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PENSAMENTO HUMANO Parmênides

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PENSAMENTO HUMANO

Parmênides

O tema central deste livro é a questão da verdade, cuja compreensão primordial encontra-se no “poema doutrinário” de Parmênides. A partir da diferença entre o pensamento grego e o romano e do contraste na linguagem, Heidegger analisa o declínio no entendimento primordial da verdade e da não-verdade, que teve início na filosofia grega tardia e que continuou através da latinização do Ocidente até hoje. Embora tenham se passado 25 séculos desde o início do pensamento ocidental, o passar dos anos e séculos jamais tocou o que é pensado no pensar dos pensadores originários. Essa possibilidade, ainda não tocada pelo tempo, que tudo pode corroer, não é, no entanto, de forma alguma, devida ao fato de que o pensamento, que esses pensadores tinham a pensar, tivesse se preservado, desde então, em si, num lugar supratemporal, por assim dizer, “eterno”. Pelo contrário, o pensado nesse pensar é o propriamente histórico, o qual precede e antecipa toda a história sucessiva. Isso que precede e determina toda a história deve se chamar princípio. Uma vez que não se acha atrás, no passado, mas é dado previamente ao que há de vir, o princípio se faz sempre novo e de modo novo e próprio, como um presente para uma época.

PARMÊNIDES

Coleção P ensamento Humano- A caminho da linguagem, Martin Heidegger- A cidade de Deus (Parte I; Livros I a X), Santo Agostinho- A cidade de Deus (Parte II; Livros X I a XXII), Santo Agostinho- O conceito de ironia, Soren Aabye Kierkegaard- Confissões, Santo Agostinho- Da reviravolta dos valores, Max Scheler- Didascálicon: da arte de ler, Hugo de São Vítor- Ensaios e conferências, Martin Heidegger- A essência da liberdade humana, Friedrich Wilhelm Schelling- Fenomenologia do espírito, Georg Wilhelm Friedrich Hegel- Hermenêutica: arte e técnica da interpretação, Friedrich D. E. Schleiermacher- Hipérion ou o eremita na Grécia, Friedrich Hõlderlin- Investigações filosóficas, Ludwig Wittgenstein- O livro da divina consolação e outros textos seletos, Mestre Eckhart- Manifesto do partido comunista, Friedrich Engels e Karl Marx- As obras do amor, Saren Aabye Kierkegaard- Parmênides, Martin Heidegger- Os pensadores originários, Anaximandro, Parmênides e Heráclito- Segundo tratado sobre o governo civil e outros escritos, John Locke- Ser e verdade, Martin Heidegger- Ser e tempo, Martin Heidegger- Sonetos a Orfeu; Elegias de Duíno, Rainer Maria Rilke- Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica (Volume I), Hans-Georg Gadamer- Verdade e método: complementos e índice (Volume II), Hans-Georg Gadamer

Coordenação:Renato Kirchner e Enio Paulo Giachini

Comissão editorial:Arcângelo R. Buzzi Emmanuel Carneiro Leão Gilvan Fogel Hermógenes Harada Mareia Sá Cavalcante Schuback Sérgio Wrublewski

Comissão consultiva:Amós Nascimento Benedito NunesCarlos Arthur Ribeiro do Nascimento Fernando Mendes Pessoa Glória Ferreira Ribeiro Joel Alves de Souza José Cardonha Luiz A. De Boni Manfredo de Oliveira Marcos Aurélio Fernandes

Revisão: Cínthia Steigleder Projeto gráfico: Rodrigo Camargo de Godoi

MARTIN HEIDEGGER

PARMÊNIDES

TraduçãoSérgio Mário Wrublevski

Revisão da tradução Renato Kirchner

OEDITORA UNIVERSITÁRIA

SÃO FRANCISCO

A à EDITORA ▼ VOZES

Bragança Paulista / Petrópolis 2008

© Vittorio Klostermann, Frankfurt am Main, 2. edição, 1992. Volume 54: Parmenides. Gesamtausgabe.

II. Abteilung: Vorlesungen 1923-1944.

Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa Editora Vozes Ltda.Rua Frei Luiz, 100

25689-900 Petrópolis, RJ www.vozes.com.br

Editora Universitária São Francisco - EDUSF Avenida São Francisco de Assis, 218

Jardim São José12916-900 Bragança Paulista, SP www.saofrancisco.edu.br/edusf

[email protected]

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios

(eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita das Editoras.

1(430) Heidegger, Martin, 1889-1976-H37p Parmenides / Martin Heidegger ; tradução, Sérgio Mário

Wrublevski; revisão da tradução, Renato Kirchner. - Petrópolis : Vozes ; Bragança Paulista : Editora Universitária São Francisco, 2008.238 p. (Coleção pensamento humano)

Título original alemão: Parmenides ISBN 978-85-326-3570-9 (Vozes)ISBN 978-85-7793-000-5 (Edusf)

1. Martin Heidegger, 1889-1976. 2. Filosofia alemã.I. Wrublevski, Sérgio Mário. II. Kirchner, Renato.II. Título. III. Série.

Ficha catalográfica elaborada pelas bibliotecárias do Setor de Processamento Técnico da Universidade São Francisco.

E ste li/ro feiinpiEsaD pela Editora V ozes Ltda.

SUMARIO

INTRODUÇÃOMeditação preparatória com o nome e a palavra àÀrjdeLa e sua

essência contrária. Duas indicações da tradução da palavra àÀrjdeLa

§ 1. A deusa “Verdade”. Parmênides I, 22-32................................... 13

a) O conhecimento usual e o saber essencial. Renúncia dainterpretação usual do “poema doutrinário” através da atenção para a exigência do princípio...................................13

Recapitulação

1) Início e princípio. O pensar usual e o pensar originado peloprincípio. O retraimento diante do ser. O pouco do simples nos textos. Indicação para o “traduzir” .................................. 20

b) Duas indicações da tradução da palavra áXf|9eLa. O caráterconflitante do desencobrimento. Clarificação provisória da essência da àXf|0eia e do retraimento. Transposição e tradução ....................................................................................25

Recapitulação

2) A questão do nome da deusa e como traduzi-lo. A essência daverdade como oposta ao encobrimento nas suas duas primeiras indicações. Des-encobrimento e cfes-encobri- mento..........................................................................................31

PARTE IA terceira indicação de uma tradução para a palavra

àÀrjdeLa: o âmbito de oposição entre àÀrjdeLa e Àrjdp na história do ser

§ 2. Primeira meditação sobre a transformação da essência da verdade e de sua essência contrária......................................................... 35

a) O caráter conflitante do des-encobrimento. A terceira indicação: a relação de contraposição à verdade. A ressonância da àXr|9eia na subjetividade. Referência a Hegel e Schelling. Indicação de

contraposições entre encobrimento e desencobrimento, falsidade e verdade................................................................... 35

b) A pergunta pela essência contrária de dXr|9éç. A ausência de Xr|9éç e o iJjeôSos. O encobrimento de significações fundamentais. A palavra contrária Xa9óv e o Xav9áv,0|iaL pensado de modo grego. O esquecimento experimentado a partir do encobrimento. Homero, Ilíada XVIII, 46; X, 22; Odisséia VIII, 93....................................................................... 39

RecapitulaçãoTò ijíeuSoç como o oposto de áXqfiéç. O parentesco de raiz entre as palavras áXf|9eia e Xav9duoa. Referência a Homero, Odisséia VIII, 93. O retraimento do esquecimento................ 46

§ 3. Clarificação da transformação da áXf|9eia e da transformação de sua essência contrária (peritas, certitudo, rectitudo, iustitia, verdade, justiça - Xf|9q, i[;et)8oç, falsum, incorreção, falsidade).............51a) Os significados intrinsecamente diferentes de 4>eb8oç e “falso”. O

âmbito do sentido essencial da palavra contrária 4seu8oç constitui-se como um deixar aparecer na medida em que encobre. Referência a Homero, Ilíada B, 348s. O encobrimento desfigurador: o significado fundamental de tJievSoçr. Tò ái[;en8és: o que desencobre, e o dXq9éç. Referência a Hesíodo, Teogonia, verso 233s. A ambigüidade de dXr|9éç ................ 51

Recapitulação1) A assim chamada correta tradução de ijseü8oç por “falso”. A

multiplicidade de significados de “falso” e iJjeuSoç. A desfiguração e dissimulação de 4 ^ 8 0 9 na região da essência de encobrimento e desvelamento. Referência a Homero e Hesíodo....................................................................59

b) A palavra não-alemã “falso”. Falsum, fallo, acjráXXw. A primazia romana do “destruir” no processo de romanização da Antiga Grécia, implementado pelo imperium (comando) como funda­mento essencial do iustum. A transposição de i(set>8oç para o domínio romano-imperial do destruir. O evento real da história: 0 assalto da latinização no domínio greco-romano da história e a

Recapitulação

2) Reconsideração da essência do “falso”, do ocultamento e do“des-ocultamento” do íjjeüòoç. A vigência do “alto-comando” imperial romano e a amplitude da diferença entre efa lsum ...................................................................................... 70

c) O imperial na forma do curial da cúria. A conexão entre“verum” e “verdadeiro”. O significado não-alemão de “verdadeiro” através do “verum” romano-cristão. Verum: o direito estabelecido como palavra contrária ao falsum. Verum e a-pertum; XaOóv e seu correlativo a dXr]9éç.................... 73

d) A transformação na essência da áXr|0eia desde Platão. Arecepção da “representação” da áXr|0eia através da Ó|!OLgjctlç (como rectitudo da ratio) para dentro da ventas. A rectitudo (iustitia) da dogmática eclesiástica e a iustificatio da teologia evangélica. O certum e o “usus rectus” (Descartes). Referência a Kant. A conclusão do círculo da história da essência de verdade na transformação de veritas em “justiça” (Nietzsche). O aprisionamento da dXr|9eia no bastião romano da veritas, rectitudo e iustitia ............................................... 78

Recapitulação

3) O destinar-se da atribuição do ser: consideração retrospectivada história em relação à transformação da essência da verdade. Os “balanços” da historiografia (Burckhardt, Nietzsche, Spengler). A “doação de sentido” da história na modernidade............................................................................84

4) O evento da conversão da essência da não-verdade dogrego para o falsum romano. A plenificação da trans­

formação da veritas em certitudo no século XIX. O auto- asseguramento da autocerteza (Nietzsche, Fichte, Hegel) . . . 88

§ 4. A multiplicidade das oposições para o descobrimento no seucaráter essencial..........................................................................90

a) A rica essência do ocultamento. Modos de ocultamento: áuórrri, (p.éOoSoç), KeúOco, kpútttw, koXútttoj. Homero, Ilíada XX, 118; Odisséia VI, 303; III, 16; Ilíada XXIII, 244. O poder

visão moderna do mundo grego com olhos romanos...............64

desvelante do mythos e a questão das divindades gregas . . . 90b) A conexão entre ixüOoç e as deidades gregas. Terra, dia, noite

e morte em relação ao desencobrimento. O misterioso como um dos modos do encobrimento. A exclusão da negatividade na falsidade e na des-locação como uma e única essência contrária à verdade..............................................................93

Recapitulação

Clarificação suplementar: o “caminho” do pensador que chega no “poema doutrinário”. A conexão entre a essência da deusa e os caminhos para e de sua casa. Caminho lateral e descaminho. A questão da outra essência contrária do descobrimento. A essência do descobrimento e retraimento expressa em palavra e mito. A perda da palavra como preservação da relação do ser com o homem. A transformação romana do t ò £tòov Xóyov e \o v em “animal” rationále. Referência a Kant, Nietzsche, Spengler.

. Mu9oç, eTTOs-, Xóyoç..................................................................99

§ 5. A oposição a dXr|9éç: Xa9óv, Xa9éç. O evento da transformação do encobrimento que se retrai e o comportamento humano do esquecer.........................................................................................106

a) A vigência do encobrimento no Xau9ávea9ai. O encobrimentode quem esquece no esquecido: o esquecimento. Hesíodo, Teogonia, verso 226s. A Xf|9r| e a essência escondida de Éris (Luta), da Filha da Noite, Referência a Píndaro................. 106

b) O temor em Píndaro, Ode olímpica VII, 48s; 43s; e emSófocles, Édipo em Colonus, 1267. A apeTi) (decisão) como o desvelamento do homem determinado com base na àXf|9ei.a e aLStás.................................................................................. 110

Recapitulação

1) Os três títulos da história essencial do Ocidente. Referência a Ser e tempo. Pensar essencial. Referência a Hõlderlin e a Píndaro. O começo da relação essencial do ser com o homem na palavra e na saga. A essência grega de homem. Referência a Hesíodo.................................................................................. 114

c) TTpây|j.a: a ação. A palavra como o âmbito essencial da mão humana. Escrito à mão e escrito datilografado. óp9ós e rectum.

Ação essencial e o caminho para o descoberto. Obliteração como encobrimento. O modo de ser “além” do homem, partindo do descobrimento, e a palavra da nuvem sem sinal. O ofuscamento. A subtração da Xf|8r|. Referência a Píndaro e a Hesíodo............ 118

Recapitulação

2) A correlação entre ser, palavra, colheita, mão e escrita. A irrupção da máquina de escrever no âmbito da palavra e da escrita à mão. A conseqüência da tecnologia na relação transformada do ser com o homem. O bolschevismo: o mundo previamente arranjado, organizado tecnicamente de modo completo. O pensamento e a poesia dos gregos na àXf|9eia e Xr]9ri .................................124

§ 6. A última saga dos gregos com respeito à essência contrária recôn­dita da áXf|0eia, a Xf|9r| (I): o mito conclusivo da Politéia de Platão. O mito da essência da polis. Elucidação da essência do demoníaco. A essência dos deuses gregos à luz da áXr|9eia. O “olhar” do extraordinário ................................................... 130a) A TíóXig como o pólo da presença determinada dos entes a

partir da dXr|9eia. Referência a Sófocles. A reverberação da essência conflitante de áXrj0eia na essência contrária à ttóXis : aTToXis1. Referência a Burckhardt............................ 130

b) Preparação para o atalho ao comentário acerca do diálogo dePlatão sobre Xf|0ri e ttóXlç. A harmonia: Alkt|. O curso mortal da estadia na polis e a presença dos entes depois da morte. Platonismo cristão. Referência a Hegel...................................134

Recapitulação

1) Politéia: o 707105 da essência da ttóXlj. 0 caráter essen­cialmente não-político da Politéia da polis. O pólo de ueXeiv. A impossibilidade de interpretar a polis com base no “Estado”, a 8ÍKr| e iustitia. Morte: transição do “aqui” para “lá”. Platonismo................................................................................139

c) A questão do “aqui” e “lá”. Politéia X, 614 b 2, e o questionamento dessa referência ao m ito............................ 142

d) 4,UX1Í; 0 fundamento de uma relação com os entes. 0 conhecimento do pensador sobre daimonia. Referência a Aristóteles e Hegel. Áaiyumov: a presença do extra-ordinário

no ordinário. Os 8aífioveg, aqueles que acenam e mostram para dentro do ordinário..................................................... 145

e) 0 vislumbre (Gedw) que oferece a visão do ser. O ver a partir dedentro (vislumbre) do ser (eiSoç). O deus grego (8aí ficou) que, no ver, apresenta-se no desencobrimento. O que vê para dentro do ordinário: o extraordinário. O aparecer do extraordinário no ver do homem.............................................................................. 150

Recapitulação2) O não-demoníaco do Saífioueç. A emergência desvelante do ser:

o auto-iluminar-se. O ver (perceber), o modo primordial da emergência na luz. A posição intermediária do animal (Nietzsche, Spengler). O homem: o vislumbrado. 0éa e 0eá: a mesma palavra. Referência a Heráclito, fragmento 48. Insuficiente elucidação das divindades gregas. A visão como o decisivo para o aparecimento do extraordinário no seio do ordinário. O extra­ordinário mostrando-se no interior do ordinário e sua relação, fundada no ser, com as divindades......................................... 153

f) A diferença entre os deuses gregos e o Deus cristão. A palavra comolugar de nomear o ser no seu iluminar a partir de dentro e o mito como o modo da relação ao ser que aparece. O homem: o proferidor de Deus. “Declínio” de culturas (Nietzsche, Spengler). O traço fundamental do esquecimento do ser: o a-teísmo.......... 159

g) O divino como o que se dá a partir do interior no descoberto. Odaimonion: o ver em sua silenciosa recepção para a pertença ao ser. O domínio do descobrimento da palavra. A “correspondência” do divino e do mítico (tò Gelou e ó |ií)0oç). O trazer-para-a-obra (arte) do desencobrimento e seu médium na palavra e no mito. Eú8ai|iouía e 8oafióuioç tóttos’......................................... 164

§ 7. A última saga da Grécia sobre a essência contrária da àXf]0eia, a Xf]0ri(II). O mito final da Politéia de Platão. O campo da Xf)0r|............ 170a) A localidade do extra-ordinário: o campo do encobrimento que se

retrai. A exclusividade do extra-ordinário no local da Lethe. A visão de seu vazio e o nada do retraimento. A água sem recipiente do rio “Sem-cuidado” no campo da Xf|0r). A salvação do desencoberto pelo pensamento que pensa e a porção do pensador ................................................................................ 170

Recapitulação

1) Campo e Xrj9r|. O que, entre os gregos, é de deus: o extra­ordinário no ordinário. O Gelou na áXf|9eLa do princípio e na Xr|9r). AXrjGeia e Geá (Parmênides).................................175

b) A medida do encobrimento retrativo do desencobrimento. O perfil da LSéa de Platão e a fundação da anamnese (tanto quanto do esquecimento) no desencobrimento. Ar|Gq: TíeSíou. A percepção do início da poesia de Homero e da sentença de Parmênides. A impossibilidade de esquecer da áXf|Geia pelo retraimento da Xf|Gr|. A suspensão da experiência através do procedimento desde Platão (T€xvr|). Aceno para Homero, Ilíada XXIII, 358s . . . 177

Recapitulação

2) A proveniência do homem da localidade extraordinária do encobrimento que retrai. O início da transformação na posição fundamental do homem. A regência em conjunto da áXf|6eLa e de p.é|ivr|fj.ai. Aceno para Homero, Ilíada XXIII, 358s .. 186

PARTE IIA quarta indicação oferecida pela tradução de àÀijfJeia.

O espaço aberto e livre da clareira do ser. A divindade “Verdade”

§ 8. O significado mais pleno do des-cobrimento. A transição para a subjetividade. A quarta indicação: o aberto, o livre. O evento da áXf|6eLa no Ocidente. A ausência de fundamento do aberto. A alienação do homem....................................................................189a) Preparação para a quarta indicação: a insuficiência de “desen­

cobrimento” ramo tradução usada até agora. A ambigüidade da palavra “des-cobrimento” e seu significado mais pleno. A luta na àXf|Geia primordial. Proximidade e começo. Referência a Homero. Os dois sentidos do aparecimento: pura emergência e caráter de encontro. A essência do eu. Referência a Kant, Descartes, Herder, Nietzsche. A prioridade do si-mesmo desde Platão e Aristóteles (nepl fjmxfiS' 8, 431; M c t . a 1) ........ 189

b) A quarta indicação: o aberto como a essência primordial do . desencobrimento. Referência a Ser e tempo e a Sófocles,

A’í a s V, 646s. 0 tempo como deixar aparecer e encobrir. Referência a Hõlderlin. O tempo como “fator” na moder­nidade. A presencialização da abertura no desencobri-mento. A “identificação” de abertura e liberdade. A á \f |9 e L a como o aberto da iluminação............................................................201

c) Luz e ver. O esclarecimento “natural” da verdade do iluminar emtermos dos “homens visuais” gregos em contraposição à visão desvelante. O perceber vidente. JUrjOeia: o evento na paisagem da tarde aue encobre a manhã. Qeâv-òpây e teoria.............. 207

d) O aberto no começo da meditação com a palavra áXpOeia. Opensar essencial: o salto para o ser. Entes descobertos no abrigo do sem-chão da abertura (livre) do ser. O encobrimento da decisão de concessão para o homem do desencobrimento no aberto que se resguarda. A habilitação, através da concessão do ser, de ver o aberto: um começo histórico. A alienação do homem diante do aberto ...............................212

e) O aberto na forma da progressão irrestrita dos entes. O aberto:o livre da iluminação. O “aberto” da “criatura” na oitava Elegia de Duíno de Rilke.. Referência a Schopenhauer e Nietzsche. A exclusão do animal da luta entre desencobri­mento e encobrimento. A excitação do vivo.......................216

§ 9. 0 e á - AXf|9eia. O ver do ser para dentro do aberto iluminado por ele. A indicação no interior da referência da palavra de Parmênides: a viagem do pensador para a casa da AXf|9eLa e seu pensar na proximidade do começo. O falar do começo da sagaocidental .................................................................................... 229

Acréscimo ...........................................................................................233

Posfácio do editor 237

INTRODUÇÃO

Meditação preparatória com o nome e a palavra áXrj0eia e sua essência contrária. Duas indicações da tradução da

palavra áXfjGeia

§ 1. A deusa “Verdade”. Parmênides I, 22-32

a) O conhecimento usual e o saber essencial. Renúncia da interpretação usual do “poema doutrinário” através da atenção para a

exigência do princípio

TTapp.eví8qç kcu HpcíkXcltos, Parmênides e Heráclito - estes são os nomes dos dois pensadores, contemporâneos nas décadas entre 540 e 460, que, numa co-pertença única no início do pensar ocidental, pensam o verdadeiro. Pensar o verdadeiro significa experimentar o verdadeiro na sua essência e, em tal experiência essencial, saber a verdade do verdadeiro.

Cronologicamente, passaram-se 2.500 anos desde o início do pensamento ocidental. O passar dos anos e séculos jamais tocou o que é pensado no pensar de ambos os pensadores. Essa possibilidade, ainda não tocada pelo tempo, que tudo pode corroer, não é, no entanto, de forma alguma, devida ao fato de que o pensamento, que esses pensadores tinham a pensar, tivesse se preservado, desde então, em si, num lugar supratemporal, por assim dizer, “eterno”. Pelo

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contrário, o pensado nesse pensar é o propriamente histórico, o qual precede e antecipa toda a história sucessiva. Isso que precede e determina toda a história chamamos de princípio. Uma vez que não se acha atrás, no passado, mas é dado previamente ao que há de vir, o princípio [Anfãngliche] se faz sempre novo e de modo novo e próprio, como um presente para uma época.

O princípio é o que na história essencial vem por último. Naturalmente, para um pensar que conhece somente a forma do cálculo, a frase “o princípio é o último” permanece um contra-senso. Antes de tudo, porém, o princípio aparece, em seu início, oculto num modo peculiar. Por isso surge o fato surpreendente de que o princípio, facilmente, é tido como o incompleto, inacabado, grosseiro. E chamado, também, de “primitivo”. Assim surge, então, a opinião de que os pensadores antes de Platão e Aristóteles seriam ainda “pensadores primitivos”. Certamente nem todo pensador, no início do pensamento ocidental, já é também um pensador originário [anfãngliche Denker]. O primeiro pensador originário chama-se Anaximandro.

Os dois outros, os únicos ao lado de Anaximandro, são Parmênides e Heráclito. O fato de caracterizarmos esses três pensadores como os únicos originários, em contraposição a todos os outros pensadores do Ocidente, desperta a impressão de arbitrariedade. Também não possuímos, na verdade, nenhum meio de prova que pudesse ser suficiente para fundamentar, imediatamente, esta caracterização. Para isso, é necessário que adquiramos uma relação genuína com esses pensadores originários. Este será o escopo das horas desta preleção.

No decorrer das épocas da história ocidental, o pensamento posterior afastou-se do seu início não apenas cronologicamente, mas, também, e antes de tudo, com respeito ao que é pensado. As gerações posteriores dos homens tornaram-se mais e mais estranhas ao pensar antigo. Por último, a distância tornou-se tão grande a ponto de surgir a dúvida se uma época posterior conseguiría simplesmente ainda re­pensar os pensamentos mais antigos. A esta dúvida se acrescenta uma outra, ou seja, se esse projeto, supondo que seja possível, teria ainda alguma utilidade. Qual o escopo de vagarmos errantes nos vestígios

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quase apagados de um pensar passado há muito tempo? A dúvida acerca da possibilidade e da utilidade de uma tal tentativa .recebe^ ainda, um fortalecimento especial pela circunstância de que este pensar antigo foi transmitido somente em fragmentos. A partir daí, costuma-se explicar o fato de que as opiniões dos acadêmicos sobre a antiga “filosofia” dos gregos são muito dispersas e que a compreensão desses pensamentos filosóficos seria simplesmente incerta.

A intenção de refletir ainda hoje a partir do pensar de Parmênides e de Heráclito permanece assim cercada de múltiplas dúvidas e objeções. Deixamos essas dúvidas e objeções entregues a si mesmas e nos poupamos de uma especial refutação. Mesmo se tentássemos nos confrontar com essas objeções, deveriamos ter realizado, antes de tudo, o que não se deixa realizar em todo o caso, isto é, pensar os pensamentos que esses dois pensadores pensaram. Certamente, não podemos contornar a exigência de perscrutar, antes de tudo o mais, as palavras desses pensadores. Talvez, se prestarmos suficiente atenção e persistirmos no pensar, faremos a experiência de que as dúvidas acima nomeadas são desprovidas de fundamento.

As palavras de Parmênides têm forma lingüística de versos e de seqüências de versos. Elas se apresentam como um “poema”. Entretanto, porque as palavras apresentam uma “doutrina filosófica”, fala-se de um “poema doutrinário” de Parmênides. Esta caracterização das expressões do seu pensamento origina-se de um impasse. Conhecemos poesias e poemas. Conhecemos também tratados filosóficos. Vemos, porém, também, facilmente, que aqui nos versos de Parmênides não se encontra algo “poético”, mas, ao contrário, muito do que chamamos de “abstrato”. Assim, pareceu que o melhor caminho para caracterizar o conteúdo das expressões, carregadas do pensamento em questão, era considerar, ao mesmo tempo, ambos os momentos, ou seja, a forma em versos e o “conteúdo abstrato”, e por isso se fala em “poema doutrinário”.

Talvez não se trate nem de um “poema” no sentido de “poesia”, nem de uma “doutrina”. No entanto, para se entender como as palavras são ditas e como o dito é pensado, isso somente pode tornar-se claro e rigoroso se soubermos o que é pensado e o que necessita vir à fala. Aqui, de uma maneira única, a palavra [ Wort\ é

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falada e um dito [Spruch] vem à fala. Para dizer, portanto, a palavra originária de Anaximandro, de Parmênides e de Heráclito falaremos do dito desses pensadores. “0 dito” significa o todo de seu falar, não

p somente proposições isoladas e enunciados. Entretanto, para dar à tradição o seu direito, falaremos inicialmente, ainda, do “poema doutrinário” de Parmênides.

(Considerando que desde longo tempo não há uma edição separada e acessível do texto de Parmênides, transcreví e fiz cópias do texto. A transcrição é realizada de tal modo que os ouvintes da preleção possam inserir a respectiva tradução na página oposta, segundo a marcha das diversas preleções.)

Para reconhecer o que é dito e pensado nas palavras de Parmênides, escolhemos o caminho mais seguro possível. Nós seguiremos o texto. A tradução adjunta já contém uma interpretação do texto. Esta interpretação necessita, certamente, de uma elucidação. Entretanto, nem a tradução nem a elucidação têm muito peso, enquanto o pensado na palavra de Parmênides, ele mesmo, não nos fala. A questão principal consiste em se dar conta da convocação proveniente da palavra realizadora do pensamento. Somente assim, no dar-se conta da convocação [Anspruch], chegamos a conhecer o dito [Spruc/z]. 0 que o homem estima, que estima ele concede ao estimado, como ele é originário e constante nesta estima, isso decide no que diz respeito à dignidade, que lhe é concedida a partir da história.

Pensar é a atenção para o essencial. Em tal atenção essencial reside o saber essencial. 0 que usualmente chama-se de “saber” é estar informado acerca de um certa questão e de suas relações factuais. Graças a estes conhecimentos “dominamos” as coisas. Este “saber” de dominação se dirige ao ente cada vez dado, à sua estrutura e à sua utilidade. Um tal “saber” se apodera do ente, “domina”-o e, com isso, vai sempre para além do ente, ultrapassando-o, constantemente. 0 caráter do saber essencial é inteiramente diferente. Ele se volta para o que o ente é no seu fundamento - para o ser. 0 “saber” essencial não domina sobre o que lhe é dado saber, mas é tocado por ele. Por exemplo, só para tomar um caso entre outros, cada “ciência” é um conhecimento de dominação, um sobrepujar e um ultrapassar, quando não simplesmente um passar por cima do ente.

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Isso se realiza no modo da objetivação. Em contrapartida, o saber essencial, a atenção, é um retroceder diante do ser. Num tal retroceder vemos e percebemos essencialmente mais, ou seja, algo totalmente diferente do produto do procedimento notável da ciência moderna. Pois esta última é sempre um assalto técnico ao ente e uma intervenção tendo em vista uma “orientação” ativa, “produtiva”, operosa e comercial. Em contraposição, a atenção marcada pelo pensamento permanece uma atenção para uma exigência que não provém de fatos isolados e de eventos da realidade, nem atinge o homem nas razões periféricas de suas ocupações cotidianas. Somente então, quando esta exigência do ser, e não apenas alguma objetividade referida à multiplicidade do ente, se dirige a nós na palavra de Parmênides, o conhecimento de suas “proposições” terá alguma justificação. Sem a percepção desta exigência todo o cuidado que possamos empregar na elucidação deste pensar transcorre no vazio. A seqüência com a qual explicitaremos os fragmentos individuais será determinada pela interpretação dos pensamentos condutores. Uma tal interpretação se baseia nas diversas explicitações e só passo a passo pode vir à luz.

Os fragmentos individuais são enumerados com números romanos. Embora pareça arbitrário, começaremos com o primeiro fragmento, com os versos 22-32. I,

I, 22-32

22 E a deusa me acolheu com simpatia; ela tomou minha mão direita na sua; então, ela falou a palavra e se dirigiu para mim neste modo: “Ó homem, companheiro de imortais condutoras de carro,

25 que te conduzem, com os cavalos, alcançando nossa morada. Bênção (é) contigo! Pois não um destino ruim te enviou a trilhares este caminho - pois, em verdade, ele está para além dos homens, fora de sua senda (muito batida) - , mas, sim, tanto estatuto como também ordem. Mas é necessário que experimentes tudo, tanto o coração intrépido do desencobrimento bem abrangente,

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30 como também o aparecer na sua aparência para os mortais, onde não mora confiança no desencoberto. Porém, também, isto haverás de apreender a conhecer, como o que aparece e que

32 (na necessidade) permanece usado de modo a ser adequado ao aparecer, na medida em que transluz através de tudo e (portanto) deste modo tudo consuma.

O pensador Parmênides fala de uma deusa que o saúda, depois que ele chegou de sua viagem à casa da deusa. À saudação, cuja essência própria a deusa mesma explicita, ela acrescenta um anúncio das revelações que o pensador deve experimentar no seu caminho através dela. Tudo o que o pensador diz nos fragmentos seguintes do “poema doutrinário” é então a palavra dessa deusa. Se prestarmos atenção previamente para isso e mantivermos tudo bem e rigorosamente na memória, então estaremos na disposição de reconhecer lentamente que o dito do pensador fala e o faz na medida em que traz à fala a palavra dessa deusa.

Quem é a deusa? Antecipamos a resposta adequada somente para o “poema doutrinário” como um todo. A deusa é a deusa “Verdade”. Ela mesma - “a verdade” - é a deusa. Por isso, devemos evitar o modo de falar que falaria de uma deusa “da” verdade. Pois o modo de falar de uma “deusa da verdade” desperta a representação de uma deusa a cuja proteção e bênção “a verdade” é tão-somente confiada. Se fosse o caso, teríamos dois fatos: “uma deusa” e “a verdade”, que está sob proteção divina. Poderiamos ainda explicitar este estado de coisas em concordância com exemplos familiares. Os gregos adoram, por exemplo, a deusa Ártemis como a deusa da caça e

, dos animais. A caça e os animais não são propriamente a deusa Ártemis, e sim o que lhe é dedicado e está sob sua proteção. Mas quando Parmênides chama a deusa “Verdade”, então é a própria verdade que é aqui experimentada como a deusa. Isso pode nos parecer estranho, pois, por um lado, achamos simplesmente estranho que um pensador coloque seu pensar em relação com a palavra de um ente divino. O característico dos pensadores, que mais tarde, desde o tempo

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de Platão, passou-se a chamar “filósofos”, consiste justamente nisto, que sua própria meditação é a fonte de seus pensamentos. Os pensadores são em verdade chamados decididamente de “pensadores” porque, como se diz, eles pensam “fora de si”, e, nesse pensar, eles se colocam a si mesmos em jogo. O pensador responde, ele mesmo, às questões colocadas por ele próprio. Pensadores não anunciam “revelações” do deus. Não relatam inspirações de uma deusa. Dizem tão-somente a própria evidência. 0 que pode, portanto, a deusa, neste “poema doutrinário”, que traz à fala os pensamentos de um pensar cuja pureza e rigor desde então jamais retornaram? Mas mesmo se este pensar de Parmênides está fora de um fundamento como algo ainda velado para nós e, a partir disso, está, de fato, em relação com a deusa “Verdade”, mesmo assim sentimos a falta da imediata manifestação de uma figura dos deuses, como ela nos é familiar no mundo dos gregos. Atenas, Afrodite, Artemis, Deméter aparecem como “pessoas divinas” delineadas de modo muito claro. A deusa “Verdade”, por outro lado, é amplamente “abstrata”. Poder-se-ia pensar que aqui isso nada tem a ver com “experiência mística” dessa deusa, e sim, que um pensador, por livre iniciativa, “personifica” o conceito geral “verdade” na figura indeterminada de uma deusa. Este processo, de uma “hipostatização” de conceitos gerais como divindades, encontramos certamente com freqüência, em especial na antigüidade tardia.

