos. A conclusão do seminário foi exatamente a

seguinte:

A emergência de movimentos indígenas politicamente organizados também pode representar um risco para a segurança regional. Se nos próximos anos os movimentos de reivindicação indígena não lograrem a inclusão no sistema político nem determinados níveis de inclusão social, existe a possibilidade que muitos movimentos evoluam para reivindicações de autonomia territorial, como há décadas atrás aconteceu na costa atlântica da Nicarágua, no sul do México, na região Andina e em alguns países da América Central. Reivindicações territoriais impulsionadas por grupos irredentistas poderiam incluir o cenário de insurgência armada e violência política (National Intelligence Council, 2004, p. 05, tradução nossa)

Finalmente, ressaltamos que como síntese desses diversos fatores, endógenos e exógenos, as

reivindicações e o avanço político logrado pelas organizações indígenas são distintos nos diversos

países da região. Não obstante, no que concerne à América Latina, podemos sintetizar essa

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demanda em três eixos fundamentais, todos correlacionados: o direito à livre determinação

enquanto indígenas, a formação de Estados Plurinacionais que possam abrigar a diversidade étnica

e cultural e por fim, a adoção da idéia de autonomia em relação aos Poderes Estatais.

Dentro deste contexto, os Mapuche, que atualmente incorporam estas três pautas, vêm se

caracterizando como um forte movimento político, sendo capazes de questionar profundamente as

questões de caráter étnico e identitário, tanto no Chile quanto na Argentina. Especificamente no

Chile, o país com maior nível de repressão e reacionarismo à causa indígena, o movimento dos

povos originários, especialmente o dos Mapuche, lograram nos últimos anos o direito a livre

determinação e abriram caminho à segunda.

4.2 A emergência do movimento indígena Mapuche na contemporaneidade21

Após a abertura à democracia, em 1990, diversas organizações Mapuche se mobilizaram,

no sentido de reivindicarem o acesso e a perpetuidade à terra, principal bandeira de luta até então.

Ademais, visto a conjuntura política, estas organizações perceberam que era um momento propício

para colocarem em pauta questões que até então haviam sido postergadas, como o reconhecimento

da diversidade étnica e cultural chilena, a participação na condução e elaboração de políticas

indígenas, a concessão de terras públicas ou a desapropriação de privadas para assentamentos de

comunidades indígenas, a proteção legal de suas terras e recursos naturais e finalmente o apoio

estatal ao desenvolvimento econômico e cultural das comunidades (AYLWIN, 2005, p. 03)

Apesar disso, na redação da Lei Indígena (19.253, de 1993), que regularia as diretrizes das

políticas indigenistas, o congresso acatou somente parcialmente estas reivindicações,

obstacularizando fortemente a participação dos indígenas na vida política do país e das próprias

comunidades das quais faziam parte. Entre os pontos críticos, está por exemplo, a não assunção do

caráter pluriétinico do povo chileno (ibid, p 05). Soma-se o caráter apenas consultivo das

deliberações indígenas acerca das decisões que os afestassem e a não permissão à articulação política

em torno de federações de associações ou comunidades indígenas. Em relação ao acesso à terra, as

reformas na lei autorizaram a troca de terras indígenas por terras não indígenas (caso o Estado

21 Conforme explicitado na introdução deste trabalho, por contemporâneo entendemos o período que vai desde a

queda de Pinochet, em 1990, até os dias atuais.

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quisesse apropriar-se destas terras) e não deram o direito aos indígenas sobre os recursos naturais

existentes em seu territórios, como por exemplo a água.

Tal postura por parte do Estado favoreceu o tencionamento das relações com estas

organizações e até mesmo a formação de outras, que iniciaram um profícuo processo de politização,

incorporarando a seus discursos conceitos como “nação indígena”, “autonomía”, “auto-

determinação” e “teritorialidade”. Assim se formaram organizações como o “Consejo de Todas las

Tierras” (Aukin Wall Mapu Ngulam) e a “Coordinadora de Comunidades en Conflicto Arauco

Malleco” (CAM).

Visto a perpetuação da condição marginalizada dos Mapuche e a omissão estatal para com

elas, a saída desesperada encontrada por algumas organizações foi a do aumento da radicalidade. Em

meados da década de 1990 iniciam-se uma série de protestos, visando o aumento da participação

política, a recuperação de terras e melhores condições de vida à população Mapuche.

Nesse sentido, no ano de 1997 comunidades Mapuche da Comuna de Lumaco são

acusadas de incendiar três caminhões madereiros peretencentes a empresa florestal Bosques Arauco

S.A., com quem mantinham conflitos territoriais (SEGUEL, 2007, p. 87). Convém determos um

momento neste caso, considerado simbólico, pois marca o início de uma investida mais radical de

parte do movimento Mapuche contemporâneo e consequentemente de repressão por parte do

Estado.

Como enfatizamos no terceiro capítulo de nosso trabalho (A territorialização do capital),

há uma grande expansão territorial no plantio de espécies exóticas na região administrativa de “La

Araucanía”. Estes monocultivos são responsáveis por grande parte dos conflitos com os Mapuche,

por motivos diversos: eram áreas tradicionais no período pré-reducional, faziam parte dos títulos de

merced mas foram adquiridas por meio de grilagem ou ainda foram florestadas pelas próprias

comunidades Mapuche na época da reforma Agrária de Allende, mas desapropriadas com as mudas

já plantadas após o golpe de Pinochet.

A comuna de Lumaco -local onde se inicía a onda de protestos Mapuche- se localiza a

noroeste da região de “La Araucanía”. Possuí uma superfície de cerca de 110.000 hectares e de

acordo com o censo de 2002, cerca de 11.400 habitantes, sendo que 64% vivem na zona rural.

Caracteriza-se pelos altos índices de pobreza e indigência, além da grande porcentagem de

população Mapuche, sendo que, a despeito de constituirem mais de 70% da população, ocupam

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apenas 15% da superfície da comuna. No ano de 1991 havíam 29 mil hectares de plantações

florestais (25% da superfície total), das quais 96% eram pinus. Em 2007, de acordo com o “VII

Censo Agropecuario y Forestal”, estas plantações florestais já ocupavam mais de 60% da superfície da

comuna (GOBIERNO DE CHILE, 2007). Vejamos as figuras 15 e 16:

Figura 15: Em negro as plantações florestais, em vermelho as comunidades Mapuche. Dados de 2003

(adaptado por nós de CORNEJO, 2003)

Figura 16: Paisagem predominante da comuna de Lumaco, que possui mais de 70% da superfície coberta com monocultivos florestais . (Fonte: Observatório Ciudadano, em http://www.observatorio.cl/node/1922).

