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Senac - Aclimao
Ana Luiza de Oliveira Duarte Ferreira
Histria da Amrica Latina:
Modos de pesquisar, modos de ensinar a aprender
So Paulo
2014
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Ana Luiza de Oliveira Duarte Ferreira
Histria da Amrica Latina:
Modos de pesquisar, modos de ensinar a aprender
Trabalho de Concluso de Curso apresentado ao SENAC Campus Aclimao, como exigncia parcial para obteno do ttulo de especialista em Docncia no Ensino Superior. Orientadoras: Prof. Ma. Idelta Bianca de Souza Diniz. Prof. Dra. Beatriz Di Marco.
So Paulo
2014
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F383eFerreira, Ana Luiza de Oliveira Duarte
Histria da Amrica Latina: modos de pesquisar, modos de ensinar a aprender/
Ana Luiza de Oliveira Duarte FerreiraSo Paulo, 2014.
Orientadoras: Idelta Bianca de Souza Diniz; Beatriz Di Marco
142 f.
Trabalho de concluso do Curso de Especializao em Docncia no Ensino
Superior Centro Universitrio Senac - Unidade Aclimao, So Paulo, 2014.
1. Historiografia latino-americana. 2.Pedagogia. 3. Didtica. 4. Plano de Ensino.
I. Diniz, Idelta Bianca de Souza. II. Marco, Beatriz Di. III. Ttulo.
CDD 370
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Ana Luiza de Oliveira Duarte Ferreira
Histria da Amrica Latina: modos de pesquisar, modos de
ensinar a aprender.
Trabalho de concluso de curso apresentado ao Senac
Campus Aclimao, como exigncia parcial para obteno do
ttulo de especialista em Docncia no Ensino Superior.
Orientadoras: Prof. Dra. Beatriz Di Marco
Prof. Ma. Idelta Bianca de Souza Diniz
A banca examinadora dos Trabalhos de Concluso,
em sesso pblica realizada em / / 2014, considerou o(a) candidato(a):
1) Examinador(a)
2) Examinador(a)
3) Presidente Prof. Dra. Beatriz Di Marco
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AGRADECIMENTOS
Aos professores inspiradores desta instituio, pela oportunidade de renovao,
aprendizagem, dvidas e alegrias compartidas. Aos colegas de turma por, sendo
diversos, crticos e sensveis, me ensinarem tanto.
A meus pais e irmos: referncia que se manifesta em tudo de bonito que penso,
escrevo, fao e desejo.
Carolina Gonzalez e Miriane Miti, pela parceria. Ao Eduardo Freitas e ao
Fernando Magnusson, pela generosidade.
E ao meu beb Miguel, presente.
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Certamente porque o racionalismo europeu impede de ver que a realidade no termina no preo dos tomates ou dos ovos. A vida cotidiana na Amrica Latina nos demonstra que a realidade est cheia de coisas extraordinrias. A esse respeito costumo citar o explorador norte-americano F.W.Up de Graff, que no final do sculo passado [XIX] fez uma viagem incrvel pelo mundo amaznico, onde viu, entre outras coisas, um arroio de gua fervente e um lugar onde a voz humana provocava chuvas torrenciais. Em Comodoro Rivadavia, no extremo sul da Argentina, os ventos do plo levaram pelos ares um circo inteiro. No dia seguinte, os pescadores tiraram em suas redes cadveres de lees e girafas. Em Os funerais da mame grande, conto uma impensvel, impossvel viagem do papa a uma aldeia colombiana. Lembro-me de ter descrito o presidente que o recebia como calvo e rechonchudo, a fim de que no se parecesse com o que ento governava o pas, que era alto e ossudo. Onze anos depois de escrito esse conto, o papa foi Colmbia e o presidente que o recebeu era, como no conto, calvo e rechonchudo. Depois de escrito Cem anos de solido, apareceu em Barranquilla um rapaz confessando que tem um rabo de porco. Basta abrir os jornais para saber que entre ns acontecem coisas extraordinrias todos os dias. Conheo gente inculta que leu Cem anos de solido com muito prazer e com muito cuidado, mas sem surpresa alguma, pois afinal no lhes conto nada que no parea com a vida que eles vivem.
Gabriel Garcia Mrquez, Cheiro de goiaba (1982)
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RESUMO O presente trabalho abordou como a Histria da Amrica Latina vem sendo produzida, e como pode ser melhor trabalhada em cursos de Histria, no ensino superior, no Brasil. O objetivo era atualizar conhecimentos, assim como aprofundar meu acervo pessoal, de maneira a refletir criticamente sobre modos de produo de conhecimento histrico que j esto consolidados nos grandes centros culturais do Ocidente, e modos de produo interessantes para a abordagem das questes latino-americanas. Era tambm expandir acervo de reflexes sobre a docncia, considerando proposies de tericos/pedagogos consagrados, assim como pesquisas sobre experincias prticas no nvel bsico e tambm em faculdades de nosso pas, para a estruturao de um plano de ensino (com claros objetivos, contedos, estratgias de ensino/aprendizagem, estratgias de avaliao). A hiptese que como pesquisa e ensino ocorrem, no mbito da Histria da Amrica Latina, de forma desarticulada, tal campo historiogrfico no se consolida, e no ganha fora e expresso nas escolas de nvel bsico. Concluiu-se, portanto, que na formao dos novos docentes dos ensinos Fundamental II e Mdio deve haver uma renovao crtica da nfase em questes histrico-identitrias latino-americanas, mas que tal movimentao deve ocorrer lado a lado a uma revalorizao dos modos de se trabalhar temas e problemticas relativos Amrica Latina nas salas de aula. Para uma rica Histria da Amrica Latina, pesquisa e ensino articulados. Palavras-chave: 1. Histria da Amrica Latina. 2. Historiografia Latino-americana. 3. Ensino de Histria. 4. Ensino Superior. 5. Didtica. 6. Plano de Ensino.
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SUMRIO
1 INTRODUO
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2 A HISTRIA DA AMRICA LATINA: MODOS DE ESTUDAR
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2.1 TENDNCIAS NOS GRANDES CENTROS DE SABER 20
2.2 TENDNCIAS LATINO-AMERICANAS 27
3 A HISTRIA DA AMRICA LATINA: MODOS DE ENSINAR A APRENDER
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3.1 PLANO DE ENSINO 36
3.2 OBJETIVOS 40
3.3 CONTEDOS 46
3.4 ESTRATGIAS DE ENSINO/APRENDIZAGEM 47
3.5 ESTRATGIAS DE AVALIAO 53
3.6 QUADRO SINTICO 62
4 CONSIDERAES FINAIS
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REFERNCIAS
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APNDICE A RENOMADOS HISTORIADORES LATINOAMERICANOS DO SCULO XX
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APNDICE B SUGESTO DE PLANO DE AULA
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APNDICE C SUGESTO DE SEQUNCIA DIDTICA PARA ENSINO A DISTNCIA
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APNDICE D SUGESTO DE PROJETO INTERDISCIPLINAR
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1 INTRODUO
As proposies esboadas neste Trabalho de Concluso de Curso partem de
reflexes desenvolvidas ao longo do curso de ps-graduao em Docncia no
Ensino Superior, ministrado no SENAC-Aclimao. Corresponde, assim,
sistematizao de conhecimentos construdos em parceria com os professores desta
instituio e tambm com os colegas de turma, sobre a situao dos professores de
nvel superior no Brasil de hoje: obstculos institucionais, problemas scio-culturais,
possibilidades que se abrem, teorias que despertam, prticas que inspiram.
Especificamente, o objetivo aqui , por um lado, refletir sobre como a
disciplina Histria da Amrica Latina vem sendo ministrada nos cursos de Histria,
em nvel superior, no Brasil. Mas tambm apresentar propostas de abordagem, por
parte dos professores de faculdades brasileiras, que permitam aos alunos de
Bacharelado e de Licenciatura em Histria desenvolverem/aprimorarem a anlise
critica sobre diferentes verses da Histria latino-americana.
Penso que, ao considerar a Amrica Latina como tema, no ensino superior,
o aluno de Histria segue tendo acesso a um modelo de aprendizagem to
conteudista quanto costumam ter os alunos dos Ensinos Mdio e Fundamental II. E
acredito ser interessante que, em um e outros mbitos, se observe a histria, e
especificamente a histria de nosso continente, como uma cincia em construo.
Desde o movimento historiogrfico/epistemolgico dos Annales, na Frana,
tm-se dito que a Histria deve focar a produo de novas informaes, mas
tambm a crtica de conhecimentos j cristalizados, que podem decorrer na
elaborao de novos conhecimentos/percepes acerca de clichs, fatos clebres,
datas comemorativas, eventos e personagens consagrados (BURKE, 2002).
Encarando o saber histrico dessa forma, ao longo da disciplina de Histria
da Amrica Latina os alunos deveriam vivenciar a oportunidade de avaliar
criticamente uma ampla gama de percepes acerca de passado coletivo de
brasileiros, mexicanos, argentinos, venezuelanos, etc. E assim se fariam aptos no
apenas a elaborar pesquisa rigorosa, que resultaria num artigo cientfico publicvel,
sobre um determinado tema latino-americano de seu interesse, ou de interesse
atual. Eles desenvolveriam/aprimorariam um olhar sempre desperto para
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deturpaes, usos polticos, anacronias, ideologizaes, de forma a se posicionarem
sempre de maneira consciente e bem medida, no que diz respeito a toda sorte de
fatos de ontem que ainda fazem eco nas sociedades da Amrica Latina de hoje.
Em outras palavras, o aluno experimentaria a histria como uma cincia
caracteristicamente poltica, e que trabalha com verses. Melhor seria que, num
curso de Histria da Amrica Latina, treinariam o olhar para o fato de que no h
uma verdade posta a ser decorada e reproduzida, ou uma verdade a ser descoberta.
Mas uma srie de noes cuja condio de veracidade deve ser averiguada, de
forma subjetiva mas sistemtica.
Antes de mais acredito ser fundamental, porm, apresentar conceitos
principais a serem trabalhados ao longo de todas as pginas desta monografia.
Primeiramente, importante aludir ao que a meu ver vm designar os termos
Amrica Latina; e, junto a isso, aludir importncia de ns, brasileiros, nos
dedicarmos crtica dos modos de ser e viver, e crtica do passado e das
memrias relativas a essa poro do continente americano.
Na sequncia desta Introduo, considero importante referir-me criao de
institutos de pesquisa e de ensino brasileiros voltados s experincias histricas
latino-americanas suas propostas e elaboraes. E, por fim, abordar as leis
pertinentes ao ensino da Histria no nvel superior e no nvel bsico, no Brasil, e
possveis implicaes delas numa abordagem mais profcua do passado do
continente latino-americano.