Talvez o pensador Parmênides queira, por um artifício semelhante, dar a seus pensamentos, em geral muito “abstratos”, mais plenitude e colorido. Além disso, se considerarmos que o início do pensamento ocidental se realiza, segundo a opinião usual, como dissociação do logos (razão) a partir do mythos (mito), então parece inteiramente compreensível que restos da representação “mítica” ainda se tenham mantido nas primeiras tentativas “primitivas” de um tal pensar. Mediante tais e semelhantes reflexões, pode o aparecimento de uma deusa ser suficientemente esclarecido num “poema doutrinário filosófico”. O esclarecimento que resulta da indicação da deusa, esta entendida como um enfeite poético e pseudomítico, pode ser deixado para trás, já que o que de fato conta é, somente, chegar a conhecer o “sistema filosófico” do pensador.

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A tomada de posição usual em relação ao aparecimento da deusa no poema doutrinário de Parmênides, aqui brevemente apresentada em diferentes variações, é apenas um equívoco. Se esta posição viesse somente da presunção das gerações seguintes que pretendem conhecer tudo melhor, ou se isso fosse somente o produto de comparação historiográfica, num cálculo para frente e para trás entre as aparências de tempos anteriores e posteriores, então se podería passar ao lado de tais explanações. A dificuldade é que nelas vem à fala um modo de pensar consolidado nestes últimos dois mil anos no Ocidente e é, numa certa perspectiva, até uma aberrante

■ conseqüência do pensar expresso no “poema doutrinário” de Parmênides. Neste modo de pensar, nós mesmos nos movemos no interior de uma longa tradição e a tomamos como algo “natural”.

Supondo, no entanto, que o pensar de Parmênides e de Heráclito se dá essencialmente de uma maneira diversa, o que é pedido a nós é uma recusa da banalidade, a qual nada mais tem a ver com a simples refutação de interpretações acadêmicas equivocadas. A recusa da banalidade nos toca pessoalmente e sempre de modo novo e cada vez mais decididamente. Esta renúncia é, também, somente uma atitude “negativa” de um ponto de vista superficial. Na verdade, ela realiza o primeiro passo, através do qual cultivamos nossa atenção para a exigência do princípio, o qual, apesar da distância temporal representada historiograficamente, está mais próximo de nós do que em geral costumamos tomar pelo mais próximo.

Recapitulação

1) Início e princípio. O pensar usual e o pensar originado pelo princípio. O retraimento diante do ser. O pouco do simples nos textos.

Indicação para o “traduzir”

Tentamos seguir as sendas do pensar dos dois pensadores, Parmênides e Heráclito. Calculado do ponto de vista histórico, ambos pertencem ao período inicial do pensamento ocidental. Com respeito

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ao pensar primordial no Ocidente, entre os gregos, diferenciamos ^ entre início [Beginn] e origem, princípio ou começo [.Anfang]. O

início pensa o iniciar-se deste pensar num determinado “tempo”. Pensar significa, aqui, não o curso de atos de pensar representados psicologicamente, e sim o historiar-se, no qual um pensador é, diz sua palavra e, assim, funda um lugar para a verdade no interior de uma humanidade histórica. Tempo significa, aqui, não primeiramente o ponto de tempo calculado segundo ano e dias, e sim, antes, a “época”, a situação das coisas humanas e o lugar de referência do ente homem. O “início” tem a ver com o despontar e o surgimento do pensar. Por “origem” ou “princípio” pensamos algo diverso. A “origem” ou o “princípio” é o digno de ser pensado e o pensado neste pensar primordial. Aqui ainda deixamos em segundo plano a questão sobre a essência deste pensado. Suposto que o pensar dos pensadores se diferencia do conhecimento das “ciências” e de toda espécie de conhecimento prático, segundo todas as perspectivas, então, a relação do pensar com o pensado é essencialmente diferente da relação do pensar “técnico-prático” e “moral-prático” usual com o que este pensa.

O pensar usual, seja ele científico, pré-científico ou não- científico, pensa o ente, cada vez, segundo suas regiões individuais, suas camadas separadas e aspectos circunscritos. Este pensar é um discorrer sobre o ente, cujo conhecer o domina e controla de modos diversos. Diferentemente do domínio dos entes, o pensar dos pensadores é o pensar do ser. Seu pensar é o retraimento diante do ser. Chamamos o pensado no pensar dos pensadores de princípio. Isso significa, portanto, agora: o ser é a origem. No entanto, nem todo pensador, que tem que pensar o ser, pensa a origem. Nem todo pensador, inclusive nem todo pensador no início do pensar do Ocidente, é um pensador originário, ou seja, um pensador que pensa propriamente a origem, o princípio.

Anaximandro, Parmênides e Heráclito são os únicos pensadores originários. Eles o são, porém, não porque abrem o pensar do Ocidente e o iniciam. Já antes deles “existiam” pensadores. São pensadores originários, porque pensam a origem. A origem é o que é pensado no seu pensar. Isso se deixa ouvir de tal modo como se “a origem” fosse qual um “objeto” que os pensadores tomam para si,

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previamente, para poderem refletir acerca dele. Mas já tem sido dito, em geral, acerca do pensar dos pensadores, que o pensar seria um

• retrair-se diante do ser. Se o pensar primordial é, no interior do pensar plenamente pensado, o mais elevado, então necessita dar-se aqui um retraimento todo próprio, pois estes pensadores não “tomam” a origem como um pesquisador “agarra” uma coisa. Estes pensadores também não pensam a origem como uma construção auto- produzida do pensamento. A origem não é alguma coisa que depende do favor destes pensadores, com o que eles procedem deste ou daquele modo. Acontece, antes, o contrário: a origem é o que origina algo por meio destes pensadores, porque ela os coloca de tal modo na exigência, que um extremo retraimento diante do ser é exigido deles.

» Estes pensadores são originados [.An-gefangenen] pelo princípio [.An fang], são colhidos por ela para dentro dela, e reunidos a partir dela.

Já é uma representação equivocada, como falamos da “obra” destes pensadores. Mas mesmo se no momento, na falta de uma melhor expressão, falamos assim, então devemos considerar que sua “obra”, mesmo se nos fosse completamente acessível, seria de uma “abrangência” muito pequena em relação à “obra” de Platão e de Aristóteles, ou até em relação à “obra” dos pensadores da modernidade. Platão, Aristóteles e os pensadores posteriores pensa­ram muito “mais”, atravessaram mais regiões e camadas do pensar,, interrogaram com base em um conhecimento mais rico das coisas e do homem. Entretanto, todos eles pensam “menos” do que os

í- pensadores originários.

A típica situação de que o pensador moderno necessita de um livro de mais de 400 páginas para dizer algo do que ele tem a dizer é um sinal inconfundível de que o pensar moderno está fora do âmbito do pensar originário. Neste contexto, podemos recordar da Crítica da razão pura de Kant e da Fenomenologia do espírito de Hegel. Em tais sinais reconhecemos que o mundo, há longo tempo, saiu das junturas e que o homem tem trilhado a errância. Mas, também, devemos observar que o livro fundamental da filosofia moderna, Meditationes de prima philosophia de Descartes, abrange pouco mais do que 100 páginas, e que tratados decisivos de Leibnitz requerem somente algumas folhas de papel de carta. Esses fatos, aparentemente

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apenas extrínsecos, indicam que nesses tratados, muito concentrados e simples com respeito à sua construção interior, se realiza uma transformação do pensar. Uma tal transformação não chega certamente à origem, mas se aproxima, uma vez mais, de sua proximidade. Porque somos, desde muito tempo, constrangidos a procurar nosso conhecimento mediante um processo de seleção com base no excesso falado e escrito, perdemos a capacidade de ouvir poucas coisas simples, ditas nas palavras dos pensadores originários.

A dificuldade da compreensão e a razão da dificuldade em seguir sua trilha do pensar não estão na suposta dificuldade dos “textos”, mas residem unicamente no despreparo e na incapacidade de nossa existência. Com respeito à origem, não existe a escolha da seleção. Aqui, podemos somente nos colocar no caminho para a origem ou nos desviarmos dela. Tentaremos nos preparar para a primeira possibilidade.

Concentraremos, portanto, todos os nossos esforços em simplesmente tornarmo-nos atentos à palavra dos pensadores originários. Começamos com uma referência à palavra de Parmênides. Ela nos foi transmitida em grandes e em pequenos fragmentos. O todo, ao qual os fragmentos pertencem, reconhecível ainda clara e suficientemente, vem à fala na forma de versos como os pensamentos de um pensador. Expressa, portanto, uma “doutrina” filosófica. Por isso se fala de “poema doutrinário” de Parmênides. Os fragmentos são enumerados com números romanos (VIII, 45 significa: oitavo fragmento, verso 45). Daremos uma tradução de cada parte antes de sua elucidação. A tradução expressa, na nossa linguagem, a palavra grega. Nossa linguagem nos é familiar. No entanto, a tradução e o conhecimento da mesma não nos garantem ainda, de forma alguma, a compreensão das palavras do pensador. Por isso, na primeira preleção foi dito expressamente: “A tradução adjunta já contém uma interpretação do texto. Esta interpretação necessita, certamente, de uma elucidação.”

Temos que observar isto rigorosamente: a tradução contém, de fato, a interpretação, mas esta não vem à luz através da escuta da tradução. Porque a tradução se expressa na palavra de nossa linguagem, o perigo da interpretação indevida é certamente ainda

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maior. Pois agora, em vez das palavras gregas, as palavras da tradução podem ser facilmente tomadas, segundo significados usuais

p, muito familiares a nós, sem que tenhamos de prestar atenção no fato de que cada palavra traduzida recebe seu conteúdo do todo daquilo que o pensador pensa. Se, por exemplo, a palavra “caminho” ocorre na tradução, ou a palavra “coração”, então não está de forma alguma decidido sobre o que aqui significa “caminho” ou “coração”. Também com isso ainda não está decidido se conseguimos verdadeiramente, no sentido de Parmênides como tal, pensar a essência do “caminho” ou a essência do “coração”. Naturalmente, não pode ser negado que cada um de nós conhece “em geral” o que significa “caminho” e “coração”. Mas somente uma tradução guiada por uma interpretação está em condições de, dentro de certos limites, falar por si mesma.

Começamos com a elucidação do primeiro fragmento do assim chamado “poema doutrinário” e, de modo especial, com a sua parte conclusiva, com os versos 22-32. A tradução diz:

22 E a deusa me acolheu com simpatia; ela tomou minha mão direita na sua; então, ela falou a palavra e se dirigiu, para mim neste modo: “Ó homem, companheiro de imortais condutoras de carro,

25 que te conduzem, com os cavalos, alcançando nossa morada. Bênção (é) contigo! Pois não um destino ruim te enviou a trilhares este caminho - pois, em verdade, ele está para além dos homens, fora de sua senda (muito batida) -, mas, sim, tanto estatuto como também ordem. Mas é necessário que experimentes tudo, tanto o coração intrépido do desencobrimento bem abrangente,

30 como também o aparecer na sua aparência para os mortais, onde não mora confiança no desencoberto. Porém, também, isto haverás de apreender a conhecer, como o que aparece e que

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32 (na necessidade) permanece usado de modo a ser adequado ao aparecer, na medida em que transluz através de tudo e (portanto) deste modo tudo consuma.

Parmênides nos relata acerca de uma deusa. O aparecer de um “ente divino” no pensamento de um pensador nos é estranho. Primeiro, simplesmente, porque um pensador não tem a anunciar a mensagem de uma revelação divina, mas traz à fala, em si mesmo, o próprio interrogado. Também, mesmo quando os pensadores pensam sobre “o divino”, como acontece em toda “metafísica”, este pensar é t ò Betou (o divino), como Aristóteles diz, um pensar a partir da “razão” e não uma reprodução de sentenças de uma “fé” cúltica e eclesiástica. Em particular, porém, causa estranheza o aparecimento “da deusa” no poema doutrinário de Parmênides pelo motivo de que ela é a deusa “Verdade”. Pois “a verdade”, como “a beleza”, “a liberdade”, “a justiça”, tem valência para nós como algo “universal”. Este universal é extraído do particular e atual, do que é cada vez verdadeiro, justo e belo, e é, então, representado de modo “abstrato”, num mero conceito. Fazer “da verdade” uma “deusa”, isto significa certamente fazer de uma mera noção de algo, ou seja, do conceito da essência da verdade, uma “personalidade”.

b) Duas indicações da tradução da palavra áXf)9eLa. O caráter conflitante do desencobrimento. Clarificação provisória da

essência da áXrj0eLa e do retraimento. Transposição e tradução

Quando escutamos imediatamente e, de modo indeterminado, sobre a deusa “Verdade” no “poema doutrinário” e quando concluímos que aqui o “conceito abstrato” “verdade” foi “personificado” numa figura divina, então nos colocamos neste pensar como aqueles que crêem saber tanto o que seria “a verdade”, como também que essência pertence, de modo peculiar, à divindade dos deuses gregos.

Mas de ambos não sabemos nada. Mesmo, então, se pudéssemos supor estar informados sobre a essência da verdade,

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como os gregos a pensavam, e se tomássemos as doutrinas de Platão e Aristóteles sobre a verdade como medida, estaríamos num falso caminho, o qual, de si, jamais conduz para o que os antigos pensadores experimentaram, quando eles deram um nome para o que caracterizamos como “verdade”. Se nós mesmos formos perguntados, subitamente, sobre o que precisamente pensamos quando usamos a palavra “verdade”, então se manifesta logo uma confusa multiplicidade de “opiniões” ou uma perplexidade geral. O que permanece, naturalmente, ainda mais importante do que o número de interpretações divergentes da verdade e de sua essência, é a evidência, que costuma despontar em tais ocasiões, de que nós, até agora, simplesmente nunca pensamos séria e cuidadosamente sobre o que é que chamamos de “verdade”. Ao mesmo tempo, no entanto, desejamos constantemente “a verdade”. Cada época da história busca “o verdadeiro”.

E de admirar-se, porém, como raramente, e de modo superficial, o homem compreende a essência do verdadeiro, isto é, a verdade. Mesmo se estivéssemos, atualmente, numa feliz situação de conhecer a essência da verdade, isso ainda não seria garantia de que seríamos capazes de pensar o que, no pensamento primordial dos gregos, era experimentado como a essência da verdade. Pois não somente a essência da verdade, mas a de cada coisa essencial tem, cada vez, sua própria riqueza, a partir da qual uma época histórica pode colher somente uma pequena parte de sua porção de cada vez.

Se dizemos, antecipadamente e sem prova, que a deusa AXf|0eia no “poema doutrinário” de Parmênides não aparece com a finalidade de um enfeite “poético”, mas, antes, que “a essência” “verdade” permanece na sua vigência em toda parte, por meio da palavra do pensador, então se faz previamente necessário clarear a essência da dXf|9eia.

A tentativa de alcançar a proximidade da essência da dXf|0eia pelo pensamento, com a disposição de ser tocado por ela, exige de nós, que estamos mais distantes dessa essência do que os gregos, eles próprios, já estavam, seguir amplos desvios e remotas perspectivas. Isso é necessário, caso queiramos nos habilitar a pensar somente um pouco da palavra de Anaximandro, Heráclito ou Parmênides, a partir

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da dimensão na qual se mostra o digno de ser pensado para aqueles pensadores e que, mesmo se velado, permanece, para o futuro, o digno de ser pensado. Todo o empenho de pensar a órXriGeia de modo adequado, mesmo a distância, decai para a futilidade, quando não ousamos tentar pensar a Xf|9r|, para a qual a áXf|0eia provavelmente remete.

O que os gregos nomeiam com a palavra áXf|9eia “traduzimos” usualmente com a palavra “verdade”. Se, no entanto, traduzirmos a palavra grega “literalmente”, então ela diz, propriamente, “desencobrimento”. É como se a “tradução literal” consistisse simplesmente em conformar nossa palavra numa correspondência com a palavra grega. Na medida em que a correspondência é o início da tradução literal, na verdade também já é o seu fim. Mas a tradução de áXf|9eui não se esgota em tais imitações de “palavras”, que, então, muitas vezes soam artificiais e de mau gosto. Se, simplesmente, substituirmos a palavra grega áXr|9eLa pela nossa palavra “desencobrimento”, ainda não a traduzimos. Isso só acontece, quando a palavra “desencobrimento”, a ser /ranspostajios (} coloca no âmbito e no modo da experiência a partir da qual a cultura > . grega e, no caso atual, o pensador originário Parmênides, fala a palavra áXf[0eLa. Assim, permanece um jogo fútil de “palavras” quando, a exemplo da palavra áXf|9eia, se torna moda reproduzir àXf|0eLa como “desencobrimento”. No entanto, esta última, que deve agora substituir a palavra “verdade”, refere-se à essência da dXr|0eia. Deve ficar registrado que o significado da palavra “verdade” surge casualmente do uso óbvio e posterior da palavra ou de uma informação de um pensar posterior.

O que é nomeado com a palavra “desencobrimento” [Unver- borgenheit\, o que nós temos a pensar com o nome AXr|9eLa, de modo adequado ao pensar, isso não foi até agora experimentado, muito menos acolhido num pensar rigoroso. Poderia ser que a palavra “descobrimento” [Entbergung], formada de um modo próprio, fosse mais próxima à essência da àXf|Geia grega do que a expressão “desencobrimento”. No entanto, esta última é, ao mesmo tempo e por razões diversas, inicialmente, mais adequada para servir de palavra- chave para a meditação acerca da essência de áXf|0eia. Devemos ter

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em mente que a seguir falaremos de “desencobrimento e encobrimento” [Unverborgenheit e Verbergung], mas que a expressão mais óbvia, “descobrimento” [Unverbergung], será evitada, embora ela dê a tradução “mais literal”1.

Cada tentativa de tradução “literal” de tais palavras fundamentais como “verdade”, “ser”, “aparência” etc. logo alcança o âmbito de uma intenção que, essencialmente, ultrapassa a formação de palavras e o uso literal de tais palavras. Podemos avaliá-lo mais cedo e de modo mais sério se refletirmos sobre o que seja “traduzir”. Inicialmente, apreendemos este processo como algo externo, técnico- filológico. Dizemos, então, ser o “traduzir” a transposição de uma língua para outra, da língua estrangeira para a língua materna ou também o contrário. Entretanto, temos dificuldade de entender que, constantemente, já estamos traduzindo nossa própria língua, a língua materna, para sua palavra própria, genuína. Falar e dizer é, em si, um traduzir, cuja essência não pode de forma alguma consistir em duas situações, onde as palavras que transpõem e as palavras transpostas pertençam a linguagens diversas. Em cada diálogo e em cada solilóquio vige um traduzir originário. Nesse caso, não pensamos apenas no processo, no qual substituímos uma maneira de falar por uma outra da mesma linguagem, e nos servimos da “paráfrase”. A mudança na escolha de palavras já é a conseqüência de uma transposição, para nós, numa outra verdade e clareza, ou também, numa interrogação [.Fragwürdigkeit]. Este transpor pode se realizar sem que a expressão lingüística se altere. A poesia de um poeta e o tratado de um pensador estão em sua palavra própria, singular, única. Eles nos obrigam a perceber essa palavra, sempre de novo, como se a

[y ouvíssemos pela primeira vez. A assim chamada tradução e paráfrase são subseqüentes e seguem tão-somente a transposição de todo o nosso ser para dentro do âmbito de uma verdade transformada. Somente se já nos deixamos apropriar por esta transposição, nos encontramos no cuidado pela palavra. Só com base na atenção, assim fundada diante da linguagem, podemos assumir a tarefa, em geral mais fácil e mais limitada, de traduzir a palavra estrangeira para nossa própria linguagem.

1. Cf. abaixo, p. 191s.

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Mas a tarefa mais difícil é sempre a tradução da própria linguagem para sua palavra mais própria. Assim, por exemplo, a tradução da palavra de um pensador alemão para a linguagem alemã é, por isso, especialmente difícil. Reina, aqui, o tenaz prejuízo de que nós, por falarmos alemão, compreendemos imediatamente a palavra alemã, pois ela pertence, acima de tudo, à nossa própria linguagem, enquanto, pelo contrário, para traduzir uma palavra grega necessitamos, em primeiro lugar, aprender essa língua estrangeira. Não podemos discutir, aqui, de um modo aprofundado, em que extensão e por qual razão todo o diálogo e toda a fala é sempre uma tradução originária no interior da própria linguagem, precisamente, o que significa “traduzir”. No curso de nossa preleção introdutória sobre a àXf|0€ia haverá, talvez, oportunidade de experimentar por vezes algo disso.

Para que possamos estar numa posição de nos transpormos para dentro do âmbito da palavra grega àXf|0eia e, assim, dizer essa palavra no rigor do pensar, necessitamos despertar e seguir a indicação que a palavra “desencobrimento” [Unverborgenheit], inicialmente escolhida para a tradução, nos dá. A indicação mostra a direção da transposição. Ela conduz para quatro momentos, se nos delimitarmos a seus traços principais.

Por um lado, a palavra “des-encobrimento” nos dirige para algo como “encobrimento”. O que, antes de tudo, é encoberto com respeito ao “desencobrimento”, quem encobre, como o encobrimento acontece, quando, onde e para quem é encobrimento, tudo isso permanece indeterminado. Não somente agora, nem somente para nós, que estamos tentando refletir acerca da áXrjBeia sob a indicação de sua tradução como “desencobrimento”, mas, também, precisamente entre os gregos, o que é indicado acerca do encobrimento permanece indeterminado e até inquestionado. Os gregos experimentam o desencobrimento de modo peculiar e o nomeiam somente na palavra. No entanto, a indicação na direção do encobrimento e do encobrir nos dá agora um âmbito de experiência mais claro. De algum modo, conhecemos algo como encobrir e encobrimento. Nós o conhecemos como ocultamento, velamento, como sobreposição, mas, também, nas formas da conservação, proteção, retraimento, confiança e entrega.

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Conhecemos o encobrimento nas múltiplas formas de fechamento e entravamento. Com base nessas formas de encobrimento e latência [Verborgenheit e Verbergung), o “desencobrimento” recebe traços mais nítidos. Quando abandonamos toda a presunção, o âmbito do “escondido-descoberto” nos é até imediatamente mais familiar e acessível do que o que os títulos, em geral familiares, como ventas e “verdade”, dizem. Rigorosamente falando, esta palavra “verdade” não nos dá algo a pensar e, menos ainda, a representar de modo “intuitivo”. Necessitamos, imediatamente, pedir a ajuda de uma “definição” da verdade, emprestada de algum lugar, para dar uma significação à palavra. É necessária uma especial consideração para nos introduzir no âmbito do significado da palavra “verdade”. Ao contrário, “descobrimento” é diferente no seu apelo imediato, mesmo se aqui também, inicialmente, sentimos incerteza em relação ao que é propriamente pensado.

Por outro lado, a palavra “desencobrimento” indica algo que pertence ao que os gregos experimentam como a essência da verdade, como uma suspensão e cancelamento do encobrimento. O prefixo “des-” corresponde ao d- grego, que é chamado gramaticalmente de “a privativo”. Que espécie de privatio, isto é, de privação e subtração está em jogo mediante uma formação privativa de palavras, isso só poderá ser delimitado cada vez em relação ao que está exposto à privação e limitação. “Des-encobrimento” pode significar que o encobrimento é removido, cancelado, superado ou banido, no que remover, cancelar, superar e banir, essencialmente, se diferenciam. “Des-encobrimento” pode também significar que encobrimento, simplesmente, não é admissível, que este, embora sendo possível e constantemente uma ameaça, não existe e pode não surgir. Da multiplicidade dos significados do prefixo “des” é fácil ver que já nesta perspectiva o des-encobrimento é difícil de ser determinado. Entretanto, justamente aqui aparece um traço fundamental da essência do des-encobrimento, o qual devemos, especialmente, manter à vista para experimentar a essência primordial grega da “verdade”. Esta oposição reside no próprio des-encobrimento. Na essência da verdade como do des-encobrimento vige uma espécie de luta com o encobrimento e com o retraimento.

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Recapitulação

2) A questão do nome da deusa e como traduzi-lo. A essência da verdade como oposta ao encobrimento nas suas duas primeiras

indicações. Des-encobrimento e cfes-encobrimento

A primeira passagem, que estamos explicitando, pertence ao fragmento I e começa no verso 22: kcú |ie 9eà TTpó4>pu)u úireòé^aTO, ... “E a deusa me acolheu com simpatia...”

A deusa que aqui aparece é a deusa AXr)0€La. Usualmente traduzimos: a deusa “Verdade”. A deusa saúda o pensador quando este chega em sua casa e lhe revela, também, o que ele deve experimentar no futuro. É o que será o digno de ser pensado para este pensador e que permanece, continuadamente, o digno de ser primordialmente pensado na história da verdade. Disso reconhecemos, facilmente, embora apenas em traços grosseiros, que a essência desta deusa “Verdade” decide tudo acerca do pensador e do digno de ser pensado. Por isso, antes da clarificação formal dos fragmentos e versos individuais, devemos tentar iluminar a essência da “verdade”. Nesta intenção perguntamos: O que significa o nome da deusa, isto é, o que significa a palavra grega áXf|9eia, que nós traduzimos por “verdade”? “Ocupamo”-nos aqui, aparentemente, com uma palavra. Dado que a palavra e a linguagem se tornaram para nós um meio de troca e um instrumento de comunicação ao lado de outros, a “ocupação” com “palavras” produz imediatamente uma impressão fatal. É como se, em vez de montarmos numa motocicleta, permanecéssemos parados diante dela e fizéssemos discursos sobre ela, com a intenção de aprender deste modo a guiá-la. Mas a palavra não é ferramenta, mesmo para alguém que sustenta ser a linguagem somente um meio de troca ou de comunicação, de tal modo que seria indiferente se disséssemos “universidade” [Universitãt] e pensássemos ainda em algo ou se somente falássemos de passagem sobre a “Uni” [Uni]. Talvez se “estude”, hoje, somente na “Uni”. Na realidade, aqui não “ocupamo”-nos somente com meras “palavras” [Wõrtern], Na ciência, de fato, os homens podem “ocupar-se” com palavras como,

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por exemplo, se alguém tratasse a história da evolução dos insetos da terra. á-Xrj9eia, numa tradução “literal”, significa “des-encobrimento”. Na atenção com o “literal” parece que tomamos a palavra a sério. No entanto, desrespeitamos as palavras, na medida em que somente temos interesse pelas “palavras”. A tradução “literal” não deve simplesmente copiar a forma e com isso “enriquecer” a linguagem da tradução com alocuções “novas”, incomuns e muitas vezes artificiais, mas necessita ir além das palavras a “serem traduzidas”, e alcançar as palavras nelas mesmas. Erudição sobre a forma ainda não garante um conhecimento das palavras. Estas últimas dizem propriamente o que é digno de ser dito: a palavra [Wort], o dito [Spruch], Naturalmente, se auscultarmos o literal de tal modo que, antes de tudo, e portanto constantemente, estamos atentos à palavra e a sopesamos bem, então a alta consideração com o “literal” está justificada, mas, também, somente assim.

Devemos escutar a palavra tomada literalmente, de tal modo I que auscultamos as indicações que apontam para a palavra. Numa tal

ausculta, a nossa percepção obedece, então, ao que a palavra diz. Exercitamos, assim, plena atenção. Começamos a pensar.

Tentamos agora seguir as indicações colocadas à disposição pela palavra traduzida literalmente como “desencobrimento” para que possamos, dessa forma, escutar a palavra grega áXr|9eia mais nitidamente e, então, intuir algo da essência da “verdade” como experimentada pelos gregos. A palavra “desencobrimento” dá um conjunto de quatro indicações.

As primeiras duas indicações podem ser apontadas e fixadas pela diferente ênfase na palavra “desencobrimento”: des-encobrimento e cfes-encobrimento. Des-encobrimento aponta imediatamente para “encobrimento”. Onde há encobrimento [Verborgenheit], necessita dar-se ou ter-se dado ocultamento, retraimento, latência [Verbergung]. Encobrimento pode dar-se de diversos modos: como ocultamento e dissimulação, como conservação e recusa, como fechamento e preservação originária; semelhantemente

-£ a uma fonte, que só jorra enquanto se preserva a si mesma. Porém, o que os gregos experimentam e pensam, quando eles acenam cada vez para o encobrimento no “desencobrimento”, isso não é imediatamente

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evidente. Pode ser captado somente através de uma consideração especial. E isso exige, no entanto, um conhecimento dos modos de encobrimento como tal. Somente assim, pode “encobrimento”, tal como os gregos o pensaram, e seu âmbito essencialmente circunscrito, ser distinguido adequadamente. No entanto, antes de o conseguirmos, a palavra grega àXf|0eia já tem conseguido uma certa proximidade pela tradução por “desencobrimento”; pois o âmbito da experiência de “encobrir” e “des-cobrir”, “descoberto” e “encoberto” é imediatamente mais claro e familiar do que toda a significação que possamos atribuir à nossa palavra usual “verdade” por uma reflexão ulterior. Deveremos, então, cada vez de modo próprio, perceber o “significado”- e a “definição” de “verdade” conseguidos desse modo. Aqui ainda corremos o perigo de tomar apressadamente tão-somente uma das definições que são possíveis com base nos diversos pontos de partida filosóficos. Encobrimento, ao contrário, nós conhecemos, seja porque as próprias coisas e seus contextos se ocultam a nós e para nós, seja porque nós mesmos antecipamos, realizamos e admitimos um encobrimento, seja porque ambos, um encobrir-se das “coisas” e um encobrir-se deste encobrimento ocorrem num jogo mútuo por nosso intermédio.

A segunda palavra, traduzida como útes-encobrimento, nos remete para um outro momento. É um fato marcante que os gregos pensem na essência da verdade como supressão, superação e aniquilação do encobrimento. Em correspondência a este encobrimento, a verdade é, para os gregos, algo como que “negativo”. Com isso vem à luz um fato estranho, para o qual a palavra “verdade”, no seu significado usual e desprovido de negação (como também ventas e verité) bloqueia o caminho. O que o prefixo “à-” e “des-”, nas palavras õrXf|6eia e des-encobrimento, propriamente significa é, num primeiro momento, pouco decidido e fundado, o que também acontece com o significado do encobrimento entendido como remoção e “negação”. No início só vemos claramente que a essência da verdade como descobrimento é contraposta de algum modo ao encobrimento. O desencobrimento está, assim parece, numa “luta” com o encobrimento, e a essência dessa luta permanece em disputa.

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PARTE I

A terceira indicação de uma tradução para a palavra áXpGeia: o âmbito de oposição entre áXr)9eia e Xf|0r| na história do ser

§ 2. Primeira meditação sobre a transformação da essência da verdade e de sua essência contrária

a) O caráter conflitante do des-encobrimento. A terceira indicação: a relação de contraposição à verdade. A ressonância da áXf|9eia na subjetividade.

Referência a Hegel e Schelling. Indicação de contraposições entre encobrimento e desencobrimento, falsidade e verdade

“Verdade” não é jamais, “em si”, apreensível por si, mas necessita^ ser ganha na luta. O desencobrimento é conseguido do encobrimento, em luta com ele. O desencobrimento não é conseguido, somente, por meio de uma luta, no sentido geral de que entre os homens se busca a verdade e se luta por ela. Antes, o que é buscado e o próprio objeto da luta são, em si, na sua essência, uma luta, independentemente da luta do homem por ela: “desencobrimento”. Não é claro quem está lutando e como estes participantes da luta estão lutando. E importante, no entanto, pensar uma vez esta essência conflitante da verdade, uma essência que brilha há 2.500 anos na mais tênue de todas as luzes. Faz-se necessário experimentar, propriamente, a luta que acontece na essência da verdade.

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Naturalmente também a essência da luta permanece, inicialmente, controversa. Presumivelmente, “luta” significa outra coisa do que simples rixa e briga, discórdia cega, “guerra” ou “competição”. Talvez tudo isso sejam apenas variações e apelações iniciais da luta, em cuja essência primordial podemos suspeitar residir a essência da verdade no sentido da áXrj0eia, a qual um dia haveremos de reconhecer. Talvez a palavra tão mal usada e truncada de Heráclito, TTóXep.os' ttcívtgjv ... TTcmp écm como dizendo: “A guerra é o pai de todas as coisas...”, tenha em comum com o pensar grego somente um eco verbal vazio.

Mas como podemos conhecer algo preciso da essência de TróXepos' (palavra esta que, segundo o dicionário, significa também “guerra”), como podemos ainda somente intuir a essência, aqui nomeada, do “polêmico”, quando não sabemos nada de uma luta que é familiar à essência da verdade? Como devemos conhecer o originariamente conflitante da luta na essência da verdade, quando não experimentamos sua essência como descobrimento e conhecemos a àXf|0eia no máximo, ainda, segundo um som de palavra que produz apenas rumor em toda parte? A essência conflitante da verdade para nós, e para o pensar ocidental, já é há longo tempo estranha. _“A verdade” vale, ao contrário, como o que está para além de toda a luta_ e por isso deve permanecer o não-conflitante.