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De acordo com informações do Observatório Ciudadano22, organização não

governamental de “La Araucanía”, a área destas plantações neste momento (2011) já alcança 80 mil

hectares, ou seja, mais de 70% da superfície total da comuna de Lumaco! Ao mesmo tempo, esta

continua sendo conhecida por sua pobreza, atualmente a 7ª comuna mais pobre do Chile. Por dois

anos os Mapuche de Lumaco haviam recorrido ao organismo de assuntos indígenas do governo

chileno (CONADI), buscando uma solução à demanda de terra, especificamente das que estão em

posse das empresas florestais. Não obstante, nunca tiveram resposta.

Não é difícil compreendermos o contexto em que nasce os protestos Mapuche mais

radicalizados: da pobreza econômica, da marginalidade social, da degradação ambiental de

territórios ancestrais, pela busca irrefreável do lucro.

O fogo sobre o caminhão da empresa florestal Bosques Arauco pôs em momentânea suspensão uma situação de agitação e demanda Mapuche por restituição de terras espoliadas. Ao mesmo tempo, as chamas que consumiram os caminhões da florestal Bosques Arauco, geraram um novo cenário para o confronto pela restituição de terras espoliadas à nação Mapuche. Nesse novo cenário, pela primeira vez desde o fim da ditadura, o desespero Mapuche acabou em violência, enquanto o governo da Coalizão pela segunda vez em um ano (já o havia feito no caso da construção da hidrelétrica Ralco) tomou partido do lado dos interesses dos empresários chilenos. (MARIMÁN, 1998, tradução nossa).

O episódio da queima dos caminhões gerou uma resposta dura do estado Chileno, que

entre outras coisas “especulou acerca da infiltração de movimentos subversivos de esquerda no

movimento Mapuche, pronunciando pela primeira vez a palavra terrorismo” (SEGUEL, 2007, p.

87, grifo nosso), relacionando a demanda por terras à atividade de grupos guerrilheiros, estratégia

ideológica que se perpetua até hoje. A questão social se tornou então um caso de polícia, e como

veremos, das próprias forças armadas. Juan Carlos Reinao, um dos líderes Mapuche de Lumaco,

depois de sua prisão e tortura pelas forças policias –com a cumplicidade das autoridades políticas

chilenas—resumia os fatos ocorridos da seguinte maneira:

Creio que nossos antepassados sofreram muito mais. E meus pais, pelo fato de viverem num terreno reduzido, também sofrem. Eu não quero sofrer como eles sofrem, é por isso que penso que é necessário lutar e que essa é a única forma de dizer que somos autônomos e que nos respeitem de uma vez por todas. É por isso

22 Publicada em 08 de Abril em <http://www.observatorio.cl/node/1922>.

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que vou seguir lutando (MARIMÁN, 1998, tradução nossa).

O movimento indígena reagiu à coerção estatal, com protestos nas cidades, “recuperações

produtivas”23, sabotagens em equipamentos das empresas florestais e pequenos incêndios (Ibid, p.

87). Em contrapartida, o Estado cada vez mais agiu de maneira repressora, expulsando e destituindo

as ocupações de terra na base da violência, perseguindo os líderes do movimento, fazendo buscas e

apreensões nos domicílios etc. Concomitantemente, o Estado tenta a legitimação legal destas ações,

encontrando para isso amparo na conservadora constituição chilena.

Desde então o movimento indígena tem se fortificado. Após ratificação pelo Chile do

convênio 169 (ANEXO A)24, em 2008, o movimento também encontrou amparo legal em suas

demandas, Tal ação possibilitou o reconhecimento jurídico da existência dos Mapuche e o rol de

direitos que lhes é devido enquanto indígenas, amparado inclusive internacionalmente:

o Convênio 169, de 1989, é o único instrumento jurídico internacional obrigatório especificamente referido aos povos indígenas, [que] reconheceu a estes povos seu caráter de tais, assim como seu direito a participar na definição de seus próprios assuntos e a alguns graus de autogoverno dentro do interior dos Estados. O mesmo Convênio reconhece a estes povos direitos de propriedade e de posse sobre as terras que tradicionalmente ocupam (art. 14.1). Junto com ele introduz o conceito de territórios indígenas, os que cobrem a totalidade do habitat das regiões que estes povos “ocupam ou utilizam de alguma maneira” (art. 13.2), estabelecendo neles direitos de estes povos sobre os recursos naturais, incluindo sua participação na “utilização, administração e conservação destes recursos”, assim como o direito de não serem transladados deles (art. 16.1) (AYLWIN, 2005, p. 09, tradução nossa).

Apesar da grande fragmentação, no sentido de não haver uma completa homogeneidade

de discursos e de acões, certos setores mais organizados vêm se tornando cada vez mais críticos à

idéia de nação, a legitimidade da ocupação chilena em “La Araucanía” (não podemos esquecer de

que, como já dissemos, este território permaneceu “autônomo” durante todo o período colonial).

Podemos verificar tal afirmação, por exemplo, em um comunicado público publicado pela

Coordinadora Arauco Malleco, em 2009. Visto a morte de jovens Mapuche nos anos anteriores,

seguido pela condição de miséria, falta de terras e ainda de cotidiana repressão estatal, esta 23 Algo como as ocupações de terras promovidas pelos movimentos sociais sem terra, no Brasil. Usam o termo “recuperação” pelo fato de que as terras originalmente já as pertenciam. 24 Por conta do amparo às demandas indígenas, o Chile foi um dos últimos países sul-americanos a assinar o Convênio

169.

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organização negava sua nacionalidade chilena, e enquanto “Nação Mapuche” declarava oficialmente

guerra ao Chile, reclamando secessão territorial:

uma vez que não houve nenhum sinal do governo para acabar com as forças repressivas em nossas comunidades, nós da Coordinadora Arauco-Malleco tomamos uma decisão. Manifestamos publicamente a nossa renúncia à nacionalidade chilena, e declaramos território da nação autônoma Mapuche do rio Bío Bío ao sul, a partir do reconhecimento explícito de que o Estado faz da sua existência no Tratado de Tapihue (1825) Art. 19. [...] Pelo qual damos por encerrado qualquer diálogo com a República do Chile e lhe declaramos guerra, desde hoje, 20 de outubro de 2009 em diante. E apelamos a todas aquelas comunidades a seguir o mesmo caminho para atingir a expulsão completa de todos aqueles objetivos que operam em nossa nação Mapuche. Pela mesma razão damos a liberdade de ação aos organismos de resistência Mapuche para atuar contra os interesses capitalistas no território Mapuche. Por fim, reafirmamos nossa convicção de continuar no caminho de nossos antepassados que com vigor se ofereceram à causa da justiça e da dignidade de nosso belo e heróico povo-nação Mapuche. O Coordinadora está mais forte do que nunca em sua luta por território e autonomia. (Coordinadora Arauco Malleco, 2009)

Como percebemos, de maneira geral, de uma reivindicação pelo direito ao acesso à terra e à

participação política nos assuntos indígenas, o movimento indígena passou a reivindicar o

reconhecimento da territorialidade indígena, assim como o direito ao desenvolvimento autônomo,

pautado por sua própria cultura, em seus próprios territórios.