Como pontuei acima e o leitor acompanhar nos captulos que compe este
trabalho, tenho como premissa a ideia da Histria como cincia em construo. A
ideia de Amrica Latina, enquanto histrica, deve ser observada da mesma
maneira.
Chama-se Amrica Latina ao trecho da Amrica que a partir do sculo XVI
foi colonizado por povos de origem latina; sobretudo portugueses, espanhis e
franceses. Trecho que engloba, portanto: Brasil, Mxico, Argentina, Venezuela,
Bolvia, Brasil, Chile, Colmbia, Costa Rica, Cuba, Equador, El Salvador, Guatemala,
Haiti, Honduras, Nicargua, Panam, Paraguai, Peru, Repblica Dominicana,
Uruguai.
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Tal denominao tardou, contudo, a ser largamente empregada. Como nos
lembram FARRET e PINTO (2011), ganhou proeminncia num contexto de difuso
da ideologia panlatinista, por fora de um imperador da Frana oitocentista
Napoleo III. Esse dspota francs, sobrinho do clebre personagem histrico que
deps Maria Antonieta e Lus XVI, desejava exercer influncia poltico-cultural para
alm das fronteiras de seu pas. E ousou traar uma ideia genrica de latinidade
como marco de identificao entre americanos de norte e sul, portugueses,
espanhis e franceses.
Outras expresses foram empregadas desde ento, como: simplesmente
Amrica, Hispanoamerica (com a excluso do Brasil, de colonizao lusa, assim
como de pases de colonizao francesa, como o Haiti), Iberoamrica, e Amrica
Ibrica. Porm, ante o esforo de diferenciao dessa populao americana frente
aos Estados Unidos, mas tambm ante as antigas naes colonizadoras, a
identificao com a Frana prevaleceu, e o nome Amrica Latina passou a ser o
mais corriqueiro (IDEM, p. 29).
Desde o incio do sculo XX, ampliou-se, entre ns latino-americanos, o
esforo por pensar sistematicamente a conformao, as especificidades, os dilemas
e as possibilidades de desenvolvimento desta desprezada e problemtica poro da
Amrica. Conforme nos sugere de PIZARRO (1993), as potncias europeias
estavam em guerra, os poderosos Estados Unidos mergulhavam em uma grande
crise, e ns circunstancialmente enfrentvamos a urgncia e abravamos a chance
de nos interpretarmos: com certa autonomia, alguma crtica, muita esperana.
Segundo PIZARRO (1993), destacaram-se, pois, escritos informais e
generalistas; at porque a experincia universitria latino-americana era ainda
difusa. Jornalistas, literatos e artistas se incumbiram da tarefa, e elaboraram textos
em uma estrutura pouco afirmativa, e estilisticamente potica: a estrutura do
ensaio.
Deve-se fazer notar, com PIZARRO (1993), que, a despeito da diversidade de
percepes e compreenses, os ensastas latino-americanos de princpios do sculo
XX sempre consideraram como fundamental a sutil relao entre passado e
presente; Histria e identidade atual, nos destinos de nossos pases. Algo
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semelhante ao que propuseram os Annales franceses, e que tm proposto os seus
principais herdeiros, entre outros.
Outro aspecto em comum entre esses ensastas latino-americanos dos
princpios dos novecentos que tomaram como fato que a Amrica Latina seria
composta por pases que possuem especificidades bem marcadas; que o continente
seria cravado de diversidades geogrfica, climtica, tnica, cultural, religiosa. E que
justamente tais variaes, contrapostas, fariam deste um continente especial: tratar-
se-ia daquele, em todo globo, mais marcadamente mestio (PIZARRO, 1993).
H, ento, boas razes para se considerar a Amrica Latina como um recorte
interessante: para ns, brasileiros, tal subcontinente abriga um complexo de povos
mais amplo, de maneira que focando-o escapamos a patriotismos vazios; e, ao
mesmo tempo, remetemo-nos a um conjunto de significados, sem que nos percamos
na contempornea tendncia do individualismo neoliberal.
Na atual conjuntura poltica internacional, ademais, temos que diversos
lderes polticos latino-americanos, dentre os quais os dois ltimos presidentes
brasileiros, tm se destacado como alternativas prprias, autnticas, ao
neoliberalismo imposto pelos Estados Unidos e potncias europeias. Repensar a
histria de nosso subcontinente nos ajuda, afinal, a entender os processos que nos
levam s condies histricas de hoje, assim como muitos dos discursos dos quais
dispem lderes como Lula, Dilma Roussef, os mexicanos Manuel Lopez Obrador e
Enrique Pea Nieto, os argentinos Kirchner, os venezuelanos Nicols Maduro e o
falecido Hugo Chavez, o boliviano Evo Morales.
Ora, desde aqueles princpios do sculo XX at nos tempos atuais, foram
criadas inmeras universidades, centros de pesquisa e faculdades especialistas, que
foram enfrentando novas demandas e expectativas sociais, continentais, mundiais.
A reflexo histrica, nesse devir, ganhou novas dimenses, propsitos e
mtodos. E a abordagem das problemticas latino-americanas chegou aos dias de
hoje como bem pouco expressiva; os povos latino-americanos, em suas similitudes
histricas, culturais e polticas, e em sua diversidade de procederes e
deslocamentos, vm sendo bem pouco estudados. Menos ainda no Brasil. Ns,
brasileiros, optamos, em nossos cursos de Histria, por focar a histria
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estadunidense e europeia (s quais chamamos Histria Universal), o nacional, o
regional/estadual, ou alguns setores de nossa populao, como indgenas e negros.
So poucas as organizaes que no Brasil se dedicam de maneira focada
Amrica Latina e suas questes. Em So Paulo temos o Memorial da Amrica
Latina, um enorme complexo arquitetnico em quase total desuso nos ltimos anos,
mas que, mesmo em face das dificuldades como o incndio que no ano passado
destruiu o auditrio Simon Bolvar , vai se reestruturando e propondo exposies,
shows e cursos a respeito das especificidades que marcam as trajetrias histricas,
polticas, sociais e culturais de brasileiros, mexicanos, argentinos, etc.
Algumas instituies de pesquisa so bons exemplos: o Programa de Ps-
graduo em Interunidades para Estudo da Integrao da Amrica Latina
(PROLAM), da Universidade de So Paulo; o Centro de Estudos Latino-Americanos
sobre Cultura e Comunicao (CELACC), da Escola de Comunicao e Artes (ECA)
da Universidade de So Paulo; e o Centro Angel Rama (para estudos da Literatura e
da cultura latino-americanas), da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas
(FFLCH) da Universidade de So Paulo.
No Rio de Janeiro, h o Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos
(CEBELA), o Programa de Estudos de Amrica Latina e Caribe (PROEALC), do
Centro de Cincias Sociais (CCS), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e o
Observatrio Poltico Sul-Americano (OPSA), do Instituto Universitrio de Pesquisa
do Estado do Rio de Janeiro (IUPERJ). Por fim, h o Instituto de Estudos Latino-
americanos (IELA), da Universidade Federal de Santa Catarina; e o Centro de
Estudos Sociais/ Amrica Latina (CES/AL), que agrega pesquisadores da
Universidade de Coimbra (Portugal) e da Universidade Federal de Minas Gerais.
Como se v pelas siglas supracitadas, entretanto, essas so instituies
sobretudo voltadas reflexo sociolgica e literria, e, embora contem com a
participao de historiadores, arquivistas e muselogos, no conferem destaque
abordagem historiogrfica. H, de fato, em So Paulo, o Laboratrio de Estudo de
Histria das Amricas, da USP, o Centro de Estudos de Histria da Amrica Latina
(CEHAL), da Pontifcia Universidade Catlica da So Paulo (PUC-SP), e a
Associao Nacional de Pesquisadores e Professores de Histria das Amricas, que
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se rene em eventos bianuais. Porm, a grande maioria dos pesquisadores
interessados em temas latino-americanos esto dispersos pelo pas.
Disso podemos depreender que a formao de nossos graduandos em
Histria se faz desligada de rica mas truncada produo de informao e crtica.
Deve-se estar atento, porm, ao fato de que, conforme anunciado pginas
antes, meu objetivo, neste Trabalho de Concluso de Curso, no to somente
avaliar as condies do pesquisador da Histria da Amrica Latina no Brasil, mas do
professor que se dedica aos temas a ela pertinentes.
Nas Diretrizes Curriculares dos Cursos de Histria do Brasil (PARECER
CNE/CES 492/2001), sublinha-se a necessidade de se articular Bacharelado e
Licenciatura, quer dizer, os mbitos da pesquisa e do ensino. Faz-se, ali, a crtica de
uma tendncia da dcada de 1960, no Brasil, do currculo mnimo, que estabelecia
o que todos os cursos, em todo o pas, deveriam ministrar aos graduandos. Naquela
poca, em consonncia com os interesses antidemocrticos da elite que controlava
a presidncia, a Histria servia como referencial identitrio alienante: cardpio de
ttulos, heris e datas s quais os bons cidados brasileiros deveriam recorrer,
acriticamente, para se sentirem brasileiros e ajustados socialmente. Ento, aos
alunos de histria do Ensino Superior ou do Ensino Fundamental II e Mdio no
caberia refletir sobre o passado, mas apenas decorar e comemorar o que era
selecionado como til pelo Estado.
Distintamente, as novas Diretrizes sugerem preocupao com a formao de
alunos, no nvel superior, interessados na produo de conhecimento e reflexo
histrica: para atuarem criticamente tanto como pesquisadores, quanto como
arquivologistas, museologistas, e, por fim (ou principalmente) professores do Ensino
Bsico. Tais propostas ecoam toda uma tendncia de valorizao no apenas dos
crditos obtidos em salas de aula, mas tambm em iniciao cientfica, projetos de
extenso, seminrios extraclasse, participao em eventos cientficos, e na prtica
docente e estgios supervisionados; quer dizer: ecoam a valorizao do
conhecimento histrico e das prticas essenciais de sua produo e difuso
(PARECER CNE/CES 492/2001, p. 7).
O leitor poderia contrapor-se a meus argumentos em prol da necessidade de
valorizao das aulas de Histria latino-americana no Ensino Superior e Bsico, com
um argumento legal: as Diretrizes apontam como interessantes para os alunos
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brasileiros alguns enfoques de contedos que merecem ser praticados; e no inclui
a Amrica Latina entre eles. Registrou-se, de fato, no texto do documento, o elogio a
experincias com a Histria Antiga, a Histria Medieval, as Histrias Regionais, e
tambm a Histria da frica e Indgena.