Por essa razão, não compreendemos em que extensão a essência da verdade, ela mesma, é, em si, uma luta. Se, no entanto, a essência conflitante da verdade foi experimentada no pensar primordial dos gregos, então não precisamos nos deixar surpreender se encontramos nos ditos do pensar originário propriamente a palavra “luta”. Desde a interpretação do mundo grego realizada_por Jacob Burckhardt e Nietzsche temos aprendido a reconhecer o “princípio agônico” e um “impulso” essencial na “vida” desse povo mediante a “luta competitiva”. Mas faz-se necessário ir adiante para interrogar onde está fundado o princípio do “agon” e de onde a essência da “vida” e do homem recebe sua determinação de tal modo a ser “agônica”. A “competitividade” [Weltkãmpferische] só pode surgir onde o caráter conflitante é experimentado, antes de tudo e simplesmente, como o que é essencial. Mas sustentar que a essência

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agônica do mundo grego se deve a uma correspondente predisposição do povo seria uma “explanação” não menos sem evidência do que dizer que a essência do pensar está fundada na capacidade de pensar.

Por um lado, notamos, até agora, que desencobrimento pertence a um âmbito onde se dá encobrimento e latência. Por outro lado, cfes-encobrimento testemunha uma essência conflitante, ou seja, ela é desencobrimento, se nela se dá o que se embate com o encobrimento.

O “desencobrimento” nos dá uma terceira indicação, segundo a qual a verdade está, por causa de sua essência conflitante, em relações “opostas”2. A doutrina usual da verdade [Wahrheit] só conhece como sua oposição a “não-verdade” [Unwahrheit]. Algo é ou verdadeiro ou falso. E um fato notório que o pensamento, na época da primeira consumação da metafísica ocidental, na filosofia de Schelling e_ Hegel,.. alcança, o conhecimento de que algo pode ser, ao mesmo tempo, tanto j^rdadeiro como falso, embora sob perspectiva diversa. Aqui aparece algo que, discordando, pertence também à essência da verdade, sob a configuração de “negatividade”. Mas a suposição de que o que se falou sobre a essência conflitante da verdade coincidiría com as doutrinas de Schelling e Hegel ou deixar- se-ia compreender com a ajuda dessa metafísica seria uma suposição ainda mais desastrosa do que o simples desconhecimento de todos estes relacionamentos. Pois o traço fundamental da essência da verdade, para a metafísica moderna de Schelling e Hegel não é jamais a «Xqfkia como descobrimento, e sim, a certeza no sentido da certitudoL que cunha a essência da veritas desde Descartes. Assim, algo como a autocerteza do sujeito consciente, de si mesmo é algo estranho ao mundo grego. Mas, ao contrário, ressoa ainda um eco da essência grega, transformada, da áXrj@eLa, na essência da “subjetividade do espírito”, o qual, bem compreendido, nada tem a ver com “subjetivismo”. Mas o originário apela somente para o que é do originário, e nenhum eco alcança o toque originário. Os dois não coincidem. No entanto, ambos são o mesmo, mesmo quando eles aparentam se distanciar um do outro rumo ao irreconciliável. Isso

2. Cf. abaixo, p. 169-175.

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vale no que segue acerca da quarta indicação, a qual poderá ser capaz de fazer acessível a compreensão grega da áXr|8eia a um pensar de plena atenção.

Com a lembrança aqui necessária, mas naturalmente também muito resumida, da história essencial da verdade no pensamento ocidental, acenou-se, ao mesmo tempo, para as falsificações grosseiras. Nelas sucumbimos, se interpretarmos o pensar de Parmênides e Heráclito com a ajuda da moderna “dialética”, e isso sob o pretexto de que, no pensamento primordial dos gregos, a “oposição” e, especialmente a oposição fundamental entre ser e nada, “tem uma certa importância”. Em vez do procedimento fácil, aparentemente filosófico, de emprestar algo de Schelling e Hegel e, com sua ajuda, interpretar a filosofia grega, devemos exercitar a atenção plena e seguir os acenos que a verdade, na configuração essencial do desencobrimento, pode nos dar. Em reação imediata a isso, certamente poder-se-ia, ao mesmo tempo, caracterizar que atualmente só conseguimos aprender o pensamento primordial dos gregos de tal maneira que o interpretamos segundo nossas representações. Deveriamos ainda perguntar se o pensamento de Schelling e de Hegel, se toda a sua obra não possui uma . grandeza incomparavelmente maior do que o pensamento atual. Com que evidência poderia alguém querer negá-lo? Necessitamos admitir também o seguinte: o princípio haverá de mostrar-se a si mesmo, se ele se mostra simplesmente por si mesmo, certamente com nossa contribuição. Permanece, porém, a pergunta sobre que espécie de contribuição é esta; a partir de onde e como ela é e será determinada. Similarmente, pode bem parecer que o atual empreendimento, de pensar o princípio, seria também somente uma tentativa de arquitetar, pela historiografia, o passado a partir de nosso presente e para este presente. Seria igualmente inútil e antes de tudo uma aberração se tentássemos fazer as contas sobre algo que requer um esforço mais essencial e uma preparação, ou seja, a fundação e o desenvolvimento da tese metafísica de base na seqüência da tradição do pensamento ocidental, ou simplesmente prestar atenção ao princípio, à origem. Quem haveria de negar que, nessa tentativa, estaríamos sempre correndo o risco de nos projetarmos com as nossas atualidades de um modo indevido? Ao mesmo tempo tentaremos permanecer atentos aos

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acenos que a essência do descobrimento nos dá, uma essência pouco pensada e, por toda a parte, pensada com dificuldade.

Desencobrimento sugere “oposição” ao encobrimento. A oposição usual para verdade é a não-verdade, no sentido de falsidade. Encontramos esta oposição muito cedo no pensamento e na fala ocidental, como também na sua poesia. Segundo o que anotamos até agora sobre a verdade como desencobrimento, devemos obviamente estar atentos para não projetar conceitos posteriores de falso e de falsidade dentro de antigas “representações”. De outro lado, só poderemos pensar adequadamente as antigas significações “de falso” como oposto a verdadeiro, se refletirmos, previamente, sobre o verdadeiro na sua verdade, isto é, no desencobrimento. Mas, também, o desencobrimento (àXf|0eLa), ele mesmo, só pode ser apreendido adequadamente a partir de sua essência contrária [Gegenwesen], a não-verdade, aqui no sentido de falsidade, ou seja, no interior de uma experiência essencial, experiência esta que se abre com a dXf|0ei.a. Daí, torna-se claro que jamais poderemos pensar “verdadeiro” e “falso”, “verdade” e “falsidade”, em sua essência, de modo separado e, ainda menos, tendo a verdade como “desencobrimento”, pois, aqui, a relação de oposição para o encobrimento é manifesta imediatamente no nome. Assim, se falsidade, no modo antigo de pensar, já aparece como um dos opostos à verdade, isto é, ao desencobrimento, então esta essência de falsidade, como oposta ao desencobrimento, necessita ser um tipo de encobrimento. Se desencobrimento dá à essência da verdade o seu caráter, então necessitamos tentar compreender a falsidade como um encobrimento.

b) A pergunta pela essência contrária de àXr)0éç. A ausência de Xr|0éç e o ijjeuôog. O encobrimento de significações fundamentais. A palavra contrária XaGóv e o Xau0áuo|ia.L pensado de modo grego. O esquecimento experimentado a partir do encobrimento. Homero,

Ilíada XVIII, 46; X, 22; Odisséia VIII, 93

Seguindo esta direção, iniciamos perguntando-nos como soa a palavra usada para dizer a essência contrária da áXf|0eia.

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Tò àXriBés costuma ser traduzido por “o verdadeiro”, o que significa “o desencoberto”, segundo a interpretação de àXfjBeux como desencobrimento. Entretanto, enquanto permanece obscuro em que sentido “desencobrimento” pode ser pensado, também a tradução de àXr|9éç como “desencoberto” permanece sob reservas essenciais. O oposto de “desencoberto”, o encoberto, pode ser facilmente encontrado, ao menos no nome, se tirarmos somente o à- privativo, se anularmos a negação do encoberto e o deixarmos permanecer, apenas, “o encoberto”. Terminologicamente, o corte do à conduz para Xr|9és\ Mas não encontramos esta palavra, em nenhuma parte, como o nome para indicar o falso. Este significa, antes, para os gregos t ò

i[seü8os\ Essa palavra tem, inteiramente, uma outra origem e outra raiz, e com isso uma outra significação fundamental, que não se deixa constatar diretamente. Na raiz “Xa9” está presente “encobrir”. Isso não é o que ^eüSoç significa, ao menos não imediatamente. Somos tentados a apontar que, também, na nossa linguagem a palavra contrária para “verdade”, isto é, “falsidade”, é uma palavra de um outro caráter. Entretanto, talvez palavras gregas com sentidos contrários, como àXijOeia - ijseüSoç, sejam mais próximas uma da outra do que nossas palavras correspondentes “verdade” e “falsidade”. Pode ser que se deixe pensar, apropriadamente,apenas com referência à áXf|9eia. No entanto, por ser apalavra usualmente contrária à áXf|0eLa, disso resultam direções de como a própria dXf|9eia pode ser experimentada.

Na tentativa de sondar as significações fundamentais das palavras e das palavras fundamentais, freqüentemente nos deixamos orientar por representações inadequadas acerca da linguagem em geral, o que contribui para os juízos correntes e equivocados sobre a pesquisa em relação aos significados fundamentais. Não devemos pensar que as palavras fundamentais de uma linguagem possuiríam, originariamente, um significado fundamental puro e este viria a se perder e desfigurar com o passar do tempo. O significado fundamental e proveniente da raiz permanece, nesta perspectiva, oculto, e aparece somente nas assim chamadas “derivações”. Mas esta teoria já nos conduz a uma errância, pois pressupõe, justamente, que existiría em si o “puro significado fundamental”, do qual, então, outros significados seriam “derivados”. Essas representações errôneas, que

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dominam ainda hoje nas ciências da linguagem, têm sua origem no fato de que a primeira reflexão sobre a linguagem, sobre a gramática grega, tenha se desenvolvido sob a guia da “lógica”, isto é, da teoria das sentenças declarativas, como teoria de proposições. De acordo com essa teoria, proposições são formadas de palavras, e as palavras designam “conceitos”. Estes últimos indicam o que é representado “em geral” na palavra. Este “geral” do conceito é, portanto, considerado como “o significado fundamental”. As “derivações” são particularizações do geral.

Quando, porém, em nossa investigação buscamos pensar o significado fundamental, somos guiados por uma compreensão completamente diversa da palavra e da linguagem. Entender que operamos uma, assim chamada, “filosofia de palavras”, a qual elabora cada coisa a partir do mero significado verbal, é, certamente, não apenas uma opinião muito cômoda, mas, também, uma visão muito superficial, de tal modo que não pode ser caracterizada senão como opinião falsa. O que chamamos de significado fundamental das palavras é o seu originário, que não aparece primeiro, mas por último, e que, também, nunca se mostra como uma formação separada, um exemplar que poderiamos representar como algo em si mesmo. O assim chamado significado fundamental vige escondido em todos os modos de dizer da respectiva palavra fundamental.

A palavra contrária [Gegenwort] para “desencoberto” (verdadeiro), àA.r|0éç, soa de modo completamente diverso: ijseuôoç. Traduzimos t ò ijieüôos- por “o falso”, sem saber exatamente o que significa “falso” aqui, e como terá que ser pensado - antes de tudo no sentido grego. Em todo o caso parece que podemos, finalmente, considerar que a palavra contrária à àXqGéç não é o que parecería ser, o mais próximo, Xr|0éç ou XaGéç, ou alguma outra palavra de sentido similar, mas sim i|ie08oç. Mas com essa indicação ainda não mostramos, completamente, o caráter enigmático dessa oposição em questão. A palavra ijíeuSos-, enquanto palavra correspondente para o “falso”, está, de fato, conectada com um sentido que não se relaciona à palavra àXr|0éç, ou seja, ao significado privativo formado da mesma raiz: t ò àijjeuSéç - o não-falso. Mas isso é exatamente o “sem- falsidade” e, portanto, o verdadeiro. No início do livro 2 (18) da

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Ilíada, Homero nos relata sobre o lamento de Aquiles e de sua mãe Tétis com respeito ao seu amigo morto Pátroclo. Com Tétis lamentam também as Nereidas, as deusas do fluxo marítimo; entre elas é mencionada, no 2 46, f] A^eubiís - a deusa “sem-falsidade”. Basta, agora, somente escrever este nome f| Ai)jeu8f|s debaixo do nome f] AXf]0€La para recebermos um importante aceno. Se, para os gregos, a essência contrária de desencobrimento é falsidade e, de acordo com isso, a verdade é não-falsidade, então, o encobrimento necessita ser determinado a partir da falsidade. Se, além disso, o encobrimento permeia a essência do desencobrimento, então surge o enigma que, no sentido grego, a essência da verdade recebe seu caráter a partir da essência da falsidade. Isso, entretanto, pode muito bem aparecer como um só equívoco, se considerarmos que o “positivo” jamais pode surgir do negativo, mas, sim o contrário, este último pode brotar do primeiro. Entretanto, sabemos, neste meio tempo, que o nome grego para a essência da verdade expressa precisamente este enigma, segundo o qual o encobrimento, e a luta com este, permanece decisivo para esta essência. E é justamente por isso que certamente esperaríamos que, na palavra contrária a desencobrimento, encobrimento seria nomeado com uma clareza apropriada. Mas, em vez disso, encontramos ^eu8os. As palavras contrárias a àXf|9ei.a provenientes da raiz Xa9 parecem ter desaparecido.

Mas isso parece somente assim, antes de tudo, porque traduzimos uma conhecida palavra grega da raiz Xa0, à qual pertence àXf|0eLa, de modo que ao traduzir Xav9ávo|j.ai o essencial se perde. Segundo o dicionário, XcmGávoi-iaL significa “esquecer”. Todo homem entende o que isso significa. Todos experimentam diariamente o “esquecer”. Entretanto, o que é isso? O que pensam realmente os gregos, quando expressam pela palavra XavGávecrGai o que chamamos de “esquecer”?

Inicialmente, faz-se necessária uma clarificação de XavGáveiv. AcnXMvu) significa “eu estou oculto”. O particípio aoristo deste verbo é Xa0còu, XaGóv. Aqui temos a palavra contrária procurada para àXqfléç. AaGóv é o ente que é oculto; Xá0pa significa “de modo oculto”, “secretamente”. AaGóv diz o que permanece oculto, o que se

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mantém escondido. Entretanto, XaGóv, o ente que é oculto, não é a palavra contrária para áXqGéç, o “desencoberto” - enquanto na palavra contrária para desencoberto se pensa no falso. Pois o oculto não é, imediatamente, o falso. Mas, presumivelmente, de outro lado, TÒ i|reü8oç, o falso, permanece na sua essência sempre uma espécie de oculto e de ocultamento. Talvez devamos de fato compreender t ò

4ieü8og a partir de ocultar e do ser oculto, especialmente quando as palavras da raiz “ocultar” e “oculto” têm no interior da fala e do pensamento gregos uma força semântica dominante. E, de fato, isso elas têm. Só que esta se perdeu completamente na linguagem latina e românica, como também em nosso modo germânico próprio de falar e pensar. Antes de explicitar a essência do 4!eí,8os' assim como é pensada pelos gregos, temos de tomar conhecimento do fato de que e em que medida o XavGáveLP, o ser oculto, é essencial em todo o aparecer do ente para o homem grego. AauGáuco significa: eu permaneço oculto. Homero faz (Odisséia 0 [8]) o cantor Demódoco, depois do banquete festivo no palácio do rei dos feácios, contar sobre a pesada sorte que recaiu sobre os gregos diante de Tróia. Por causa de sua tristeza com a lembrança desse tempo, Odisseu cobre sua cabeça com o seu casaco (0, 93):

êuG’ âXXouç pèu TrávTaç éXávGaue 8ái<pua Xeífkou, AXkíuooç Sé giv oloç éuec|>páüaT ’ f|8 ’ evoqueu rjpeuos- ã y x ’ corroí),

“Mas então ele (Odisseu) derramou lágrimas, sem que todos os outros o percebessem,Alcino unicamente observou atentamente a tristeza...”

A tradução alemã de Voss aparentemente chega mais perto da palavra grega porque, num certo modo, integra a palavra êXáuOaue presente no verso 93:

“A todos os demais hóspedes ele escondeu suas lágrimas borbulhantes.”

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Mas èXávQave não diz transitivamente “ele escondeu”; XavBávto não significa: eu escondo, e sim: eu estou oculto; éXávBave, dito de Odisseu, significa: ele (Odisseu) permaneceu oculto. “Literalmente”, e pensado de modo grego, Homero diz: “Mas, lá, em relação a todos os outros, ele permaneceu velado como quem derrama lágrimas”. De acordo com nosso modo de falar e pensar é, lingüisticamente, mais correto traduzir: “Odisseu, não percebido pelos outros, derramou lágrimas.” O pensar grego entende de modo oposto e numa tal extensão que “velar” no sentido de permanecer velado é precisamente a palavra normativa. Os gregos dizem: Odisseu permaneceu velado aos outros como alguém que derrama lágrimas.

Numa outra passagem da Ilíada X (22), verso 277, encontramos uma situação semelhante. Num duelo com Heitor, Aquiles não o acertou com seu primeiro golpe de lança, pois Heitor tinha se abaixado. A lança golpeou o chão:

àuò 8 ’ qpTTaae naXXàs A9f|iui, âi|j 8 ’ AxLXqi 8l8ou, XáGe 8 ’ Eicropa, TTOipeua Xacòv.

Voss traduz:

“a deusa agarrou-a (a lança) e imediatamente devolveu-a para o pelediano, não percebido pelo belicoso Heitor”.

Isso é “bem” pensado e falado na língua portuguesa: não percebido por Heitor, Atenas devolveu a Aquiles sua lança. Pensado, entretanto, no modo de ser grego, isso significa: Atenas manteve-se velada diante de Heitor ao devolver a lança. Vemos uma vez mais como “velado” perfaz o traço fundamental do comportamento da deusa; este traço fundamental é que dá à sua ação particular o caráter do seu “ser”. Talvez, a precisa e clara inversão de nosso modo de experimentar, pensar e dizer, em relação aos gregos, venha à luz no exemplo do bem conhecido provérbio epicurista: Xd9e (hojcraç. Traduzimos em “português correto”: “Viva veladamente”. O grego diz: “Permaneça velado no modo como conduzes tua vida”. Aqui o velar-se determina o caráter da presença do homem entre homens. O “velado”

e o “desvelado” é um caráter do próprio ente, e não caráter de nosso noticiar e apreender. No entanto, a percepção e a fala têm também, para os gregos, o traço fundamental da “verdade” ou da “não- verdade”.

Dessas poucas indicações pode ficar bem claro como, decididamente, o âmbito e a ocorrência do retraimento e do ocultamento vigem para os gregos sobre o ente e sobre o comportamento humano com os entes. Se agora, depois desse comentário e de sua luz, considerarmos mais uma vez a palavra grega comum proveniente da raiz Xa9, isto é, XauGávop.ai, então fica claro que a tradução usual e de fato “correta” de nossa palavra portuguesa “esquecer” simplesmente nada reproduz do modo grego de pensar.

Pensada com base no modo grego de ser, Xav9ávop.aL diz: Eu permaneço encoberto em relação a mim com respeito a algo que de outro modo seria desencoberto para mim. Assim, isso é, então, encoberto, na medida em que eu sou na minha relação para isso. O ente está submerso no velamento de tal modo que neste velamento do ente permaneço velado de mim mesmo. Dito de modo unitário, esse retraimento é, ele próprio, oculto. Algo semelhante de fato acontece, quando dizemos ter esquecido isto ou aquilo. No esquecer não somente algo escapa de nós, mas o esquecer decai para um ocultamento, de tal modo que nós mesmos caímos no ocultamento precisamente em relação ao esquecido. Assim, os gregos dizem mais precisamente èTTiXav9ávop.aL para captar o ocultamento no qual o homem acaba caindo, ao mesmo tempo que, no ocultamento, capta o que se retrai ao homem. Dificilmente se pode pensar numa possibilidade mais ampla de imaginar a essência do esquecer em uma única palavra.

Tanto o modo como a língua grega usa simplesmente o XavGáveiv (ser e estar oculto) como verbo “regente”, como também na interpretação da essência do esquecimento, mediante justamente esta ocorrência do velamento, mostra-se de modo suficientemente claro que na “existência” [Dasein] dos gregos, isto é, no seu habitar no interior dos entes como tais, vige a essência do velamento de modo essencial. Daí já intuirmos, então, por que a verdade é experimentada e pensada no sentido do “desencobrimento”. Mas, tendo em vista esse

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evento dominante do velamento, não deveria a essência da oposição mais comum à verdade, isto é, a essência da falsidade, ou seja, t ò

ijieüSos, também ser determinada a partir do velamento, mesmo se no som da palavra 4>euSoç a raiz Xa9- não pode ser escutada?

Nessa suposição somos confirmados, se considerarmos que o falso e o não-verdadeiro, por exemplo, um juízo incorreto, é uma espécie de não-saber, no qual o “verdadeiro” estado de coisas se retrai de nós, e isso não exatamente do mesmo modo como “esquecer”, mas certamente de um modo correspondente, que os gregos experimentavam a partir do velamento, do retraimento, da latência. Se, então, o pensar grego apreende a essência do i|ieu8oç a partir do velar-se, isso só pode ser evidenciado se estivermos atentos à auto-expressão imediata da experiência grega e, a princípio, simplesmente não nos interessarmos pelo que os pensadores gregos, eles próprios, dizem explicitamente sobre i|ieí>8oç.

Recapitulação

Tòi|ieüSoç como o oposto de áXqBéç.O parentesco de raiz entre as palavras áXf|0€La e XauGávco.

Referência a Homero, Odisséia VIII, 93.O retraimento do esquecimento

Tentamos nos tornar atentos para o dito de Parmênides de Eléia, um pensador que concebeu e expressou este dito mais ou menos na época em que o templo de Poseidon foi construído em Poseidônia, mais tarde conhecida como Paestum, não longe de Eléia. O dito desse pensador expressa a palavra da deusa AXf|0eux, um nome que usualmente traduzimos como “verdade”. A essência da deusa “Verdade” está presente em toda a construção do dito, em cada um de seus versos, mas antes de tudo e puramente na sua frase introdutória, a qual justamente é o silêncio do nome AXf|0eia, Por isso devemos, antes da elucidação dos versos individuais e no interesse destes, aprender algo da essência desta deusa; em

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contrapartida, somente pensando o “poema doutrinário” inteiro aparecerá para nós a essência desta áXf|0eia na sua forma primordial e no seu caráter.

Consideramos inicialmente o nome da deusa AXf|GeLa, que diz desencobrimento. Certamente, o mero fato de aprendermos que “áXfjGeia” é a caracterização lingüística, na língua grega, para “verdade” não nos ensina ainda nada da essência da verdade, assim como pouco aprendemos sobre cavalo conhecendo a expressão.latina

1 “equus”. Mas, se traduzimos e nos franspormos para o interior das direções dessa palavra, então não estamos mais constringidos por uma significação lingüística, e sim, estamos diante de um contexto essencial que toca nosso pensar, a partir de sua verdadeira fundação. Seguimos as quatro direções que o nome AXqGeia na tradução por “desencobrimento” nos dá. Assim esperamos experimentar algo da essência primordial da verdade no pensamento grego.

Primeiro, o des-encobrimento remete para o encobrimento. Encobrimento permeia, portanto, a essência primordial da verdade.

Segundo, cfes-encobrimento indica que a verdade é fprjadâ a partir do encobrimento e, com ele, está em luta. A essência primordial da verdade é conflitante. O que significa aqui “luta” permanece em questão.

Terceiro, o des-encobrimento, segundo determinações acima enunciadas, remete para um âmbito de opostos, nos quais está “a verdade”. A presença “conflitante” do desencobrimento manifesta sua essência conflitante. Em razão disso, a questão da “oposição”, na qual a verdade se realiza, deve ser aprofundada. No pensamento ocidental, não-verdade vale como o único oposto à verdade. A “não-verdade” é identificada com “falsidade”, a qual, entendida como incorreção, forma o contrário de “correção”. A oposição dominante é conhecida sob o nome áXf|9eia íca! fjjeúôoç, veritas et falsitas, verdade e falsidade. A última oposição mencionada, nós a compreendemos na interpretação como correção e incorreção. Mas a verdade no sentido de “correção” não é da mesma essência que a verdade entendida como “desencobrimento”. A oposição de correção e incorreção, validez e invalidez pode muito bem exaurir a essência da verdade, entendida como oposição em relação ao pensar posterior e, antes de

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tudo, ao pensar moderno. Mas isso não decide nada simplesmente sobre as possíveis oposições relacionadas com o “desencobrimento” como foi pensado pelos gregos.

Devemos, pois, nos perguntar como se dá a oposição no “desencobrimento” do pensar originário dos gregos. Refletindo, nos, deparamos com o,fato,surpreendente de que t ò ^eu8os se apresenta, imediatamente, junto com àXfjôeia e com àXr|0éç como o seu oposto, o que traduzimos corretamente com a palavra “o falso”. A oposição do desencobrimento não é, portanto, encobrimento, mas sim a falsidade. A palavra ijjebSoç provém de outra raiz e não diz imediatamente nada relacionado com encobrimento. Isso é estranho, mas é justamente, então, que aceitamos e fincamos pé em que a essência primordial da verdade é “o desencobrimento”. Neste caso, a oposição correspondente, ou seja, contraponente a desencobrimento deve mostrar algo como “encobrimento”. Mas disso não encontramos imediatamente nada, pois logo que a palavra àXr)0és é dita, também o é seu sentido contrário, t ò

ijseüSos’. Alguém poderia então ser tentado a concluir, finalmente, que a essência da verdade não é determinada de forma alguma a partir do desencobrimento e encobrimento. Mas talvez isso seja uma conclusão muito apressada. Estamos por demais ingenuamente sob o prejuízo da oposição entre verdade e falsidade, tomadá como dada, desde longo tempo, e já não nos escandalizamos com a diversidade dos nomes que dizem esta oposição; essa diversidade, nós a usamos constantemente, sem ulteriores reflexões, como fórmula para discriminar nossos julgamentos e decretos. Talvez não estejamos, simplesmente, sendo prematuros, quando concluímos que, por causa da prioridade de ijseuôos', a origem da essência da verdade não pode ser desencobrimento e encobrimento. Talvez não haja, de fato, nenhum espaço para “conclusões” aqui, e sim, antes um âmbito, que exige de nós abrirmos os olhos e vermos - um ver de clara visão. Nesta “visão prévia” percebemos, então, com grande evidência, que nos falta na experiência e na fala dos gregos, a palavra de sentido contrário a àXr|0és', da qual essa formação privativa é derivada. áXf|0eia pertence à raiz XaO-, que significa “encobrir”. À raiz Xa0- pertence o verbo XavGávw, eu sou e estou encoberto; o particípio aoristo XaGwu, Xa0óv significa “sendo e estando encoberto”. Entretanto, inicialmente, isso apenas comprova um fato lingüístico. O que é decisivo é ver que relações no ente são expressas pela palavra Xav0ávo). Com

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grande dificuldade nós conseguimos segui-las, e, em vez disso, com nosso método de traduzir a palavra grega, acabamos por conseguir ocultá-las completamente.

Homero diz de Odisseu, no livro 0 (VIII) 93:èXáuGave SÚKpua Xeípwv. Traduzimos por uma frase “portuguesa correta”: “Ele (Odisseu) derramou lágrimas sem que fosse percebido pelos presentes”. Na experiência grega a palavra de Homero diz: “Ele (Odisseu) permaneceu no encobrimento como aquele que derrama lágrimas”. De modo correspondente traduzimos a famosa admoestação de Epicuro, Xá0e [jKÚCTaç, por: “Viva veladamente”; pensado de modo grego, diz: “Permaneça no velamento conduzindo tua vida.” Poderiamos observar, com respeito a esses exemplos, que temos aqui um fato lingüístico realmente interessante, isto é, que, quando comparada ao modo germânico de expressar, a língua grega se expressa de uma maneira inversa. Mas o que vemos, aqui, é mais do que simplesmente “interessante”. O uso do que agora desponta para nós é decisivo para a compreensão da essência primordial da verdade, cujo nome grego, áXf|0eia, pertence à palavra XavGávto. Pois justamente o modo em que XauGávco se apresenta, nos exemplos dados, como verbo regente, diz que o sentido nomeado nesta palavra - o que é “encoberto” -, tem primazia na experiência dos entes. Mais especificamente, este sentido - o que é encoberto - constitui o caráter

l do próprio ente, isto é, o “objeto” possível da experiência. No caso de Odisseu em lágrimas, o grego não pensa que os presentes, enquanto “sujeitos” humanos em seu comportamento subjetivo, não percebem Odisseu em lágrimas, mas que, ao redor desse homem, um encobrimento, um retraimento se instaura, e faz com que os presentes se subtraiam a Odisseu. Essencial não é a compreensão dos outros, mas, sim, que um encobrimento se dá e mantém os presentes distantes. Que um ente, no caso, o Odisseu em lágrimas, possa ser experimentado e compreendido, se funda no encobrimento ou no descobrimento que acontece.

Na luz dessa indicação iremos agora, então, considerar, mais cuidadosamente do que de costume, também uma palavra comum da raiz Xa0-, isto é, Xay0dvo|iai e èmXav0ávo|iaL. Traduzimos esta palavra, de novo corretamente, por “esquecer”. Porém, o que significa “esquecer”? O homem moderno deveria, certamente, saber o que é o esquecer, pois organiza cada coisa de maneira que ele possa esquecê-la tão rapidamente

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quanto possível. Mas ele não o sabe. Ele esqueceu a essência do esquecimento, supondo que ele tenha se empenhado em penetrar no âmbito essencial do esquecimento. Essa indiferença em face do “esquecer” não está de modo algum relacionada somente com a inconstância [Flüchtigkeit] do seu modo de “viver”. O que aqui acontece provém da própria essência do esquecimento, em relação ao que ele próprio se retrai e se encobre.

Por isso, podería também ser que a nuvem invisível do esquecimento, o esquecimento do ser, envolva toda a esfera da terra e sua humanidade, uma nuvem na qual não é esquecido este ou aquele ente, mas o próprio ser, uma nuvem que nenhum avião podería atravessar, mesmo se fosse capaz da mais formidável altitude. Por isso, também poderia ser que, num tempo apropriado, uma experiência pudesse irromper precisamente deste esquecimento do ser, pudesse irromper como uma necessidade e assim se tornar necessária. Poderia ser que, com essa visão do esquecimento do ser, se pudesse despertar uma recordação que pensasse no próprio ser e somente neste, considerando^ ele próprio, na sua verdade: a verdade do ser e, não somente, como toda a metafísica, que considera o ente com respeito ao seu ser. Para isso seria necessário, antes de tudo, uma experiência da essência do esquecimento, disso que se esconde na essência da dXf)9eia3.

Os gregos experimentaram o esquecimento como um evento que passava pelo encobrimento.

3. Ser e tempo é a primeira tentativa de pensar o próprio ser a partir da experiência fundamental de que este permanece no esquecimento,, isto é, é uma tentativa de preparar esse pensar, de abrir-lhe um caminho, mesmo correndo o risco de que permaneça um “caminho que não conduz a lugar algum” [Holzweg\.

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§ 3. Clarificação da transformação da àÀrjdeia e da transformação de sua essência contrária (ventas, certitudo, rectitudo, iustitia, verdade, justiça - ÀfjÔJ), tpevSoç, falsum, incorreção, falsidade)

a) Os significados intrinsecamente diferentes de ([ieuôoç e “falso”. 0 âmbito do sentido essencial da palavra contrária <|seô8oç constitui-se

como um deixar aparecer na medida em que encobre. Referência a Homero, Ilíada B, 348s. O encobrimento desfigurador: o significado

fundamental de ijseuôoç. Tò à^euSéç: o que desencobre, e o àXr|0éç. Referência a Hesíodo, Teogonia, verso 233s. A ambigüidade de àXr]0éç

Para clarificar as relações essenciais que os gregos vêem na essência de ijseúôos, deveremos primeiro considerar, brevemente, como entendemos “o falso”4.

“O falso” significa para nós, numa primeira acepção, a coisa falsificada, como, por exemplo, o “dinheiro falso”, um “falso Rembrandt”. O falso é, aqui, o não-genuíno. Mas “falso” também pode ser uma asserção. Nesse caso, o falso é o não-verdadeiro na acepção de incorreto. Tendemos a compreender a asserção incorreta como uma asserção errônea; a incorreção como erro é oposta à correção enquanto verdade. Ao mesmo tempo, nem toda a asserção falsa é uma asserção errônea. Quando alguém, por exemplo, faz um “falso depoimento” diante da justiça, não necessita ele próprio estar errando. De fato, precisamente, ele pode não estar errando; ele necessita, antes, saber o “verdadeiro estado de coisas”, para poder ser capaz de fazer um falso depoimento. O falso, aqui, não é o errôneo, mas o enganoso, o insidioso. Com isso o falso é, por um lado, o não- genuíno, a coisa espúria; por outro lado, pode ser uma asserção incorreta. Esta, por sua vez, pode ser uma asserção errada, isto é, errante, ou pode ser uma asserção insidiosa. Entretanto, chamamos também um homem de “falso” quando dizemos: “A polícia fez uma prisão falsa.” O falso aqui não é nem o falsificado nem o errante, nem ainda o insidioso, mas o homem “errado”, isto é, não “idêntico” ao

4. Sobre a palavra “falso”, falsum, cf. abaixo, p. 59-64.

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homem procurado. Este “homem falso”, que ele de fato é, ou seja, este homem errado pode, no entanto, ser inteiramente “sem falsidade”; ele não necessita ser um homem “falso” no sentido daquele que em toda parte, em seu comportamento e na sua atitude está, espertamente, intencionando enganar. “Falso” com o significado de esperto, chamamos também animais. Todos os gatos são falsos. O felino é o falso; por isso a língua alemã fala do ouro e da prata falsos como “ouro de gato” [Katzengold] e “prata de gato” [Katzensilber].