4.3 A criminalização da demanda Mapuche contemporânea

Pretendemos neste capítulo discorrer acerca da criminalização25 da atual demanda política

e social dos Mapuche, corrente em todo o Chile mas intensificada na região da Araucanía. Esta

possui um objetivo claro: a consolidação da propriedade privada e da reprodução ampliada do capital

nas terras ancestrais Mapuche. A repressão, entendida enquanto a supressão do direito de

contestação, cumpre o papel de neutralizar o protesto, resultando na estabilidade necessária para os

investimentos e os negócios. Cumpre o papel secundário de manter a “coesão nacional” e obnubilar

da pauta política as questões de ordem étnica. (SEGUEL, 2007, p. 19).

25 Em relação aos protestos Mapuche, o termo criminalização foi cunhado por Rodolfo Stavenhagenm, relator das

Nações Unidas para os direitos indígenas, em informe de missão ao Chile em 2003.

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Baseando-nos no período chamado "democrático", poderíamos identificar dois grandes

agentes do que chamamos de "processo de criminalização": o Estado (i) e os meios de comunicação

(ii). Apesar de os disassociarmos analiticamente, ressaltamos seu aparelhamento no que se refere a

interesses e estratégias.

O Estado, enquanto detentor do monopólio da violência, possui por sua vez, duas

estratégias repressivas. A primeira consiste na repressão direta, na violência física, pela via do poder

executivo. Materializa-se por meio da perseguição, da militarização de comunidades e nas constantes

intervenções policiais em casas e comunidades Mapuche, na busca de indícios que possam incriminar

quem ali resida. Tais ações são subsidiadas por um arraigado serviço de inteligência chileno,

publicamente conhecido, que por meio de práticas como interceptações telefônicas (“grampos”) e

mesmo agentes secretos infiltrados26, buscam informações a respeito das associações políticas

Mapuche e das pessoas que delas fazem parte. Foi comum, em nosso trabalho de campo, o

depoimento de pessoas envolvidas na questão, inclusive de funcionários públicos como o caso de

antropólogos e pesquisadores da Universidad de la Frontera, que possuiam telefones interceptados e

as atividades vigiadas. Em entrevista, o poeta Mapuche Elicura Chihuailaf, ativista da causa

Mapuche, disse-nos que teve a casa invadida por mais de uma vez, obviamente por questões políticas,

visto o furto objetivo de papéis, pendrives, cds e seu computador pessoal.

A segunda estratégia de repressão estatal se dá pela via judicial, por meio do corpo jurídico

da constituição chilena, herdada em sua essência da última ditadura. Fazemos referência à Lei de

segurança interior do Estado (Lei 18.314, de 1984), principalmente à acusação de “associação ilícita

terrorista”. Esta lei possui mecanismos que vulneram as garantías processuais dos acusados, como

investigações sigilosas que podem se estender por até seis meses, prisões preventivas por grandes

períodos de tempo, a utilização de testemunhas “não identificadas” como principal prova de

acusação e mesmo as práticas acima citadas de interceptação de telefones, inclusive dos advogados de

defesa (ODPI, 2005, p. 07).

Os indígenas são acusados como terroristas por ações como ocupações de terra ou delitos

de caráter reivindicatórios, como pequenos incêndios ou delitos contra a propriedade (geralmente

contra as empresas florestais, como o caso da queima de caminhões em Lumaco) que jamais

poderiam ser enquadradas como “terroristas”. Estudos indicam o uso sistemático dos recursos desta

26 Aos desavisados pode parecer exagero de nossa parte, contudo tal prática foi relatada por várias pessoas que

entrevistamos em nosso trabalho de campo, mapuches e não mapuches.

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lei especificamente contra os Mapuche, estigmatizando assim o movimento e talvez o mais grave,

debilitando as garantias processuais de um julgamento justo (Ibid, p. 06).

Não obstante, as causas judiciais requeridas pelos Mapuche geralmente são arquivadas,

inclusive aquelas consideradas muito graves, como a morte de manifestantes por policiais. Tal é o

caso da morte de Alex Lemun, jovem Mapuche de 17 anos assassinado em 2002, pelo major Marcos

Treur. A causa foi encerrada em 2004 e ninguém foi punido (Fig 17 e 18)

Figura 17: alguns jovens Mapuche mortos em conflitos territoriais por ações repressivas do Estado chileno,

nos últimos dez anos

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Figura 18: Indígenas carregam o corpo de Alex Lemun em protesto pela cidade de Temuco. O jovem

Mapuche foi assassinado por um tiro de escopeta na cabeça, quando tinha apenas 17 anos, durante ocupação de terra da empresa Florestal Mininco. (Créditos: Jose Herrera)

Os meios de comunicação, por sua vez, representando os interesses privados, cumprem um

papel ideológico, legitimando as ações repressivas estatais. São discursos enviesados, que trabalham de

maneira a formar uma opinião pública negativa em relação aos protestos Mapuche. Colaboram na

construção da imagem de um indígena esteriotipado, que já se tornara comum no Chile: desordeiro,

marginal, preguiçoso e bêbado. Ao mesmo tempo, ressaltam questões como a "unidade nacional", o

direito da propriedade privada e da necessidade da produção.

Visando inculcar o medo na população, o jornais abusam da associação entre o movimento

indígena Mapuche e organizações “terroristas”, como por exemplo, vemos em algumas manchetes da

imprensa local: “Terrorismo en Araucanía” (Diário La segunda, 14/12/2001); “Cárcel para lonkos

terroristas" (Diário El Mercurio, 30/08/2002); “Controvertida associación Mapuche zapatista”

(Diáriol Austral, 22/04/2003); “Fueron terroristas profesionales. Creo que son de la Coordinadora

Arauco-Malleco” (Diário Austral, 11/06/2005). Soma-se acusações de vinculação das comunidades

com grupos como o ETA, as FARC, o Sendero Luminoso (Todos citados por SEGUEL, 2007, p.

190).