Contudo, eu diria que diversos outros instrumentos legais e consultivos
educacionais de nosso pas expressam a importncia da valorizao, por parte dos
professores de histria, da questo da memria coletiva, das identidades, e da
considerao do plural entorno escolar; o respeito s diferenas, diversidade.
Refiro-me sobretudo Lei de Diretrizes e Bases (1996, artigo 6, primeiro pargrafo),
e prpria Constituio (1988, artigo 242). Mas tambm aos Parmetros
Curriculares Nacionais, que propem referenciais crticos a serem explorados pelos
professores de nossas escolas de ensino bsico, aqueles que nossos cursos de
Histria formam: concentrarem-se em elementos cognitivos, afetivos, sociais e
culturais que constituem a identidade prpria e a dos outros; e nos processos de
construo da memria social, partindo da crtica dos diversos lugares de memria
socialmente institudos (2000, p. 26).
Em 2003 foi promulgada a Lei n 10.639, que tornou obrigatrio no nvel
bsico o ensino da Histria e da Cultura Africanas, e em 2008 a Lei n 11.645, que
alterou o texto da anterior e tornou obrigatrio o ensino da histria e cultura afro-
brasileira e indgena.
Tais normas, aes governamentais que foram ao encontro de antigas
demandas dos movimentos sociais, de fato impulsionaram a reflexo, e tm ajudado
a promover mudanas nos modos de se olhar nossa diversidade, de se elaborar
planos de aula, de se acessar informaes sobre nosso passado coletivo. A partir da
homologao das leis, surgiram inmeros cursos de especializao, assim como
fruns de debates. Pode-se argumentar, ento, a necessidade de nova lei, que
regulamente agora o ensino sobre a Amrica Latina.
Porm to somente atendendo ao chamado de todas as normas
anteriormente citadas e j institucionalizadas o ensino de Histria da Amrica Latina
pode-se renovar. Basta os professores de Histria de nosso pas atentarem para um
aspecto das novas leis que vo alm do conteudismo: elas no sugerem apenas que
nossos docentes abordem temas relativos ao negro e ao indgena no Brasil, mas
que assim fazendo promovam farta discusso sobre diversidade cultural, explorao
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material, excluso social. Ora, falar em Amrica Latina no implica em falar em
trocas e imperialismo? No implica em falar em violncia histria? No implica em
falar em negros e indgenas, calados no passado e no presente dos mais diversos
pases deste subcontinente?
A abordagem crtica e criativa da histria da Amrica Latina, efetivamente, me
parece terreno frtil para tais pretenses.
O curso de Histria oferecido pela Universidade de So Paulo prope como
ideal que j no primeiro semestre os alunos estabeleam contato com a Histria da
Amrica, com foco no perodo Colonial. Um ano depois, apenas, conforme a grade
proposta pela faculdade, os alunos voltariam a estudar especificamente o passado
de nosso continente, na disciplina Histria da Amrica Independente I; e, logo na
sequncia, no semestre seguinte, Histria da Amrica Independente II.
Os alunos do curso de graduao da USP tm ainda a possibilidade de cursar
inmeras disciplinas optativas, dentre as quais: Histria das Ideias Polticas na
Amrica Colonial, Histria das Religies e os encontros culturais entre Europa e
Amrica, e Histria da Amrica Pr-Hispnica.
Na Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, os alunos estudam histria
da Amrica em diversos semestres. Tal como no caso da USP, espera-se que o
aluno curse quatro disciplinas dedicadas a tais temticas e problemticas. So elas:
Histria Americana antes da Conquista Europeia, Histria da Amrica Colonial
Espanhola, Amrica: gnese e formao do Estado, Amrica: Amricas
movimentos sociais, diversidades, identidades.
Na Universidade Paulista (UNIP), contudo, apenas duas disciplinas concedem
enfoque a tais questes: Histria da Amrica Colonial e Histria da Amrica
Independente. E, nas Universidades Anhanguera, apenas uma: Histria da Amrica.
A respeito, podemos fazer trs observaes. Primeiro, muitas dessas
disciplinas se concentram na realidade hispnica. Elas se abrem a um recorte mais
amplo, que se perde em alongadas reflexes sobre a histria dos Estados Unidos, e
exclui possibilidades claras de comparao ou relao entre a histria brasileira e a
histria de nossos vizinhos de continente. No h o propsito de analisar a Amrica
Latina em si poro hispnica e lusa, aproximaes e distines.
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Segundo, que a estruturao de tais disciplinas tomou como base,
regularmente, recortes temporais; e no a tomada de uma viso crtica acerca da
histria da Amrica Latina. Conforme venho pontuando, mais interessante seria
trabalhar os contedos e temas relativos ao passado de nosso continente como
construo, e analisar as formas como essas construes se deram, e se
legitimaram.
Dentre as disciplinas optativas propostas pelo Departamento de Histria da
USP consta uma cujo plano foi recentemente aprovado e que aproxima do que
proponho neste Trabalho de Concluso de Curso: Estudos latino-americanos
fico e Histria. Na PUC, a disciplina que mais se aproxima Histria Americana
antes da Conquista Europia: ensino e pesquisa.
Em terceiro lugar, notvel, a partir da observao das grades curriculares e
ementas analisadas que as universidades de maior expressividade internacional,
como produtoras de conhecimento cientfico, historiogrfico, revelem uma
preocupao maior com a Histria da Amrica Latina. Por outro lado, as instituies
que se responsabilizam por formar a maior parte dos futuros professores de histria
do Ensino Bsico, quelas nas quais os alunos se dedicam menos pesquisa do
que Licenciatura, no esto solidamente envolvidas com propsito de pensar e
fazer pensar sobre as especificidades histricas latino-americanas.
A hiptese geral com a qual trabalho , ento, que, como a histria da
Amrica Latina, trabalhada por historiadores e por professores universitrios de
Histria de nosso pas, ainda vive em grande desprestgio ou desarticulao/
desorganizao, os professores do Ensino Fundamental II e Mdio (muitas vezes
mal formados, mal informados, e dispondo de livros didticos evasivos a respeito)
tendem a incorrer em abordagens bem simplistas e conteudistas. Eles tendem a
incorrer em abordagens que fogem da proposta da Histria como cincia em
construo e tambm da proposta da Histria como disciplina que mescla pesquisa
e ensino. Eles tendem a incorrer em abordagens que redundam em aulas pouco
atrativas e cognoscitivamente ou socialmente pouco relevantes.
A proposta deste Trabalho de Concluso de Curso justamente se opor a tais
movimentos. Aqui no se pretende, efetivamente, a reforma dos currculos dos
cursos de Histria de nosso pas, de maneira a incluir uma nova disciplina
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obrigatria s grades. A idia compor um repertrio de reflexes sobre a produo
historiogrfica na Amrica Latina, sobre a Amrica Latina, e divulgada no Brasil; e
tambm, atravs da composio da proposta pedaggica de um plano de trabalho
docente, apresentar um cardpio de sugestes para abordagem dessas reflexes
em salas de aula do ensino superior brasileiro focando a formao de
pesquisadores-professores e professores-pesquisadores.
A metodologia da qual me sirvo , basicamente, vasta reviso bibliogrfica.
Percorrerei autores clssicos da historiografia e da Pedagogia, e analisarei trocas
entre grandes nomes, mais recentes, estrangeiros, brasileiro, e latino-americanos
em geral. No campo da Histria, merecem destaque os j citados Annales (dentre os
quais Lucien Febvre e Marc Block, Jacques Le Goff e Philiphe Aris), Richard Morse,
Tzvetan Todorov; ainda Jurandir Malerba. No campo da Educao, Marcos Masetto,
Antonio Carlos Gil, Gilberto Teixeira, entre outros autores da rea da Histria, que
no Brasil trabalham a Amrica Latina: sobretudo Circe Bittencourt e Maria de Ftima
Sabino Dias.
Este escopo se dividir, logo, em dois captulos. Num primeiro captulo, ser
apresentada uma atualizao e contextualizao de temas relativos Histria da
Amrica Latina: formas como a histria da Amrica Latina escrita,
metodologicamente, dentro e fora da Amrica Latina. Num segundo captulo, sempre
fundamentada por reflexes de autores reputados que pensaram a educao e
pensam o ensino superior, apresento um plano de ensino para uma disciplina que
focasse o subcontinente latino-americano de forma inovadora.
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2 A HISTRIA DA AMRICA LATINA: MODOS DE PESQUISAR
O objetivo deste captulo aprofundar e atualizar todo um acervo de conhecimentos,
garantindo subsdios relacionados a meu campo especfico de atuao a Histria
da Amrica Latina para que, no prximo captulo, as reflexes sobre a docncia no
ensino superior se dem de forma mais slida e profcua. Aqui, portanto, a ideia
uma discusso temtica, a ser, adiante, desdobrada em uma discusso pedaggica.
Especificamente, o presente captulo se prope a analisar como a Histria da
Amrica Latina pode vir e vem sendo trabalhada e avaliada, nos ltimos anos. E
busca responder aos seguintes questionamentos: Quais conceitos tm merecido
nfase pelos investigadores estrangeiros que nos inspiram? Quais metodologias tm
intrigado e motivado a ns, brasileiros/latino-americanos? Temo-nos apresentado
passivamente, como reagentes s ponderaes propostas nos grandes centros
culturais do Ocidente? Que concepes temos inspirado, enriquecido, desdobrado e
renovado?
A hiptese por ora defendida a de que tendemos a encarar no apenas
nossas experincias scio-polticas como deformaes, se comparadas a modelos
europeus e norte-americanos; de que tendemos a encarar nossas reflexes e
nossos modelos de crtica como menos interessantes ou vlidos do que os modelos
concebidos na Europa e nos Estados Unidos. A pesquisa e a docncia que se
dedicam Histria da Amrica Latina tendem a corresponder, assim, a um espao
de reflexo sobre atraso, dependncia, cpia e deturpaes de segunda classe,
quando no apenas obrigao enfadonha.
Visando avaliar como a Histria da Amrica Latina vem sendo ou poderia ser
melhor trabalhada em nossos cursos de formao de pesquisadores e professores,
me dedico, afinal, a refletir sobre questes menos contextuais e institucionais, e
mais conceituais e metodolgicas. A desenvolver vasta reviso bibliogrfica; intensa
busca e anlise crtica de reflexes tericas a respeito da pesquisa histrica, dentro
e fora de nosso subcontinente, voltando o foco, sempre, s problemticas que
envolvem pases latino-americanos.