Assim, se torna claro que o falso não tem sempre o mesmo significado. Entretanto, intuímos que os diversos modos do falso são de alguma forma ligados à mesma essência básica. Mas o que é esse último permanece indeterminado.

Também o ijKÚôos' grego, que prontamente traduzimos com a palavra “falso”, significa coisas muito diferentes. Percebemos isso imediatamente, quando, por exemplo, queremos esclarecer o que é um “pseudônimo”. A palavra estrangeira é composta de ôyo|xa, nome, e tjseíiôoç, mais precisamente, ijseôôéç. Traduzido literalmente, um

, “pseudônimo” é um “nome falso”. É isto realmente? De forma alguma. Quando um impostor assume um nome nobre e viaja sob este “nome falso”, ele não “traz” [trágt] nenhum “pseudônimo”. O homem nobre deve, sim, esconder, “em verdade”, quem é, o seu substrato [Tràger]. No entanto, o “falso nome” do impostor não é simplesmente um nome fictício. Um tal nome é usado, por exemplo, para um empreendimento militar, por exemplo, “a operação Miguel”, no fronte ocidental da última guerra. Esse nome simplesmente encobre algo que não deve de modo algum aparecer. Ao contrário, o nome assumido de um impostor não somente encobre sua “verdadeira natureza”; ele deve, ao mesmo tempo em que encobre, deixar o portador desse nome, aparecer numa “grandeza”, que evidentemente não lhe pertence, como, tampouco, o nome lhe pertence. De modo distinto a isso, o “pseudônimo” não é nem apenas um nome falso, nem um nome fictício, nem, também, somente um . nome insidioso. O “pseudônimo”, isto é, o nome essencialmente adequado, deve sim encobrir o autor. Entretanto, deve deixá-lo, ao. mesmo tempo, aparecer de uma certa maneira, e, de fato, não como alguém que ele em verdade não é (o caso do impostor), mas como alguém que ele realmente é. Assim, Kierkegaard publicou, em 1843, em

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Copenhagen, esta obra: Temor e tremor. Da lírica dialética de João de Silentio [Furcht und Zittern. Dialektische Lyrik von Johannes de Silentio], Este “Senhor do silêncio” queria com isso anunciar algo de essencial sobre si e sobre sua atividade literária. Similarmente, os “pseudônimos” de dois escritos de Kierkegaard, Migalhas filosóficas [Philosophische Brocken] (1844) e Escola do cristianismo [Einübung im Christentum] (1850) estão numa relação essencial. O primeiro traz como autor o nome João Clímacus; o outro é publicado pelo Anticlímacus.

O significado de ^eúôoç, na expressão “pseudônimo”, não é alcançado, quando traduzimos por “falso”. Temos aqui um encobrimento que, ao mesmo tempo, desvela algo recôndito e o faz de modo especificamente recôndito, enquanto um “nome falso”, por exemplo, o de um impostor, não é simplesmente incorreto, mas o encobre, tornando visível algo apenas de fachada, como uma “falsa grandeza”.

Sob a força dessas relações essenciais, que o ^eôSoç grego enuncia, falávamos quase “automaticamente” de “encobrir” e “velar” ou “retrair”, mas, ao mesmo tempo, de “deixar aparecer”. ilieíiSos pertence ao âmbito essencial da ação de encobrir, sendo um modo, portanto, de velar. Mas o encobrimento implícito no 4>eu8os é sempre, ao mesmo tempo, um desvelar, um mostrar e fazer aparecer. Entretanto, trata-se agora de deixar a palavra para os próprios gregos, para que possamos ter uma testemunha do fato de que e em que extensão pertence ao âmbito essencial do encobrimento e dodesencobrimento. Duas “passagens” são citadas, uma de Homero, a outra de Hesíodo. Essas “passagens” não são simples “documentações”, que pela simples acumulação numérica haveríam de receber força demonstrativa. Aqui, pois, não se trata de “demonstrar” e “argumentar”, mas de um acenar que nos abre os olhos. O que é decisivo, aqui, não é o grande número de passagens, em cuja explicitação geralmente uma é deixada como as outras numa obscuridade, na expectativa de que uma passagem obscura clareie as. outras e que a escuridão de todas as passagens colocadas junto resulte em clareza. O decisivo é a transparência do essencial de uma única passagem. Certamente pode ser necessário explicitar diversas

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passagens desse motivo, quando se trata de fazer visível o mesmo em diversos aspectos. Para o momento, a questão consiste em reconhecer que pertence ao âmbito essencial do aparecer, do deixaraparecer e do desencobrimento.

A passagem de Homero é tirada do segundo livro da Ilíada (B, 348s). Aqui o poeta faz Nestor dizer que, para os gregos, não há nenhuma esperança de retorno do campo de batalha de Tróia:

uplv Kal Aiòç aiyióxoio•yvw|ievai e’í tc wróaxeaLS, ei Te Kal oukí.

Voss traduz:

(quando) “previamente, pelo (deus) que abalou o Egeu, reconhecemos, se ele estava para nos enganar, ou não”.

A referência é a Zeus, e o evento chamado à mente teve lugar no dia em que os gregos embarcaram em seus navios para ir a Tróia:

áaTpáTTTtov em8é£i’, évaíoLpa af|p.aTa ^aívcov.

Voss traduz:

“Fez tremer para a direita o seu raio, um sinal portador de boa fortuna.”

Traduzido de modo mais literal, o verso diz: “Zeus, lançando seus raios luminosos para a direita, deixando aparecer sinais promissores.” Nos versos acima citados esses sinais são chamados de ÚTTÓCTxecns'. A melhor tradução seria nossa palavra “reserva” [Vorbehalt], mas está fixada demais numa certa direção de significação por causa da palavra latina reservado. ÚTTÓaxeais significa colocar diante e apresentando um mostrar que, expondo algo no primeiro plano, ao mesmo tempo o subtrai num segundo planoi e, portanto, não mostra. Pertence à essência do af\\ia, do sinal, que ele

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próprio brilhe (se mostre ele próprio) e, neste aparecer, ao mesmo tempo, acene para algo outro: um sinal que, deixando aparecer ele próprio, deixa um outro aparecer. Os raios indo para a direita são um presságio. Por irem para o lado direito, deixam aparecer algo promissor, de tal modo que, como sinais, ainda retêm e escondem o olhar do curso adventício e real do empreendimento contra Tróia. E agora, de acordo com a palavra de Nestor, há que se determinar se o presságio de Zeus seria ou não. Quando ele é ij;eü8os? Osraios indo para a direita, como sinais de destino promissor, encobrem o desastre real reservado, já, portanto, assinalado para os gregos. O 4seü8os‘ se aplica, como Homero diz simplesmente, a Zeus <jf|perra cjraíutou, a Zeus, no seu modo de deixar aparecer sinais. Ele sempre deixa algo aparecer em sinais. Ele apresenta algo descoberto. Ao mesmo tempo, entretanto, o sinal encobre, mostra, indica, embora jamais mostre abertamente aquilo a que se refere do mesmo modo

j) como ele próprio, mostrando-se a si mesmo aparece. Umjal sinal é em cada caso um encobrir que mostra. Permanece, no entanto, a questão se este encobrir que mostra somente subtrai (o olhar prévio no destino) ou se é um mostrar cujo encobrir já desfigura o que advirá. Neste caso, a apresentação do sinal que mostra e, com isso, o próprio mostrar, são ibeuSo?. O encobrimento é um deslocar. O significado fundamental condutor de ijjeüôos- consiste em deslocar [Verstellen], Aqui devemos tomar esta palavra no seu sentido literal, que nos é familiar. “Deslocar” não significa aqui a autodissimulação entendida como o caráter enganoso do homem. Não é, em termos modernos, um comportamento do “sujeito”, e sim, antes, um evento “objetivo”, que ocorre no âmbito dos entes. Dizemos que uma casa na vizinhança está deslocando a vista das montanhas. Des-locar_é, antes de tudo, um encobrir no modo de sobrepor, “Deslocamos”, por exemplo, uma porta, que no quarto não deve aparecer, colocando um armário diante dela. Desse modo, também, um sinal emergente, um gesto, um nome, uma palavra podem, portanto, des-locar algo. O armário colocado diante da porta não somente “se” apresenta diante da porta, ele não somente dissimula a porta encobrindo-a, ocultando a parede que nesse lugar tem uma abertura, ou seja, “colocando na frente” [zu- stellt\, mas, antes, o armário pode estar deslocando o sentido que se pretende de não haver simplesmente porta na parede. O armário

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desloca [verstellt] a porta e, sendo colocado diante dela, desfigura [ientstellt] o estado “real” da parede. Nossa linguagem possui a belapalavra “dissimular” [verhehlen], _gue_ significa, originária esimplesmente, a ação de “ocultar” [verbergen], encobrir com um véu [verhüllen]. “Dissimular” [Verhehl\ diz da ação de esconder e cobrir com um véu; não ocultar nada, não fazer “nenhum segredo” [keinen Hehl\ de algo, significa então que não há “mistério” [Geheimnis\ nisso, que nada é oculto. À mesma raiz da palavra “dissimular” pertence a palavra alemã “caverna” [Hõhle], o ângulo sutil [,Schlupfwinkel], um lugar secreto, que pode ele mesmo conter algo e escondê-lo. A linguagem alemã, que está cada vez mais exposta à desfiguração, tinha uma vez a palavra “desocultar” [enthehlen]: traze^ algo para fora da dissimulação, do encobrimento, num movimento de des-encobrir [ent-bergen] - à-Xf]9eia: des-cobrimento [Ent-bergung], Desde há alguns anos uso a palavra “descobrir” [entbergen] como palavra contrária para “encobrir o encobrimento” [verbergen]. O leitor de jornais ordinariamente sofisticado considerará obviamente tais palavras um abuso artificial da linguagem, que “filósofos” “imaginam” com a finalidade de perseguir caminhos complicados de seu pensar “abstrato”.

4jeí)8oç é um encobrimento dissimulador [ver-stellendes], um “dissimular” em sentido estrito. A relação essencial entre o “falso”, como oposição ao verdadeiro, e encobrimento, como oposição a descobrimento (como ao evento do desencobrimento), se torna, agora, clara. A oposição grega entre àXr|0és e (JjeOSoç não contém mais, nessa perspectiva, algo de estranho. A palavrajj>eü8éç como encobrimento que desloca, que desfigura, ou seja, que dissimula, permite a formação privativa correspondente, t ò à-ijseuSéç, ou seja, o não-dissimulador, o que livra de toda simulação [Enthehlende]. A essência do àijseuôéç necessita, portanto, ser determinada em referência ao áXr|0£ç, ao “descoberto” [Unverborgenen]. Hesíodo nos dá um testemunho disso. Em sua Teogonia (verso 233s), o poeta narra que ITó u t o ç comoupea|3ÚTaTov TraíSüJV, como o mais velho e digno de seus filhos, procriou: Nppéa 8 1 _.áijs€i)8éa m t à XnQéa, Nereu, aquele que não- desfigura [nicht-verstellenden], que nada dissimula, ra! áXr)9éa, “e isso significa precisamente” aquele que “não-esconde” [nicht- verbergenden]. O ra í não acrescenta simplesmente o àXr]9f|ç ao

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á^enSfis; nem o àÂj|0f|s é uma repetição de ÕKj*eu8f|ç, como se a mesma coisa fosse dita duas vezes, mas, aqui, é dito: 0 não-dissimular [.Nicht-verhehlen] é fundado no não-encobrir [Nicht-verbergen]. Nereu é

■y homem sem falsidade, fundado numa relação com o des-cobrimento. Orecebe sua essência a partir do âmbito do encobrimento. 0 que

não-dissimula é o que não-encobre: dXr|9és’.

Mas - a partir disso - surge uma objeção, que não queremos enfrentar de modo por demais superficial: rò dXr|0éç significa de fato “o desencoberto” mas, se permanecemos com rigor na palavra, de nenhum modo significa “o que não-encobre”. No entanto, isso é como devemos entender dXqOéç. Os gregos conhecem o Xóyoç dXr|9f|S', ou seja, a afirmação verdadeira, a asserção que não-encobre, mas desvela. Aóyos dXr|0f|S não significa, como pode parecer pela forma das palavras, a asserção desvelada, e sim a asserção desveladora: a asserção verdadeira, que, como tal, pode muito bem ser encoberta e não necessita ser desvelada, O mesmo vale ainda mais justamente para áXf|0eLa. Esta diz do “não-encobrimento”, do não-encoberto, mas significa, também, a relação com o que não-encobre, não-dissimula, a “não-dissimulação” - o desencobrimento.

Há longo tempo, obviamente, o pensar e, especialmente, o pensar moderno, não encontra aqui nenhuma dificuldade. A questão, assim se pensa, é muito simples. àXr|9éç na significação de “descoberto” se aplica a “objetos” que nos aparecem a nós, homens, e àXr]0És no sentido de “não-encobrindo” se aplica a asserções e a conhecimento sobre “objetos”, portanto, ao comportamento do “sujeito” com os objetos. Esta solução soa convincente. Mas ela permanece na pressuposição de que no âmbito de áXqfieia e àXiqOéç, isto é, para os gregos, havería algo como a distinção entre “objeto” e “sujeito” e a assim chamada relação sujeito-objeto. Mas é precisamente a essência da áXf|0eia que torna impossível o surgimento de uma relação do tipo sujeito-objeto. Assim, tudo haveria de se confundir e virar de cabeça para baixo se tentássemos clarear a ambigüidade aparente de àXqfiéç e àXf|0eia com a ajuda da diferenciação sujeito-objeto.

Mas àXr|0és é de fato ambíguo e, na verdade, de uma maneira que soa quase inadmissível para o ouvido grego, dado que

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áXrjGés significa precisamente o descoberto e permanece distinto do que “não-encobre”. O que é, de fato, distinto não necessita ser separado, mas pertence, talvez, justamente a uma unidade. O uno, que é assim duplamente estruturado, seria, então, ambivalente. Ao que é descoberto pertence o descobrimento. O que desvela é relacionado com o descoberto e o desencoberto. àXqGéç e, correspondentemente, dXr|9eia são ambivalentes. Como surge esta ambivalência? Em que ela está fundada, se de fato existe como tal? Ou existe aqui somente para nós a aparência de uma ambivalência? Até agora somente isto ficou claro: se dXr|0éç é ambivalente, dado que significa o que desvela e o_ “descoberto”, então não é apropriado afirmar que áXrjGéç significa o “desencoberto”. Se de__ fato o descoberto é somente o que é a partir da ação de descobrir, então, precisamente, o. sentido de “desvelante” é o significado originário de àXr|Géç, E, na medida em que áXriGés' é dito, propriamente, de erros e Xéyeiv,. parece, simplesmente, ser a àXfjGeia, originariamente, um caráter da

£. palavra, da linguagem e da ação de emitir sentenças sobre. No

caráter dos entes ou de emitir sentenças sobre eles. ; O que é, então, originariamente desvelante: áXr|9és, o falar (Xéyetv), ou o ente (õu), ou nenhum dos dois?

Antes de responder a estas questões que intencionam o médium do âmbito essencial da àXf|Gei.a, necessitamos primeiro percorrer o âmbito essencial em sua ampla extensão, o que significa: devemos meditar sobre a essência do encobrimento de maneira ainda mais penetrante. O falso, no sentido do <J;eu8os, como des-figurar [Ver-stellen], é um encobrir. Mas todo encobrir é necessariamente um desfigurar? Todo encobrimento é em si “falsidade”? Para decidir isto aqui, o âmbito essencial do encobrimento precisa, primeiramente, tornar-se mais próximo de nós.

Antes, porém, de lançarmos um olhar mais amplo no âmbito essencial do encobrimento, faz-se necessário ainda realizar uma elucidação, que até agora deixamos de fazer, pois esta podería ser entendida somente depois da clarificação da essência do (jseÍJÔos' para os gregos. Assim, devemos clarear o que a palavra “falso” diz, e um

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breve esclarecimento necessita ser dado acerca do que significa a primazia do falso na determinação essencial do “não-verdadeiro”.

Recapitulação

1) A assim chamada correta tradução de i|seü8oç por “falso”. A multiplicidade de significados de “falso” e ^eíiSoç. A desfiguração e dissimulação de ilieôSoç na região da essência de encobrimento e

desvelamento. Referência a Homero e Hesíodo

Perguntamos acerca da oposição da “verdade” com a intenção de clarificar a essência da deusa AXf|9eia. Todo mundo conhece esta oposição. “Falsidade” é o que é oposto à verdade. Esta oposição é, como dizemos, tão “natural” que a encontramos em toda parte e constantemente nos movemos no seu interior. Por isso não é necessária uma “filosofia” para trazer à luz esta oposição de “verdadeiro e falso”. Assim os antigos gregos já conhecem a oposição t ò àXr|9éç - t ò 4>e08oç. Traduzimos corretamente: o verdadeiro e o falso. O alcance desta tradução é “correto”, na medida em que compreendemos que as palavras gregas t ò àXr|9èç Kal t ò

4se08os' não significam “o bem e o mal”, o que, em grego, se diz t ò àya9òv r a l t ò raKÓv. Mas, também, a palavra grega t ò

àXT|9éç não significa “o verdadeiro” e sim o desencoberto. A palavra contrária a t ò àXr^éç, ou seja, t ò i^enSos, não contém, contudo, imediatamente em sua forma ou em sua raiz algo como

-1) “ocultamento”.. Nós a reconhecemos e esperamos por esta oposição, “precisamente” porque a palavra t ò i jK h S o s , desde os tempos mais primordiais entre os gregos é dita, por toda a parte, de maneira unívoca e decisiva, como o oposto de t ò dXr|9és'. Mas o que é, realmente, digno de atenção aqui é que nós não esperamos de t ò

ijseuôos, como o contrário de t ò áXr)9éç, o sentido de desencoberto, um sentido que aponta para uma relação que se dá no âmbito do encobrir e des-encobrir. Por que não? Por um lado, porque há muito tempo já não se pensa mais áXr|9és como “desencoberto”, isto é,

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porque não experimentamos, nem conseguimos mais experimentar, o desencobrimento. Em vez disso, compreendemos o aX^Oes como o verum e certum, como o “verdadeiro” e o “certo”, sustentando que o que é “compreendido” seria como que por si mesmo “verdadeiro” e “certo”. Por outro lado, simplesmente nós não nos deixamos tocar pelo enigma misterioso da oposição de áXqOés' e iJjeúSoç nos gregos, porque igualmente desde longo tempo nos acostumamos a compreender o ^eúôoç como “o falso”. Naturalmente reconhecemos, numa rápida reflexão, que o que chamamos assim direta e “massivamente” o “falso” traz em sua essência uma riqueza especial.

O falso é, num primeiro caso, a coisa falsificada, isto é, espúria (“falso dinheiro”, um “falso Rembrandt”). O falso é, num segundo caso, uma asserção: falso no sentido de incorreto ou, como. dizemos então, errôneo. Mas um “falso depoimento”, por exemplo, feito no tribunal, não tem que ser, por isso mesmo, errôneo. Quem em tais circunstâncias fala “falsamente” pode precisamente não estar em erro acerca do estado de coisas, se ele é capaz de discernir e dizer o que não corresponde ao caso. Esta espécie de “falso depoimento” não é errônea, mas, antes, enganosa. “Falso” chamamos também um homem. No entanto, quando dizemos: “A polícia prendeu o homem falso”, então “falso”, aqui, tem o significado de “errado”. O homem apreendido erradamente não necessita ser nenhum “falso” no sentido de alguém que se porta de modo esperto e, em toda parte, se mostra de modo diverso do que ele é._ No significado de esperto chamamos- também animais de “falsos”. Todos os gatos são falsos. O felino é “o” falso; daí, a origem do modo de falar, na língua alemã, de “gatos de ouro” e “gatos de prata”.

O i.|jeu8oç grego tem muitos significados, assim como também nossa palavra “falso”. Isso se torna evidente se tentamos elucidar a palavra estrangeira “pseudônimo”. Traduzida literalmente, este i|jen8os'-õr'op.a é um “falso nome”. Um pseudônimo, no entanto, não é nenhum “falso nome”, pois ele indica corretamente aquele que o traz. Por “falso nome” entendemos melhor um impostor, por exemplo, como “um tal senhor”. Esse nome deve esconder sua identidade, embora o nome usado pelo impostor não seja um simples “nome fictício” como a espécie de nomes usados em operações

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militares (“Operação Miguel”) ou em espionagem. Claro que o nome do impostor supõe um encobrimento, mas, ao mesmo tempo, deve deixar aparecer aquele que o traz numa “grandeza” e manter o seu “comportamento” sob o título correspondente. Evidentemente, o que o nome falso encobre mostrando, ao mesmo tempo, a “grandeza”, é aqui somente uma “aparência”. O genuíno “pseudônimo”, ao contrário do nome do impostor, mostra algo do “verdadeiro ser” de quem o traz. O “pseudônimo” também esconde, mas de tal maneira, que, simultaneamente, manifesta o recôndito, isto é, a essência oculta do autor e sua tarefa literária. Õ genuíno pseudônimo não deve fazer o autor passar, simplesmente, por não-conhecido; ele deve, antes, chamar atenção para sua essência escondida. Por intermédio de seu pseudônimo, o autor diz até mais de si do que se ele usasse seu nome “correto”. Os pseudônimos de Kierkegaard (“João de Silentio”, “João Clímacus” e “Anticlímacus”) manifestam esta essência do pseudônimo e, conseqüentemente, a essência de ijjeOSoç. No ipeüSos1 vige um encobrir que, simultaneamente, desvela. O “falso” ouro parece ouro, mostra-se como ouro e, na medida em que se mostra assim - embora somente ao fazer assim - encobre o que ele é em verdade: não-ouro. A essência do (penSos1 encontra sua determinação a partir do domínio de encobrir, desvelar e deixar aparecer.

Quando compreendemos, assim, o i^enSos-, poder-se-ia sempre ainda objetar que esta é nossa “interpretação”. Faz-se necessário, então, conhecer como os próprios gregos experimentavam o ijseüòoç. Duas passagens da poesia inicial dos gregos nos dão indicações. A primeira é da Ilíada de Homero, a outra da Teogonia de Hesíodo. A passagem da Ilíada (B, 348s) trata da questão se os sinais de Zeus, raios luminosos lançados para a direita, seriam (Jreuôoç ou não, ou seja, se ele desvela o “verdadeiro” destino reservado aos gregos ou o encobre. Para “ser-^eüôoç” ou “não-ser-^euSoç” pressupõe-se que Zeus deixa alguma ou outra coisa aparecer em primeiro plano. De fato, Homero fala de Zeus <j>aívw, de Zeus que deixa algo aparecer. Mas “deixar aparecer” é, na verdade, um desvelar. E como pode, então, ele encobrir? Zeus tem que deixar algo aparecer; entretanto, tal coisa, na medida em que se mostra a si mesma, ao mesmo tempo dá acenos previamente, não desvela completamente, mas simultânea­mente encobre. Desse modo os sinais se mostram: cnf||j.aTa. Assim é

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que nesta passagem Zeus é chamado Zeüç cnÍp.aTa cfxiívwv - aquele que deixa sinais aparecerem. Um “sinal” é o que, aparecendo e acenando para, deixa aparecer, por meio disso, algo mais, e de tal maneira que não chega a ser manifesto (onde o próprio sinal aparece), mas, ao mesmo tempo em que deixa aparecer, justamente se retrai,

- £ isto é, encobre. Esta auto-aparência e autodesvelamento que, retomando-se sempre de novo, encobre, isso é o mostrar. Somente lá onde vige um deixar aparecer, um desvelar, lá se dá o espaço de jogo para a possibilidade do t[seô8oç, isto é, um mostrar-se que ao mesmo tempo esconde e se retrai. A essência do está num colocarem evidência que encobre [Zur-Schau-stellen]; nós dizemos: num dissimular [Ver-stellen].

No entanto, devemos pensar este “dissimular” ao mesmo tempo como processo e conteúdo. Uma casa vizinha “dissimulai (encobre) o mostrar-se da montanha; um armário colocado diante da porta “dissimula” (mascara) a parede nesse lugar e a apresenta sob condições, como se fosse uma parede inteiriça. O armário dissimula _ [ver-stellt], por um lado, na medida em que encobre [zu-stellt] o_ buraco na parede e, por outro lado, faz aparecer e apresenta [vor- stellt\ uma parede inteiriça. A dissimulação é um esconder. Esta antiga palavra alemã [Verhehlen] se origina de hehlen (escondido, secreto), que significa “ocultar”. A “dissimulação” é um ocultamento. Usamos dissimular e ocultar na maioria dos casos, e num sentido “negativo”, em relação ao comportamento humano, quecompreendemos como algo “subjetivo”, diferentemente de processos “objetivos”. “Dissimular” é para nós “autodissimular”, e isso se torna, em relação aos outros, “enganar”. De modo similar, “esconder” é usado num sentido subjetivo: não ocultar algo a si mesmo, não simular algo a si, isto é, não meter-se a si diante de algo, não dissimular para si: ser “sem um segredo escondido”, semencobrimento e sem esconder digressão, isto é, no caso de uma ação ou comunicação. Mas, originariamente, a ação de “ocultar” [Verhehlen] significa toda a espécie de “encobrimento”; a antiga língua alemã conhecia até mesmo a palavra - que desde então se tem perdido - tirar fora do ocultamento [enthehlen]. Desde muitos anos uso nas preleções a palavra “descobrir” [entbergen]. Caso consigamos um dia de novo experimentar a pura abertura do descobrir

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[Entbergung] e a essência do desencobrimento [Unverborgenheit], a àXf|0eia, poderemos encontrar de novo a palavra perdida “desocultar” [enthehlen] e nos apropriar dela de modo novo. “Ocultar” [hehlen] é, no mais, uma palavra relacionada proximamente com caverna” [Hõhle], a qual encobre algo enquanto ela mesma permanece descoberta.

Uma vez que tò cpeOSos-, de acordo com o testemunho de Homero, pertence ao âmbito essencial de ocultar [Ver-hehlens], isto é, de encobrir [Verbergens] e desvelar [Enthüllens], a oposição grega de palavras entre si diversas, áXrjGéç e i[>e08os, não tem mais algo de estranho. Os gregos pensam em um esconder, e não devemosesquecer que ifieüSos' é usado para “sinais”, por exemplo, do raio. Assim, ^ehSoç não caracteriza, somente, comportamento humano. É, muitas vezes, usada na referência ao èuos-, p.ü9os e Xéyeiv, à palavra e à linguagem. Mas, mesmo “a palavra” não é, primordialmente, para os gregos, somente uma formação produzida pelo “sujeito humano”. Porque os gregos pensam a ação de encobrir do ijjeí)8o5 como evento, então, ifseu8oç, no significado de velar, pode agora tornar-se um ponto de partida para a formação de uma palavra contrária, que significa o “não-falso” e, portanto, o “verdadeiro”. Nesse sentido, a palavra comum para “verdadeiro”, ou seja, tò àXr|0£ç, não é necessária. O oposto de “encobrir” [Verhehlen] é “des-cobrir” [Ent-hehlen]. Este “des” é em grego “a ”; em contraposição a tfseüSos' e (fseuÔés' está ch|;eü8éç, o que não- encobre [.Nicht-Verhehlende]. Hesíodo dá uma unívoca e simples informação em relação a essa palavra e ao seu significado básico (Teogonia, verso 233). Nereu, o filho mais velho e mais venerável do deus do mar TTóvtoç, é chamado àijíeu8éa ícat áXr|9éa, “aquele que não dissimula”; ra í não significa aqui simplesmente “e”, mas diz um “porquê” explicativo. Nereu é “alguém que não dissimula”, “porque” ele é o áXr|0r|ç - porque ele é aquele que não-encobre”. 4jev8if|S' é determinado a partir de “-Xri0f)ç”. tò áXriGés significa agora, traduzido “literalmente”, antes de tudo, “o desencoberto”, “o descoberto”. Algo não-encoberto, descoberto, por exemplo, um pedaço de rocha, não necessita ser “descoberto”. De fato, neste caso, o não- encoberto e descoberto, o bloco de rocha, não pode de maneira

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alguma ser “desvelante”. Ao contrário, “descobrir” se refere à ação do homem de falar e perceber.

Entretanto, os gregos chamam tanto o “descoberto”, quanto “o que descobre”, com a mesma palavra àXr|0éç, o que significa literalmente “o desencoberto”. Sustentamos, porém, que esta tradução de áXr|9éç por o desencoberto seria a única tradução “literal”. Mas, agora, pode ser visto que a palavra áXr|9ég, no duplo sentido de “descoberto” e “o que descobre”, é ambígua. Reconhecemos esta ambigüidade através do caminho lateral do ^seüôog e de sua palavra contrária ái|;eu8éç de modo especialmente claro. Reconhecemos, também, que aqui vigoram relações misteriosas. Para apreciar a essência da ambigüidade de áXr|9ég e, acima de tudo, para experimentar o seu fundamento, necessitamos experimentar o âmbito^ essencial do des-encobrimento e do descobrimento em sua amplitude.. Isso significa: nós devemos primeiramente considerar a essência do encobrimento e do retraimento de um modo mais penetrante, O ijseüSog, no sentido de um dissimular, é um esconder. Mas então, todo esconder-se é, necessariamente, um dissimular? Todo ocultamento é,. em si, já i|>eü8og, isto é, “falsidade”? Como se dá o retraimento e seus diversos modos?

b) A palavra não-alemã “falso”. Falsum, fallo, a^áXXoj. A primazia romana do “destruir” no processo de romanização da Antiga

Grécia, implementado pelo imperium (comando) como fundamento essencial do iustum. A transposição de ^eüSoç para o domínio

romano-imperial do destruir. O evento real da história: o assalto da latinização no domínio greco-romano da história e a visão moderna

do mundo grego com olhos romanos

“Falso” - o que podemos dizer em referência a essa palavra? “Falso” provém da palavra romana “falsum". Nós faríamos bem em ficar, no mínimo, atentos e permanecer atentos gara isto que osirmãos Grimm..(.Dicionário alemão [Deutsches Wõrterbuch], III,1291), amplamente conhecidos, fazem notar sobre esta palavra, com um tom de ira [Ingrimms]-. “Falso, falsus. uma palavra não-alemã da

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qual não há nenhum vestígiajem UlfilasA Uma “palavra não-alemã” - quem não é por demais covarde, irá se espantar com essa constatação e jamais haverá de deixar “para trás” este espanto. A palavra “falso” veio para a língua alemã por meio do “falsum” romano a partir do início da Idade Média cristã. A raiz da palavra romana falsum (fallo) é “cair” e está relacionada com a palavra grega crcbáAAoj, isto é, levar à queda, fazer cair de modo titubeante. Mas esta palavra grega ac|)áAAoj jamais se tornou a genuína palavra contrária, oposta a «Xr]0éç. Digo deliberadamente “genuíno”, porque a palavra ox|)áAXco pode às vezes ser traduzida “corretamente” por “enganar”. No entanto, o que é intencionado, quando pensado de modo grego, é: fazer titubeante, deixar vacilar, deixar precipitar-se de modo errante. Mas o homem só pode ser levado a uma tal vacilação e queda no meio dos entes que lhe aparecem se algo acontece no seu caminho e desfigura a relação, de maneira que ele não saiba mais com o que está lidando. Para que isso se dê, algo é apresentado e dito, ao mesmo tempo que se instala um processo de liberação no que foi dito e apresentado. Dessa maneira, o homem pode se envolver com o que foi apresentado e, só então, sofrer uma queda, “cair”. O levar à queda [.Zu-Fall-bringen], no sentido do conduzir para um modo errante, é possível apenas graças à ação de colocar diante de [Davor-stellens], desfigurar [Verstellens] e ocultar [Verbergens]. Segundo uma ambigüidade também presente, o ac|)áXAw está relacionado com o “colocar algo de pé, erigir algo”. Pensado de modo grego, isso significa: colocar algo no desencoberto e deixar aparecer o que fica de pé [Stehende] como o que permanece [Bleibende], o que se mostra presente [Anwesende], 2xf)áAAw é oposto a uma tal colocação, na medida em que não deixa o presente estar na sua presença, mas o destrói, colocando algo mais no lugar dele e alegando que o que é colocado é o que deve permanecer.Tò d<7<|)aÀ.és' significa o que não sucumbe [Un-fallende], o que permanece de pé no seu estado e permanência, isto é, em grego quer dizer o que permanece vigindo no desencoberto. Tò áCTc aXés- não é jamais o “certo” e o “seguro” no sentido moderno da certitudo.

Levar à queda, em todos os sentidos, é somente um efeito posterior no campo da essência do desfiguramento e doencobrimento, o que constitui a essência do i^eüòoç. Por isso, o que

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tem a ver com o “cair” e levar à queda não pode, para os gregos, ser a oposição originária e própria ao “desencobrimento”, à áXr|0éç.

Mas por que, então, o falsum, o “levar à queda” é essencial para os romanos? Que âmbito da experiência é normativo aqui, se a ação de levar à queda alcança uma tal prioridade que, com base em sua essência, é determinada a essência contrária para o que os gregos experimentam como áXr|0éç, como “o que descobre” e “o que é desencoberto”?