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De maneira geral, pudemos presenciar em nosso trabalho de campo o clima tenso quando

se toca na questão Mapuche, sendo muitas vezes o território da Araucanía relacionado a um

território em guerra, a um espaço do medo. Pois sim, o tema Mapuche se consolida como um

verdadeiro “tabu” na sociedade chilena, que em seu estrato mais abastado, nega seu caráter mestiço

em prol de uma suposta origem européia. Relato por exemplo o que nos aconteceu em Santiago do

Chile: visto que constantemente éramos constrangidos pelas advertências acerca da violência nas

terras Mapuche, efetuamos uma breve pesquisa a respeito, onde realmente percebemos um clima

hostil, mas justamente por conta do Estado e de sua postura repressiva. Além da morte de jovens

mapuches, dois casos nos chamaram a atenção: o de Elena Varela, documentarista presa em 200827,

quando fazia um filme sobre os Mapuches, e de dois jovens documentaristas franceses, que foram

presos e tiveram seus equipamentos apreendidos, também em 200828. Percebemos que deveríamos

sim nos proteger da violência, mas da violência repressiva do Estado. Resolvemos buscar respaldo

político na embaixada brasileira, afinal, o direito de expressão deveria se fazer presente num Estado

que se diz democrático. E após nossa insistência, conseguimos uma reunião com a consul, uma

carioca. A cena foi engraçada, ao menos de ver sua cara de perplexidade. Ao final nos negou qualquer

tipo de ajuda: “o idealismo de vocês cutuca (sic) uma ferida aberta da sociedade chilena, aquela é uma

área em conflito (...) o Brasil e o Chile possuem ótimas relações, não posso colocar isso em risco por conta

de vocês (...) por que não largamdessa loucura e vão à Viña del Mar, visistar a casa do Neruda?(...)

Deixem o contato, pois se forem presos comunico a família no Brasil”. Resolvemos partir para “La

Araucanía” no dia seguinte.

Finalmente poderíamos nos perguntar como enfrentam essa condição de repressão e

marginalidade. O que pderíamos dizer é que apesar de todas as dificuldades, continuam tentando se

articular politicamente, buscando reafirmar seus direitos políticos e territoriais. Enquanto o mundo

todo voltava os olhos ao Chile, em 2010, durante os 70 dias em que permaneceram soterrados os 33

mineiros de Copiacó, mais ao sul, 34 presos políticos Mapuche realizavam –sem qualquer tipo de

difusão pela mídia- uma greve de fome, que durou mais de 82 dias. Pediam a revogação da Lei

antiterrorista, o fim das torturas no interior dos presídios e o fim da criminalização do movimento

social Mapuche. E assim continuam, resistindo, como há mais de 500 anos.

27 Conferir em: < http://www.amnesty.org/en/library/info/AMR22/001/2008/en> 28 Conferir em: <http://www.mapuche-nation.org/english/html/news/n-124.htm> ou ainda em

<http://www.azkintuwe.org/marz23_2.htm>

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pudemos percorrer, por meio do caso particular dos Mapuche, um processo que foi e é

permanente em praticamente todo o continente: o despojo territorial indígena e sua contínua

opressão cultural. Em um plano cultural, a formação dos Estados nacionais americanos levou

consigo a necessidade de criação das diferentes identidades nacionais: valores, cultura, mitos

fundadores, enfim, um eixo comum ao qual pudessem todos gravitar. As idiossincrasias indígenas,

que foram teorizadas ao longo do século XIX e parte do XX enquanto retrógradas e prestes à

superação, obviamente foram relegadas. O caso do Chile é paradigmático, visto o caso de uma

sociedade fundamentalmente mestiça –pesquisas mostram que numa proporção que ultrapassa os

90% da população- e que apesar disso, historicamente nega essa condição, ressaltando suas origens

européias em detrimento de sua profunda raíz ameríndia.

Já no plano da Geografia Agrária e Política, pudemos verificar como os territórios

indígenas foram paulatinamente incorporados pelo Estado por meio da violência, do terror e do

saqueio explícito, posteriormente sendo transpassados à particulares, que cumpriram a função da

geração do lucro e das divisas a este próprio Estado.

Espistemológicamente, a maioria da produção científica geográfica acerca da questão

indígena (ao menos a produzida em nosso departamento) parece possuir um caráter meramente

idiográfico, tratando de uma situação ou comunidade indígena singular, fato que impossibilita uma

discussão teórica mais profunda, a nível regional. Este estudo pretendeu avançar nesta carencia, já

que questões pertinentes à espacialidade das populações indígenas vêm sendo discutido por ciências

que possuem outro objeto de estudo que não o espaço, como a Sociologia, a Ciência Política e a

Antropologia. A Geografia, enquanto uma ciência dinâmica que pretende compreender e

acompanhar a dimensão espacial dos processos sociais, possui um déficit explicativo para com estes

novos fenômenos.

Em um plano pessoal, esta pesquisa nos aproximou da realidade para além das fronteiras

nacionais, fazendo-nos perceber que no fundo, somos essencialmente muito parecidos. Se carecemos

de uma cultura comum, possuímos uma história colonial de opressão, saqueio e violência muito

semelhante. O Brasil, que se demonsra alheio para com a realidade latino-americana, renega assim

sua própria história. Funcionando como espelho intelectual da Europa, num processo de

colonialidade epistêmica, nega-se a refletir acerca de próprias problemáticas , mediante suas próprias

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concepções de mundo.

De maneira geral, cremos que a presente investigação cumpriu os objetivos a que se

destinava. Não no sentido de explicar por completo a questão indígena Mapuche, muito menos de

dar conta do complexo fenômeno de efervecência política de grupos indígenas, que parece tomar

uma escala à nível continental. Pensamos, ainda assim, que ela tenha tido êxito, no sentido do

levantamento de questões, no contato com uma condição marginal, na transformação daquele que

tentou levá-la à cabo, no movimento e nas reflexões geradas.

Ao final, arriscamos dizer que ainda não concluímos nada. Que pelo contrário, abrimos

questões, e mais que isso, caminhos ainda por serem percorridos.

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ANEXO A: CONVÊNIO 169 DA ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO

CONVENÇÃO No 169 DA OIT SOBRE POVOS INDÍGENAS E TRIBAIS

A Conferência Geral da Organização Internacional do Trabalho,

Convocada em Genebra pelo Conselho Administrativo da Repartição Internacional do Trabalho e tendo ali se reunido a 7 de junho de 1989, em sua septuagésima sexta sessão;

Observando as normas internacionais enunciadas na Convenção e na Recomendação sobre populações indígenas e tribais, 1957;

Lembrando os termos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e dos numerosos instrumentos internacionais sobre a prevenção da discriminação;

Considerando que a evolução do direito internacional desde 1957 e as mudanças sobrevindas na situação dos povos indígenas e tribais em todas as regiões do mundo fazem com que seja aconselhável adotar novas normas internacionais nesse assunto, a fim de se eliminar a orientação para a assimilação das normas anteriores;

Reconhecendo as aspirações desses povos a assumir o controle de suas próprias instituições e formas de vida e seu desenvolvimento econômico, e manter e fortalecer suas identidades, línguas e religiões, dentro do âmbito dos Estados onde moram;