Num primeiro tpico, observar-se-o tendncias terico-metodolgicas em
trabalhos de pesquisadores dos grandes centros culturais do Ocidente, com foco na
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20
Frana. Sero abordadas proposies de expoentes da dita Escola dos Annales,
que surgiu em princpios do sculo XX, e de historiadores que so considerados
seus herdeiros, e que so tambm representativos dos chamados estudos
culturais, como Jacques LeGoff (2003) e Phillipe Aris (2010).
Depois, observar-se- como os mencionados entendimentos e prticas
franceses vm sendo apropriados e ressignificados entre os investigadores
brasileiros e latino-americanos que se dedicam ao estudo da histria da Amrica
Latina.
O ponto de partida para tanto sero algumas snteses elaboradas desde
meados da dcada de 1960: as reflexes do professor brasileiro Jurandir Malerba
(2009), da pesquisadora espanhola Marta E. Casas Arz (1994), e do historiador
norte-americano Stanley J. Stein(1964).
Embora a inteno seja reunir e organizar informaes, no se pretender
compor um quadro fechado, mas crtico e, portanto, caracterizado por ns e lacunas.
As periodizaes propostas por esses autores, ento, servem como ponto de
partida, mas no como tabus. E os entendimentos que eles apresentam em suas
anlises aqui surgem como pontos de vista e no como concluses a serem
reproduzidas.
Em meio diversidade e s complexidades vislumbradas, sero destacados
alguns conceitos que, na produo historiogrfica se repetem, e que no se deseja
que acabem por engessar-se: como a noo de identidade local, nacional,
transnacional, latino-americana. A ideia , afinal, que aquilo que nos prprio e que
nos permite identificar possa ser avaliado de maneira radical, a partir de observao
rigorosa que autores estrangeiros nos inspiram, mas tambm que podemos inspirar
em autores do estrangeiro.
2.1 Tendncias nos grandes centros de saber
Como as universidades do Brasil surgiram bem tardiamente, tomou-se como
referncia de estruturao de cursos e de estudos especializados, em grande parte
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das vezes, grupos e investigadores franceses. No caso especfico da Histria, tem-
se como referncia de renovao um movimento denominado Escola dos Annales.
O historiador ingls Peter Burke escreveu um breve mas fundamental estudo
a respeito. Em A Escola dos Annales: a revoluo francesa da historiografia (1997),
ele nos conta que, influenciados pela sociologia de Augusto Comte e mille
Durkhein, na primeira metade do sculo XX os historiadores Marc Bloch e Lucien
Febvre trabalharam na edio de uma revista que se pretendia liderana intelectual
nos campos da histria social e econmica; porta-voz (...) de difuso dos apelos
dos editores em favor de uma abordagem nova e interdisciplinar da histria
(BURKE, 1997, p. 33).
Bloch e Febvre foram profundamente crticos historiografia consolidada em
sua poca. Segundo Burke, condenavam o culto a trs dolos: o dolo poltico, o
dolo individual, e o dolo cronolgico (BURKE, 1997, p. 21). E propunham uma
histria-problema (BURKE, 1997, p. 26).
Conforme Burke (1997, p. 25), Febvre se preocupou em considerar, nos
conflitos entre indivduos, grupos e sociedades, atravs da histria, no apenas as
razes econmicas e materiais, mas tambm as geogrficas, intelectuais,
sentimentais, simblicas; compondo abordagens interdisciplinares. Fez, portanto, a
crtica a outra tendncia que, a partir da Alemanha, vinha se consolidando nos
estudos histricos mais analticos: o foco na infraestrutura econmica, feito sob
inspirao de Karl Marx.
A crtica de Bloch historiografia tradicional, factual, centrada em grandes
homens, e tambm ao economicismo marxista foi por ele sintetizada em um clebre
livro, escrito durante a Segunda Guerra Mundial, quando ele, lutando junto
resistence franaise, foi feito prisioneiro do exrcito alemo. Em Apologia da histria
ou o ofcio do historiador (1944), Bloch refletiu sobre a legitimidade e utilidade do
profissional da Histria, opondo-se subservincia dos pesquisadores que, ligados
aos Estados nacionais, se restringiam abordagem de clichs alienantes; quer
dizer, Histria comemorativa, patritica, acrtica, ufanista. Mas tambm se ops
ideia de que um estudo sobre a histria apenas ganharia importncia na medida em
que serve ao poltico-revolucionria. Nesse sentido, ele escreveu: histria,
mesmo que fosse eternamente indiferente ao homo faber ou politicus, bastaria ser
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reconhecida como necessria ao pleno desabrochar do homo sapiens (BLOCH,
2001, p. 45).
Na escrita dos Annales, portanto, a Histria deixava de ser uma cincia do
passado para ser um processo de integibilidade, uma cincia em construo. Os
pesquisadores deveriam, pois, assumir claramente seu quinho de responsabilidade
no pela descoberta de determinados fatos e/ou detalhes acerca desses fatos, ou
pelo desvendamento de equvocos e contradies do que se tem como memria
oficial. Sob inspirao de Febvre e Bloch, deveriam responsabilizar-se e engajar-se
na produo de conhecimento histrico crtico e atual.
Da abordagem interdisciplinar proposta pelos Annales, nas primeiras dcadas
dos novecentos, sublinha-se recentemente um profcuo debate com a Antropologia.
As mentalidades, o intelecto, as sensibilidades passam a ser considerados em
relao dialgica com o poltico, o social, o material, o econmico.
Dentre os herdeiros franceses dessa tradio dos Annales, destaca-se hoje o
nome de Jacques Le Goff; que tornou-se clebre por seus estudos sobre a Europa
medieval, como: Os intelectuais na Idade Mdia (1957), O nascimento do purgatrio
(1981), O imaginrio medieval (1985), O Deus na Idade Mdia (2003).
Em seu clssico sobre Histria e memria (2003) Le Goff discute como essa
subjetivao do trabalho e dos temas historiogrficos repercute em complexificao
do ofcio do historiador. Ora, se devemos levar em conta o foco concedido pelo ser
que analisa, e se nos interessamos mais e mais pela dimenso psicolgica, mental,
sentimental dos atores histricos, a noo de uma Histria universal perde sentido.
Ele escreve: quando as naes do Terceiro Mundo se preocupam [...] com
documentar-se de uma histria [...] permite-se tipos de histria extremamente
diferentes daqueles que os ocidentais definem como tal (LE GOFF, 2003, p. 16).
Outro historiador que hoje atua sob inspirao de Febre e Bloch Philippe
Aris, cujos estudos sobre mentalidades e hbitos, na Frana, conquistaram grande
pblico leitor em todo mundo. Dentre seus trabalhos, mereceram destaque: A
criana e a vida familiar no Antigo Regime (1960), O homem diante da morte (1977).
Aris foi tambm o idealizador de uma coleo, dividida em quatro volumes,
que conta com a contribuio de diversos pesquisadores, e percorre aspectos da
histria cotidiana francesa, em diversas eras: da Antiguidade ao feudalismo, do
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Renascimento ao Iluminismo, das revolues e imperialismos at chegar
contemporaneidade. Editado post morten por dois de seus grandes amigos e mais
reputados pesquisadores da Frana George Duby e Roger Chartier Histria da
vida privada (2009) conta, em suas mais diversas tradues, com o texto de uma
conferncia proferida por Aris em Berlim, no ano de 1983, intitulada A propsito da
histria do espao privado.
Nesse texto, Aris (2009) discute o conceito de privado, antepondo-o ao de
pblico; e demarca que, embora os interesses individuais, familiares e subjetivos se
fizessem notveis desde os tempos mais remotos, antes que o advento da
modernidade se tornasse imperativo o coletivo era espao que se sobrepunha s
formas de pensar, sentir, se expressar. Aris propunha, pois, que trabalhssemos
uma diversidade considervel de registros deixados por homens e mulheres, no
passado, desde o surgimento da modernidade, para compreender como a casa, o
lar e necessidades especficas vo se desligando de uma viso de todo social.
Tanto os trabalhos de Le Goff, quanto de Aris, como herdeiros das
proposies apresentadas pelos Annales, denotam alguns entendimentos gerais que
passam a percorrer preocupaes de historiadores em todo o mundo. Os
entendimentos que entre ns brasileiros tendem a ser apontados como os mais
importantes so trs.
Primeiramente, o interesse por uma variada gama e tipos de fontes: de
documentos oficiais estatais, dos quais se extraem dados quantitativos, a textos
clssicos da Filosofia e Teologia, dos quais se analisam modos de pensar e sentir;
de construes arquitetnicas e obras de arte a cartas pessoais, testamentos e
inventrios, nos quais se buscam entendimentos acerca de padres de
comportamento.
Depois, a rejeio das snteses histricas globais e da noo de progresso
histrico, linear; a viso da Histria como uma cincia em construo, e da
necessidade de se trabalhar com recortes temporais e temticos.
Por fim, e como terceira tendncia, o estudos de Le Goff e Aris ilustram a
preocupao, caracterstica do pensamento ocidental de meados do sculo XX, com
a desconstruo das identidades.
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24
Segundo Ana Carolina Escosteguy (2001), nesse momento da histria do
Ocidente, em razo da derrota dos governos totalitaristas, do fim dos poderes
imperialistas na frica e na sia, e da ascenso dos projetos neoliberais de
administrao dos Estados-nao, os chamados estudos culturais apontaram para
a relativizao da noo de identidade nacional. Essa relativizao ocorreu
sobretudo de duas maneiras: as identidades nacionais passaram a ser vistas como
uma construo que em grande medida serve a interesses bastante especficos, em
cada pas e tambm fora dele; as identidade nacionais ofuscam as diversidades de
concepes, modos de ser e querer, que caracterizam os homens e mulheres que
habitam um mesmo territrio.
Dedicada crtica das anlises culturais que vm caracterizando diversos
campos do saber da Filosofia Sociologia, da Poltica ao Direito, da Geografia
Histria a professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Beatriz Resende
(2002, p. 49), afirma: na pluralidade cultural, no reconhecimento das diversas
subjetividades, nas mltiplas identidades [...] que est a possibilidade de se
reconhecer o completo, o outro.
E ela acrescenta que hoje o intelectual no tem mais a funo de porta-voz
dos que no tm voz que preferem falar por si mesmos , tarefa de mediador entre
poderosos e oprimidos, como acontecia com o intelectual moderno; contudo, resta-
nos ainda a funo crtica (2002, p. 22). E o que constitui, de fato, essa funo
crtica, para o historiador de hoje?
No campo da investigao histrica, certas tendncias desses estudos
culturais foram criticadas pelo pesquisador, tambm francs, Franois Dosse autor
de A Histria em migalhas (1992), e Imprio do Sentido (2003).