O âmbito de essência decisivo para o desenvolvimento do falsum romano é o do “império” e do “imperial”. Tomaremos essas palavras no seu sentido estrito e original. “Imperium” significa “comando”. Compreendemos aqui a palavra “comando” certamente no seu significado tardio, isto é, no significado latino-românico. Originariamente, “comando” [Befehl] (o h deve ser escrito depois do 1: befelh) designa o mesmo que “proteger”: “entregar” (comandar) os mortos à terra ou ao fogo, entregá-los para uma proteção. Conhecemos o significado originário de “comando” pela expressão: “recomende (comande) ao Senhor teus caminhos” (entregar para proteção, para a salvação). Este “comandar” [Befehlen] tem se mantido ainda no nosso “recomendar” [empfehlen]. Lutero diz sempre, em toda parte, em vez de “recomendar”, “comandar” [befehlen] - commendare. Por meio da língua francesa o “comandar” se torna “comandar” [commandieren], isto é, mais precisamente, a forma latina imperare, im-parare = arranjar, tomar medidas, isto é, prae-cipere, ocupar de antemão, e assim tomar possessão do território ocupado e legislar sobre. Imperium é o território [Gebiet] fundado em comandos [Gebot], nos quais os outros são obedientes [botmãssig]. Imperium é o comando no sentido do mandamento. O comando, assim entendido, é a razão essencial da dominação, não apenas sua conseqüência e, decerto, não simplesmente um modo de exercitar a dominação. Assim, também, o Deus do Antigo Testamento é um Deus “comandante”. Sua palavra é: “não deves”, “deves”. Este dever foi escrito sobre as tábuas da lei. Nenhum deus dos gregos é um deus comandante, mas um deus que dá sinais, acena. Os deuses romanos, ao contrário, são designados pela palavra latina “numen”, que significa “ordem”, “vontade” e têm um caráter de comando. O

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“numinoso”, pensado com rigor, jamais atinge a essência dos deuses gregos, ou seja, que se fazem presentes no âmbito da áXf|0eia. Ao âmbito essencial “do comando” pertence o “direito” romano, ius. A palavra tem a ver com jubeo, que significa: ordenar, deixar algo ser feito por ordenação e determiná-lo pelo fazer e deixar. O comando é a razão essencial da dominação do iustum, compreendido no latim como “ser no direito e “ter direito”. Segundo isso, a iustitia tem fundamento de essência inteiramente diferente do que aquele da 8íicr|, que surge da áXijOeia.

Comando, como fundamento essencial da dominação, inclui o ser superior, o qual é somente possível como a constante sobre- elevação dos outros, que nisso são os inferiores. Na sobreelevação está presente, por outro lado, a habilidade de constante supervisão. Dizemos também que “ver algo por cima” [übersehen] significa “dominar” [beherrschen] algo. Esta supervisão, que inclui a sobreelevação, envolve um constante “ser na espreita” [Auf-der-Lauer- liegen\. Este é a forma do agir que mantém a supervisão sobre tudo, mas se atém ainda a si: no latim, é a actio do actus. A supervisão panorâmica é aquele “ver” dominador, que vem à expressão numa palavra citada muitas vezes de César: veni, vidi, vici - eu vim, eu supervisionei [übersah] e eu venci. A vitória é somente a conseqüência da supervisão de César e do ver, que tem o caráter da actio. A essência do imperium repousa no actus da constante “ação”. A actio imperial da constante sobreelevação por cima dos outros inclui o sentido de que os outros, caso venham a se levantar para o mesmo ou semelhante nível de comando, sejam trazidos para baixo - em latim: fallere (particípio: falsum). Este levar à ruína [Zu-Fall- bringen\ pertence necessariamente ao âmbito imperial. O levar à ruína pode acontecer no assalto e na subjugação “diretos”. Mas o outro também pode ser levado à ruína, de tal modo que recebe uma rasteira por detrás, de um modo furtivo. O “levar à ruína” é agora o subterfúgio [Hinter-gehen], o “truque” [Trick], cuja palavra não acidentalmente provém do “inglês”. Subterfúgio, considerado do exterior, é o levar à destruição de modo complicado, e, portanto, é mediado de maneira diversa à ação imediata de subjugar. Aqui o que é levado à destruição não é destruído, mas é, de certo modo, de novo elevado - no interior dos limites fixados por quem domina. Esta

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“fixação” é, em latim, pango, de onde a palavra pax - paz. Este é, pensado com base no imperial, o estado fixado do que é levado à ruína. Na verdade, o levar à ruína como enganar e vencer, por truques, não é a actio mediata e derivada, mas a adio realmente genuína, imperial. O feito, propriamente, “grande” do imperial não reside na guerra e sim no fallere do subterfúgio e manipulação para dominação. As batalhas contra as cidades e tribos italianas, por meio das quais Roma assegurou seu território e sua expansão, fazem manifesto em toda parte o claro procedimento de convivência e inclusão - mediante acordos - de tribos residentes numa distância cada vez maior. No fallere latino, no levar à ruína como subterfúgio está o “enganar”; o falsum é o que engana de modo pérfido: “o falso”.

O que acontece, quando o 4>eí>Sos grego é pensado no sentido do falsum latino? O 4>eú8oç grego como o que dissimula, e a partir daí também “engana”, não é mais experimentado e interpretado a partir do ocultar, mas do enganar. O i|ie uôoç grego é transposto [übergesetzt], por meio da tradução para o falsum latino, para dentro do âmbito latino- imperial do “levar à ruína”. O i^enSo?, dissimulação e encobrimento, se torna agora o que faz cair, o falsum. Assim se torna claro que a experiência, o pensamento, a organização e expansão, a construção e o trabalho romanos não se movimentam jamais, desde o seu início essencial, no âmbito da dXiíGeia e do ijieúSoç. Como uma espécie de constatação historiográfica sabemos, há longo tempo, que os romanos tomaram bens dos gregos de muitas formas e que esta apropriação foi uma remodelação. Entretanto, será necessário um dia refletirmos sobre quais âmbitos essenciais e em que amplitude esta latinização da cultura grega se processou. A transformação de isto é, a apropriação do“encobrimento” no sentido de “levar à ruína” vai tão longe a ponto de a língua latina adotar a construção e o uso da palavra grega XavGávw, “eu sou e estou encoberto”. Essa apropriação, que, ao mesmo tempo, transforma, é favorecida pelo parentesco indo-germânico da língua grega e latina. O grego diz XavGávei f|Kü)v; traduzimos corretamente: “Ele vem sem ser notado”. Mas, pensado no modo grego, isso diz: “Ele está encoberto como alguém que está vindo.” O historiador romano Lívio diz: fallit hostis incedens; em nossa linguagem: “O inimigo se aproxima sem ser notado.” Pensado de modo latino: “O inimigo engana como alguém que se aproxima”; propriamente, no entanto, a frase diz: “O inimigo leva

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à ruína, como alguém que está se aproximando”. Isso é absurdo e só tem sentido se o fallere é pensado como levar à ruína no sentido de enganar, de subterfúgio, o que, por sua vez, é pensado como enganar e, então, como dissimular. O i^euSos' grego é apropriado, mas sem a experiência do domínio essencial do encobrimento, que aqui é normativo. De modo similar, diz Lívio de um homem qui natus moriensque fefellit, que se costuma traduzir assim: “Aquele que nasceu de modo desconhecido, também morreu de modo desconhecido”. Pensada de modo latino, a frase diz: “Aquele que no seu nascimento e na sua morte levou os homens à ruína e os enganou”. Mas o que Lívio diz pode receber um bom significado se pensado de modo grego: “Retraimento se fazia presente nele, seja no seu nascimento, como na sua morte”. Mas um recém- nascido dificilmente pode - o que, entretanto, diz a palavra latina - “passar a rasteira” nos seus companheiros homens por ocasião do seu nascimento e os levar à ruína ou somente enganar, mas certamente ele pode permanecer no retraimento. O fefellit latino significa um outro âmbito essencial do que o éXáuGaue grego. O falsum latino é algo estranho para o ijíeuSoç grego.

A dominação dos romanos e sua transformação do helenismo no modo latino não se limita, entretanto, de nenhuma forma, a instituições individuais do mundo grego ou a atitudes individuais e “modos de expressão” da humanidade grega. Nem a latinização do mundo grego pelos romanos se estende, simplesmente, à soma de cada coisa apropriada por eles. O decisivo é que a latinização ocorre como uma transformação da essência da verdade e do ser no interior do domínio da história greco-romana. Essa transformação tem a característica de que ela permanece escondida e, entretanto, determina previamente tudo. Esta transformação da essência da verdade e do ser é o genuíno evento na história. O imperial como modo de ser da humanidade histórica não é, no entanto, a base para a transformação essencial da àXf|0eia para a veritas como rectitudo, e sim, sua conseqüência, e, como tal, é a possível causa e ocasião para o desenvolvimento do sentido do correto. Falar da “transformação da essência da verdade” é, naturalmente, apenas, um expediente de emergência; pois é ainda falar da verdade num modo objetivante, para além e contra o modo como ela própria se torna presença e “é” história. A transformação da essência da verdade suporta, ao mesmo tempo, aquele domínio no qual os nexos, historiograficamente

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[historisch] observáveis da história [Geschichte] ocidental, estão fundados. Por isso, também, o estado histórico de mundo, que chamamos de idade moderna, seguindo a cronologia historiográfica, está fundado no evento da latinização da Grécia. O “renascimento” da antigüidade, concomitante com a irrupção do período moderno, é prova inequívoca disso. Uma conseqüência mais distante, mas de forma alguma indiferente, da latinização da cultura grega e do renascimento latino da antigüidade é o fato de que, ainda hoje, vemos a cultura grega com olhos romanos, e isso não somente no interior da pesquisa histórica do mundo grego, mas sim - o que é decisivo - no diálogo histórico metafísico do mundo moderno com o dos antigos. A metafísica de Nietzsche, a quem gostamos de considerar como um moderno redescobridor da Grécia antiga, vê o “mundo” grego exclusivamente de modo romano, isto é, de um modo ao mesmo tempo moderno e não-grego. Similarmente, pensamos ainda a ttóXiç grega e o “político” numa compreensão totalmente não-grega. Pensamos o “político” como romanos, isto é, imperialmente. A essência da ttóXiç grega jamais será apreendida no círculo de visão do “político” entendido de modo “romano”. Tão logo voltamos nosso olhar para os âmbitos essenciais na sua simplicidade, os quais, para o historiógrafo, não têm naturalmente nenhuma conseqüência, pois não chamam atenção nem causam rumor - âmbitos nos quais não se dá nenhuma escapatória

então, mas somente então, experimentamos que nossas representações fundamentais usuais, ou seja, as latinas, cristãs, modernas, falham miseravelmente em apreender a essência primordial da Grécia antiga.

Recapitulação

2) Reconsideração da essência do “falso”, do ocultamento e do “des- ocultamento” do ijjeüSoç. A vigência do “alto-comando” imperial

romano e a amplitude da diferença entre ijieuSoç e falsum

Estamos considerando a essência do ^eüôoç, para o que usualmente dizemos a palavra “falso”. Mas com que propósito estamos nos “ocupando” do falso, supondo que, com isso, estamos completamente

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“ocupados”? Na verdade queremos o verdadeiro e nos empenhamos bastante para tentar encontrá-lo e conservá-lo. Queremos o “positivo”. Por que então esta alta atividade cerebral especulativa sobre o negativo? São todas questões legítimas.

Mas em nossa meditação não é o falso o objeto de nossa investigação. Estamos refletindo, “somente”, sobre a essência do falso. Mas esta não é, ela mesma, algo de falso. Ela é de tal modo distante disso, que talvez possa participar no que é o mais essencial para a essência do verdadeiro. Poderia, de fato, ser tão difícil encontrar o verdadeiro e, por isso, o encontramos tão raramente, porque não sabemos nada e não queremos saber nada da essência do falso. Pode bem ser que estejamos errantes numa misteriosa desfiguração, quando pensamos ser a essência do negativo propriamente algo “negativo”. Quem nada sabe da essência da morte, a este falta todo vestígio de um saber da essência da “vida”. A essência da morte não é uma não-essência. A essência da negatividade não é algo negativo, mas, também, não é somente algo “positivo”. A diferença do positivo e negativo não é suficiente para apreender o essencial, ao qual pertence também a não-essência. A essência do falso não é algo “falso”.

Tò i[seüSos - usualmente traduzimos por “o falso” - é, para o pensamento grego, o dissimulado. A dissimulação deixa algo, que ela abre e estabelece, aparecer de modo diferente do que “em verdade” é No “diferente do que” reside o “não assim como”, o que, experimentado a partir do des-cobrimento e do desencobrimento como tal, realiza um encobrimento. Entretanto, enquanto dissimulação, não somente coloca “algo mais” diante, isto é, diante do que pode vir a ser apresentado, mas deixa aparecer algo outro do que “em verdade” é; dissimulando desvela e assim é uma espécie de descobrimento. Se i|ieí)8og fosse, simplesmente, sem este traço fundamental do encobrimento e do descobrimento e, com isso, do encobrir, então o iJieuSog não poderia jamais irromper como essência contrária à àXr|0eLa, ao desencobrimento como tal. “O falso”, no sentido grego, tem este traço fundamental do encobrimento. Para manter de modo inconfundível no nosso olhar a experiência grega primordial do 4ieu8oç, é bom ter, de modo suficientemente claro, como a essência do falso é delimitada fora do mundo grego e, até, para além de seu tempo histórico. Mesmo aí, ela é geralmente entendida, somente, ainda na sombra da luz da Grécia antiga.

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A palavra “falso” é uma palavra não-alemã e provém do falsum romano, que, como particípio, pertence a fallere; da mesma raiz é a palavra alemã “sucumbir” [fallen], levar à ruína, e o cnjxíXXw grego. Se traduzimos a palavra grega ocbáXXoj por “enganar”, não devemos esquecer que o “engano”, compreendido de modo grego, é determinado pelo t|ieí)8os' como dissimular e sobrepor, como esconder. No pensamento grego, a palavra a^áXXco, “eu engano”, nomeia uma conseqüência da essência de i[íeü8oç. Pensado de modo latino, o fallere, como levar à queda, sucumbir, diz a razão essencial do fJieuSoç. Qual a base para a primazia do fallere na formação latina da essência contrária para a verdade? É o comportamento fundamental dos romanos de governar os entes pela ordem do imperium. Imperium diz im-parare, estabelecer, fazer arranjos; prae- cipere, ocupar algo de antemão e, através dessa ocupação, ter o comando sobre isso, e, assim, ter o ocupado como território. Imperium é o mandamento, o comando. A lei romana, ius - iubeo, eu comando - está enraizada no mesmo domínio essencial do imperial, ou seja, do imperativo e do ser submisso. Comando é o fundamento da essência da dominação; esta a razão porque uma tradução mais clara e mais própria de imperium é “alto-comando”. Ser superior é parte e parcela de dominação. Ser superior somente é possível pela permanência constante na posição mais alta, e isso no modo da permanente superação dos outros. Aqui, temos o actus próprio da ação imperial. Na essência da constante superação reside, como o vale no meio das montanhas, a manutenção do controle e a subjugação. O simples “levar a sucumbir” no sentido do abater e dobrar é o modo mais grosseiro, mas não o modo genuíno e essencialmente imperial do levar à queda, à ruína. O mais forte e inerente traço da dominação essencial consiste em que os dominados não sejam reprimidos ou mesmo desprezados, e sim, o contrário, que eles consigam oferecer seu serviço, no interior do território do comando, para o asseguramento permanente da dominação. O levar à ruína é determinado pelo escopo de que os que caem permaneçam de certo modo de pé, mas não por cima. O levar à ruína imperial, o fallere, é, portanto, o enganar que deixa de pé, é o driblar. Para os romanos, a essência do engano, da indução ao erro e da desfiguração, e,

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conseqüentemente, do íjieüôoç é determinada pelo fallere, pelo sucumbir e levar à ruína. O errôneo se torna falsum.

Supondo agora que esta distinção entre o ijieuSoç grego e o falsum romano seja oriunda de outros âmbitos e tenha uma outra envergadura além da diferença no estilo grego e romano de panelas e pontas de espada, supondo que, aqui, uma transformação se realiza no fundamento essencial da historicidade de toda a história, então, devemos refletir com maior profundidade acerca dessa transformação romana da Grécia. É um evento que toca o âmago de nossa existência histórica, o fato de que o Ocidente, ainda hoje, e hoje mais decisivamente do que nunca, pense o mundo grego de um modo romano, isto é, de um modo latino, ou seja, de um modo cristão (como paganismo), isto é, do modo românico, moderno-europeu. O político, que como ttoXltlkóv surgiu uma vez da essência da ttóXlç grega, é compreendido de modo romano. A palavra grega “político” significa algo “romano”, desde o tempo do imperium. O que é ainda “grego” nessa palavra é somente seu som.

c) O imperial na forma do curial da cúria. A conexão entre “verum” e “verdadeiro”. O significado não-alemão de “verdadeiro” através do “verum"

romano-cristão. Verum: o direito estabelecido como palavra contrária ao falsum. Verum e a-pertum; XaQóv e seu correlativo a dXr|6éç

Como fica, então, a questão com respeito à essência do falso, do falsum romano? Uma consideração mais próxima do processo pelo qual os romanos acolheram a poesia, o pensamento, a fala e as configurações gregas mostra que o falsum, isto é, o que leva à queda, transformou o ijieuôos, ou seja, o que desfigura, segundo seu sentido, e fazendo-o se transformou a si mesmo e através disso se desalojou. Tal mudança é sempre a mais perigosa, mas, também, a forma mais duradoura de dominação. Desde então, o Ocidente conhece o ijieuôoç somente na forma do falsum. O oposto do verdadeiro é, para nós, o falso. Mas os romanos não colocaram somente as bases para a fundação da primazia do falso enquanto interpretação normativa da essência da não-verdade no Ocidente. Também a consolidação desta

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prioridade do falso em relação ao ijieüSoç e à estabilização dessa consolidação é uma obra romana. Mas a forma operativa nessa obra não é mais agora o imperium do Estado, e sim o imperium da igreja, isto é, o sacerdotium. O “imperial” emerge aqui na forma do curial da cúria do papa romano. Sua dominação se funda igualmente no comando. O caráter de comando aqui reside na essência do dogma eclesial. Por isso o dogma conta, de igual modo, tanto com o “verdadeiro” dos “crentes ortodoxos” como também com o “falso” dos “heréticos” e dos “não-crentes”. A inquisição espanhola é uma forma do imperium curial romano. Por intermédio da civilização romana, tanto imperial-civil como imperial-eclesiástica, o i[seí)8os grego se tornou para nós, no Ocidente, o “falso”. Correspondentemente, o verdadeiro assumiu o caráter no não-falso. O âmbito essencial do fallere imperial determina o não-falso como também o falsum. O não- falso, dito de modo romano, é o verum.

Na nossa tentativa de uma clarificação preparatória da essência de d \r|9eia e, portanto, da experiência grega da essência da verdade, elucidamos até agora as palavras ciX^Oes, desencoberto, o que descobre, ijseuóoç, o que dissimula, falsum, “o que leva à ruína” e daí, também, a própria palavra “falso”. Com isso foram preenchidas as principais condições para podermos reconhecer o estado de coisas da palavra latina para dXr|0éç, isto é, verum, e como está, antes de tudo, com a palavra alemã para òXijOeia, isto é, “verdade” e com a palavra “verdadeiro”. Uma vez que “verdadeiro” é a palavra contrária a “falso” e esta última provém da palavra latina falsum-, “verum”, como o contrário latino de falsum, necessita seguramente estar, mediante esta pertença conjunta com falsum, no mesmo domínio essencial e com isso também incluir o “verdadeiro” nesse mesmo domínio. Aqui estamos pressupondo naturalmente que “verdadeiro” e “verum” pertencem ao mesmo contexto, o que também procede, uma vez que a palavra alemã “verdadeiro” [wahr] foi, inicialmente, determinada pela palavra latino-cristã verum. Este processo tem sua própria profundidade e sua grande envergadura precisamente porque veritas e verum, na pregação da cristandade entre os germanos, não as apresenta aos alemães como palavras latinas casuais. Pois a fé cristã é levada como o todo, que ela é, propriamente como “a” veritas, como

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“o” verum, como “o verdadeiro”, porque Cristo diz de si mesmo: êyw e[|ii f| ôSòç m l f] àXf|0eia Kal f] £wf| (Jo 14,6).

Nessa frase, somente o som ainda é grego. Por isso ela pode logo ser traduzida para a língua latina da Vulgata: Ego sum via, et veritas, et vita (“eu sou o caminho, a verdade e a vida”). Nossas palavras “verdade” e “verdadeiro” tomam seu significado de verum e veritas como estas dominam na linguagem latina da igreja. Ao lado e anteriormente a isso, a palavra alemã “verdadeiro” [wahr\ ainda tinha seu próprio significado fundamental, que não se determina a partir do verum e do fialsum, embora esta seja uma questão controversa, porque obscura. É obscura porque nenhuma outra essência de “verdadeiro” e da “verdade” [Wahr-heit] vem à luz no interior da historicidade da história alemã. Não se diz, com respeito à palavra “verdadeiro”, de modo tão decidido como os irmãos Grimm dizem com respeito à palavra “falso”: “Uma palavra não-alemã”. No entanto, devemos dizer: “verdadeiro” é uma palavra não-alemã com respeito ao fato, inequivocamente claro, de que o significado básico de “verdadeiro” permanece determinado pelo verum latino-cristão.

Mas o que significa o verum latino? A raiz “ver” é indo- germânica, como a raiz de “fali” presente em acjiáXXaj, fallere, “sucumbir”. A raiz “ver" se mostra nitidamente na palavra alemã wehren (resistir), die Wehr (defesa), das Wehr (represa); nisto está presente o momento do “contra”, da “resistência”: Das Wehr - a represa contra..., na língua ítalo-osca “veru”, o portão - que bloqueia a passagem e a entrada, verostabulum - vestibulum - vestíbulo, o espaço que está antes da entrada, separando propriamente, que está “ver”, “contra algo”, (stabulum), o espaço na frente da porta. Mas na partícula “ver” não está apenas o significado de se colocar contra. Neste caso, a palavra “Ab-wehr” (“resistência”), literalmente “defesa de”, seria uma mera tautologia; “wehr” (“defesa”) já não é em si e somente defesa contra. No Parcifal, “ver” não significa resistência, e sim, a ação de defender-se, de manter-se ele próprio: resistência-para [wehr-für], “Ver” significa então: manter a posição, permanecer na disposição. Na verdade, resistência sempre pertence aqui num certo sentido, o que, por sua vez, só pode vir sempre de uma firmeza. “ Ver” diz então: estar de pé na disposição, permanecer na disposição, isto é,

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não deixar cair (nenhum falsum), permanecer em cima, manter-se a si mesmo, ser a cabeça, comandar. Aquilo que se mantém a si mesmo e a ação de permanecer de pé - o ereto. Assim, é do âmbito essencial do imperial que o verum, como palavra contrária para o falsum, tenha recebido o significado de direito estabelecido. Com isso, da palavra original “ver” surgiu um significado que se introduziu claramente na palavra do latim antigo veru, no sentido de portão e porta. O mesmo ocorreu na língua alemã com a palavra Wehr (represa), isto é, o portão que fecha e trava; a represa que fecha. O elemento originário em “ver” e verum é fechar, cobrir, esconder e proteger, salvar, mas não aquele de “defesa” [Wehr\ como resistência. A palavra grega correspondente desta raiz indo-germânica é epv\m - a arma de defesa, o encobrimento, ocultamento. épupa - com esta a palavra latina verum está imediatamente conexa -, entretanto, significa em grego precisamente o oposto da palavra grega para “o verdadeiro”, isto é, o oposto de àXf|0eia: verum, êpupa - o fechamento, o encobrimento; àXf|9eia - o des-cobrimento, desvelamento. Mas como poderia viger aqui de outro modo uma contraposição, se ambos, embora de modo velado, não estivessem relacionados à mesma dimensão essencial? A palavra romana para “o verdadeiro”, “ver”, tem a raiz que significa fechar-cobrir e abrir, um significado fundamental que foi certamente desfigurado ou jamais conseguiu manifestar-se própria e genuinamente. O oposto “ver-”, “verum” do que encobre, é o que não-encobre. Isso se opõe ao verum. Opor, agir contra, é expresso no latim pelo prefixo op-; ser contra o que encobre, contra o “ver”, é op-verio ou ap-verio, de onde em latim aperio: eu abro. O sentido principal de abrir, compreendido de modo romano, é “não- fechar”. Na palavra latina aperire, “abrir”, fala o original verum. Segundo a estrutura verbal, o particípio de aperio, apertum, não- fechado, corresponde ao áXr|0és' grego, o não-encoberto. O pertum cancelado pelo a-pertum é o verum. Isso corresponde ao Xa0óv (XaOes) grego. O “ver-” original, verum, significa o mesmo que o Xa0óv grego, portanto, precisamente o oposto de àXr|9éç. Numa fala rigorosa, o verum romano deveria ser, então, tomado como equivalente ao ijseüSos' grego, se o último for a palavra contrária à áXr|0és'. Mas o verum romano não somente não coincide com tjseuSos', mas é precisamente o oposto de ijseuSos' como entendido no

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latim, isto é, falsum. Se refletirmos sobre isso, então misteriosos caminhos da linguagem e da palavra acenam, eles mesmos, para o âmbito onde a possibilidade essencial da própria palavra, isto é, a possibilidade essencial da verdade de sua essência é decidida. Com respeito ao nome latino para verdadeiro, o verum, deveremos guardar na memória dois eventos:

1. Verum, ver-, significa originariamente fechamento, cobrimento. O verum latino pertence ao âmbito de significado do áXrjGéç grego, o descoberto, e de tal maneira que verum significa exatamente o contrário de áXriGéç: o fechado.

2. Mas porque agora verum é predicado como a palavra contrária a falsum e porque verum e falsum, mais sua contraposição, são decisivos para o domínio essencial do imperium, o significado de ver-, propriamente fechamento e cobrimento, recebe basicamente o sentido de cobrir por segurança contra. “Ver” é agora o afirmar-se, o permanecer em cima; “ver” é o oposto ao não-deixar-cair; verum é o permanecer constante, o colocado de pé, o erigido para cima, porque é o que erige a partir de cima. Verum é rectum (regere, “o regime”), o direito, iustum. Para os romanos, o âmbito do encobrimento e descobrimento simplesmente não vem a ser o âmbito essencial determinante da essência da verdade, embora o “ver” toque esta direção. Sob influência do imperial, verum torna- se logo o ser e estar em cima [Oben-bleiben), indicador para o que é reto; veritas é rectitudo, “conformidade” [Richtigkeit], dizemos nós. Essa caracterização originariamente romana da essência da verdade, que solidamente estabelece o traço fundamental, extensivo a tudo, da essência da verdade no Ocidente, provém, no entanto, em si, de um desenvolvimento da essência da verdade, que no interior do mundo grego já se anuncia e, ao mesmo tempo, caracteriza o início da metafísica ocidental.

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d) A transformação na essência da áXf|9eia desde Platão. A recepção da “representação” da áXf|9eia através da óp.oiojcris' (como

rectitudo da ratio) para dentro da ventas. A rectitudo (iustitia) da dogmática eclesiástica e a iustificatio da teologia evangélica. O

certum e o “usus rectus” (Descartes). Referência a Kant. A conclusão do círculo da história da essência de verdade na transformação de veritas em “justiça” (Nietzsche). O aprisionamento da òXf|9eia no

bastião romano da veritas, rectitudo e iustitia

Desde Platão, e especialmente através do pensamento de Aristóteles, se realiza no interior da essência grega da àXf|9eLa uma transformação, que, numa certa perspectiva, a própria àXf|9eia exige. AXr|9éç é, desde o princípio, o descoberto e o que descobre. O descoberto como tal pode ser descoberto para os homens e pelos homens unicamente se o seu comportamento revelador se ativer ao descoberto e permanecer numa concordância com ele. Aristóteles usa a palavra àXr|9eúeiu para este comportamento: para ater-se de modo revelador ao descoberto num falar que deixa aparecer. Essa atinência e concordância com o descoberto é, em grego, óp.oíoocn.s' - a correspondência reveladora que expressa o descoberto. . Essa correspondência toma e mantém o descoberto como o que ele é. Ter algo como algo significa em grego oiecrGai. O Xóyoç, que significa agora asserção, é constituído pelo óíeoQai. Essa correspondência reveladora se atém e se realiza ainda completamente no espaço essencial da àXrj9eia enquanto desencobrimento5. Ao mesmo tempo, no entanto, a óp.oí<jocus, isto é, a correspondência concordante, enquanto modo de realização do àXr|9eúeiu, exerce como que a “representação” normativa da áXr|9eia. Esta é, como a ação de não- desfigurar o ente, a igualitarização do dizer revelador com o ente que se mostra e se deixa descobrir, isto é, a sua ó|aoíwaiç. A partir de então àXf|9eia se apresenta, ela mesma, somente nessa forma essencial e é tomada também somente assim.

Veritas como rectitudo, proveniente de uma outra origem, é agora, no entanto, como que criada para receber em si a essência da

5. Sobre òpGós e òpGÓTTis, cf. abaixo, p. 120s.

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dXr|9eia na configuração agora “representativa” da Ó|_ioíü)CTi s . A correção de uma asserção é o conformar-se com um direito corretamente instituído e firmemente estabelecido. A Ó|iolojctis' grega, enquanto correspondência reveladora, e a rectitudo romana, como conformar-se com, têm ambas o caráter de auto-ajustamento para..., ambas têm o caráter de uma assimilação de asserções e de pensamento como questões, dadas previamente e firmemente estabelecidas. A assimilação é chamada adaequatio. No início da Idade Média, seguindo a trilha colocada pelos romanos, áXf|9eLa, apresentada como Ó[1olojctlç, se tornou adaequatio. Veritas est adaequatio intellectus ad rem. Todo o pensar do Ocidente, de Platão a Nietzsche, pensa em termos dessa delimitação da essência da verdade como correção. Essa delimitação da essência da verdade é o conceito metafísico de verdade. Mais precisamente, a metafísica tem sua essência a partir da essência assim determinada da verdade. Mas porque a Ó|iolüxjiç grega tornou-se rectitudo, o âmbito de áXf|9eLa, desencobrimento, ainda presente para Platão e Aristóteles em Ó[xoígjctlç, desaparece. Na rectitudo, no “auto-ajustamento para...”, reside, portanto, o que os gregos chamam oíecr9ai, ter algo por algo e aceitá-lo assim. Mas, enquanto para os gregos o “tomar algo por algo” ainda é experimentado no âmbito essencial do descobrir e do não- encobrimento, o “tomar algo por algo”, pensado de modo romano, permanece fora desse âmbito essencial. “Tomar algo por algo” é, em latim, reor - a principal palavra correspondente é ratio. É uma variação do dito romano: res ad triarios venif; podemos dizer: res àXr|9eLaç ad rationem venif. A essência da verdade, como da veritas e rectitudo, passa para a ratio do homem. O áXr|9eúeiv grego, descobrir do descoberto, que para Aristóteles ainda permeia a essência da Téx^r], transforma-se no auto-ajustar-se calculativo da ratio. Isso determina para o futuro como uma conseqüência da nova transformação da essência da verdade, o caráter tecnológico do moderno, isto é, da técnica de máquinas. Esta tem sua origem no âmbito originário, do qual surge o imperial. Este surge da essência da verdade como correção no sentido do auto-ajustar-se indicador, garantia da segurança de dominação. O “tomar como verdadeiro” da 6 7

6. Nota da tradução: “A questão chegou ao seu estado final.”7. Nota da tradução: “A áXf|9eia veio à razão.”

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w

ratio, de reor, torna-se uma segurança de amplo alcance e antecipatória. Ratio torna-se a ação de calcular, o cálculo. Ratio é o auto-ajustamento para o que é correto.

A ratio é uma facultas animi, um poder do espírito humano, cujo actus transcorre no interior do homem. Diferenciada da ratio está a “res”, a coisa. Na rectitudo como adaequatio, a ratio deve assimilar a coisa. Agora, o que está completamente ausente aqui é o espaço essencial de áXf)0eia, o não-encobrimento das coisas e o comportamento revelador do homem. A essência da verdade como veritas e rectitudo está sem espaço nem chão. A veritas como rectitudo é uma qualidade da mente ou da alma no interior do homem. Por isso, faz-se necessário perguntar com respeito à verdade: como é simplesmente possível que um processo interior na mente ou na alma do homem seja levado a concordar com as coisas lá fora? E assim as várias tentativas de esclarecimento começam a explicar, todas no interior de uma esfera não clarificada.

Se consideramos que já há longo tempo a essência do homem tem sido experimentada como animal rationale, isto é, como um animal pensante, a isso segue então que a ratio não é justamente um poder entre outros, e sim o poder básico do homem. O que ele consegue com esse poder, decide sobre sua relação com o verum e falsum. Para o homem conseguir o verdadeiro enquanto o reto e correto, ele necessita estar assegurado e estar certo do uso correto desse poder básico. A essência da verdade se determina a partir dessa segurança e certeza. O verdadeiro se torna o assegurado e o certo. O verum se torna o certum. A questão da verdade se torna a questão se e como o homem pode estar certo e assegurado tanto do ente que ele mesmo é, como dos entes que ele próprio não é.

O mundo romano, na forma da dogmática eclesiástica da fé cristã, contribuiu, essencialmente, para a consolidação da essência da verdade no sentido da rectitudo. É esse mesmo âmbito da fé cristã que introduz e prepara a nova transformação da essência da verdade, a transformação do verum para o certum. Lutero pergunta-se acerca da possibilidade e da condição de o homem ser um “verdadeiro” cristão, isto é, um homem justo, um homem justo para o que é justo, um homem justificado. A questão da veritas cristã se torna, num

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sentido agora acentuado, a questão da iustitia e iustificatio. Como conceito da teologia medieval, iustitia é rectitudo rationis et voluntatis - correção de razão e vontade. Rectitudo appetitus rationalis, a correção da vontade, o empenho pela correção é a forma fundamental da vontade no seu querer. A iustificatio já é, segundo a doutrina medieval, o primus motus fidei - o movimento fundamental da disposição da fé8. A doutrina da justificação, especialmente como a questão da certeza de salvação, torna-se o centro da teologia evangélica. A essência da verdade moderna é determinada a partir da certeza, da correção, do ser justo e da justiça.