Observando que em diversas partes do mundo esses povos não podem gozar dos direitos humanos fundamentais no mesmo grau que o restante da população dos Estados onde moram e que suas leis, valores, costumes e perspectivas têm sofrido erosão freqüentemente;

Lembrando a particular contribuição dos povos indígenas e tribais à diversidade cultural, à harmonia social e ecológica da humanidade e à cooperação e compreensão internacionais;

Observando que as disposições a seguir foram estabelecidas com a colaboração das Nações Unidas, da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação, da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura e da Organização Mundial da Saúde, bem como do Instituto Indigenista Interamericano, nos níveis apropriados e nas suas respectivas esferas, e que existe o propósito de continuar essa colaboração a fim de promover e assegurar a aplicação destas disposições;

Após ter decidido adotar diversas propostas sobre a revisão parcial da Convenção sobre populações Indígenas e Tribais, 1957 (n.o 107) , o assunto que constitui o quarto item da agenda da sessão, e

Após ter decidido que essas propostas deveriam tomar a forma de uma Convenção Internacional que revise a Convenção Sobre Populações Indígenas e Tribais, 1957, adota, neste vigésimo sétimo dia de junho de mil novecentos e oitenta e nove, a seguinte Convenção, que será denominada Convenção Sobre os Povos Indígenas e Tribais, 1989:

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PARTE 1 - POLÍTICA GERAL

Artigo 1o

1. A presente convenção aplica-se:

a) aos povos tribais em países independentes, cujas condições sociais, culturais e econômicas os distingam de outros setores da coletividade nacional, e que estejam regidos, total ou parcialmente, por seus próprios costumes ou tradições ou por legislação especial;

b) aos povos em países independentes, considerados indígenas pelo fato de descenderem de populações que habitavam o país ou uma região geográfica pertencente ao país na época da conquista ou da colonização ou do estabelecimento das atuais fronteiras estatais e que, seja qual for sua situação jurídica, conservam todas as suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas, ou parte delas.

2. A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção.

3. A utilização do termo "povos" na presente Convenção não deverá ser interpretada no sentido de ter implicação alguma no que se refere aos direitos que possam ser conferidos a esse termo no direito internacional.

Artigo 2o

1. Os governos deverão assumir a responsabilidade de desenvolver, com a participação dos povos interessados, uma ação coordenada e sistemática com vistas a proteger os direitos desses povos e a garantir o respeito pela sua integridade.

2. Essa ação deverá incluir medidas:

a) que assegurem aos membros desses povos o gozo, em condições de igualdade, dos direitos e oportunidades que a legislação nacional outorga aos demais membros da população;

b) que promovam a plena efetividade dos direitos sociais, econômicos e culturais desses povos, respeitando a sua identidade social e cultural, os seus costumes e tradições, e as suas instituições;

c) que ajudem os membros dos povos interessados a eliminar as diferenças sócio - econômicas que possam existir entre os membros indígenas e os demais membros da comunidade nacional, de maneira compatível com suas aspirações e formas de vida.

Artigo 3o

1. Os povos indígenas e tribais deverão gozar plenamente dos direitos humanos e liberdades fundamentais, sem obstáculos nem discriminação. As disposições desta Convenção serão aplicadas sem discriminação aos homens e mulheres desses povos.

2. Não deverá ser empregada nenhuma forma de força ou de coerção que viole os direitos humanos e as liberdades fundamentais dos povos interessados, inclusive os direitos contidos na presente Convenção.

Artigo 4o

1. Deverão ser adotadas as medidas especiais que sejam necessárias para salvaguardar as pessoas, as instituições, os bens, as culturas e o meio ambiente dos povos interessados.

2. Tais medidas especiais não deverão ser contrárias aos desejos expressos livremente pelos povos interessados.

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3. O gozo sem discriminação dos direitos gerais da cidadania não deverá sofrer nenhuma deterioração como conseqüência dessas medidas especiais.

Artigo 5o

Ao se aplicar as disposições da presente Convenção:

a) deverão ser reconhecidos e protegidos os valores e práticas sociais, culturais religiosos e espirituais próprios dos povos mencionados e dever-se-á levar na devida consideração a natureza dos problemas que lhes sejam apresentados, tanto coletiva como individualmente;

b) deverá ser respeitada a integridade dos valores, práticas e instituições desses povos;

c) deverão ser adotadas, com a participação e cooperação dos povos interessados, medidas voltadas a aliviar as dificuldades que esses povos experimentam ao enfrentarem novas condições de vida e de trabalho.

Artigo 6o

1. Ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos deverão:

a) consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente;

b) estabelecer os meios através dos quais os povos interessados possam participar livremente, pelo menos na mesma medida que outros setores da população e em todos os níveis, na adoção de decisões em instituições efetivas ou organismos administrativos e de outra natureza responsáveis pelas políticas e programas que lhes sejam concernentes;

c) estabelecer os meios para o pleno desenvolvimento das instituições e iniciativas dos povos e, nos casos apropriados, fornecer os recursos necessários para esse fim.

2. As consultas realizadas na aplicação desta Convenção deverão ser efetuadas com boa fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com o objetivo de se chegar a um acordo e conseguir o consentimento acerca das medidas propostas.

Artigo 7o

1. Os povos interessados deverão ter o direito de escolher suas, próprias prioridades no que diz respeito ao processo de desenvolvimento, na medida em que ele afete as suas vidas, crenças, instituições e bem-estar espiritual, bem como as terras que ocupam ou utilizam de alguma forma, e de controlar, na medida do possível, o seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural. Além disso, esses povos deverão participar da formulação, aplicação e avaliação dos planos e programas de desenvolvimento nacional e regional suscetíveis de afetá-los diretamente.

2. A melhoria das condições de vida e de trabalho e do nível de saúde e educação dos povos interessados, com a sua participação e cooperação, deverá ser prioritária nos planos de desenvolvimento econômico global das regiões onde eles moram. Os projetos especiais de desenvolvimento para essas regiões também deverão ser elaborados de forma a promoverem essa melhoria.

3. Os governos deverão zelar para que, sempre que for possíve1, sejam efetuados estudos junto aos povos interessados com o objetivo de se avaliar a incidência social, espiritual e cultural e sobre o meio ambiente que as atividades de desenvolvimento, previstas, possam ter sobre esses povos. Os resultados desses estudos deverão ser considerados como critérios fundamentais para a execução das atividades mencionadas.

4. Os governos deverão adotar medidas em cooperação com os povos interessados para proteger e preservar o meio

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ambiente dos territórios que eles habitam.

Artigo 8o

1. Ao aplicar a legislação nacional aos povos interessados deverão ser levados na devida consideração seus costumes ou seu direito consuetudinário.