De fato, Dosse no se volta contra os grandes nomes do movimento
historiogrfico que em seu pas ganhou projeo a partir das primeiras dcadas do
sculo XX, ou a profissionais competentes, como Le Goff e Aris. Dosse (1992)
observa a relevncia das questes propostas por esses pesquisadores e, a respeito
dos dois ltimos, destaca o interesse por refletir criticamente sobre a forma como o
conhecimento histrico vem sendo elaborado.
Dosse aponta, no trabalho de Febvre e Bloch, como de Le Goff e Aris, a
valorizao da histria-problema, no exerccio de tentativa de uma verso mais
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abrangente, articulada, entre diversos campos do saber histrico. Dos dois
primeiros, podemos citar, por exemplo, respectivamente, os sempre-mencionados
artigos Une esquisse dhistoire compare (1924) e Pour une histoire compare des
socits europennes (1928).1 Dos dois outros historiadores, mais jovens,
respectivamente, os livros: Histria e memria (2010) e Ensayos de la memoria
(1996).2
Porm, Dosse (1992) acredita que recentemente historiadores que se dizem
inspirados pelos Annales abandonaram a tentativa de uma histria total e,
atendendo aos interesses de uma indstria editorial despolitizada, alienada e
alienante, focam aspectos deslocados, curiosidades, perfumaria.
A Dosse incomoda toda uma tradio, dispersa mas notvel, de estudos que
a partir deles vm dominando a historiografia mundial. No primeiro de seus livros
acima citado, A Histria em migalhas, ele condena, ento, que o desesperado e
talvez um tanto anacrnico anseio de vencer o paradigma de uma Histria
comprometida tenha decorrido na departamentalizao, na burocratizao de
nossos institutos de pesquisa, e na opo por trabalhar temas suprfluos,
desconectados.
Na segunda das obras de Dosse acima citada, O imprio do sentido (2003),
ele sublinha a importncia, pois, dos historiadores se engajarem na elaborao de
significaes mais amplas, que conectem os homens e mulheres de hoje e os
engajem na aventura de entendimento acerca do passado coletivo, e das
descontinuidades e continuidades que caracterizam o devir histrico. Dosse (2003,
p. 17) afirma:
As cincias humanas entraram na poca daquilo que Anthony Giddens qualifica como dupla hermenutica, como um processo complementar de traduo e de interpretao que concede ao presente uma prevalncia. O presente tornou-se categoria pesada que ultrapassa nosso espao de experincia convida a uma releitura memorial e simblica do passado.
1 Sem traduo para o portugus.
2 Tambm sem traduo para o portugus.
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Ora, tais reflexes nos remetem a um dos mais interessantes pesquisadores
norte-americano dedicados anlise dos percursos histricos latino-americanos:
Richard Morse, autor de O espelho de Prspero. Segundo Morse (1988, p. 118):
O historiador tem a obrigao profissional de reconhecer um horizonte temporal mais amplo, no com a esperana de encontrar revelaes apocalpticas, [...] mas simplesmente de demonstrar usos apropriados de uma perspectiva temporal generosa. O historiador, afinal de contas, no deveria se contentar em enterrar acontecimentos passados e heris mortos, pois a matria com que trabalha o tempo mesmo, passado ou futuro, e as mltiplas compreenses que podem proporcionar diferentes intervalos.
Em meio ao movimento descrito por Dosse, e tal como Morse (2000)
pensando a respeito do contexto latino-americano, merece destaque o trabalho do
filsofo francs Tzvetan Todorov (1999). Em uma incurso pela histria da
colonizao de nosso continente, Todorov logrou apresentar uma das mais
interessantes reflexes sobre a mentalidade moderna, sobre os sujeitos modernos
de ontem e de hoje.
De seu livro mais clebre, A conquista da Amrica: a questo do outro (1999),
duas reflexes merecem destaque: de um lado, como as identidades se
estabelecem de forma relacional, e como as viagens ao Novo Continente e seus
habitantes serviram como ponto de partida para que o homem europeu, moderno, se
pensasse como distinto do homem medieval; de outro lado, como nessas migraes,
ainda assim, o homem europeu tomou-se homem universal, as diferenas
inerentes foram negadas, e classificadas como sintoma de impropriedade e
inferioridade.
Da, podemos dizer que mais recentemente os historiadores estrangeiros,
replicando e renovando a tradio dos Annales, tm focado questes, das quais
destacam-se trs, relevantes para ns brasileiros:
Primeiro, o interesse por fontes diversas (inclusive originrias em diversos
cantos do mundo). Depois, a idia do historiar como um dilogo entre o passado e o
presente, sempre mutvel, e do compromisso social do historiador como algo
tambm a ser criticamente elaborado por cada um de ns, ainda que em ltima
instncia sempre vinculado prtica da desconstruo das verdades institudas. Por
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fim, nesta linha, o interesse pela diversidade; e a noo tanto das identidades como
construes sociais, como da Histria como uma cincia em construo.
Disso urge, afinal, uma pergunta: como essa historiografia foi percebida e
percebeu a realidade histrica especfica da Amrica Latina? Eis o tema do tpico a
seguir.
2.2 Tendncias latino-americanas
Em A Histria na Amrica Latina, Jurandir Malerba apresenta duas percepes
acerca dos modos de produzir Histria, academicamente, no Brasil e outros pases
da Amrica Latina: a condio de atraso, e a condio de dependncia.
Quando se refere a um dito atraso de nossa produo, em relao
produo francesa e norte-americana, Malerba pontua (2009, p. 68):
a historiografia brasileira percorre o mesmo itinerrio da latino-americana, em geral com duas dcadas de atraso em relao s discusses e viradas temticas/tericas/epistemolgicas que se passam nos grandes centros.
Ele tambm pondera que os estudos mais interessantes e crticos comearam
a surgir, entre ns, a partir de uma dupla influncia a j mencionada Escola dos
Annales, e o marxismo: Essa tradio que mistura aportes dos Annales com os
ensinamentos do marxismo mais arejados, no dogmtico, rendeu o que de melhor
se produziu nos ltimos 30 anos na historiografia latino-americana (MALERBA,
2009, p. 48).
Seguindo um raciocnio semelhante, a professora Marta E. Casas Arz
(1994) pontuara, em breve artigo:
la renovacin de la Historia en Amrica Latina procede, en su mayor parte, de pensadores forneos o de aquellos investigadores y cientficos sociales que cursaron sus estdios en Europa y Estados Unidos, recibiendo en estos pases la influencia de las nuevas corrientes historiogrficas. Estas empiezan a incidir a partir de la dcada de 1950, especialmente en los aos sesenta, cuando los historiadores latinoamericanistas y los latino-americanos empiezan a modificar la forma de hacer historia de Amrica.
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Se a historiografia latino-americana tomou como referncia pensamentos e
mtodos consagrados em instituies estrangeiras, segundo Malerba (2009), a isso
se associa o fato de que a profissionalizao dos historiadores brasileiros bastante
recente. Em Antes da dcada de 1960, uma das sees iniciais do livro de A Histria
na Amrica Latina, esse autor lembra que a dita histria tradicional teria sido
praticada por intelectuais no especializados, no profissionais, autodidatas, at
ento.
No Brasil, as primeiras universidades modernas surgiram apenas na dcada
de 1930: a Universidade de So Paulo foi fundada em 1934, a extinta Universidade
do Brasil, em 1937; e os cursos de formao de cientistas nas reas de Humanas s
comearam a funcionar sistematicamente a partir de ento. Daquele momento, so
considerados pais da historiografia nacional (mas no propriamente historiadores)
jornalistas e juristas tais como Sergio Buarque de Holanda e Manoel Bomfim.
Porm, Malerba (2009) observa que tal fenmeno no exclusivamente
perceptvel entre ns brasileiros. Embora universidades tenham sido criadas h
muito na poro hispanohablante do territrio latino-americano, a profissionalizao
tardia dos historiadores pode ser observada em qualquer outro pas da regio.
No Mxico, por exemplo, havia desde o perodo colonial a Real y Pontifcia
Universad de Mxico, cuja formao era essencialmente teolgica, generalista e
elitista. Uma nova verso, mais moderna e ansiando por uma maior
profissionalizao dos intelectuais mexicanos, foi criada sob inspirao do
positivismo, por ministros do ditador Porfrio Diaz, em 1911: era a Universidad
Nacional de Mxico. Porm, fato que at que no contexto da Revoluo Mexicana
a referida instituio passou por diversas alteraes incluiu um projeto menos
cientificista e mais humanista, menos tcnico e mais filosfico, e ganhou o carter de
autnoma, da passar a se ser denominada, a partir de 1915, Universidad Nacional
Autnoma de Mxico (UNAM). Entretanto, fato que at que se consolidasse, em
meados do sculo XX, nela se destacaram os nomes de no-especialistas, como o
filsofo ensasta mexicano Samuel Ramos, e o editor Daniel Coso Villegas
(FERREIRA, 2013).
A importncia no Brasil da historiografia francesa se faz bastante notvel
justamente na profissionalizao de nossos estudiosos e interessados no estudo do
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29
passado de nossos pases, especificamente, e da Amrica Latina como um todo.
Como nos lembra Malerba (2009), os institutos de Cincias Humanas de nossas
primeiras universidades ao serem criados contaram com as ditas misses
francesas, quer dizer, com o convite e a vinda de professores franceses. Entre os
anos de 1935 e 1937, a Universidade de So Paulo, por exemplo, contou com a
presena de outro dos grandes expoentes da Escola dos Annales, neste Trabalho
de Concluso de Curso ainda no mencionado: Fernand Braudel.
A respeito dos demais pases latino-americanos, Malerba (2009) menciona a
passagem de Lucien Febvre, em 1937, por Argentina e Uruguai.
Malerba comenta, ainda, a criao, em 1944, do Instituto Francs da Amrica
Latina, no Mxico; em 1947, do Instituto Francs de Santiago, no Chile; e em 1948,
do Instituto Francs de Estudos Andinos, no Peru. Por fim, destaca a dedicao do
historiador francs Pierre Chaunu a nosso subcontinente, o que rendeu obras-
referncia para todo historiador da regio, como Histoire de lAmerique Latine
(1949), L'Amrique et les Amriques de la prhistoire nos jours (1964).
Mas pode-se destacar, tambm, o historiador Jacques Chevalier, autor de
LAmrique latine. De lIndpendance nous jours. E, mais recente, as pesquisas
desenvolvidas por Serge Gruzinsky, autor de Histoire de Mexico (1996) e La Pense
mtisse (1999).
No se pode deixar de pontuar, entretanto, que j em meados do sculo XX
nas reflexes sobre a histria latino-americana ganhou destaque outra influncia: a
norte-americana. Conforme Malerba (2009), nesse momento foram fundadas nos
Estados Unidos instituies e organizados eventos para agrupar pesquisadores
interessados na histria dos mais diversos pases que formam a Amrica Latina.