O início da metafísica moderna consiste nisto: que a essência de veritas se transforme em certitudo. A questão acerca do verdadeiro se torna a questão acerca do uso seguro, assegurado e auto- assegurador da ratio. Descartes, o primeiro pensador da metafísica moderna, pergunta pelo usus rectus rationis, ou seja, facultatis iudicandi, pelo correto uso da razão, isto é, da capacidade de julgar. A essência do falar e do proferir asserções já é, há muito tempo, não mais o Xóyos grego, isto é, à o<\>a\ vejjQai, o deixar aparecer do desencoberto. A essência do falar é agora o iudicium romano, dizer o reto, isto é, ater-se, com certeza, ao que é reto. Por isso o livro fundamental da metafísica moderna, o Meditationes de prima philosophia de Descartes, inclui em suas reflexões sobre metafísica a meditatio quarta, que trata de vero et falso. A falsitas é compreendida agora, já que tudo tem a ver com o usus rectus rationis humanae, como usus non rectus facultatis iudicandi. O usus non rectus é error, erro. Ou melhor: errar e erro são concebidos a partir do usus non rectus facultatis iudicandi: o não-verdadeiro é o falso no sentido do errôneo, isto é, no sentido do uso incorreto da razão.

No segundo livro fundamental da metafísica moderna, a Crítica da razão pura de Kant, o usus, o uso da razão está em

8. Santo Tomás de Aquino, Opera Omnia, VI, Commentum in Quatuor Libros Sententiarum, vol. 1, d. II, q. I, a. V; Expositio textus: Justitia hic sumitur pro justitia generali, quae est rectitudo animae in comparatione ad Deum et ad proximum et unius potentiae ad aliam; et dicitur justitia fidei, quia in justificatione primus motus est fidei... [Exposição do texto: Justiça, aqui, é entendida como justiça geral, que é a retidão da alma em relação a Deus e ao próximo e de uma potência para outra; e chama-se justiça da fé, porque na justificação o movimento fundamental é da fé...]

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questão em toda parte. “Crítica da razão pura” significa essencialmente delimitação do uso correto e incorreto da faculdade humana da razão. A questão do “uso correto” trata da vontade de assegurar a certeza, para a qual o homem, colocado em meio ao ente e referido a si mesmo, necessita e quer se trazer. A veritas na compreensão cristã, isto é, como rectitudo animae, ou seja, como iustitia, dá à essência moderna da verdade o seu caráter, como certeza e asseguramento do conteúdo do comportamento humano. O verdadeiro, verum, é o que é correto, o que garante a certeza e, nesse sentido, é o reto, o justo.

Se experimentássemos e chegássemos a conhecer esses nexos como nossa história, isto é, como história do mundo moderno europeu, poderiamos nos surpreender com o fato de que no pensamento de Nietzsche, onde a metafísica do Ocidente alcança seu ápice, a essência da verdade esteja fundada na certeza e na “justiça”? Também, para Nietzsche, o verdadeiro é o reto, o que é dirigido pelo que é real, com o objetivo de ajustar-se em si mesmo e de fazer-se em si mesmo seguro. O traço fundamental de realidade é vontade de poder. O que é reto necessita conformar-se, ele mesmo, ao real, por isso deve expressar o que o real diz, e isso é a “vontade de poder”. Toda a correção necessita ser ajustada em relação à vontade de poder. Correspondência para o que a vontade de poder expressa é o reto, isto é, a justiça. Ela recebe sua essência, no fim da metafísica ocidental, do decreto da vontade de poder. Nietzsche usa muitas vezes a palavra “vida” como título para a “vontade de poder”, e ele a usa segundo a maneira de pensar “biológica”, comum desde a segunda metade do século XIX. Nietzsche então pode dizer: “Justiça é o supremo representante da própria vida”. Esse é um pensamento cristão, embora no modo do anticristo. Todo o “anti” pensa no espírito disso contra o que é “anti”. Justiça, no sentido de Nietzsche, apresenta a vontade de poder.

Verdade é, no Ocidente, veritas. O verdadeiro é o que, a cada vez em diversos níveis, se auto-afirma, permanece em cima, provém de cima, isto é, é o seu comando; mas o “em cima”, o “mais alto”, o “senhor” do senhorio pode aparecer de diversas formas. Para a cristandade o “Senhor” é Deus; “o Senhor” é “a Razão”; “o Senhor” é

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o “Espírito de mundo” [Weltgeist\. “O Senhor” é “a Vontade de poder”. E a “Vontade de poder”, como determinou Nietzsche expressamente, é, em sua essência, comando. Na época na qual o período moderno encontra sua plenificação num estado histórico total, global, a essência romana da verdade, a veritas, aparece como rectitudo e iustitia, como “justiça”. Essa é a forma fundamental da vontade de poder. A essência do que é “justo”, que permanece numa referência a essa essência da justiça, é determinada por Nietzsche de modo claro na seguinte nota escrita no verão de 1883, por ocasião de sua leitura de um novo livro de Schneider, Vontade animal [Der thierische Wille}: “O que é justo = a vontade, perpetuar uma atual relação de poder...”9

A veritas romana se tornou “justiça” da vontade de poder. O círculo da história da essência de verdade, como experimentada metafisicamente, agora se fechou. Entretanto, a áXijOeLa permanece fora deste círculo. A proveniência de sua essência é praticamente esquecida dentro da região da dominação da veritas ocidental.

Parece como se a áXf|0eta tivesse se retraído à história da humanidade ocidental. Parece como se a veritas romana, e a verdade que se desenvolve a partir dela como rectitudo e iustitia, correção e justiça, tivessem ocupado o lugar do âmbito essencial da áXijGaa. Não parece somente assim, é assim. O âmbito de essência da àXrjGeia está entulhado. Entretanto, se ele estivesse somente entulhado, então deveria ser fácil tirar o entulho e liberar uma vez de novo o campo. A dificuldade é que o âmbito essencial da àXf|Geia não está simplesmente encoberto de entulho; tem sido construído sobre esse entulho um enorme bastião da essência de verdade, determinado, em diversos sentidos, como “romano”. Ao “romano” pertence também o “românico”, como também cada coisa determinada essencialmente de modo moderno a partir dele, que entrementes tem se expandido na história mundial e não permanece mais limitado ao europeu. A conexão visível, aqui, entre Téxvr| como um modo do áXriGeúeiv e a técnica moderna de máquinas não pode ser exposta agora com maiores detalhes.

9. Cf. obra de Nietzsche, ed. Grossoktav, vol. XIII, n. 462, p. 205.

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Além disso, o bastião consolidando a essência da verdade como veritas, rectitudo e iustitia não se lançou somente ante a áXf|0eia, mas nas paredes desse bastião a própria àXf|0eia está encaixada, depois de primeiramente ter sido reinterpretada como uma das pedras de construção corretamente esculpidas para isso. Nisso está a razão de que, desde então, a áXf|0eLa é interpretada a partir da base da veritas e da rectitudo e somente a partir dela.

Como podemos ainda experimentar a áXf|0eLa, ela mesma, em sua própria essência primordial? Se isso nos é negado, como então podemos ver, no interior dos confins da dominação de veritas e rectitudo, que esse domínio da veritas, ele mesmo está fundado na região de essência de áXf|0eia, e constantemente se refere a ela, mesmo não tomando conhecimento ou recordando-se dela? Como, no âmbito dos confins da dominação de veritas, rectitudo e iustitia, podemos conhecer ou justamente buscar conhecer que veritas, rectitudo e iustitia não podem de fato exaurir a essência primordial da verdade e, em princípio, jamais podem exauri-la, uma vez que estas são o que são somente como conseqüência da áXr|0eia? A metafísica ocidental pode elevar o verdadeiro até o espírito absoluto da metafísica de Hegel e podem “os anjos” e “os santos” serem conclamados para “o verdadeiro”, no entanto, a essência da verdade tem declinado já há muito tempo desse começo, isto é, deste fundamento de sua essência. Tendo uma vez decaído de seu começo, assim permanece um decaimento.

Recapitulação

3) O destinar-se da atribuição do ser: consideração retrospectiva da história em relação à transformação da essência da verdade. Os

“balanços” da historiografia (Burckhardt, Nietzsche, Spengler). A “doação de sentido” da história na modernidade

Para captar algo da essência grega primordial, fundada em si mesma, nós, que vivemos tão distantes, necessitamos ter em mente

contra o que a <áXf|0eLa, ela própria, coloca, para nós. Com isso se torna inevitável um esboço da história da mudança essencial da verdade. Este não será um tratamento historiográfico da história do conceito de verdade, nem examinará como os povos apreenderam a verdade no curso dos séculos, pois essa apreensão, ela própria, permanece, em sua correção e incorreção, baseada na vigência de uma essência da verdade. Nosso escopo é a história da própria essência, da própria verdade.

Nessa indicação da história há, certamente, uma compreensão indicadora da essência da história. Seria algo fatal, se não fosse assim! E seria algo mais fatal ainda, se não houvesse clareza sobre isso. Não é menos certo que é difícil a indicação acerca da história e que a sua apresentação permanece exposta a múltiplas, grosseiras e inadequadas interpretações de todas as direções.

“A história”, concebida essencialmente, isto é, pensada em termos do fundamento da essência do próprio ser, é a transformação da essência da verdade. Ela é “somente” isso. Aqui o “somente” não indica uma restrição, e sim a unicidade da essência primordial, da qual, como fundamento, brotam as outras realizações essenciais da história como conseqüências essenciais. História “é” a transformação da essência da verdade. Entes históricos recebem seu ser de tal transformação. Em meio a estas transformações da essência da verdade ocorrem os instantes despretenciosos, raros, pois a história silencia. Estes instantes silenciosos de repouso velado são os instantes históricos primordiais, pois neles a essência da verdade se envia, originariamente, e se transmite aos entes.

Por longo tempo se pensava que, onde existiam ocorrências, movimentos e processos, onde algo se “passava”, lá tínhamos história, pois história tem a ver com o que “ocorre”, e “ocorrência” significa “transcorrer”. Mas acontecimento [Geschehen] e história [Geschichte] dizem: destino, destinação, envio. Genuinamente formulado em alemão, não falamos “de” história como “transcorrência”, mas “de destinação” [das Geschicht], no sentido do destinar-se do ser. Lutero ainda usa essa genuína palavra alemã [das Geschicht]. Permanece a questão sobre o que seria para o homem o essencialmente destinável [.Zu-schickbare] e o que se destina [Sichzuschickende]. Se a essência

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do homem se funda no fato de que ele é aquele ente para o qual o ser, ele próprio, se revela, então a destinação [Zu-schisckung] essencial e a essência “do destinar-se” é o desocultamento do ser. Se, no entanto, o desocultamento é a essência da verdade, e se, segundo a transformação cada vez nova desta essência da verdade, a destinação do ser também se transforma, então a essência “da história” é a transformação da essência da verdade.

No silêncio escondido dessa transformação repousa e vibra, firma-se e balança, consolida-se e irrompe, o que constatamos na base da “historiografia”, isto é, na base das investigações e explorações da “história” objetivada, como sendo os eventos e realizações, os dados [Sachen] e as ações [Taten], numa palavra, os fatos [Tat-sachen\. Essas constatações são, então, apresentadas com o enorme uso de aparelhos técnicos da pesquisa moderna despertando a aparência de que a técnica da historiografia seria a própria história. Assim, “o historiográfico” é identificado com o histórico. Na base dos elementos “historiográficos” são construídos “balanços”, são concebidas “taxações”, “cotas” de participação e “custos” são calculados, os quais “o homem” necessita cobrar ao longo da história. Certamente, não é nenhum acaso que também um pensador da história, do nível de Jacob Burckhardt, e precisamente ele, se movimente no âmbito de “balanços”, “taxações”, “cotas” e “custos”, e calcule a história segundo o esquema “cultura e barbarismo”. Também Nietzsche pensa a partir desse esquema do século XIX. Ele se empenha em “calcular em valores”, isto é, numa ação de cálculo enquanto final do pensar metafísico ocidental.

Exclusivamente com base na metafísica de Nietzsche, e sem qualquer pensamento metafísico original, no início do século XX, o autor Oswald Spengler traçou um “balanço” da história ocidental e proclamou O declínio do Ocidente [Untergang des Abendlandes]. Hoje, como em 1918, quando o arrogante livro com este título foi publicado, um público apressado correu somente para ver o resultado do “balanço”, sem mesmo considerar em que idéias básicas de história este balanço banal do declínio é feito. De fato, este “balanço” já foi previamente calculado de modo mais claro por Nietzsche e ao mesmo tempo pensado de modo diverso e em outras dimensões. Na verdade, um grupo de sérios pesquisadores constatou diversas “incorreções”

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do livro. O notável resultado foi que desde então a historiografia se movimentou sempre mais no horizonte das perspectivas e esquemas de Spengler, mesmo lá onde ela era naturalmente capaz de fazer constatações “mais corretas” e “mais exatas”. Somente numa época que perdeu toda possibilidade de uma reflexão evidente, poderia um autor apresentar tal obra, em cuja execução estão presentes brilhante acuidade, enorme quantidade de informação, forte capacidade para tipificar, ao lado da descomunal presunção de julgamento, rara superficialidade de pensamento e constante carência dos fundamentos. Neste confuso saber a meio caminho e nesta carência de pensamento surge então a situação peculiar de que os mesmos homens que se escandalizam com a primazia do modo de pensar biológico na metafísica de Nietzsche, sentem-se bem nos aspectos de declínio na visão spengleriana da história, a qual é baseada totalmente não em outra coisa do que numa grosseira interpretação biológica da história.

Visões modernas sobre a história, desde o século XIX, gostam de falar da “doação de sentido”. Isso sugere como se o homem pudesse, tomando por base a si mesmo, “emprestar” à história um “sentido”, como se ele simplesmente tivesse algo a emprestar, e como se a história necessitasse de um tal empréstimo, o que em verdade pressupõe que a história “em si”, e antes de tudo, seria sem sentido e cada vez deveria gentilmente esperar pela “doação de sentido” emprestado pelo homem. Mas o que o homem pode em relação à história é estar atento e cuidar de tal modo que a história não encubra e não recuse ao homem o seu sentido. Contudo, o homem já perdeu o sentido da história quando ele próprio, como o caso de Spengler mostra, privou-se da verdadeira possibilidade de somente pensar sobre isso como tal; na pressa da tirar “balanços” “historiográficos” usa-se a palavra “sentido". O “sentido” é a verdade, no que o ente cada vez como tal repousa. O “sentido” da história, entretanto, é a essência da verdade, na qual, em cada tempo, a verdade de uma época humana é e está fundada. Experimentamos a essência do verdadeiro somente com base na essência da verdade, que deixa, em cada caso, algo verdadeiro ser o verdadeiro que é. Tentaremos aqui e agora refletir mediante alguns passos acerca da essência da verdade.

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4) 0 evento da conversão da essência da não-verdade do 4íeuSog grego para o falsum romano. A plenificação da

transformação da veritas em certitudo no século XIX. O auto- asseguramento da autocerteza (Nietzsche, Fichte, Hegel)

A transformação da essência da verdade na história ocidental foi caracterizada em poucos traços. Os significados básicos dos pares de opostos G(Àr|0ég-4ieü8og, falsum-verum, verdadeiro-falso, incorreto-correto deveríam agora ser trazidos a uma reflexão mais diferenciada.

Na transformação da essência da verdade de à\if|0eia, através da veritas romana, para a adaequatio, rectituto e iustitia medievais, e a partir de lá para a certitudo moderna, para a verdade como certeza, validade e asseguramento, alteraram-se a essência e o caráter da oposição entre verdade e não-verdade. Aqui se formou e se consolidou a opinião usual de que a única oposição à verdade seria a falsidade. O resultado desta transformação da essência da verdade, que prevaleceu por séculos no Ocidente, é o evento da conversão da essência da não-verdade do ijjeuSog grego para o falsum romano. Essa transformação é a pressuposição para a caracterização moderna da essência da falsidade. Ela se torna error, erro no sentido do uso incorreto da capacidade humana de afirmação e negação. O uso correto do poder de julgamento é determinado em referência ao que assegura a autocerteza do homem. A perspectiva e a intenção [.Ab- sicht] de asseguramento determinam, por sua parte, a direção, o modo de visão e a escolha do que é representado como aquilo para o que os julgamentos de afirmação e negação são realizados.

A essência da veritas na forma da certitudo se desenvolve na direção da certeza do conteúdo da “vida”. A “certeza” da vida, isto é, sua constante “vantagem” [Vor-teil\ repousa, segundo Nietzsche, na correção, ou seja, na certeza essencial da “vontade de poder”. Esta é a realidade, isto é, a essência de todo “real”, não somente do homem. Essa correção como essência da vontade de poder, e isso significa, ao mesmo tempo, asseguramento e certeza como sua essência, é chamada por Nietzsche de “justiça”. Ele está falando, embora sem se

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dar conta, no sentido da tradição ocidental de veritas como de iustitia. Em uma nota do ano 1885 ele escreve10: “Justiça, como a função de um poder amplamente abrangente, o qual vê para além das pequenas perspectivas de bem e mal, portanto, tem um horizonte mais amplo da vantagem [Vortheil] - a intenção de receber algo, que é mais do que esta ou aquela pessoa” (“mais”, isto é, “mais valor”).

A partir disso é claro que o poder, para o qual aquelas perspectivas segundo a distinção entre “bom e mal” são “pequenas” perspectivas, se movimenta no horizonte mais amplo (e unicamente adequado ao poder), que Nietzsche determina como o horizonte da “vantagem”. Mas qualquer vantagem torna-se segura, unicamente, mediante a tomada de vantagem. A vantagem atribui tudo ao auto- asseguramento do poder. Poder somente pode ser assegurado pela constante superação de poder. Nietzsche reconheceu, claramente, e trouxe também à fala que, no âmbito da vontade de poder, a simples preservação de um nível de poder alcançado já representa um decréscimo no nível de poder. Na essência do asseguramento está presente uma constante auto-relação de si mesmo para si próprio e nisso está a auto-elevação exigida. O auto-asseguramento como autocerteza, nessa constante auto-relação, necessita tornar-se absoluto no relacionar-se a si próprio. O traço fundamental da essência metafísica da realidade como verdade e dessa verdade como certeza absoluta aparece, preparado por Fichte, pela primeira vez na metafísica do espírito absoluto, em Hegel. Aqui, a verdade se torna autocerteza absoluta da razão absoluta. Na metafísica de Hegel e na metafísica de Nietzsche, isto é, no século XIX, se completa esta transformação da veritas em certitudo. Essa plenificação da essência da verdade romana é o sentido histórico próprio e velado do século XIX.

10. Cf. obra de Nietzsche, Vontade de poder, ed. Grossoktav, vol. XIV, n. 158, p. 80.

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§ 4. A multiplicidade das oposições para o descobrimento no seucaráter essencial

a) A rica essência do ocultamento. Modos de ocultamento: diTcríri, (|i€0o8oç), Keú0oi, KpÚTTT(i), koXúttto). Homero, Ilíada XX, 118;

Odisséia VI, 303; III, 16; Ilíada XXIII, 244. O poder desvelante do mythos e a questão das divindades gregas

Veritas e rectitudo não realizam mais a essência da d\f|0eia. Isso quer dizer que a essência da não-verdade não é necessariamente a falsitas, a falsidade. E mesmo se retornássemos à essência mais originária da não-verdade, ao i[)e&8oç, o qual, como dissimulação, mostra o traço fundamental do encobrimento e, assim, apresenta a genuína essência contrária ao desencobrimento, a questão permanecería aberta, se nesta essência contrária, no ijsebSoç, se exaurisse toda a possível oposição para a verdade. No curso de nossas considerações vimos, de fato, que os gregos, ao lado do ijícuSos, também conhecem o CT^áXXeiv, o enganar. Esta espécie de dissimulação, o assim chamado “enganar”, como um modo de esconder, já está fundado neste último e não é nenhum modo distintivo de essência contrária ao desencobrimento. Isso vale também como um modo de ocultamento ainda muito mais comum entre os gregos, que eles nomeiam pela palavra áuáTr|. Traduzimos de novo por “engano”. Literal e concretamente esta palavra diz: “a partir de [ab - vom] TráToç”, isto é, a partir do caminho e da vereda reta. A palavra grega usual para “caminho” é f) Ò8óç, de onde f] |ié0oòoç, nossa palavra estrangeira “método”. Mas f] |ié0o8oç não significa para os gregos “método” no sentido de um procedimento com ajuda do qual o homem empreende um assalto nos objetos com suas investigações e pesquisas, f] |ié0o8oç é o permanecer a caminho [Auf- dem-Weg-bleiben], isto é, estar a caminho, que não é pensado pelo homem como “método”, mas um caminho que já existe, irrompendo a partir dos verdadeiros entes como eles mesmos se mostram inteiramente a si mesmos. O fj |ié0oòoç grego não se refere ao “procedimento” de uma investigação, mas antes à própria investigação

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como um permanecer a caminho. Para discernir essa essência de “método”, compreendido de modo grego, devemos primeiro entender que pertence ao conceito grego do caminho, óôóç, um elemento perspectivo e prospectivo. “Caminho” não é o segmento no sentido de uma distância e intervalo entre dois pontos e, dessa maneira, propriamente uma multiplicidade de pontos. A essência prospectiva e perspectiva do caminho, o qual, ele mesmo, conduz para o desencoberto e, ao mesmo tempo, a essência do curso é determinada com base no desencobrimento e num ir reto para o desencoberto. á- TTcmri, aquém e ao lado do caminho, com isso oferece uma outra prospectiva e de tal maneira que dá a impressão de que, como caminho, pode ser de fato um caminho que vai “diretamente” para o desencoberto. O caminho aquém e lateral nos deixa encontrar o que as aparências, no que diz respeito ao caminho reto, não mostram. Mas, na medida em que também o desvio mostra algo, ele, o desvio, troca o que se mostra a ele com o que propriamente se pode mostrar a si mesmo no caminho que conduz retamente. Mediante essa troca o des-vio [Ab-weg] engana como des-vio, ao que segue então a duÓTq, o engano; dTraTqBqvai diz: dar-se num caminho aquém e lateral, de tal modo que a coisa a ser experimentada permaneça desfigurada. Também a àTrÓTíi é uma maneira de encobrimento, ou seja, de desfiguração, que distorce o oculto. Toda dissimulação e desfiguração é um encobrimento, mas nem todo encobrir é um ocultar no sentido de modificar e distorcer.

Se, segundo isso, o desencobrimento pode estar ainda relacionado com o encobrimento de outras formas, então resultaria uma relação essencial, a qual, conforme nosso modo de pensar, significaria que falsidade e desfiguração (e, conseqüentemente, não- verdade entendida naqueles termos) não são os únicos opostos à verdade como tal, pressupondo, naturalmente, que experimentemos a essência da verdade como desencobrimento, isto é, agora cada vez como descobrimento. Conheciam, porém, os próprios gregos, além da desfiguração (^côSos-), ainda outros modos de encobrimento? Certamente. Isso testemunha o seu uso da linguagem. Conhecemos as palavras usuais kcúGu), kpútttco, KaXúnrtú, que significam: cobrir, esconder, velar. Ilíada XXII, 118: Tróia “esconde” ricos tesouros. Odisséia IX, 348: o navio de Odisseu tem um “esconderijo” de vinho

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precioso. Odisséia VI, 303: a casa e a estância dão abrigo para o hóspede (êelvoç) que acabou de chegar. Tais modos de abrigar (esconder) e encobrir (proteger) pertencem ao âmbito das relações cotidianas. Eles não manifestam nenhum nível extraordinário da essência do encobrimento. É até mais essencial dizer (Odisséia III, 16) que a terra abriga os mortos. A Ilíada XXIII, 244, fala de cílSl Keú0oo|i,ai, de ser abrigado no Hades. Aqui a própria terra e o âmbito subterrâneo entram em relação com o abrigar e encobrir. O contexto essencial entre a morte e o encobrimento aparece aqui. A morte não é para os gregos, como tampouco o nascimento, um processo “biológico”. Nascimento e morte recebem sua essência a partir do âmbito do desencobrimento e encobrimento. Também a terra tem sua essência a partir do mesmo âmbito. Ela é o “entre”, isto é, entre o ocultamento do subterrâneo e a luminosidade, o descobrimento do supraterreno (da abóbada celeste, oúpavóç). Para os romanos, no entanto, a terra, tellus, terra, é o seco, a terra em diferença do mar; essa distinção diferencia sobre que construção, colonização e instalação são possíveis, em distinção daqueles lugares onde elas são impossíveis. Terra se torna territorium, o âmbito de colonização como âmbito de comando. Na terra romana está presente o acento imperial, do que a yata e yf) gregas nada têm.

As palavras gregas Kpi/nTeiu e KpÚTTTe(j0aL (de onde crypta e cripta) significam a ação de encobrir resguardando. KpÚTrTeiu se aplica, antes de tudo, à vv£, à noite. Similarmente, dia e noite em geral manifestam os eventos do descobrimento e do encobrimento. Uma vez que, para os gregos, tudo o que é irrompe a partir do seu fundo, surge da essência do encobrimento e do desencobrimento, eles, por isso, falam da vvt; e do cmpavos, da noite e da luz do dia, sempre que querem expressar o começo do todo que é. O que é dito desse modo é o que primordialmente pode ser dito. É a fala autêntica, a palavra primordial. p.u0oç é a palavra grega que expressa o que pode ser dito antes de tudo o mais. A essência do próprio p.OGos' é determinada com base na àXf|9eLa. puGos é o que revela, descobre e deixa ser visto; especificamente, ele deixa aparecer o que se mostra a si mesmo, previamente e em todas as coisas, como o que está presente em toda “presença” [Anwesen], Somente onde a essência [Wesen] da palavra está fundada na áAxjGeia, portanto entre os gregos, somente

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onde a palavra, assim fundada, como fala preeminente sustenta toda a poesia e pensamento, portanto entre os gregos, e somente onde poesia e pensamento são o fundo da relação primordial com o encoberto, portanto entre os gregos, somente lá encontramos o que dá significado ao nome grego p.ü9os, o “mito”. A proposição de que existe somente um mito, ou seja, o [0.0005 dos gregos, dificilmente pode ser expressa, pois refere-se a algo por demais óbvio assim como é o caso da proposição: “Há somente um fogo fogoso”. Mas o “mito” tem sim a ver com os deuses. “Mitologia” é “doutrina dos deuses”. Certamente. Mas, se perguntássemos o que é entendido aqui por “deuses”, a resposta seria que se refere aos “deuses gregos”. Não é suficiente usar a palavra do deus singular dos cristãos como a medida e, então, apontar que os gregos praticavam um politeísmo, e de fato um politeísmo de deuses que são comparativamente menos “espirituais” e, como tal, de uma natureza inferior. Enquanto não tentarmos pensar os deuses gregos de modo grego, isto é, com base na essência da experiência grega do ser, ou seja, com base na áXrjGeia, não temos nenhum direito de dizer uma palavra sobre esses deuses, nem a favor nem contra eles.

b) A conexão entre [iO0o5 e as deidades gregas. Terra, dia, noite e morte em relação ao desencobrimento. O misterioso como um dos

modos do encobrimento. A exclusão da negatividade na falsidade e na des-locação como uma e única essência contrária à verdade

Uma vez que nestas anotações para o “poema doutrinário” de Parmênides estamos buscando a essência da deusa AXf|9eia, mais cedo ou mais tarde deveremos ser levados a elucidar a conexão entre [O.O0O5 e as deidades gregas, pois somente aqui elas podem ser consideradas. O 110005 é a saga, palavra tomada literalmente no sentido da fala essencialmente primordial. “Noite” e “luz” e “terra” são um |iô0O5, não “imagens” de encobrimento e de desvelamento, “imagens” que um pensar pré-filosófico não transcende. Em vez disso, encobrimento e desencobrimento são previamente experimentados de tal maneira essencial que apenas a simples mudança de noite e dia é

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suficiente para destacar a emergência de todo essencial contido na palavra p.OGos'. A simples diferença entre claridade e escuridão, que usualmente ligamos ao dia e à noite, não diz, em si mesma, nada. Já que a diferença assim compreendida, “não diz nada” a respeito da essência do encobrimento e do descobrimento, não tem, também, nenhum caráter de püGoç. A diferença entre claridade e escuridão permanece “não-mítica”, se, previamente e antes de tudo, iluminação e ocultamento não aparecem como a essência da luz e da escuridão e, junto com eles, o que vem à luz e recua para a escuridão aparece de tal maneira que, precisamente, este vir à luz e o retroceder para a escuridão perfazem a essência, em que toda presença e toda ausência moram. Somente se estivermos atentos a isso, temos uma medida para compreender que o pensador primordial pensa o próprio ser baseado no desencobrimento e encobrimento. E somente se tivermos essa medida, podemos ter acesso às palavras gregas que significam encobrir e cobrir nas suas relações essenciais com terra, morte, luz e noite.

Naturalmente, o bastião da essência prevalecente da verdade, a veritas e verdade como correção e certeza, oculta a àXf|9eia primordial. Isso não significa simplesmente que, em termos culturais, nas apresentações historiográficas do mundo grego não conheçamos e apreciemos mais o “conceito de verdade” inicial grego. Significa, porém, algo essencialmente diferente e decisivo para nossa história: a totalidade dos entes, nesse meio tempo, tem se transformado de tal maneira que entes como um todo, e por isso também o homem, não mais são determinados com base na essência da àXf|0eLa. Conseqüentemente, toda vez que escutamos falar de encobrimento e das maneiras de encobrir, pensamos logo e apenas nas formas de atuação que o homem, ele mesmo, controla. Não experimentamos o encobrimento e o desencobrimento como evento que advém “sobre” os entes e os homens. Se, no entanto, para os gregos, a essência do encobrimento e do desencobrimento foi vivida de modo tão essencial, como um traço marcante do próprio ser, não seria necessário que o encobrimento, ele mesmo, mostrasse uma essência mais primordial, para a qual o encobrimento na forma de ^ebôoç, de dissimulação, não é, de maneira alguma, suficiente?

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Certamente podemos, numa certa extensão ainda, reconhecer e compreender diferentes modos de encobrimento. De fato, devemos proceder assim se quisermos permanecer, ainda, em condições de aprender a intuir uma outra maneira de encobrimento que, para os gregos, para além e anterior ao 4seü8oç, tem co-determinado a verdade, o desencobrimento e a não-desfiguração de todos os entes.

Usualmente, o encobrir é para nós o esconder, uma maneira de colocar fora (fazendo “desaparecer”) ou colocar de lado. O que para nós não está mais junto de, isto é, ao lado de (em grego napá), está “fora de” (em grego òttó). O que está “fora” [weg\, está desaparecido, ausente. O que está fora, de um certo modo não está mais; está destruído. A destruição, como um pôr de lado, é uma forma de encobrimento.

Entretanto, existe também uma maneira de encobrimento pela qual o encoberto, de forma nenhuma, é colocado de lado e destruído, mas é resguardado e salvo para o que é. Esse encobrimento não nos priva da coisa, como a dissimulação e a distorção, a subtração e a colocação de lado. Esse encobrimento preserva. É característico, por exemplo, do que chamamos, num sentido notável, o raro. Usualmente, isto é, para a simples avidez de calcular e agarrar rapidamente, o raro é o disponível, que se dá somente de tempos em tempos e, mesmo assim, só para uns poucos. Mas o verdadeiramente raro é e está disponível precisamente sempre e para cada um, mas tem sua vigência num encobrimento, guarda algo extremamente decisivo e mantém conosco, em prontidão, altas exigências. A relação própria para o raro não é de caçá-lo, mas de deixá-lo surgir na serenidade como reconhecimento do encobrimento.

Existem, por certo, modos de encobrimento que não somente preservam e guardam e, dessa maneira, de fato, se retraem, mas que deixam advir e presenteiam, de uma maneira única, algo essencial. A doação e a instituição de um estilo essencial é cada vez um encobrimento, e não somente do instituidor, porém do próprio instituído, na medida em que este não entrega seus tesouros, mas os deixa vir para o desencoberto: nele está abrigada uma riqueza que é concedida no grau em que ela permanece protegida de todo o abuso. À proximidade do encobrimento, aqui vigente, pertence aquele que é

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caracterizado como o secreto. Este pode, mas não necessita, ter o traço fundamental do mistério. A essência do mistério se tornou estranha ao homem desde o momento em que ele “esclarece” o misterioso imediatamente como o “que não se deixa explicar”. O mistério se torna o “resíduo”, ainda esperando para ser explicado. Mas dado que o esclarecimento técnico e a possibilidade de explicar providenciam o critério para o que pode valer como real, o resíduo do inexplicável, remanescente, torna-se o supérfluo. Assim, o mistério é somente ainda o que é deixado para trás, o que ainda não entrou no cálculo e não foi incorporado no circuito de procedimentos explicativos.