2. Esses povos deverão ter o direito de conservar seus costumes e instituições próprias, desde que eles não sejam incompatíveis com os direitos fundamentais definidos pelo sistema jurídico nacional nem com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos. Sempre que for necessário, deverão ser estabelecidos procedimentos para se solucionar os conflitos que possam surgir na aplicação deste principio.

3. A aplicação dos parágrafos 1 e 2 deste Artigo não deverá impedir que os membros desses povos exerçam os direitos reconhecidos para todos os cidadãos do país e assumam as obrigações correspondentes.

Artigo 9o

1. Na medida em que isso for compatível com o sistema jurídico nacional e com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos, deverão ser respeitados os métodos aos quais os povos interessados recorrem tradicionalmente para a repressão dos delitos cometidos pelos seus membros.

2. As autoridades e os tribunais solicitados para se pronunciarem sobre questões penais deverão levar em conta os costumes dos povos mencionados a respeito do assunto.

Artigo 10

1. Quando sanções penais sejam impostas pela legislação geral a membros dos povos mencionados, deverão ser levadas em conta as suas características econômicas, sociais e culturais.

2. Dever-se-á dar preferência a tipos de punição outros que o encarceramento.

Artigo 11

A lei deverá proibir a imposição, a membros dos povo interessados, de serviços pessoais obrigatórios de qualquer natureza, remunerados ou não, exceto nos casos previstos pela lei para todos os cidadãos.

Artigo 12

Os povos interessados deverão ter proteção contra a violação de seus direitos, e poder iniciar procedimentos legais, seja pessoalmente, seja mediante os seus organismos representativos, para assegurar o respeito efetivo desses direitos. Deverão ser adotadas medidas para garantir que os membros desses povos possam compreender e se fazer compreender em procedimentos legais, facilitando para eles, se for necessário, intérpretes ou outros meios eficazes.

PARTE II - TERRAS

Artigo 13

1. Ao aplicarem as disposições desta parte da Convenção, os governos deverão respeitar a importância especial que para as culturas e valores espirituais dos povos interessados possui a sua relação com as terras ou territórios, ou com

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ambos, segundo os casos, que eles ocupam ou utilizam de alguma maneira e, particularmente, os aspectos coletivos dessa relação.

2. A utilização do termo "terras" nos Artigos 15 e 16 deverá incluir o conceito de territórios, o que abrange a totalidade do habitat das regiões que os povos interessados ocupam ou utilizam de alguma outra forma.

Artigo 14

1. Dever-se-á reconhecer aos povos interessados os direitos de propriedade e de posse sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Além disso, nos casos apropriados, deverão ser adotadas medidas para salvaguardar o direito dos povos interessados de utilizar terras que não estejam exclusivamente ocupadas por eles, mas às quais, tradicionalmente, tenham tido acesso para suas atividades tradicionais e de subsistência. Nesse particular, deverá ser dada especial atenção à situação dos povos nômades e dos agricultores itinerantes.

2. Os governos deverão adotar as medidas que sejam necessárias para determinar as terras que os povos interessados ocupam tradicionalmente e garantir a proteção efetiva dos seus direitos de propriedade e posse.

3. Deverão ser instituídos procedimentos adequados no âmbito do sistema jurídico nacional para solucionar as reivindicações de terras formuladas pelos povos interessados.

Artigo 15

1. Os direitos dos povos interessados aos recursos naturais existentes nas suas terras deverão ser especialmente protegidos. Esses direitos abrangem o direito desses povos a participarem da utilização, administração e conservação dos recursos mencionados.

2. Em caso de pertencer ao Estado a propriedade dos minérios ou dos recursos do subsolo, ou de ter direitos sobre outros recursos, existentes na terras, os governos deverão estabelecer ou manter procedimentos com vistas a consultar os povos interessados, a fim de se determinar se os interesses desses povos seriam prejudicados, e em que medida, antes de se empreender ou autorizar qualquer programa de prospecção ou exploração dos recursos existentes nas suas terras. Os povos interessados deverão participar sempre que for possível dos benefícios que essas atividades produzam, e receber indenização equitativa por qualquer dano que possam sofrer como resultado dessas atividades.

Artigo 16

1. Com reserva do disposto nos parágrafos a seguir do presente Artigo, os povos interessados não deverão ser transladados das terras que ocupam.

2. Quando, excepcionalmente, o translado e o reassentamento desses povos sejam considerados necessários, só poderão ser efetuados com o consentimento dos mesmos, concedido livremente e com pleno conhecimento de causa. Quando não for possível obter o seu consentimento, o translado e o reassentamento só poderão ser realizados após a conclusão de procedimentos adequados estabelecidos pela legislação nacional, inclusive enquetes públicas, quando for apropriado, nas quais os povos interessados tenham a possibilidade de estar efetivamente representados.

3. Sempre que for possível, esses povos deverão ter o direito de voltar a suas terras tradicionais assim que deixarem de existir as causas que motivaram seu translado e reassentamento.

4. Quando o retorno não for possível, conforme for determinado por acordo ou, na ausência de tais acordos, mediante procedimento adequado, esses povos deverão receber, em todos os casos em que for possível, terras cuja qualidade e cujo estatuto jurídico sejam pelo menos iguais aqueles das terras que ocupavam anteriormente, e que lhes permitam cobrir suas necessidades e garantir seu desenvolvimento futuro. Quando os povos interessados prefiram receber indenização em dinheiro ou em bens, essa indenização deverá ser concedida com as garantias apropriadas.

5. Deverão ser indenizadas plenamente as pessoas transladadas e reassentadas por qualquer perda ou dano que

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tenham sofrido como conseqüência do seu deslocamento.

Artigo 17

1. Deverão ser respeitadas as modalidades de transmissão dos direitos sobre a terra entre os membros dos povos interessados estabelecidas por esses povos.

2. Os povos interessados deverão ser consultados sempre que for considerada sua capacidade para alienarem suas terras ou transmitirem de outra forma os seus direitos sobre essas terras para fora de sua comunidade.

3. Dever-se-á impedir que pessoas alheias a esses povos possam se aproveitar dos costumes dos mesmos ou do desconhecimento das leis por parte dos seus membros para se arrogarem a propriedade, a posse ou o uso das terras a eles pertencentes.

Artigo 18

A lei deverá prever sanções apropriadas contra toda intrusão não autorizada nas terras dos povos interessados ou contra todo uso não autorizado das mesmas por pessoas alheias a eles, e os governos deverão adotar medidas para impedirem tais infrações.

Artigo 19

Os programas agrários nacionais deverão garantir aos povos interessados condições equivalentes às desfrutadas por outros setores da população, para fins de:

a) a alocação de terras para esses povos quando as terras das que dispunham sejam insuficientes para lhes garantir os elementos de uma existência normal ou para enfrentarem o seu possível crescimento numérico;

b) a concessão dos meios necessários para o desenvolvimento das terras que esses povos já possuam.