So exemplos: a Latin America Studies Association, o National Directory of Latin
Americanists e a Conference on Latin American History.
ento que ganha projeo um grupo de pesquisadores que foram
classificados latinoamericanistas: pesquisadores de origem estadunidense,
voltados a entender os grandes ns histricos dos pases com os quais a potncia
norte-americana divide o continente. Malerba cita como mais representativos os
trabalhos de Marshal Eakin, Magnus Morner, Stanley Stein, Thomas Skidmore e
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30
John Johnson; e os caracteriza como notveis pela sofisticao metodolgica
(MALERBA, 2009, p. 32).
nesse contexto que ganha projeo um outro pesquisador, aqui j
mencionado: Richard Morse. Morse publicou no apenas O espelho de Prspero,
sobre a histria do pensamento ibero-americano, at meados da dcada de 1988.
Ele tambm foi autor de um importante e sistemtico estudo sobre a urbanizao da
cidade de So Paulo A formao histrica de So Paulo (1954), e uma coletnea
de ensaios sobre Filosofia, Sociologia e Literatura na Amrica Latina - A volta de
McLuhanama (1990).
Tais instituies e pesquisadores foram responsveis, afinal, pela composio
de parcerias com investigadores nossos. Segundo Malerba (2009, p. 31), muitos
historiadores latino-americanos vm sendo formados, treinados em instituies
americanas, desde o ensino universitrio bsico at a ps-graduao.
Da, de acordo com a interpretao de Malerba, teriam surgido os trabalhos
mais interessantes, no campo da Histria, em territrio latino-americano. A partir de
tais influncias, a seu ver, que foram surgindo organizaes locais, mais ou menos
articuladas a institutos e atreladas a investimentos estrangeiros como, na dcada de
1960, a Comisso Econmica para a Amrica Latina (CEPAL), e, na dcada de
1970, o Conselho Latino-americano de Cincias Sociais (CLACSO), com sua
Comisso de Histria Econmica (MALERBA, 2009).
Porm, as teses do atraso e da dependncia da produo historiogrfica
brasileira e hispano-americana, no que diz respeito produo francesa e norte-
americana, podem ser questionadas. De fato, antes da dcada de 1960
(MALERBA, 2009, p. 17), os pesquisadores dedicados histria do subcontinente
tendiam a no ser especialistas ou profissionais exclusivamente dedicados a tanto.
Muitos deles, contudo, mesmo fora das universidades desenvolveram trabalhos que
se caracterizavam por inovaes terico-metodolgicas. Alguns, por inspirao
prpria e do meio, e como geniais eruditos chegaram a propor reflexes
semelhantes quelas que estavam sendo propostas nos grandes centros francs e
norte-americano.
provvel que o equvoco de Malerba corresponda opo de tomar como
referencial a periodizao proposta pelo professor norte-americano Marshall Eakin,
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em Latin American history in the United States: from gentlemen scholars to academic
specialists (1998). Num mesmo sentido, o equivalente equvoco da professora Arz
(1994) parece ter decorrido do fato de ela haver tomado como ponto de partida a
sntese do historiador Magnus Morner, The study of Latin American history today
(1973).
O professor norte-americano Stanley Stein (1964) efetivamente nos
apresentara uma abordagem um tanto distinta, na qual a produo historiogrfica
latino-americana aparecia em um recorte temporal mais amplo. Em Historiografia
latino-americana: balance y perspectiva, ele analisara os temas predominantes em
estudos que, desde princpios do sculo XVIII, quer dizer, a partir das
independncias das naes deste subcontinente, vinham se dedicando histria
dos povos que aqui viveram e vivem.
O j citado investigador ingls Peter Burke (1997) um bom exemplo de
estrangeiro que buscou perceber a produo latino-americana a partir dos interesses
e concepes prprios do continente latino-americano. Assim, compreendeu que
desde as primeiras dcadas do sculo XX ensastas brasileiros, mesmo pouco
acadmicos, propuseram j concepes historiogrficas bastante interessantes, e
autnticas.
Conforme Burke (1997, p. 5), em 1930, quando [por exemplo Gilberto] Freyre
comeou a trabalhar em Casa-grande & senzala (1933), Bloch e Febvre ainda no
tinham estabelecido suas reputaes internacionais e mesmo assim seus estudos
sobre a sociedade colonial brasileira j se caracterizavam: por partir de uma gama
diversa de fontes, por romper com a tradicional histria factual e focada em heris,
por problematizar verses da histria consolidadas, e por considerar a identidade
nacional brasileira como plural e complexa.
Est claro que especificamente Freyre, distinto dos aqui citados Holanda e
Bomfim, foi um especialista, estudioso da Antropologia, e graduado nos Estados
Unidos. Mas, quando escreveu seus estudos mais vigorosos, sua vivncia
acadmica era ainda inspida, e digna de nota sua preocupao em ser visto como
escritos lato sensu e no como um cientista (FERREIRA, 2013).
Ademais, se observarmos as questes mais caras a LeGoff e Aris
(historiadores franceses, como vimos, de meados do sculo XX), constatamos que
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32
j vinha sendo proficuamente trabalhadas por diversos ensastas latino-americanos
desde as primeiras dcadas do sculo XX.
Burke (1997) refere-se a Freyre, que, efetivamente, considerou a importncia
da dimenso privada, se espraiando sobre o pblico, em territrio e mentes
brasileiros muito antes de LeGoff e Aris publicarem seus primeiros estudos.
E tambm nos servem como bons exemplos os trabalhos do brasileiro
Holanda Razes do Brasil (1936) e do mexicano Ramos El perfil del hombre y la
cultura en Mxico. Esses dois autores, tal como Freyre, bem antes dos ditos
estudos culturais e pouco iniciados nos trabalhos dos Annales consideraram, num
vis antropolgico, os modos de pensar e se portar de brasileiros e mexicanos, e
atriburam, de forma semelhante, o seguinte veredito: em terras latino-americanas,
atravs da histria, diferente do que Aris proporia a respeito do europeu o
privado sempre tenderam a sobrepor o pblico (FERREIRA, 2013).
Malerba afirma, ao final de A Histria na Amrica Latina (2009, p. 111), que
os estudos de histria da vida privada, recentes, remetem aos estudos
quantitativos, de demografia histrica, que caracterizaram as primeiras geraes da
Escola dos Annales. Tomando em conta as reflexes por ora postas, conclui-se que
na Amrica Latina o quadro foi um tanto distinto. O interesse pelo estudo das
contradies entre o poder da esfera familiar ante os interesses coletivos antecedeu
a especializao dos estudos histricos, e se fez, ainda, em obras de cunho
ensastico e marcadas por metodologia ainda pouco rigorosa.
Outro aspecto importante, que no se deve deixar escapar: Stein se negava a
perceber a existncia de uma historiografia latino-americana simplesmente porque,
sob seu ponto de vista, no haveria tendncias gerais observveis em meio a uma
pluralidade e descontinuidade. Para esse historiador, poder-se-ia falar em Amrica
Latina quando se considera o perodo colonial, mas, cruzada a fase dos controles
metropolitanos e pronto institudos dos Estados nacionais, os regimentos, leis e
referenciais identitrios, debiles son las bases de nuestras generalizaciones
(STEIN, 1964, p. 5). Las cuestiones histricas de estos pases no son comparables
sino en um sentido muy extremo (STEIN, 1964, p. 7).
Mesmo considerando nossa produo historiogrfica atrasada e
dependente, Malerba (2009) compreende, porm, que entre os pesquisadores
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33
estrangeiros e ns latino-americanos divergem os temas que so foco de interesse.
Para ele, por exemplo, os norte-americanos latinoamericanistas, desde a dcada de
1960, se interessam por abordar nossos problemas relativos constituio de
regimes polticos, que se tm afastado tanto dos valores liberais, quanto dos valores
democrticos. Por outro lado, os pesquisadores brasileiros, mexicanos, chilenos,
argentinos revelariam interesse por questes como as desigualdades sociais e de
oportunidades, os entraves postos reforma agrria, e a dependncia financeira em
relao aos organismos reguladores internacionais.
E fato que o prprio Stein mesmo defendendo que no h uma linha
referencial que se possa chamar latino-americana deixa escapar que, por toda a
histria da historiografia latino-americana, nota-se a insistncia, cada vez mais viva
e profcua, da revaluacin de las races de su poder de recuperacin, ou que
muchos de sus eruditos e intelectuales hablan de su passado y de su presente
colonial (STEIN, 2009, p. 30). Quer dizer: acaba por sugerir que o passado colonial
um tema de comum e geral preocupao do qual se ocupam os historiadores mais
genunos, da Amrica Latina.
Conforme Malerba (2009), o pesquisador britnico Ronald Munch, editor da
revista Latin American Perspectives, prope severas crticas produo
historiogrfica latino-americana de hoje, que insistiria em abordar a formao dos
Estados nacionais como complexa, e determinada por interesses estrangeiros. Para
tal crtico, diz Malerba, deixa de fazer sentido falar em imposio cultural, se
pensarmos que toda cultura mltipla, complexa, e hbrida; e se, desde a Idade
Moderna e o movimento das Grandes Navegaes, estamos cada vez mais
conectados.
Contra tal diagnstico, se volta o norte-americano Mark Berger, autor de
Under Northern Eyes: Latin American Studies and U.S. Hegemony in the Americas
(1995), e tambm o argentino Atilio Boron. De acordo com Berger, os Estados
Unidos tm exercido grande influncia sobre os modos de os latino-americanos
perceberem a si mesmos. J Boron, conforme Malerba (2009) e lembrando Dosse,
condena o conformismo de um pensamento fragmentado sobre uma realidade
complexa, contraditria, dinmica e multifacetada, e aponta como funo social
dos intelectuais locais justamente propor modos de observao integrados e
integradores.
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Por fim, lembrando Morse Malerba refere-se a Carlos Aguirre Rojas, e sua
tese, segundo a qual os ltimos anos apontariam para a irrupcin del presente en la
Histria; quer dizer:
a ideia de que o presente imediato ir se manifestar com muito mais fora na historiogrfica, rompendo com a rgida diviso at ento vigente entre presente e passado, e inscrevendo a atualidade, a contemporaneidade nos objetos de pesquisa histrica (MALERBA, 2009, p. 107).