Seria seguramente por demais simplista, e como tal sem evidência no pensamento, se estivéssemos dizendo que o pequeno eu de algum homem individual podería elevar a possibilidade de calcular o critério da realidade do real. Mais do que isso, a modernidade guarda correspondência com a profundidade metafísica do curso de sua história, quando, de acordo com sua vontade de incondicional “ausência de resíduos” de todo o processo e de toda a instalação, constrói largas avenidas através de todos os continentes e, assim, não deixa mais lugar livre para aquele resto no qual o mistério ainda projeta um brilho na forma de mera impossibilidade de explicação. O secreto no mistério é uma espécie de encobrimento, que se distingue por sua insignificância, em virtude da qual o mistério é um mistério aberto. Usualmente costumamos desfigurar a fala de um “segredo aberto” ou “mistério aberto” e a aplicamos para a situação onde rigorosamente não existe nada de segredo ou misterioso como tal, mas onde se supõe abrir para o outro o que já é conhecido de todo o mundo. O “mistério aberto”, no sentido genuíno e rigoroso, pelo contrário, ocorre quando o encobrimento do misterioso é, simplesmente, experimentado como encobrimento essencial e abrigado num silêncio que emerge e se constitui enraizado historicamente. A abertura do mistério não consiste em resolvê-lo e, assim, destruí-lo, mas em tocar o encobrimento do simples e do essencial e deixar o encobrimento entregue à sua dinâmica de aparecer. A insignificância do próprio encobrimento para o mistério genuíno já é um resultado da essência do simples, que por sua vez se encontra primordialmente fundado.

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Uma outra espécie de encobrimento no interior do mistério é mostrada por meio do clandestino, em cuja proteção, por exemplo, se movimenta uma conspiração. Aqui o encobrimento tem a característica de uma extensa e intrincada emboscada que permanece à espreita do momento de sua repentina irrupção. Também aqui reina o sutil, porém com caráter de camuflagem e engano. Por isso, essa sutileza necessita sempre projetar-se em todo lugar e permanecer concentrada em salvaguardar sua aparência exterior.

Bastante distante desses modos de encobrimento e, no entanto, no âmbito de sua vigência, está o encoberto no sentido do simplesmente ainda não conhecido. Este inclui, por exemplo, o horizonte das descobertas científicas e técnicas. Quando o encoberto, nesse sentido, é trazido ao descobrimento, lá surgem “os milagres da tecnologia” e o que é especificamente “americano”.

Essas indicações a respeito dos traços essenciais do encobrimento e da sua dinâmica, consideradas em sua plenitude, trazem como validade o seguinte: estamos tocando aqui um reino de cuja plenitude essencial quase não suspeitamos e que, antes de tudo, não compreendemos, pois estamos fora do modo de sua experiência. Seria então um erro pensar que a rica essência do encobrimento se deixa apreender com segurança mediante a enumeração dos diversos modos de encobrimento sob a guia dos vários “significados de palavras”. Quando falamos de “espécies” de encobrimento, não podemos entender como se houvesse um gênero “encobrimento em geral”, ao qual, seguindo o esquema da classificação lógica usual, múltiplas espécies, subespécies e variações estariam subordinadas. A conexão entre as espécies de encobrimento é histórica, e o histórico necessita ser mantido distinto do “historiográfico”. Este último é informação sobre e manipulação do histórico num sentido puramente técnico, ou seja, calcula balançando o passado contra o presente e vice-versa. Todo o historiográfico se orienta com base no histórico. A história, ao contrário, não tem alguma necessidade da historiografia. 0 homem da historiografia é, sempre, somente um técnico, um jornalista. Um pensador da história é sempre bastante distinto do historiógrafo. Jacob Burckhardt não é nenhum historiador, mas um verdadeiro pensador da história.

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Tem sido nosso interesse mostrar que o desencobrimento não tem como único “oposto” o encobrimento, no sentido de desfiguração e falsidade, mas que existem outros modos de encobrimento de uma ordem completamente diferente, que não trazem nenhum traço da “negatividade” de falsidade e distorção. Com essa indicação, o mistério pode talvez se tornar mais aberto, o mistério que, na metafísica do Ocidente, permitiría à falsidade atingir um status e uma prioridade, como se fosse a única oposição à verdade. Para a presente tarefa de uma elucidação da essência de áXf|9eia, entretanto, a indicação das assim chamadas “espécies” de encobrimento pode ajudar-nos a compreender aquele modo de encobrimento, que permanece constantemente presente no mundo grego, mas que não é questionado adiante na sua essência, com a exceção de que, para os gregos, a verdadeira palavra que expressa esse encobrimento e seu reino conservou, suficientemente, elementos para sua própria elucidação.

Assim, nos deparamos com algo surpreendente: os modos do encobrimento, que não têm nada em comum com a dissimulação, desfiguração e engano, perpassam tudo numa vigência essencial, embora eles não sejam explicitamente nomeados enquanto modos de encobrimento. Talvez não tenham sido explicitamente nomeados porque já estão constituídos de maneira essencial. Eles aparecem então, em cada caso, já sob a forma essencial do desencobrimento, que de um certo modo retém, ainda, em si mesmo, o encobrimento e sua dinâmica, justamente porque necessitam fazer assim. Quando vemos essa conexão, nos aproximamos do milagre da essência primordial da áXf|0eia.

No entanto, não estamos suficientemente preparados para dizer mais sobre isso. Uma coisa que devemos considerar agora é que os gregos falam de um encobrimento distinto de dissimulação e distorção e que tem relação com o encobrimento expresso reticentemente no pOGos'. O encobrimento sobre o qual se irá refletir agora é expresso pelos gregos nas suas palavras XauGáveaGcu, èmXauGávecjGaL.

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Recapitulação

Clarificação suplementar: o “caminho” do pensador que chega no “poema doutrinário”. A conexão entre a essência da deusa e os

caminhos para e de sua casa. Caminho lateral e descaminho. A questão da outra essência contrária do descobrimento. A essência do descobrimento e retraimento expressa em palavra e mito. A perda da

palavra como preservação da relação do ser com o homem. A transformação romana do tò Çüov Xóyou l \ o v em “animal”

rationale. Referência a Kant, Nietzsche, Spengler.MO0oç, ê-rroç, Xóyoç

Em relação à terceira indicação dada a nós pela tradução de dAriGeui como “desencobrimento”, perguntamo-nos pelo caráter contraposto da oposição, na qual “a verdade” se encontra. A preleção anterior e a de hoje, em sua interconexão, realizam um passo essencial, decisivo não somente para uma compreensão da essência da oposição entre verdade e não-verdade, mas decisiva para a compreensão do poema doutrinário de Parmênides. Assim, a recapitulação da última preleção necessita ser clarificada com alguns complementos, enquanto a exigência imediata de reflexão necessita ser postergada. A oposição à “verdade” é chamada, dito de maneira breve e sumária, “não-verdade”.

A palavra “não-verdade” e a palavra “in-justo” não significam usualmente, para nós, simplesmente uma falha de justiça ou uma falta de verdade. Assim como a “in-justiça” está contra a justiça, assim também a “não-verdade” está em oposição à verdade. O Ocidente pensa esta essência contrária à verdade como falsidade. Na esfera desta essência contrária à verdade, emergem variações de falsidade na forma de conseqüências essenciais da não-verdade, de sua asserção e comunicação. Também para os próprios gregos pertence ao ijseuôoç uma multiplicidade de maneiras de desfiguração e distorção. Chamamos cmáTri “a decepção”, porque nela a pertença da essência de iJjeüSoç para o âmbito essencial de áXr|0€ia se torna visível. Devemos pensar essa palavra, em tudo o que ela denota,

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exclusivamente de modo grego. á-Trcm] é o caminho errante e o caminho lateral. Para os gregos, no entanto, o traço básico do caminho - f| Ò8óç, f| |ié0o8oç (“método”) - consiste em que este, dirigindo o processo, tanto abre uma visão prévia [Ausblick] e uma perspectiva [Durchblick] quanto providencia o descobrimento de algo.

Em conexão com essa indicação acerca da essência do caminho, devemos recordar o primeiro verso selecionado do “poema doutrinário” de Parmênides, onde a deusa saúda o pensador que chega num “caminho” e imediatamente revela a ele que é seu destino ter que ir ao longo de um caminho extraordinário èicròç ttcítou, fora, para além do caminho que os homens normalmente trilham. Isso significa que algo mais se mostrará, por si mesmo, ao pensador no seu caminho, uma visão que o caminho usual não oferece ao homens. Uma vez que algo extraordinário se mostra por si mesmo no caminho revelador do pensador, temos, aqui, um automostrar-se, isto é, um desencobrir “por excelência”. Essa é a razão porque um grande fragmento do “poema doutrinário” fala de af||iaTa, de “sinais”. Existe uma conexão essencial entre a essência da deusa AXf|9eia e o caminho que conduz à sua morada, que é determinável baseando-se em sua casa. “Caminho” como ação de colocar manifestações a partir de uma visão prévia e numa perspectiva: isso pertence ao reino da dXf|9eia. Ao mesmo tempo pertencem à dXf|9eia e à sua vigência os caminhos. Essa relação essencial entre àXf|9eLa e òôós mais tarde se torna conhecida, unicamente, de um modo encoberto, na medida em que está relacionada com seu fundamento, ou seja, relacionada com o “fato” de que um “método” é necessário para obter representações corretas. O caminho, TTáToç, TTcrrri, do pensador leva, na verdade, para além do caminho usual dos homens. Deixamos em aberto se este “caminho fora” é somente um caminho lateral. Poderia também ser o contrário, que o caminho usual do homem fosse somente um caminho lateral permanente, ignorante de si próprio. Mas um caminho fora da estrada não necessita ser um caminho lateral, no sentido de ser “extravagante” e estranho. Ao mesmo tempo, um caminho lateral não é necessariamente um caminho fora do comum. Mas isso é o que diz amcnr]. As visões possibilitadas pelo caminho fora do comum representam distorções daquelas visões que se dão no caminho que conduz diretamente à coisa. Conduzir a um caminho errante [Ab-weg]

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é uma troca confusa de caminhos, uma espécie de desfiguração e distorção, de ^eüôos e, assim, engano. Tudo isso “corre” contra o des-encobrimento, contra a verdade, e é, com isso, uma espécie de não-verdade; colocado de modo grego: não-descobrimento e, com isso, um encobrimento.

A essência de ijseDSoç, pensada como os gregos a entenderam, recebe elucidação da essência de áXf|0eLa, do desencobrimento, que vigora como descobrimento. O ijjeuôos, COmo essência contrária da áXpGeia, é, então, determinado mais claramente como a ação de encobrir desfigurando. A áXrjGeia, por sua vez, emerge mais determinadamente como a ação de descobrir no modo do deixar aparecer não-desfigurador. O desencobrimento é a não- desfiguração.

A questão que surge, então, é se desfiguração e distorção, juntas com suas variações essenciais, são os únicos modos possíveis de encobrimento. Se a pergunta necessita ser respondida negativamente, então outros modos do encobrimento necessitam ser possíveis. Aqui, pois, está fundada a possibilidade de que verdade, enquanto descobrimento e desencobrimento, permanece ainda relacionada a outros modos de ocultamento, de que o descobrimento, na sua essência, não está reduzido à ação de não-desfiguração.

Para o nosso modo de pensar, isso significa que a essência contrária à verdade não é exaurida nem realizada como falsidade. Mas, ao mesmo tempo, torna-se questionável se o “contra” tem, necessariamente, o sentido do simples adverso ou hostil.

Obviamente, para nós hoje, por causa do longo e não questionado predomínio da falsidade como a única oposição conhecida e reconhecida da verdade, é bastante “natural” e “óbvio”, dizer que se algo pode ser uma oposição à verdade, esta somente pode ser a falsidade. Por isso somos inclinados a procurar a essência contrária da àXf|GeLa somente no ijseuSos', mesmo quando discutimos a visão grega. E de fato, num certo sentido, os próprios gregos encorajam essa tendência, pois desde cedo eles identificam dXr|0és e áipeuSés, com o resultado de que este i|)e 08oç é precisamente o que é negado pelo á em áXfjGeia. Nisso reconhecemos que mesmo se

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tomarmos á\f|9eia de modo sério, no sentido do descobrimento e do desencobrimento, e se renunciarmos a toda interpretação equivocada de àX.f|9eia como veritas, isso ainda não é garantia de que estamos experimentando àXf|9ei.a na sua essência primordial.

Se i|jeü8os não é o único modo do encobrimento, quais são os outros? E como se pode determinar, a partir deles, uma outra essência contrária ao descobrimento? Os gregos experimentam e expressam encobrimento de muitas formas, não somente no interior da esfera do agir cotidiano e da consideração das coisas, mas, também, a partir da perspectiva suprema dos entes como um todo. Morte, noite, dia, luz, a terra, o subterrestre, o supraterrestre são atravessados pelo desencobrimento e pelo encobrimento e permanecem sob a mira dessa essência. Em toda parte vige primordialmente a ação de emergir em direção ao descoberto e de afundar para dentro do encobrimento.

Esta vigência do descobrir e do encobrir, que se dá sempre, previamente e em toda parte, para todo o ente e no todo do ser, é expressa na palavra dos gregos. É o dito primordial - o lendário. Por isso a essência da palavra e da lenda experimentada pelos gregos tem seu fundamento e sua eminência no fato de que palavra e legenda deixam aparecer desencobrimento e encobrimento, o descoberto e o encoberto.

A palavra essencial não é comando, ordem, proclamação, promessa ou “doutrina”. Evidentemente uma palavra jamais é mera “expressão” posterior de “representações”. A palavra é um modo da preservação reveladora do desencobrimento e encobrimento dos entes, um modo que pertence unicamente à antigüidade grega e está confiada à sua essência. Na palavra e como palavra, o ser dos entes é dado em relação à essência do homem, de tal modo que o ser dos entes, em virtude dessa relação com o homem, deixa a essência do homem emergir e receber a determinação que chamamos de grega. Segundo essa determinação, o homem é tò Cüjov Xóyov exoy - o ente que emerge de si mesmo, de um tal modo que neste desabrochar (cj)úais'), e em favor dele, recebe a palavra. Na palavra, o ente que chamamos homem se relaciona com o ente no todo, em meio ao qual o homem, ele próprio, é. Ccoou significa “ente vivente”. Mas não

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devemos compreender £tof| _ “vida” aqui, nem no sentido do grego posterior, nem no sentido romano, nem no sentido “biológico” moderno, como na “zoologia”. “0 ente vivente” é o cfrúaei òv, um

1 ente cujo ser é determinado pela cjnjcuç, pelo desabrochar e abrir-se. Em verdade, essa determinação grega da essência do homem logo foi transformada pela interpretação romana: çojou se tornou animal, Àóyos- se tornou ratio. 0 homem é animal rationale. No pensamento moderno ratio, razão, é a essência da subjetividade, isto é, da egoidade do homem. Por isso, para Kant, o homem é aquele “animal” {animal) que pode dizer “eu”. Quando pensamos £toov como “animal” ao modo moderno-biológico, ou mais genericamente como “ser vivo”, pensamos num modo romano-moderno e não-grego. Toda a antropologia, a filosófica e a biológico-científica, apreende o homem como o “animal pensante”. Nos séculos da metafísica, antes de Nietzsche, a essência da “vida” ou da “animalidade” não era ainda compreendida como vontade de poder, e o homem ainda não tinha alcançado a pura autopotencialização para todo o poder e, portanto, não “ultrapassara” a determinação essencial de então. Assim, o homem atual ainda não passou para “além” do homem como ele era até então. Ele ainda não é o super-homem.

Este termo, super-homem, no sentido da metafísica de Nietzsche, não significa, contrariamente à opinião popular, um homem que desenvolveu seu porte físico para além da medida normal, com uma estrutura óssea gigante, com a maior quantidade possível de músculos, mas com pouco cérebro. Em vez disso, “super-homem” é um conceito essencialmente metafísico-histórico e significa o homem que, determinado como animal rationale, passou para o domínio essencial da vontade de poder como a realidade de tudo que é real. Assim, Nietzsche pode dizer que o homem que ainda não é super­homem é o “animal que ainda não foi identificado”, isto é, o animal acerca de cuja essência uma decisão metafísica final ainda não foi realizada. Perseguindo essa determinação metafísica última do homem, Oswald Spengler escreveu no seu livro muito popular 0 homem e a técnica. Contribuição para uma filosofia da vida [Der Mensch und die Technik. Bietrag zu einer Philosophie des Lebens], 1931, p. 54: “0 caráter do animal de rapina livre migrou nos traços essenciais do indivíduo para o povo organizado, é o animal com uma

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alma e muitas mãos. ” Então ele acrescenta uma nova: “E com uma cabeça, não muitas.”

Pela reinterpretação romana da experiência grega da essência do homem, Xóyoç, isto é, a palavra, se torna ratio. A essência da _ palavra é então banida de seu fundamento e de seu lugar essencial. Ratio e razão tomam o seu lugar. Naturalmente, tem sido reconhecido e notado que o homem tem a faculdade da “linguagem”. Linguagem, entretanto, se torna uma faculdade entre outras. Finalmente, surge a curiosa situação de que uma filosofia especial, a “filosofia da linguagem”, se torna necessária paralelamente à “filosofia da arte” e à “filosofia da tecnologia”. O aparecimento de uma “filosofia da linguagem” é um sinal imperioso de que o conhecimento da essência da palavra, isto é, a possibilidade de uma experiência da essência primordial da palavra se perdeu há muito tempo. A palavra não preserva mais a relação do ser com o homem, mas, em vez disso, é uma formação e uma coisa da linguagem. Linguagem é uma das propriedades do homem, como olhos e ouvidos, sensações e _ inclinações, pensamento e vontade; é a faculdade apta a expressar e _ comunicar a “experiência vivida”. A palavra é explicada com base em palavras, e estas a partir da linguagem entendida como “fenômeno de expressão”, que acontece de estar à nossa disposição. A linguagem e a palavra têm a função de acolher “o verdadeiro” e “a verdade” na forma expressiva da articulação de linguagem, e nesse modo elas têm a função de expressá-los. “A verdade”, no entanto, tomada em si mesma, enquanto “correção”, é uma questão relacionada à representação de objetos. A representação ocorre no “interior”, e a linguagem é a “exteriorização” desse interior. Assim, correção é comunicada numa asserção correta; o pensar e a atividade racional do homem entram no âmbito expressivo “da linguagem”, com a conseqüência de que isso é considerado completamente em ordem, que já com os antigos gregos áXijOeui ocorre predominantemente em conexão com ênoç e elireiv, com a palavra e com o dizer legendário. Mas o fundamento para esse “fato” não está no caráter de linguagem como “expressão”, e sim na essência da áXijOeia, que, como a essência do próprio ser, exige a essência do homem por si mesma, como aquela “essência” que se relaciona com os entes como tais.

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Não é porque a verdade é, portanto, muitas vezes enunciada, mas porque a essência da palavra e da legenda é fundada na essência da verdade e pertence a ela, que a palavra grega para “verdadeiro”, àXqGéç, já ocorre em Homero “conectada” com a “linguagem”. Uma palavra grega para “palavra” é ó pü9oç. Uma outra “palavra” é iettoç. Não é casual que a palavra poética primordial dos gregos, a palavra de Homero, seja uma “épica”. De novo, uma outra palavra para “palavra” é Xóyoç. Devemos pensar que desde cedo os gregos tiveram

■ diversos termos para “palavra”. Por outro lado, eles não tiveram uma palavra para “linguagem”. Eles têm, naturalmente, a palavra yXuiCTüa, língua, mas não pensam a palavra com base na “língua”, por meio da qual a palavra é falada. Assim sua determinação da essência do homem não é tò dv9ptoTTOç £còov yXwCTcrav exov - um ser vivente que tem a língua. Vacas e mulas também têm uma “língua”. Se, no entanto, é uma característica essencial do homem a de ter a palavra e de poder apropriar-se dela, se os gregos experimentam e entendem o ser humano desse modo, então não é necessário que eles, quando se distinguem entre si mesmos e quando distinguem sua humanidade em relação aos outros, tomem como ponto de referência para essa distinção precisamente essa distinção essencial?

Os gregos distinguem-se eles mesmos em relação aos outros povos e os chamam de |3áp|3apoi, aqueles que têm uma espécie estranha de linguagem que não é nem |iü9oç, nem Xóyos', nem <ettoç. Pois para os gregos, o oposto a “barbarismo” não é “cultura”, mas o

> morar no seio do pôGoç e do Xóyoç. “Cultura” só existe a partir do início do período moderno; iniciou no momento em que veritas se tornou certitudo, quando o homem colocou-se por si mesmo e criou a si mesmo, pela sua própria “cultivação”, cultura, e, pelo seu próprio “trabalho criativo”, tornou-se um criador, isto é, um gênio. Os gregos não conhecem nem algo como “cultura”, nem algo como “gênio”. Assim, é curioso que, também, ainda hoje, os melhores filólogos clássicos façam divagações sobre a “cultura genial” dos gregos. Do ponto de partida dos gregos, o que é chamado de “cultura” no período moderno é uma organização do “mundo espiritual” produzido pelo poder próprio do homem. “Cultura” é o mesmo, essencialmente falando, que tecnologia moderna; ambas são, num sentido estritamente grego, não-míticas. Pensado de modo grego, “cultura” e

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“tecnologia” são formas de barbarismo, não menos do que é “natureza” em Rousseau.

MüGoç, cttoç e Xóyoç se co-pertencem essencialmente. “Mithos" e “logos” aparecem numa oposição erroneamente muito _ discutida, somente porque são o mesmo na poesia e no pensamento . grego. No título ambíguo e confuso de “mitologia”, as palavras |ií)9oç e Xóyoç são conectadas de tal maneira que ambas perdem sua essência primordial. Tentar compreender |iü0oç com o auxílio da “mitologia” é um procedimento equivalente a tirar água com a ajuda de uma peneira. Quando nós usamos a expressão “mítico”, pensamo-la justamente no sentido aqui delimitado: “o mítico” - o puO-ico é o descobrir e encobrir salvaguardados na palavra que revela e oculta a_ manifestação primordial da essência fundamental do próprio ser. Os termos morte, noite, dia, a terra, a abóbada celeste [Himmelsgewôlbe\ dizem modos essenciais do descobrimento e do encobrimento.

§ 5. A oposição a d A q6c-ç: AaQóv, AaOeç. O evento da transformação do encobrimento que se retrai e o comportamento

humano do esquecer

a) A vigência do encobrimento no Xau0ávea0ai. O encobrimento de quem esquece no esquecido: o esquecimento. Hesíodo, Teogonia,

verso 226s. A Xrj9r| e a essência escondida de Éris (Luta), da Filha da Noite. Referência a Píndaro

Na discussão acerca da oposição a àXr|9és' (a descoberto e ao que descobre) já notamos que o oposto, se ele fosse expresso na linguagem de modo imediato e adequado, teria residido em um Xa0éç, XaGóv; em vez disso, encontramos tò ijseuóoç. Mas, também, tornou-se claro que, para os gregos, XavGáueLV, ser encoberto, tem uma qualidade essencial vigente de modo unequívoco, dita na fundação propriamente “regente” da palavra: XauGávto f|K0ju, eu me aproximo sem ser notado, ou, de modo grego: eu sou no encobrimento como quem se aproxima. Com base nessas relações aparentemente apenas “gramaticais”, ocorre aí

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algo mais, que podemos formular brevemente deste modo: encobrimento e desencobrimento determinam os entes como tais. Isso significa: desencobrimento e encobrimento são as características básicas do ser.

Os gregos, porém, expressam a vigência do encobrimento antes de tudo na palavra XavGáueaGcu ou èmXauGáveaGou, que traduzimos usualmente por “esquecer” e com isso a reinterpretamos de uma tal forma que a essência grega se perde. Nossa meditação anterior já mostrou que, no “esquecer”, ocorre, para os gregos, um encobrimento. O esquecido é, na experiência dos gregos, o que afundou num encobrimento (numa latência), especifícamente de maneira que o afundar, isto é, o encobrimento, permanece encoberto para aquele próprio que esqueceu. De modo mais exato e ainda mais grego: aquele que esquece permanece para si mesmo encoberto em sua relação com o que acontece aqui, no que diz respeito ao que nós, então, em conseqüência desse evento, chamamos de o esquecido. Aquele que esquece não esquece somente o esquecido, mas, no decorrer, esquece a si próprio como aquele para quem o esquecido se subtraiu. Toma lugar aqui um encobrimento que atinge igualmente o esquecido e, também, aquele que esquece sem, entretanto, fazer esquecer ambos.

Esse encobrimento mostra uma irradiação toda própria. Para o evento de um tal encobrimento temos apenas a palavra “esquecimento”, a qual diz realmente aquilo no que o esquecido afunda - como a ocorrência que exclui o homem do esquecido. Em geral concebemos a ação de esquecer como o comportamento de um “sujeito”: nós o compreendemos como quem não retém a coisa e falamos então de “esquecimento” como aquilo pelo que algo nos “escapa” quando, por causa de uma coisa, esquecemos a outra. A tendência de esquecer, aqui, significa pouca capacidade de atenção. Ao lado disso, existe o esquecimento, que explicamos como conseqüência de “distúrbios de memória”. A psicopatologia chama isso de “amnésia”. Mas a palavra “esquecimento” é por demais fraca para nomear o esquecimento que pode atingir o homem; pois esquecimento é somente a inclinação para a distração. Se acontece que esquecemos o que é essencial e o deixamos de lado, o perdemos e o riscamos de nossa mente, então não podemos mais falar de “esquecimento” [Vergesslichkeit] mas de “obliteração” [Vergessenheit], Esta última refere-se a um âmbito onde algo sucede, vem e sobrevêm, mas

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ela também nos atinge e nós mesmos o permitimos de uma certa forma. Um nome mais apropriado para o evento da obliteração é a palavra obsoleta Vergessung: algo cai na obliteração. Na maioria das vezes andamos tão apressados que deveriamos parar para perguntar que relação “a obliteração” tem com esquecimento. Seria a obliteração “algo” que sucede e sobrevêm, somente em conseqüência do fato de um número de homens não mais pensar neste “algo”? O fato de os homens não mais pensarem nisso já não seria somente a conseqüência de que os próprios homens foram golpeados por uma obliteração e, por isso, não podem mais saber nem o que eles possuem nem o que eles perdem? O que é, então, a obliteração? Não é nenhuma mera produção humana nem, simplesmente, uma negligência humana.

Se pensamos agora na obliteração como um retraimento [Verborgenheit\, que pertence a um específico ocultamento [Verbergung], então nos aproximamos pela primeira vez do que os gregos nomeiam com a palavra Xf)0r|. Na Teogonia de Hesíodo (verso 226s) lemos:

Airràp Epis aTuyepri Téice \iév TIóvou áXyiuóevTa Ar|0qu Te Aipos' Te kou AXyea SaicpuóeuTa

“Mas a (deusa) Luta, a obscura, pariu o penoso, aquele que traz sofrimento,Como também obliteração, ausência e sofrimento, a cheia de lágrimas.”

Ar|0q, “Lethe”, é a filha de “Éris”. Ela é mencionada junto com Aipióç, o que é traduzido de modo falso como “fome”. Sem dúvida, a ação de esquecer é “penosa” assim como a “fome” é penosa e torturante. Mas os efeitos do esquecimento e da fome no estado do corpo e da alma, isto é, em termos modernos, o aspecto fisiológico e psicológico ou, numa palavra, os aspectos “biológicos” do esquecimento e da fome não “interessam” aos gregos. Por isso, algo mais é pensado, quando XfjOq e XLp.ós' são nomeados juntos. Não são seus efeitos no homem, e sim sua própria essência que sustenta sua identidade. Ar|0r|, a obliteração, é um encobrimento que subtrai algo

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essencial e aliena o próprio homem a si mesmo, isto é, o faz estranho à possibilidade de morar na sua essência. A i|iós não significa “fome” no sentido do desejo de alimento; a palavra está conectada com XeÍTTOj, deixar, deixar desaparecer, e significa a falta de alimento. Ai|iós' não significa a não-satisfação de desejos e necessidades humanas, mas se refere à ocorrência da ausência de uma dádiva e de uma distribuição. Uma tal ausência é caracterizada essencialmente pela ação de vir a faltar, como um retraimento. Pensemos sobre isto: algo sobrevêm e então passa a faltar. Este passar a faltar [Weg-fallen] é uma espécie de vigência do que falta [Weg-wesen], vigência da ausência [Ab-wesung]. O que passa a faltar não retorna mais ao que é presente e, no entanto, este “faltar” [Weg] se volta em seu abandono contra o que é presente e, especificamente de um modo misterioso, que não toma nenhum conhecimento dele. Aqui vislumbramos a essência recôndita do oposto e do conflitante. Por isso Xf|9r| e Xl[ióç descendem da “Éris”, da deusa “Luta”. Quando a penúria e o sofrimento são apontados aqui, entre outros, como descendentes da Luta, então essa derivação da Luta é para nós um aceno de que devemos evitar o perigo da interpretação equivocada moderna e não compreender a dor e o sofrimento de modo “psicológico” como espécies de “vivências”. A interpretação usual na direção do “vivencial” é a razão principal por que o âmbito da tragédia grega ainda permanece para nós completamente fechado. Ésquilo e Sófocles, por um lado, e Shakespeare, por outro lado, são mundos incomparáveis. O humanismo alemão misturou-os e fez o mundo grego completamente inacessível. Goethe é uma fatalidade.

Na Teogonia de Hesíodo nos é dito sobre a XrjOr) que ela, junto com Xip.ós', é descendente de Éris. Epig, ela própria, é a filha da Nú£, a qual é chamada ôXorj, um nome que em Homero e Hesíodo muitas vezes pertence à Molpa. Costuma-se traduzir por “ruinoso”. Isso de novo é “correto” e, ao mesmo tempo, não-grego, pois não vemos por que a noite deve ser “ruinosa”. Arruinar é destruir, aniquilar, isto é, privar-se do ser, ou seja, de modo grego, tirar a vigência essencial. A noite é òXofj porque deixa tudo que é presente desaparecer no encobrimento. Em que medida Molpa é chamada ôXor|, isso será clarificado quando considerarmos a expressão de Parmênides, Molpa kqktí, “destino ruim”. O que Hesíodo diz de

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Xí|0r| é suficiente aos gregos para captarem a essência; entretanto, para nós, modernos, é muito pouco e não nos torna capazes de ver claramente a essência de Xf|9r| e reconhecer sua relação essencial com áXf|0eui. De fato, encontramos muitas vezes Xf|0r|, especialmente nos poetas, embora eles não a mencionem do modo decisivo como os pensadores falam de áXf)0€La. Talvez corresponda mais à essência de Xf|9r| que esta seja silenciada. Refletimos muito raramente sobre o fato de que os mesmos gregos, a quem a palavra e a linguagem foram concedidas primordialmente, poderíam, pela mesma razão, silenciar também de uma maneira única. Pois “silenciar” não é simplesmente não dizer nada. Aquele que não tem nada de essencial a dizer, também não pode silenciar. Somente no interior da fala essencial, e unicamente através desta, vigora o silenciar essencial, que nada tem a ver com guardar segredos, esconder ou com “reservas mentais”. Os pensadores e poetas gregos silenciam amplamente sobre a Xf|0r|. Mas talvez não seja uma mera coincidência o fato de que, na época da plenitude do mundo grego, a essência de Xt|9t| foi, uma vez mais, explicitamente recordada em um significativo contexto. Antes de o considerarmos em detalhe, tomemos um verso da sétima Ode olímpica de Píndaro, pois ele pode clarificar a essência de Xf|9r| num aspecto importante. Certamente devemos renunciar a escutar o esplendor poético dessa ode como um todo ou até, simplesmente, a parte que imediatamente nos interessa.

b) O temor em Píndaro, Ode olímpica VII, 48s; 43s; e em Sófocles, Édipo em Colono, 1267. A aperfi (decisão) como o desvelamento do

homem determinado com base na áXr)0eia e aiSojç

O poeta narra o |iü9oç da colonização da ilha de Rodes, por ele celebrada. Os colonizadores vieram sem nenhum resíduo do fogo vivo e deveríam então fundar um lugar sagrado e ter sacrifícios sem fogo no ponto alto da cidade “Lindos”, isto é, sobre sua áKpórToXiç.

Teimai' 8 ’ áiTÚpoiS' iepotç dXaoç èv CtKpOTTÓXl.

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Certamente, não foi nenhuma negligência arbitrária o fato de os colonizadores chegarem sem o fogo. Deve ter ocorrido algo que não estava simplesmente na sua competência, pois o que os homens fazem ou deixam de fazer como tal, o que eles experimentam e/ou para o que se capacitam é determinado pela determinação de sua própria essência. Com referência a esta última, o “mito” da fundação da cidade é introduzido (Ode olímpica VII, 43s).

èv 8 ’ à p e T Ò u

é|3aXev ra i x^PP-Ot ’ áu0pcÓTroLOL ITpogaGéoç Ai8cóç' ém pàu (3aíue ti kol XáGaç ÔTéKpapTa vé<j)OS',Kai TTapéXKeL TTpayp.áTcou òp0àu Ó8òu ê£u) 4>pei'côu.

“Mas o temor dispõe o homem para o desabrochar da essência e a alegria o dispõe para o pensar prévio; mas às vezes lhe sobrevêm a nuvem escura do ocultamento, que retém o caminho direito além das ações e as coloca fora do que é a descoberta plena de sentido.”