PARTE III - CONTRATAÇÃO E CONDIÇÕES DE EMPREGO

Artigo 20

1. Os governos deverão adotar, no âmbito da legislação nacional e em cooperação com os povos interessados, medidas especiais para garantir aos trabalhadores pertencentes a esses povos uma proteção eficaz em matéria de contratação e condições de emprego, na medida em que não estejam protegidas eficazmente pela legislação aplicável aos trabalhadores em geral.

2. Os governos deverão fazer o que estiver ao seu alcance para evitar qualquer discriminação entre os trabalhadores pertencentes ao povos interessados e os demais trabalhadores, especialmente quanto a:

a) acesso ao emprego, inclusive aos empregos qualificados e às medidas de promoção e ascensão;

b) remuneração igual por trabalho de igual valor;

c) assistência médica e social, segurança e higiene no trabalho, todos os benefícios da seguridade social e demais benefícios derivados do emprego, bem como a habitação;

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d) direito de associação, direito a se dedicar livremente a todas as atividades sindicais para fins lícitos, e direito a celebrar convênios coletivos com empregadores ou com organizações patronais.

3. As medidas adotadas deverão garantir, particularmente, que:

a) os trabalhadores pertencentes aos povos interessados, inclusive os trabalhadores sazonais, eventuais e migrantes empregados na agricultura ou em outras atividades, bem como os empregados por empreiteiros de mão-de-obra, gozem da proteção conferida pela legislação e a prática nacionais a outros trabalhadores dessas categorias nos mesmos setores, e sejam plenamente informados dos seus direitos de acordo com a legislação trabalhista e dos recursos de que dispõem;

b) os trabalhadores pertencentes a esses povos não estejam submetidos a condições de trabalho perigosas para sua saúde, em particular como conseqüência de sua exposição a pesticidas ou a outras substâncias tóxicas;

c) os trabalhadores pertencentes a esses povos não sejam submetidos a sistemas de contratação coercitivos, incluindo-se todas as formas de servidão por dívidas;

d) os trabalhadores pertencentes a esses povos gozem da igualdade de oportunidade e de tratamento para homens e mulheres no emprego e de proteção contra o acossamento sexual.

4. Dever-se-á dar especial atenção à criação de serviços adequados de inspeção do trabalho nas regiões donde trabalhadores pertencentes aos povos interessados exerçam atividades assalariadas, a fim de garantir o cumprimento das disposições desta parte da presente Convenção.

INDÚSTRIAS RURAIS

Artigo 21

Os membros dos povos interessados deverão poder dispor de meios de formação profissional pelo menos iguais àqueles dos demais cidadãos.

Artigo 22

1. Deverão ser adotadas medidas para promover a participação voluntária de membros dos povos interessados em programas de formação profissional de aplicação geral.

2. Quando os programas de formação profissional de aplicação geral existentes não atendam as necessidades especiais dos povos interessados, os governos deverão assegurar, com a participação desses povos, que sejam colocados à disposição dos mesmos programas e meios especiais de formação.

3. Esses programas especiais de formação deverão estar baseado no entorno econômico, nas condições sociais e culturais e nas necessidades concretas dos povos interessados. Todo levantamento neste particular deverá ser realizado em cooperação com esses povos, os quais deverão ser consultados sobre a organização e o funcionamento de tais programas. Quando for possível, esses povos deverão assumir progressivamente a responsabilidade pela organização e o funcionamento de tais programas especiais de formação, se assim decidirem.

Artigo 23

1. O artesanato, as indústrias rurais e comunitárias e as atividades tradicionais e relacionadas com a economia de subsistência dos povos interessados, tais como a caça, a pesca com armadilhas e a colheita, deverão ser reconhecidas como fatores importantes da manutenção de sua cultura e da sua autosuficiência e desenvolvimento econômico. Com a participação desses povos, e sempre que for adequado, os governos deverão zelar para que sejam fortalecidas e fomentadas

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essas atividades.

2. A pedido dos povos interessados, deverá facilitar-se aos mesmos, quando for possível, assistência técnica e financeira apropriada que leve em conta as técnicas tradicionais e as características culturais desses povos e a importância do desenvolvimento sustentado e equitativo.

PARTE V - SEGURIDADE SOCIAL E SAÚDE

Artigo 24

Os regimes de seguridade social deverão ser estendidos progressivamente aos povos interessados e aplicados aos mesmos sem discriminação alguma.

Artigo 25

1. Os governos deverão zelar para que sejam colocados à disposição dos povos interessados serviços de saúde adequados ou proporcionar a esses povos os meios que lhes permitam organizar e prestar tais serviços sob a sua própria responsabilidade e controle, a fim de que possam gozar do nível máximo possível de saúde física e mental.

2. Os serviços de saúde deverão ser organizados, na medida do possível, em nível comunitário. Esses serviços deverão ser planejados e administrados em cooperação com os povos interessados e levar em conta as suas condições econômicas, geográficas, sociais e culturais, bem como os seus métodos de prevenção, práticas curativas e medicamentos tradicionais.

3. O sistema de assistência sanitária deverá dar preferência à formação e ao emprego de pessoal sanitário da comunidade local e se centrar no atendimento primário à saúde, mantendo ao mesmo tempo estreitos vínculos com os demais níveis de assistência sanitária.

4. A prestação desses serviços de saúde deverá ser coordenada com as demais medidas econômicas e culturais que sejam adotadas no país.

PARTE VI - EDUCAÇÃO E MEIOS DE COMUNICAÇÃO

Artigo 26

Deverão ser adotadas medidas para garantir aos membros dos povos interessados a possibilidade de adquirirem educação em todos o níveis, pelo menos em condições de igualdade com o restante da comunidade nacional.

Artigo 27

1. Os programas e os serviços de educação destinados aos povos interessados deverão ser desenvolvidos e aplicados em cooperação com eles a fim de responder às suas necessidades particulares, e deverão abranger a sua história, seus conhecimentos e técnicas, seus sistemas de valores e todas suas demais aspirações sociais, econômicas e culturais.

2. A autoridade competente deverá assegurar a formação de membros destes povos e a sua participação na formulação e execução de programas de educação, com vistas a transferir progressivamente para esses povos a responsabilidade de realização desses programas, quando for adequado.

3. Além disso, os governos deverão reconhecer o direito desses povos de criarem suas próprias instituições e meios de educação, desde que tais instituições satisfaçam as normas mínimas estabelecidas pela autoridade competente em consulta com esses povos. Deverão ser facilitados para eles recursos apropriados para essa finalidade.