Eis uma chamada, para que os historiadores latino-americanos assumam
suas responsabilidades como homens do presente, no apenas cumprindo com os
itinerrios terico-metodolgicos ditados nos grandes centros de saber do Ocidente,
com os quais dialogamos. Mas avaliando-a criticamente. E, assim, assumindo os
riscos e encargos deste continente que os abriga; terreno sobre o qual se desenrola
uma histria especfica e complexa, a ser compreendida em suas peculiaridades,
qualidades e relaes, e onde nasceu e brota uma historiografia rica e profcua.
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3 AMRICA LATINA: MODOS DE ENSINAR A APRENDER
Este captulo parte das anlises apresentadas na seo anterior, para ponderar
sobre a prtica docente. Sempre considerando a problemtica da valorizao da
Histria da Amrica Latina, sero desenvolvidas reflexes sobre a importncia do
planejamento para a prtica docente. E, assim, ser apresentado, pouco a pouco, o
projeto de uma disciplina. Ao final, consta um quadro sintico cujas partes equivalem
s partes componentes de um bom plano de ensino: objetivos, contedos,
estratgias de ensino/aprendizagem, e estratgias de avaliao, cronograma e
bibliografia.
Ao longo de todo este captulo, so levadas em conta tanto a teoria
pedaggica em geral, quanto o exerccio da docncia, especificamente no mbito da
Histria da Amrica Latina. Tendem a ser hoje bem mais ricos os debates sobre a
prtica em salas de aula do Ensino Fundamental II e Mdio; o que nos leva
concluso de que os professores de faculdades de nosso pas tm muito a aprender
com o nvel bsico. Porm, a reflexo sobre abordagem da Amrica Latina com
crianas e jovens tambm segue sendo rara e pouco difundida.
Servem como principais aportes para pensar a didtica no ensino superior:
Marcos Masetto, Antonio Carlos Gil, Gilberto Teixeira, Deaquino. E sobre avaliao:
Romanowisk e Wachowicz, Gerson Pastre Oliveira, Isabel Franchi Cappelletti,
Charles Hadji.
Como principais aportes para se pensar o ensino de Histria da Amrica
Latina podemos citar diversos renomados investigadores como Luiz Estevam
Fernandes, da Universidade de Ouro Preto, e Marcus Vinicius de Morais, da
Universidade Federal de Vitria (ambos associados Associao Nacional de
Pesquisadores de Histria da Amrica Latina e Caribe (ANPHLAC). Esses, volta e
meia, publicam exerccios reflexivos que estabelecem pontes entre seus trabalhos
como historiadores e suas vises acerca da prtica docente no mbito escolar.
Porm, sistematicamente interessadas no ensino de Histria da Amrica
Latina os nomes que merecem destaque so os das professoras Circe Bittencourt e
Maria de Ftima Sabino Dias. Bittencourt, da Universidade de So Paulo, tem
extensa produo a respeito da docncia, na rea de histria, e no nvel bsico, e
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destaca-se como primeira pesquisadora a atentar para a necessidade de se pensar
as latino-americanidades (SALOMN, 2012).
Dias, na Universidade Federal de Santa Catarina, desenvolve, desde 2003,
projeto na Escola de Aplicao da dita instituio: a disciplina de Estudos Latino-
americanos. Atuando lado a lado com os professores que ministram ELA, Dias
organiza grupos de discusso, fruns, encontros, publicaes que consideram
desde aspectos mais tericos a embasar a ao, at mais sociolgicos, a respeito
dos resultados (SALOMN, 2012).
Talvez falte na bibliografia de ambas autoras sugestes mais tcnicas.
Amarrando suas reflexes a percepes decorrentes da prtica da prpria autora
deste Trabalho de Concluso de Curso, com proposies dos supracitados
influentes pedagogos, o presente captulo tem como objetivo propor discusses mais
pragmticas sobre a docncia no campo da Histria da Amrica Latina.
3.1 Plano de ensino
Demerval Saviani (1987) diferencia planejamento e plano de ensino; e
apresenta o primeiro como ponto de partida necessrio para o segundo.
Planejamento, diz Saviani, seria todo o processo de aes concretas, que partem
de reflexo coletiva, e se direciona prtica; plano o registro, a documentao
de tais vivncias. Sendo assim, o plano, para ele, tem uma dupla importncia: ao
mesmo tempo resultado de prticas, e ponto de partida para novas reflexes e
novas iniciativas.
Sobre a relevncia de se refletir sobre exerccio docente, escreve Regina
Barros Leal, da Universidade de Fortaleza, em referncia aos trabalhos de Donald
Schon:
Donald Schon tem sido uma referncia terico-metodolgica dos profissionais que atuam na rea de formao de professores por afirmar que os bons profissionais utilizam um conjunto de processos que no dependem da lgica, da racionalidade tcnica, mas sim, so manifestaes de sagacidade, intuio e sensibilidade artstica. Schon orienta para que se observe estes professores para averiguarmos como desenvolvem suas prticas, como fazem e o que fazem, para colhermos lies para nossos programas de formao (LEAL, 2005, p. 4).
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Para pensar uma disciplina dedicada Histria da Amrica Latina devemos,
portanto, no apenas pretender a composio de um plano claro, bem ordenado,
articulado. Mas tambm um plano que leve em considerao o que vem sendo
debatido a respeito do ensino de Histria, em geral, no Brasil.
Aryana Lima Costa professora da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte se dedica formao de professores de Histria, no mbito universitrio. Ela
considera em especial a questo do plano de currculo X prtica na sala de
aula/planos de curso de cada professor-formador-de-professores, e pontua certa
distncia:
Preservando-se a margem de autonomia individual com que cada um pode vir a se relacionar com o currculo, a partir deste que se constitui uma identidade ao curso, um propsito para os quatro anos que se planejam ali; quatro anos que necessitam ser estruturados sob uma lgica que lhes d coerncia, coeso e continuidade, pressupondo o exerccio de uma articulao entre seus integrantes. A maior parte de seus objetivos, inclusive, listada enquanto sendo de competncia de todos, como coletividade (COSTA, 2011, p. 4).
Costa tambm analisa a atuao docente em diversos cursos no Brasil,
dentre os quais o de sua instituio (a UFRN). E defende que os professores
universitrios consideram que a dimenso pedaggica de seu ofcio se d por
exerccio de uma personalidade voltada para o professorar um jeito, uma
vocao. Ou algo experimentado, que se repete como frmula, a qual ,
igualmente, naturalizada. Segundo nos mostram entrevistas por ela realizadas
quando da elaborao de sua dissertao, muitos profissionais da rea pontuam
como base de suas condutas docentes a atuao de seus prprios professores, e
defendem o tradicionalismo didtico nas universidades.
Em uma dessas conversas, uma colega props:
Tem uma medida, talvez a mais humilde de um professor, que: ele um bom explicador de coisas. Ento se conseguir explicar bem um certo tema j t valendo, j comeou a brincadeira e saber indicar onde se encontram informaes mais profundas sobre o tema, tanto em termos de documentos quanto de referncias (COSTA, 2011, p. 30).
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possvel que muito do que se produz sobre tais questes esteja disponvel
aos professores universitrios num lcus muito mais acessvel do que se pode
supor: na prpria universidade, em cadeiras vizinhas s dos professores-
pesquisadores. H hoje em dia inmeros profissionais dedicados a refletir sobre o
ensino de Histria, ainda que se voltem prtica no Fundamental II e no Mdio.
Carlos Tasso Eira Deaquino (2007) trabalha com o conceito de andragogia,
frequentemente utilizado como significando: modos de se trabalhar com a educao
de adultos. Ele se distinguiria de Pedagogia, que se refere educao de crianas.
Reflete, ento, sobre os esteretipos dos professores do ensino superior, e do
ensino bsico. Enquanto o primeiro seria mais brincalho, mais leve, e talvez mais
performtico; o segundo seria mais afetivo, mas tambm mais dramtico, passivo,
irritvel. O pblico das faculdades e universidades se caracterizaria por motivao
intrnseca, profissional, especialista; e das escolas, por motivao extrnseca (a
figura dos pais), amadora, generalista e superficial (DEAQUINO, 2007).
Os principais problemas encontrados no dia-a-dia de sala de aula seriam,
porm, bem comuns a um e outro contexto: tanto no ensino superior, como no
bsico, h dificuldade de aprendizagem (confuso mental, estagnao), indisciplina
(cansao, preguia dos alunos, antipatia entre docentes e discentes), tdio e
desinteresse. Tudo isso resultado de uma total falta de identificao dos alunos em
relao ao professor e a toda a dinmica do processo educativo. Entre os discentes
de faculdades, a constante eu j sei o suficiente, e os discentes de escolas, a
constante eu no sei, e no quero saber (DEAQUINO, 2007).
As solues propostas por Deaquino (2007) so tambm comuns, e pode-se
dizer que partem de uma percepo geral: ensino superior e ensino bsico podem
aprender um com o outro andragogia e pedagogia devem se mesclar tanto em um
como em outro caso.
preciso, por exemplo, ao ver desse autor (DEAQUONO, 2007), que o
professor universitrio seja mais pedaggico, e tenha uma maior preocupao com
os registros, e com a orientao dos alunos: organize o contedo de maneira bem
estruturada, articulada, exponha os objetivos, esclarea as estratgias de ensino e
de avaliao.
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Para Marcos Masetto (1996), da Pontifcia Universidade Catlica de So
Paulo, planejar essencial, pois garante clara orientao de professores e alunos no
sentido do aprendizado.
Para abraar tais propsitos de forma clara e efetiva, a seu ver, os planos de
ensino devem ser compostos de algumas partes essenciais, nas quais o docente
considera os princpios pedaggicos que nutrem seu fazer: objetivos, contedos,
estratgias de ensino/aprendizagem, estratgias de avaliao, dos quais deve
dispor; tambm fala em cronograma e bibliografia. Tais partes devem aparecer
integradas entre si, e com o todo.
Gilberto Teixeira (2008), da Universidade de So Paulo, afirma que o
planejamento ajuda a prever, organizar, racionalizar e por isso contribui para uma
ao docente caracteristicamente mais eficiente.
Tal previso, organizao e racionalizao, porm, deve contar com alguns
requisitos primordiais: ser concebido de maneira a ajustar-se a novas demandas
(flexibilidade), e se estruturar em nveis articulados plano de ensino: global, plano
de unidade: parcial, plano de aula: dirio/concreto (coerncia).
A professora Helenice Aparecida Bastos Rocha (2003) docente da
Universidade Estadual do Rio de Janeiro, da Universidade Federal Fluminense e
tambm do Colgio Pedro II na ANPUH de 2003 tomou como ponto de partida os
clssicos trabalhos de Jos Carlos Libneo, e criticou que tanto esse autor quanto
muitos dos pesquisadores que se tm dedicado noo de plano de ensino e
plano de aula o fazem de forma desarticulada. Ela lembra, ento, que em Didtica
(1992) o captulo dedicado ao plano escolar (dcimo captulo) aparece deslocado do
captulo dedicado Aula como forma de organizao do ensino (oitavo captulo).
Em sua experincia na formao de professores, teria observado tal
tendncia: tm-se a elaborao de planos de ensino embasados por vasta leitura,
mas que no se expressam o que realmente os professores vivenciam com os
alunos, em sala. E essa vivncia se faz em blocos separados, toda recordada; no
possuiu um sentido que o professor proponha com os alunos, nem uma inteno de
que significados sejam tecidos conjuntamente.
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Especificamente a respeito do que ela observa sobre a disciplina de Histria
ministrada por seus alunos em formao e em instituies de Ensino Mdio e
Fundamental II, ela diz:
Na aula de Histria, h ainda, mesmo que fracamente, o vnculo entre perodos histricos e a seqncia cronolgica dos fatos histricos a ensinar, algumas vezes no explorados. [Mas] para o aluno do curso de Histria, os vnculos entre os contedos so construdos fora da aula, pelo seu prprio conhecimento (ROCHA, 2003, 2).
Como alternativa, Rocha sugere em conformidade com o texto dos
Parmetros Curriculares Nacionais (1997) que os professores estruturem suas
aulas no em funo dos contedos, mas de problematizaes. E aqui a autora
remete idia, mencionada no captulo anterior deste TCC, de histria problema.
(ROCHA, 2003, p. 3). Ela nos fala, pois, em sequncias didticas, e projetos.
A sequncia didtica incluiria caractersticas que Deaquino, Masetto e Gil
destacam em um bom plano de ensino: organizao, clareza e articulao. Seria ela
o ordenamento de objetivos pedaggicos em atividades diversas sobre contedos
estruturados, em aulas que correspondem a passos que se do a partir dos
anteriores, a encontros que dialogam (ROCHA, 2003).
No que diz respeito aos projetos, ela afirma que no precisam ser
necessariamente projetos institucionais, de grande escopo, que envolvam toda a
instituio ou inmeros profissionais. Trabalhar com projetos corresponde, diz, a to
somente a iniciativa de propor aos alunos metas bem estruturadas, com margem de
manobra at que se alcance um dado produto final mais abrangente do que a
realizao de provas e trabalhos (ROCHA, 2003).
3.2 Objetivos
Para Masetto (1996), em seu plano de ensino o professor deve propor
objetivos gerais (que remetem ao final do curso, e so mais filosficos, polticos,
sociais) e objetivos especficos (por unidade, mais concretos, didticos). Quanto aos
objetivos gerais, convm sublinhar: num plano de ensino tudo parte e se integra a
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eles contedos, estratgias de ensino/aprendizagem, estratgias de avaliao.
Eles devem, ademais, ser realistas, para no comprometer o todo proposto.
Ora, se conforme Rocha em sequncia didtica e em projeto
problematizar deve ser o grande objetivo de todo plano de ensino, como
problematizar a Histria da Amrica Latina? Seguindo o raciocnio esboado no
captulo anterior deste Trabalho de Concluso de Curso, questionando a maneira
como nossa histria vem sendo contada, lida, recontada dentro e fora das cearas
acadmicas.
Os professores venezuelanos Janette Garca Yepez e Pedro Rodrguez Rojas
propem que, a respeito da Amrica Latina, o senso comum se divide sobretudo em
trs tipos de olhares, todos eles partindo de parmetros ajenos impuestos (YEPEZ;
ROJAS, p. 7). Um primeiro, que ele denomina leyenda blanca, estaria focado na
Histria colonial, e traria implcito que foi da Europa que vieram as bases das
civilizaes latino-americanas atravs da importao de concepes de ensino, de
universidade, de organizao, de progresso. Um segundo, que ele denomina
leyenda negra, tambm focado na Histria Colonial, proporia a cultura europia
tendo-nos deixado todo um legado de violncia, escravido, usurpao e
intolerncia. Um terceiro olhar, desta vez mais interessado nos movimentos de
independncia de nossos pases e de consolidao dos Estados Nacionais, seria
mais marcadamente narrativo e apologtico, conferindo foco a heris, datas,
eventos.
Em nossas salas de aula brasileiras podemos observar a notvel presena
dos trs. Desde o Ensino Fundamental nossos professores, mal informados no que
diz respeito histria latino-americana, tratam-nos (brasileiros, mexicanos,
argentinos) como meros imitadores subservientes, como vtimas, e/ou como platia
para festividades que muitas vezes no fazem o menor sentido; at porque nos so
apresentadas mais como exticas do que como relacionadas com nossas vidas,
nosso interesses individuais e coletivos, de hoje.
Maria de Ftima Sabino Dias (1998), da Universidade Federal de Santa
Catarina, considera a importncia dos historiadores positivistas franceses na
definio dos critrios atravs dos quais a Histria vem sendo abordada nas escolas
brasileiras, desde o sculo XX. Os prprios marcos temporais gerais Idade Antiga,
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Idade Mdia, Idade Moderna e Idade Contempornea ignoram a dinmica prpria
de nosso devir histrico latino-americano. Assim, raro, por exemplo, que nas aulas
sobre Antiguidade sejam abordados maias, astecas, ou incas civilizaes
riqussimas culturalmente e extremamente complexas em sua organizao poltico-
social.
Ainda hoje, afirma a professora, os currculos franceses seguem ignorando a
histria latino-americana. Os maias, astecas e incas, por exemplo, so trabalhados
apenas quando das Grandes Navegaes. Ora, eis a viso de um europeu, que se
abre ao contato com o Novo Continente apenas nesse momento da histria. Porm,
faz sentido que ns abordemos a situao da mesma maneira? Para Dias (1998),
replicamos a perspectiva francesa sem crtica, de forma enviesada, pouco
interessante para ns.
Luiz Estebam Fernandes e Marcus Vinicius de Moraes, analisam os livros de
histria adotados no Ensino Mdio, no Brasil, e observam tendncia parecidas.Eles
sugerem trs vertentes interpretativas da historia da Amrica Latina, notveis nos
livros mais adotados pelos professores de Histria do Ensino Mdio, no Brasil; e as
associa a vertentes interpretativas clssicas, da historiografia latino-americanas.
Seriam elas: a viso eurocntrica, a vitimizao, e uma mais moderna, ligada aos
Annales e chamada histria vista de baixo.
A primeira, parte dos relatos dos colonizadores Hernn Cortez e Francisco
Pizarro, e incorpora metodologia positivista europia. Toma como fontes os
trabalhos de William Prescott, The conquest of Mexico, e Jacques Soutelle, A vida
cotidiana dos astecas na vspera da conquista espanhola. Nela, o ndio figura
apenas como um ser passvel de receber a civilizao importada da Pennsula
Ibrica, e a conquista apresentada como uma fatalidade (FERNANDES;
MORAES, 2003, p. 147).
A segunda, parte dos relatos de missionrios como Bartolomeu de Las Casas,
que em nenhum momento questiona a dominao, mas sim o modo como estava
sendo realizada (FERNANDES; MORAES, 2003, p. 150). Um autor mais recente,
que retoma esse olhar fatalista, teleolgico, mas lamentatrio, derrotista, citado por
Fernandes e Moraes e Eduardo Galeano, do clssico As veias abertas da Amrica
Latina.
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A terceira viso analisada por tais pesquisadores remete a estudos mais
recentes, realizados em grande parte por historiadores latino-americanos
identificados com a Histria Social. Busca resgatar o lado do vencido, do
conquistado, e valoriz-lo. Mas, nas entrelinhas, sonha-se em ser o conquistador, o
desenvolvido, o branco (FERNANDES; MORAES, 2003, p. 154).
Fernandes e Moraes propem, pois, que os professores faam a crtica de
tais elaboraes, em sala de aula. E, ao focarem a histria da Amrica Latina, no
deixem de observar que cada fonte expressa um ponto de vista complexo, e nada
inocente. Pontuam:
Os acontecimentos so repensados constantemente, na tentativa de confeccionar essa viso de si mesmo, individual, que cria, assim, uma histria que sempre muda, que muitas vezes revisitadas, mas que sempre a mesma coisa: a busca da identidade. [...] Essa no apenas a conquista do territrio, mas a conquista da escrita, a conquista da Histria (FERNANDES; MORAES, 2003, p. 156).
A professora Kalina Vanderlei Silva (2006), da Universidade de Pernambuco,
sugere dilogo entre Histria e Literatura como um vrtice que amarre uma proposta
de ensino universitrio de histria com a prtica da pesquisa sobre as experincias
histricas latino-americanas, e sobre as construes discursivas a respeito de
nossas identidades.
Em primeiro lugar, porque o estudo da literatura produzida na Amrica Latina
garantiria uma viso mais ampla para o futuro pesquisador/professor acerca da
multiplicidade latino-americana, da multiplicidade de fontes a disposio, e dos
modos de se observar essa multiplicidade e de trabalhar com elas.
Acreditamos, e vemos os resultados cotidianamente, que a Arte e a Literatura possibilitam uma abertura de perspectiva, uma viso de mundo mais cosmopolita para esses futuros professores de Histria. Ou seja, uma viso mais humanista (SILVA, 2006, p. 8).
Em segundo lugar, porque, a seu ver, despertaria no investigador/docente um
sentido mais profundo, auto-reflexivo, do prprio ofcio de historiar.
Acreditando que toda interpretao um exerccio, e que a boa compreenso das fontes histricas depende de sua boa interpretao a partir do conhecimento do contexto histrico das mesmas, entendemos que a Literatura quando trabalhada em conjuno com a pesquisa histrica pode assumir a funo
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pragmtica de exerccio interpretativo. (...) Os debates que entrelaam Literatura, Histria, assim, discutindo enredo e narrativa, tambm so um exerccio de teorizao sobre a Histria (SILVA,
2006, p. 9).
por isso que se considera interessante uma disciplina, focada na Amrica
Latina, seja desenvolvida conforme proposto no quadro sintico includo ao final
deste captulo. L o leitor verificar na ementa e objetivos gerais a inteno de no
apenas somar informaes e dados sobre o passado dos pases latino-americanos,
mas a anlise das verses sobre esse passado, e a compreenso de que toda
investigao a respeito nada mais que a composio de uma nova verso.
O estudo da histria da Amrica Latina deve corresponder, portanto, no
somente a uma opo de recorte, mas de reflexo. O professor/pesquisador de
Histria dedicado s latino-americanidades deve ser um professor/pesquisador
atento a questes como: identidade, autenticidade, imposio cultural/ imperialismo,
disputas de poderes simblicos. E, nesse