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Artigo 28

1. Sempre que for viável, dever-se-á ensinar às crianças dos povos interessados a ler e escrever na sua própria língua indígena ou na língua mais comumente falada no grupo a que pertençam. Quando isso não for viável, as autoridades competentes deverão efetuar consultas com esses povos com vistas a se adotar medidas que permitam atingir esse objetivo.

2. Deverão ser adotadas medidas adequadas para assegurar que esses povos tenham a oportunidade de chegarem a dominar a língua nacional ou uma das línguas oficiais do país.

3. Deverão ser adotadas disposições para se preservar as línguas indígenas dos povos interessados e promover o desenvolvimento e prática das mesmas.

Artigo 29

Um objetivo da educação das crianças dos povos interessados deverá ser o de lhes ministrar conhecimentos gerais e aptidões que lhes permitam participar plenamente e em condições de igualdade na vida de sua própria comunidade e na da comunidade nacional.

Artigo 30

1. Os governos deverão adotar medidas de acordo com as tradições e culturas dos povos interessados, a fim de lhes dar a conhecer seus direitos e obrigações especialmente no referente ao trabalho e às possibilidades econômicas, às questões de educação e saúde, aos serviços sociais e aos direitos derivados da presente Convenção.

2. Para esse fim, dever-se-á recorrer, se for necessário, a traduções escritas e à utilização dos meios de comunicação de massa nas línguas desses povos.

Artigo 31

Deverão ser adotadas medidas de caráter educativo em todos os setores da comunidade nacional, e especialmente naqueles que estejam em contato mais direto com os povos interessados, com o objetivo de se eliminar os preconceitos que poderiam ter com relação a esses povos. Para esse fim, deverão ser realizados esforços para assegurar que os livros de História e demais materiais didáticos ofereçam uma descrição equitativa, exata e instrutiva das sociedades e culturas dos povos interessados.

PARTE VII - CONTATOS E COOPERAÇÃO ATRAVÉS DAS FRONTEIRAS

Artigo 32

Os governos deverão adotar medidas apropriadas, inclusive mediante acordos internacionais, para facilitar os contatos e a cooperação entre povos indígenas e tribais através das fronteiras, inclusive as atividades nas áreas econômica, social, cultural, espiritual e do meio ambiente.

PARTE VIII – ADMINISTRAÇÃO

Artigo 33

1. A autoridade governamental responsável pelas questões que a presente Convenção abrange deverá se assegurar de

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que existem instituições ou outros mecanismos apropriados para administrar os programas que afetam os povos interessados, e de que tais instituições ou mecanismos dispõem dos meios necessários para o pleno desempenho de suas funções.

2. Tais programas deverão incluir:

a) o planejamento, coordenação, execução e avaliação, em cooperação com os povos interessados, das medidas previstas na presente Convenção;

b) a proposta de medidas legislativas e de outra natureza às autoridades competentes e o controle da aplicação das medidas adotadas em cooperação com os povos interessados.

PARTE IX - DISPOSIÇÕES GERAIS

Artigo 34

A natureza e o alcance das medidas que sejam adotadas para por em efeito a presente Convenção deverão ser determinadas com flexibilidade, levando em conta as condições próprias de cada país.

Artigo 35

A aplicação das disposições da presente Convenção não deverá prejudicar os direitos e as vantagens garantidos aos povos interessados em virtude de outras convenções e recomendações, instrumentos internacionais, tratados, ou leis, laudos, costumes ou acordos nacionais.

PARTE X - DISPOSIÇÕES FINAIS

Artigo 36

Esta Convenção revisa a Convenção Sobre Populações Indígenas e Tribais, 1957.

Artigo 37

As ratificações formais da presente Convenção serão transmitidas ao Diretor-Geral da Repartição Internacional do Trabalho e por ele registradas.

Artigo 38

1. A presente Convenção somente vinculará os Membros da Organização Internacional do Trabalho cujas ratificações tenham sido registradas pelo Diretor-Geral.

2. Esta Convenção entrará em vigor doze meses após o registro das ratificações de dois Membros por parte do Diretor-Geral.

3. Posteriormente, esta Convenção entrará em vigor, para cada Membro, doze meses após o registro da sua ratificação.

Artigo 39

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1. Todo Membro que tenha ratificado a presente Convenção poderá denunciá-la após a expiração de um período de dez anos contados da entrada em vigor mediante ato comunicado ao Diretor-Geral da Repartição Internacional do Trabalho e por ele registrado. A denúncia só surtirá efeito um ano após o registro.

2. Todo Membro que tenha ratificado a presente Convenção e não fizer uso da faculdade de denúncia prevista pelo parágrafo precedente dentro do prazo de um ano após a expiração do período de dez anos previsto pelo presente Artigo, ficará obrigado por um novo período de dez anos e, posteriormente, poderá denunciar a presente Convenção ao expirar cada período de dez anos, nas condições previstas no presente Artigo.

Artigo 40

1. O Diretor-Geral da Repartição Internacional do Trabalho notificará a todos os Membros da Organização Internacional do Trabalho o registro de todas as ratificações, declarações e denúncias que lhe sejam comunicadas pelos Membros da Organização.

2. Ao notificar aos Membros da Organização o registro da segundo ratificação que lhe tenha sido comunicada, o Diretor-Geral chamará atenção dos Membros da Organização para a data de entrada em vigor da presente Convenção.

Artigo 41

O Diretor-Geral da Repartição Internacional do Trabalho comunicará ao Secretário - Geral das Nações Unidas, para fins de registro, conforme o Artigo 102 da Carta das Nações Unidas, as informações completas referentes a quaisquer ratificações, declarações e atos de denúncia que tenha registrado de acordo com os Artigos anteriores.

Artigo 42

Sempre que julgar necessário, o Conselho de Administração da Repartição Internacional do Trabalho deverá apresentar à Conferência Geral um relatório sobre a aplicação da presente Convenção e decidirá sobre a oportunidade de inscrever na agenda da Conferência a questão de sua revisão total ou parcial.

Artigo 43

1. Se a Conferência adotar uma nova Convenção que revise total ou parcialmente a presente Convenção, e a menos que a nova Convenção disponha contrariamente:

a) a ratificação, por um Membro, da nova Convenção revista implicará de pleno direito, não obstante o disposto pelo Artigo 39, supra, a denúncia imediata da presente Convenção, desde que a nova Convenção revista tenha entrado em vigor;

b) a partir da entrada em vigor da Convenção revista, a presente Convenção deixará de estar aberta à ratificação dos Membros.

2. A presente Convenção continuará em vigor, em qualquer caso em sua forma e teor atuais, para os Membros que a tiverem ratificado e que não ratificarem a Convenção revista.

Artigo 44

As versões inglesa e francesa do texto da presente Convenção são igualmente autênticas.

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