Essa palavra traz a elucidação essencial poética mais bela possível da Xr|0r|. Aqui Xá9a está em contraposição a aí.Sojs'. Traduzimos por “temor”. Mas esta palavra não deve nomear um sentimento “subjetivo” como também nenhuma “disposição vivencial” do “sujeito” humano. A lScóç (temor) sobrevêm para o homem como o determinante, isto é, o que cria uma disposição de afinação. Assim como se torna claro, com base na contraposição Xd0a (encobrimento), o temor determina a dXf|9eia, o descoberto segundo seu desencobrimento, no qual se acha toda a essência do homem com toda a sua capacitação. AÍ8iós, uma palavra fundamental da poesia de Píndaro, e com isso uma palavra fundamental dos próprios gregos, não significa jamais, mesmo se compreendermos o temor como o que cria afinação, uma simples timidez, angústia ou medo. O modo mais fácil para atingir a essência do temor [Scheu], como é pensado aqui, resulta de sua essência contrária, ou seja, isso que chamamos de

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“nojo” [.Abscheu]. O temor nos predispõe a pensar, antecipadamente, o que dispõe a essência do homem em relação aos entes como um todo. Aiôojs - pensado de um modo grego - não é um sentimento que o homem possui, mas a disposição que, enquanto disposição, determina sua essência, isto é, determina a relação do ser com o homem. Por isso aiSoj? é o que há de mais alto na proximidade essencial do deus supremo Zeúç. Assim Sófocles diz (Édipo em Colono, 1267):

áXX’ êoTL yàp íca! Zr|vl aúvGaKOç Gpóvw A LS a iç èiT ’ épyoLÇ TTâ a iv,

“Mas A l ô i ú ç , junto com Zeus, mantém sua sede essencial, reinando sobre todas as outras obras” (entes produzidos e constituídos pelo homem).

O próprio ser sustenta o temor, isto é, temor de ser. Nesse modo o ser, no seu princípio primordial, protege sua própria essência. Esse temor diz aíStós', o qual impulsiona algo para além do homem, èuépaXeu apeiáv. ápeTrj é uma palavra grega igualmente essencial como aLôcóç. A palavra dpeTd (f|) deixa-se traduzir menos ainda do que aLStóç. “Virtude” soa por demais “moralístico”; se traduzirmos por “efetividade” [Tauglichkeit], pensando esta em relação à “habilidade” e “produção”, soa no todo de modo mais “moderno” e nos conduz à errância. dpeTr| significa a emergência, a abertura e a integração da essência fundamental do homem no ser. òperr) está relacionada com (j>ud, palavra de Píndaro para a essência do homem tal como desabrocha no desencobrimento. dpeTrj e dpTÚQ) são da mesma raiz, como a palavra latina ars, o que a torna a palavra romana para Téx^n, a qual traduzimos por “arte”. Com base nessa emergência e abertura integrada de sua essência, o homem é “decidido” na àperf], ou seja, resoluto, aberto, desvelante e desvelado em relação aos entes. Em tal dpeTd, de-cisão, o homem está em sentido literal “de-cidido” com respeito ao ser dos entes; isto é, “de-

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cisão” significa ser sem nenhuma cisão do ser, decidido, ou seja, não separado dele.

àpeTÓ, entendida de modo grego como “decisão”, como o desencobrimento da essência humana determinada com base na à\f|0eia e no aiScoç, é algo essencialmente diferente da noção moderna de “decisão”, fundada no homem como “sujeito”. A essência dessa última decisão é baseada no ato da vontade do homem, que se coloca a si mesmo, de modo voluntarista, e, somente a si mesmo. A decisão do homem moderno renascentista deriva da vontade de vontade. Nesse âmbito se inclui a ápeTT| pensada de modo romano, como virtus, em italiano virtü, de onde a palavra “virtuosidade”. A “decisão” no sentido moderno é a ordenação fixada da vontade em si mesma e pertence, metafisicamente, ao contexto da vontade de vontade, cuja forma mais próxima se mostra como vontade de poder. A decisão, no sentido moderno, não está fundada, metafisicamente, na áXf|9eia, mas na autocerteza do homem como sujeito, isto é, na subjetividade. A decisão concebida de maneira moderna é o querer do que é querido em seu próprio querer; nesse querer ela é arrebatada pelo querer. “Ser arrebatado”, em latim, é fanatice. A característica distintiva da decisão moderna é “o fanático”. Em contraposição, a de­cisão experimentada de modo grego, enquanto abertura desveladora de si para o ser, tem uma outra origem essencial, ou seja, a origem baseada no ser experimentado de modo diverso - baseada no aL8wç, no temor; este lança e envia a ápeTÓ para o homem. O temor como essência do ser traz ao homem o desencobrimento dos entes. Mas oposto a alSüJS' vige [waltet] a XdOa, o encobrimento, que chamamos de obliteração.

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Recapitulação

1) Os três títulos da história essencial do Ocidente. Referência a Ser e tempo. Pensar essencial. Referência a Hõlderlin e a Píndaro. O

começo da relação essencial do ser com o homem na palavra e na saga. A essência grega de homem. Referência a Hesíodo

Além dos modos de desfiguração e distorção, vige um encobrimento, que aparece na essência da morte, da noite e de todo o noturno, da terra e de todo o sub e supraterrestre. Um tal encobrimento perpassa os entes como um todo, do primeiro ao último. Este encobrir-se traz em si um modo de possível descobrimento e desencobrimento dos entes como tais, modo este que encadeia tudo previamente. Mas, seja onde for, e seja qual for o modo como os entes se deixam alçar para o descobrimento, lá o ser “vem” “à palavra” em um sentido eminente. Segundo a vigência originária e integradora de todo encobrimento e desencobrimento, a palavra é de igual e originária essência que o desencobrimento e o encobrimento. A essência própria da palavra é que ela deixa os entes aparecerem no seu ser e preserva o que aparece, isto é, o descoberto como tal. O ser se manifesta, primordialmente, na palavra.

Se tentarmos descobrir, com base nesta relação essencial primordial de ser e palavra, a história essencial escondida do Ocidente, então podemos nomear os simples eventos desta história com três títulos. O uso de tais títulos obviamente é sempre precário, se não se vai para além de tais títulos. O primeiro começo da história essencial do Ocidente está sob o título “ser e palavra”. O “e” indica uma relação essencial que o próprio ser (e não os homens, que podem refletir posteriormente sobre isso) deixa emergir para trazer nessa relação sua essência à verdade. Com Platão e Aristóteles, que trazem à fala o início da metafísica, a palavra se torna Xóyoç no sentido de asserção. Esta se transforma, no transcurso do desenvolvimento da metafísica, em ratio, em razão e em espírito. A metafísica do Ocidente, a história essencial da verdade dos entes como tais no todo, expressa no pensar de Platão a Nietzsche, pode ser resumida sob o título: “ser e ratio ”. Essa é a razão

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por que, na época da metafísica, e somente nela, aparece “o irracional” e, em sua seqüência, “o vivencial”. Pensamos no título Ser e tempo, “tempo” aqui não significando nem o tempo calculado do “relógio” nem o “tempo” da “vivência” no sentido de Bergson e de outros. O nome “tempo” neste título, de acordo com sua pertença, claramente expressa ao ser, é o nome próprio dado para a mais original essência de áXf|9eia e nomeia o fundamento essencial para a ratio e para todo pensar e dizer. “Tempo” é, na obra Ser e tempo, por mais estranho que isso possa soar, o nome prévio [Vorname] para o fundamento primordial da palavra. “Ser e palavra”, o começo da história essencial do Ocidente, pode ser experimentado de modo mais originário. O tratado Ser e tempo aponta para este evento, de que o próprio ser envia uma experiência mais originária para a humanidade ocidental. Este começo mais originário pode se dar apenas como o primeiro começo para o povo histórico de poetas e pensadores no Ocidente. Essas frases nada têm a ver com uma consciência missionária presunçosa; pelo contrário, elas têm a ver com a experiência das confusões e dificuldades com as quais um povo consegue, somente lentamente, se integrar ao destino ocidental, o qual encobre em si um destino mundial.

Por isso, necessitamos saber que este povo histórico, se podemos falar aqui de um “vencer”, tem sido já vitorioso e invencível, desde que permaneça o povo dos poetas e pensadores, que é na sua essência, e enquanto não sucumbe ao terrível - sempre ameaçador - desvio e desconhecimento de sua essência.

Não digo com isso nada de novo, como simplesmente nenhum pensador pode no todo ser escravo do prazer de dizer o novo. Encontrar novas coisas e pesquisá-las é coisa da “pesquisa” e da técnica. O pensador essencial deve sempre dizer somente de modo primordial o mesmo, o antigo, o mais antigo possível, o começo primordial. Com este vigor essencial é dito por Hõlderlin, o mais germânico dos poetas, porque poetiza inspirado pela história ocidental do próprio ser e é, por isso, o primeiro poeta dos alemães a aparecer, e como o poeta expressou isso no seu poema intitulado Cântico alemão [Gesang des Deutschen]n? 11

11. Cf. obra de Hõlderlin, ed. Hellingrath, vol. IV, p. 129. Até o genitivo neste título já é enigmaticamente equívoco.

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“Ó sagrado coração dos povos, ó pátria!Pacientemente aceitando tudo igual à silenciosa mãe terra

e tudo desconhecendo, mesmo se os outros já obtêm de suas profundidades o que é melhor nelas.

Eles colheram os pensamentos, o espírito de ti,eles gostam de colher as uvas, entretanto, eles desprezam-te,

videira não-formada! Que tu, revolvendo o chão, sucumbes de modo selvagem à errância.” (IV, 129)

Para os gregos, palavras como |i09oç, erros, pf)|ia e Xóyos acenam para o mostrar-se do ser ao homem, para que este o conserve como o que foi concedido em sua própria essência, e nesta custódia encontre e mantenha sua própria essência como homem. Por isso, o destino de “ter a palavra”, Xóyov êxeLV, é uma distinção essencial da humanidade, que se tornou histórica com a humanidade gregaL

Porque a saga, enquanto palavra desvelante, contém a relação primordial do ser com o homem e, dessa forma, tem presente, então, a relação do homem com os entes, por esse motivo a saga e o dito originário são também mais reais do que qualquer outro ente que o homem venha a criar ou constituir. A pf|p.a, o dito que fala e é falado, ultrapassa toda épy perra, segundo uma palavra de Píndaro (Neméias IV, 8). No entanto, não é qualquer palavra superior a toda outra “obra”, mas somente aquele dito, que está no favor de x^pi-S, de tal maneira que na palavra aparece a benevolência da graça do ser emergente. Nós, hoje, e na “cultura” geral moderna, somente com grande dificuldade podemos obter uma vaga idéia de como, para os gregos, a palavra e a saga inicia, sustenta e plenifica a relação essencial do ser com o homem. Especialmente a “imagem” usual e cômoda que temos dos gregos nos impede, simplesmente, de refletir de modo adequado acerca da relação, que tudo sustenta, entre ser e palavra. Pois nos é dito que tanto as obras de arquitetura e de escultura dos gregos, seus templos e estátuas, seus vasos e pinturas não são menos “expressão” da vivência grega do que o seu pensamento e poesia. Assim, a ênfase que colocamos na relação entre ser e palavra, se não é exatamente “falsa”, seria, ao menos, unilateral.

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Nossa meditação acerca da essência de àXr|9eia haverá de retornar a essa objeção no lugar apropriado.

Somente onde uma humanidade se enredou na tarefa de dizer a palavra, Xóyov ex6iV> somente lá se dá a indicação que possibilita a preservação do desencobrimento dos entes. Apenas onde tal indicação se mantém na sua vigência, e nela previamente o descobrimento aparece como o próprio ser, vige também o encobrimento de uma maneira que jamais pode ser simplesmente o mero contrário e a simples oposição ao descobrimento, isto é, nos modos da desfiguração, distorção, descaminho, engano e falsificação.

Porque ainda existe um modo mais originário de encobrimento a ser distinto de tudo isso, os gregos nomearam-no com uma palavra que, diferente de i^eôSos, áuáTT] e ac|)áXXeLV, imediatamente apreende a relação com o étimo original: o encobrimento como a Xrj0r|.

Mas uma vez que o conhecimento da essência de áXf|9eia é co-determinado pelo conhecimento de Xf|9r] e uma vez que nós, que vivemos muito mais distante, estamos acostumados a compreender Xf|9r| como equivalente à “ação de esquecer” - e isso no sentido de uma “vivência subjetiva” e de um comportamento -, é necessário, de antemão, reconhecer claramente que conexões essenciais vigem na relação entre Xrj9r) e àXr|9eia.

Com certeza, temos como dado que os pensadores gregos não falaram dessas relações essenciais, como nós somos obrigados a expressá-las. Precisamente porque a essência grega do homem se realiza em “ter a palavra”, o homem grego pode “ter” a palavra e reter a palavra naquele modo eminente que chamamos de silêncio. Os gregos silenciam muito, especialmente sobre o que é essencial a eles. E quando expressam o essencial, eles o dizem então, também, de uma maneira em que, ao mesmo tempo, silenciam. Aqui estamos nos referindo ao fundamento proeminente do mundo trágico em suas tragédias. Essa é a ambigüid/de essencial da palavra trágica, não criada por poetas para seu “efeito” dramático, mas antes falada a eles a partir da essência do ser.

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Por que não deveríam os gregos, que “têm” a palavra em tal modo, manter silêncio e comportar-se eles mesmos de forma encoberta, precisamente onde experimentavam o encobrimento original, Xt|9ti? Mas como poderíam eles silenciar sem às vezes falar sobre isso? Hesíodo menciona XtíGt] juntamente com Xljjlóç, isto é, com a falta de alimento. Píndaro nomeia a essência velante de Xf|9r| numa outra perspectiva e direciona nosso olhar para a sua essência recôndita.

c) TTpâypa: a ação. A palavra como o âmbito essencial da mão humana. Escrito à mão e escrito datilografado. ôp9óç e rectum. Ação

essencial e o caminho para o descoberto. Obliteração como encobrimento. O modo de ser “além” do homem, partindo do

descobrimento, e a palavra da nuvem sem sinal. O ofuscamento. A subtração da Xf|9r|. Referência a Píndaro e a Hesíodo

Píndaro fala de X«0aç «TéKpapTa véc|x>ç, isto é, da nuvem sem sinal do encobrimento. Com isso é mostrada de modo inequívoco a essência velante do que chamamos de “obliteração”. A nuvem, passando e permanecendo de frente para o sol, encobre a limpidez do céu, a luz, e subtrai a claridade. Ela traz ofuscamento e escurecimento, tanto sobre as coisas como sobre o homem, isto é, sobre a relação de ambos, sobre a relação de um com um outro, no que essa relação tem sua vigência. Como conseqüência do ofuscamento, as coisas elas mesmas, o aspecto que elas apresentam e o olhar do homem vislumbrando esse aspecto - coisas e homem - não mais estão e se movem na luz originariamente desvelada. Quando a nuvem velante da obliteração èmpaívei - marcha sobre coisas e homem, TTapéXKei TrpaypáTüjv òpGàu óôòu / éÇco 4>peutov - “ela tira, para além das ações, o caminho que conduz diretamente em frente, para fora do descoberto com o pensamento”.

Aqui encontramos a palavra TTpdypa, usualmente traduzida por “coisa” [Ding] ou “coisa” [Sache], TTpáTTCo significa: penetrar através de, medir através de, percorrer através do que é descoberto um caminho e, nesse caminho alcançar algo, que se constitui como

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presente, como ponto de chegada da travessia. (Ao mesmo círculo de significações pertence êpyw, épyov.)

TTpây|ia significa, originariamente, e ainda em Píndaro, este fundar [Bei-stellen], ele mesmo, tal como o que é fundado [Beigestellte]; dito de maneira mais exata: upâypa significa a unidade originária de ambos na sua relação - a unidade ainda não-separada e na essência também inseparável do constituir-se no desabrochar de algo e do que é alcançado no desabrochar e é, então, presente como descoberto. TTpâypia aqui ainda não é distinguido e colocado à parte, separado como coisa e fato da TTpâ iç como presumida “atividade”. TTpâyfia ainda não é reduzida ao conceito de “coisa”, matéria “à mão” para ser objeto do “agir”, para ser atuada. No entanto, traduzimos Tipâyfia precisamente por “ação”. Embora a palavra “ação” não seja a tradução literal de irpãy|j.a, corretamente entendida, no entanto, “ação” toca a essência originalmente essencial de Trpâyp.a. Coisas também “agem” [handeln], na medida em que, disponíveis à mão [Vorhandenen] e à mão [Zuhandenen], estão presentes no âmbito da “mão” [Hand\. A mão se estende para e alcança: TipáTrei, o alcançar de algo, conseguindo-o, Trpây|ia - permanece essencialmente relacionado com a mão.

O homem, ele mesmo, “age” através da mão; pois a mão é, junto com a palavra, a distinção essencial do homem. Somente um ente que, como ele, “tem” a palavra (piüGos-, Xóyoç), pode e necessita “ter” “a mão”. Por intermédio da mão acontecem especialmente a prece e o assassinato, a saudação e o agradecimento, o juramento e o aceno, mas, também, a “obra” da mão [Werk der Hand\, o “trabalho manual” [Handwerk] e o utensílio. O aperto de mão funda a união promissora. A mão deslancha a “obra” da devastação. A mão existe como mão somente onde há descobrimento e encobrimento. Nenhum animal tem uma mão, e uma mão jamais se origina de uma pata, ou de uma “garra”. Mesmo a mão em desespero - e muito menos ela - jamais é uma garra, com a qual uma pessoa “agarra” de modo selvagem. A mão irrompeu somente da palavra e com a palavra. O homem não “tem” mãos, porém a mão se atém à essência do homem, porque a palavra, como o âmbito essencial da mão, é o fundamento da essência do homem. A palavra que se deixa cunhar e assim se mostra

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ao olhar, é a palavra escrita, isto é, a escrita. Mas a palavra como a escrita é a escrita à mão.

Não é acidental que o homem moderno escreva “com” a máquina de escrever e “dite” [diktiert] (a mesma palavra que “poetizar”) [Dichten] “para” uma máquina. Esta “história” dos modos de escritas é uma das mais importantes razões da crescente destruição da palavra. Esta sobrevêm e se dá não mais por meio da mão escrevente e propriamente atuante, mas por sua impressão mecânica. A máquina de escrever arranca a escrita do âmbito essencial da mão, e isso significa, da palavra. Esta se torna algo “datilografado”. Onde a escrita à máquina, ao contrário, é somente uma transcrição e serve a preservar o escrito, ou a “imprimir” de novo o que uma vez já estava escrito, lá a escrita tem um significado próprio, embora limitado. Na época do primeiro domínio da máquina de escrever, uma carta escrita nessa máquina ainda era uma quebra de boas maneiras. Hoje em dia, porém, uma carta escrita à mão é uma coisa que atrapalha a leitura rápida e, por isso, está fora de moda e é indesejada. A escrita mecânica priva a mão de seu valor próprio no âmbito da palavra escrita e degrada a palavra a um meio de comunicação. Além disso, o escrito à máquina oferece a vantagem de que ela esconde a escrita à mão e com isso o caráter. Na escrita à máquina todos os homens parecem iguais.

Entendemos “ação” (TTpâyp.a) como o âmbito essencial unitário das coisas “disponíveis à mão” [vorhandenen] e do homem que “age e co-institui” [handelnden]. À assim compreendida “ação” pertence necessariamente rj óSóç, o caminho, como a marcha cheia de perspectivas, que oscila entre o presente dado e o homem “agente” e co- instituidor. O caminho, ó8óç, significa òp9á. O òpGóç grego significa “sempre em frente”, na visão prévia e ao longo de uma mirada para o desencoberto. O significado básico de òpGóç é diferente do rectum romano, do que está direcionado para o que está em cima, porque é direcionado por comandos, por ordens e “governantes” de cima. A rectitudo romana obstruiu também a òpGÓTqs grega, que pertence à óp.ol(jüctlç, cuja essência está originalmente encadeada na àXf|9eia. A assimilação desvelante em direção ao descoberto no âmbito do descobrimento é um ir ao longo, ou seja, ao longo do caminho que

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conduz “sempre em frente”, òpOwç, para o desencoberto. ófioícoais é ôp0ÓTT]ç. òp0óç, pensado de modo grego, não tem, primordialmente, nada em comum com o rectum romano ou com nosso “direito”. Ao âmbito essencial de upaypa, isto é, da ação compreendida essencialmente, pertence o caminho que vai sempre em frente “para o desencoberto”. Assim como a nuvem que encobre traz ofuscamento, o caminho prenhe de perspectivas dispensa luminosidade, que o dirigiría sempre em frente para o descoberto. Desse modo, a nuvem conduz o caminho, no interior da ação, para fora de si mesmo, Trapcí, para fora do que a reflexão, a consideração e comemoração providenciam, quando previamente guiadas pelo temor. Colocado no encobrimento compreendido aqui como ofuscamento, o homem está, de certo modo, fora do descoberto.

A palavra nuvem acena para uma experiência, e não apenas para uma mera vivência, da essência da obliteração. Mas não menos essencial é a caracterização poética da nuvem que encobre. É chamada dtTéKfiotpTa. A nuvem é desprovida de sinal, o que diz: ela não se mostra como ela própria no todo. Este encobrimento como ofuscamento se mantém, ele próprio, no encoberto. Todo ofuscamento sempre deixa atrás uma claridade, que, tomada em si mesma, pode “aparecer” como a única claridade. No fato de a nuvem do encobrimento, que esquece, encobrir a si mesma como tal, se manifesta o caráter inquietante do esquecimento. O esquecimento ocorre ele próprio já numa obliteração. Se esquecemos algo, não estamos mais com ele, mas, em vez disso, estamos já “fora” - “puxados de lado”. Se, no esquecimento, estivés­semos ainda com a coisa esquecida, então poderiamos sempre reter o que é esquecido, e então o esquecimento jamais poderia ocorrer de todo. O esquecimento necessita já nos ter puxado para fora de nosso próprio âmbito, de tal modo que não podemos mais nos deter nisso que deve precipitar-se na obliteração. A essência do encobrimento velante da obliteração será atingida justamente pela significativa palavra à rc ic p o p T a , “sem sinal”, no sentido de “não se mostrando”, “se encobrindo a si mesma”. No entanto, ainda não esgotamos a essência do “sem-sinal” como experimentado pelos gregos e, conseqüentemente, a essência da obliteração como encobrimento.

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Téicpap é o sinal, isso que mostra, isso que, enquanto mostra a si mesmo, ao mesmo tempo mostra a condição de tal ente que o comportamento humano atinge e necessita atingir. A palavra alemã Wahr-zeichen, no sentido de “sinal verdadeiro”, é uma tradução mais apropriada, desde que pensemos o “verdadeiro” no sentido grego. O que mostra a si mesmo, o descoberto, o que indica, pode, então, nomear o “fim” [Ziel], Mas a essência do “fim” é, para os gregos, a limitação e demarcação da direção e da amplitude da relação. Pensado modernamente, um “fim” é somente a provisão de um “estágio intermediário” no interior da ilimitabilidade de sucessos e negócios sempre crescentes. Mas o limite (TTépaç), como foi pensado pelos gregos, não é o término de algo, mas a origem de alguma coisa, precisamente por originar um ente “formado” neste ou naquele caminho, isto é, um ente ao qual é permitido permanecer de uma forma e como tal vir à presença. Onde falta a delimitação, nada pode vir à presença como o que é. órréKiiapTa uécjxrs', a nuvem sem sinal, isto é, a nuvem que, então, retém sua própria presença, é um encobrimento ausente, que não mostra a si mesma. Podemos agora suspeitar algo da essência da “obliteração”. Pode, pois, ser apropriado acentuar, uma vez mais, os principais momentos que descobrimos.

O esquecimento, como uma espécie de encobrimento, é um evento que sobrevêm aos entes e ao homem na sua relação com eles. A obliteração acontece no âmbito essencial da ação. Esquecer não é nenhuma “vivência subjetiva” e nenhum “estado subjetivo” no sentido do “lapso de memória” etc. O encobrimento não atinge aqui somente o que é passado, mas, também, o que é presente e, acima de tudo, o que, no pensar prévio, se aproxima do homem e beneficia seu comportamento, pro-videnciando uma direção consignada. O caminho do homem, se o temor determina-o e o traz para o descoberto, tem uma tal direção. O caminho é então um ôpGà óSóç direcionado. Somente quando o caminho pode se perder no descoberto, pode ele ir diretamente ao descoberto e ser o caminho direcionado. Só se ele for desta maneira o caminho direcionado, é o caminho reto. O que é reto tem a possibilidade de sua essência e o fundamento de sua essência no desencobrimento de descobrimento. Porque o ôpGós1 pensado de modo grego - sempre em frente, ao longo de - vige e é presente apenas no que é descoberto e no que se direciona para o descoberto,

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por isso existe apenas um direcionamento possível, uma con-siuu.v— e uma “co-locação” como direção determinante, sem encobrimento e descobrimento, sem uma ocorrência de Xav9ávev. Assim, no mesmo lugar, Hesíodo chama Nereu <ái}ieu8éa Kai áXrjBéa, aquele que não desfigura e não encobre, diz, pois, dele, oú8è 0efj.iocrréüiv Xf|0€Tai - ele não está por si no encobrimento com respeito às direções suplementares.

(Sobre 0é|iLCTTes e Gepiç discutiremos quando retornarmos à palavra de Parmênides. Nada, no entanto, pode ser dito no todo sobre ©éinç sem uma meditação anterior acerca da essência de 0é|iLÇ, “colocação”, como os gregos a pensam.)

Esquecimento, como experimentado pelos gregos, não é nenhum estado subjetivo, nem se relaciona somente com o passado e com a “recordação” deste, nem é simplesmente uma questão do pensar no sentido da “re-presentação”. O encobrimento coloca toda a essência do homem no encoberto e o arranca, assim, neste caminho do descoberto. Deste descoberto o homem se acha “fora” \weg\. Ele não está mais com ele. Negligencia e abandona o que é consignado a ele. 0 encobrimento sobrevêm e puxa fora do Trpay|iáTwv òp0àv ò8ói\ Esquecimento é um não-mais-ser-lá-com [Nicht-mehr- dabei-sein] e de nenhuma forma somente um não-mais-recordar [Sich- nicht-mehr-erinnern], entendido como a falha de uma representação. Somos tentados a dizer que os gregos conceberam o esquecimento não somente em relação ao comportamento cognitivo, mas, também, com respeito ao “prático”. Mas quando falamos desse modo já estamos pensando de modo não-grego, pois o encobrimento tem a ver, de antemão, com todo o ser-presente [Dabei-sein\ do homem junto dos entes. Apenas porque é assim, o esquecimento atinge igualmente, e de modo igualmente originário, tanto o comportamento “teorético” como o “prático”.

Com base nessa elucidação da essência da obliteração como encobrimento e com respeito ao que segue, podemos resumir a meditação realizada numa espécie de “definição”. A Xf|9r|, a obliteração, é o encobrimento que deixa o passado, o presente e o futuro sucumbirem no fora de uma ausência, ela mesma ausente, e com isso coloca o próprio homem deslocado no encobrimento, numa

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relação com o retraimento, de tal maneira que este encobrimento, por sua parte, não aparece no todo. A XpOp encobre enquanto subtrai. Ela subtrai na medida em que, se retendo em si mesma, deixa fluir o descoberto e seu desencobrimento no “fora” de uma ausência velada.

Recapitulação

2) A correlação entre ser, palavra, colheita, mão e escrita. A irrupção da máquina de escrever no âmbito da palavra e da escrita à mão. A conseqüência da tecnologia na relação transformada do

ser com o homem. O bolschevismo: o mundo previamente arranjado, organizado tecnicamente de modo completo. O

pensamento e a poesia dos gregos na áXfjGeLa e XfjGr]

Af|Gr] é encobrimento e, precisamente, um encobrimento que sobrevêm especialmente sobre coisas e homem, sobre a relação recíproca de ambos, e que, de uma certa maneira, desloca tudo do desencobrimento concedido, a tal ponto que o encobrimento, ele mesmo, no desencoberto se subtrai. A passagem discutida da ode de Píndaro (Ode olímpica VII, 48s) era pensada somente no sentido de acenar para a essência da Xr|Gr| como nuvem “sem sinal”, mas, ao mesmo tempo, no sentido de indicar, com igual decisão, que este encobrimento único sobrevêm sobre os Trpáy|iaTa e atinge, justamente, a estes. Aqui certamente é importante ver que upâyp.a não significa nem a coisa por si nem a atividade por si (Trpdíyç). T à TrpáypaTa é aqui, antes, a palavra para dizer uma totalidade originariamente inseparável da relação entre coisas e homem. Traduzimos TTpâypa por “ação” [Handlung]. Essa palavra, no entanto, não significa a atividade humana (actio), mas o caminho unitário com o qual, cada vez, as coisas estão presentes e disponíveis à mão, isto é, estão relacionadas com a mão; e como, cada vez, o homem é colocado no seu comportamento, isto é, como aquele que age através da mão, numa relação com o disponível à mão \Vor- handenen].

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Daí torna-se claro como a mão, na sua essência, traz em si a relação recíproca entre “entes” e homem. Há “mão” somente onde os entes como tais aparecem como descobertos e o homem se comporta com os entes de modo desvelante. A mão sustenta, imediatamente, na palavra, a relação do ser com o homem e, através disso, apenas a relação do homem com os entes. A mão age [Die Hand handelt]. Ela mantém no seu cuidado o agir, o que é agido e o que é manipulado. Dizemos também, nesse sentido, que, onde algo essencial é essencialmente protegido, está em “boas mãos”, mesmo se imediatamente e a cada momento não sejam necessárias aplicações manuais ou manipulações. A correlação essencial da mão e da palavra como o marco distintivo essencial do homem se revela no fato que a mão descobre o que era encoberto, pois mostrando desenha, e desenhando forma com os sinais indicadores uma estrutura. Essas estruturações são chamadas, seguindo o verbo ypácjjeLV', de npá|i[iaTa. O que é mostrado pela mão e a palavra que se mostra nesse desenho é a escrita. Chamamos ainda hoje a teoria da estrutura da linguagem de “gramática”.

A escrita é, vista a partir de sua essência original, uma escrita à mão [Hand-schrift]. Chamamos a acolhida e percepção desvelantes da palavra escrita pela palavra “ler” [Lesen], ou seja, recolher [Àhren lesen], em grego Xéyeiv - Xóyoç; mas essa palavra, entre os pensadores primordiais, é o nome para o próprio ser. Ser, palavra, acolhida, escrita apontam para um nexo original essencial, ao qual a mão indicadora-escrevente pertence. Na escrita à mão, a relação do ser com o homem, ou seja, a palavra, é inscrita nos próprios entes. A origem e o modo de tratar da escrita já é, em si mesmo, decisão sobre a relação do ser e da palavra para o homem e, conseqüentemente, uma decisão sobre o comportamento do homem com os entes e sobre o modo como ambos, homem e coisa, estão no desencobrimento ou são subtraídos dele.

Se, portanto, a escrita foi retirada de sua origem essencial, isto é, da mão, e se a ação de escrever foi transferida para a máquina, uma transformação ocorreu na relação do ser com o homem. Para essa transformação, não é de grande importância quantas pessoas usam atualmente a máquina de escrever ou se existem algumas que

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evitam o seu uso. Não é nenhuma casualidade que a invenção da imprensa escrita coincida com o início dos tempos modernos. O sinal de palavra se torna letra, o movimento e o lance da escrita desaparecem. As letras são “colocadas” e o que está colocado é “prensado”. Esse mecanismo formado pela ação de colocar, prensar e “imprimir” é a forma preliminar da máquina de escrever. Na máquina de escrever encontramos a irrupção do mecanismo no âmbito da palavra. A máquina de escrever conduz, por sua vez, para a máquina que coloca letras. A prensa se torna prensa de rotação. Na rotação, o triunfo da máquina vem à luz. Inicialmente, porém, a impressão de livros e, então, a escrita à máquina trazem vantagens e comodidades, e ambos dirigem, sem chamar atenção, as exigências e as necessidades para essa maneira da comunicação escrita. A máquina de escrever encobre a essência da ação do escrever e da escrita. Ela subtrai ao homem a dignidade essencial da mão, sem que o homem experimente apropriadamente essa subtração e sem que reconheça que aqui se deu uma transformação da relação do ser com a essência de si mesmo.

A máquina de escrever é uma nuvem sem sinal, isto é, um encobrimento dissimulador de sua verdadeira insânia, através do que a relação do ser com o homem se transforma. É de fato sem sinal, não se mostrando em sua essência; talvez esta seja a razão por que a maioria dos senhores, como a “reação” bem-intencionada demonstrou, simplesmente não percebeu o que eu estava tentando dizer.

Naturalmente, não se trata aqui de uma preleção sobre máquina de escrever, na qual se poderia, com todo o direito, perguntar o que em todo o mundo tem a ver a máquina de escrever com Parmênides. Meu tema era a relação moderna (transformada pela máquina de escrever) da mão com a escrita, isto é, com a palavra, ou seja, com o desencobrimento do ser. Uma meditação acerca do desencobrimento e acerca do ser tem, naturalmente, tudo, não somente algo, a ver com o poema doutrinário de Parmênides. Na “máquina de escrever” aparece a máquina, isto é, a tecnologia aparece numa relação quase cotidiana e, portanto, não-percebida e, então, desprovida de sinal, com a ação de escrever, ou seja, com a palavra, com a distinção essencial do homem. Uma consideração mais penetrante teria que reconhecer, aqui, que a máquina de escrever não

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é, realmente, uma máquina no sentido estrito de tecnologia de máquinas, mas é uma “coisa intermediária” entre uma ferramenta e uma máquina, um mecanismo. Sua produção, no entanto, é condicionada pela tecnologia de máquinas.

Esta “máquina”, operada na mais próxima vizinhança em função da palavra, está em uso; ela impõe seu próprio uso. Mesmo se atualmente não operamos essa máquina, ela exige consideração para “si” de alguma forma, mesmo se renunciamos a ela ou a evitamos. Essa situação se repete constantemente em toda parte, em todas as relações do homem moderno com a tecnologia. A tecnologia pertence [is/] à nossa história.

Aquele que tem ouvidos para ouvir, isto é, para captar as fundações metafísicas e os abismos da história, e para tomá-los seriamente como metafísicos poderia já ouvir, há duas décadas, a palavra de Lenin: bolschevismo é poder soviético + eletrificação. Isso significa: bolschevismo é a conclusão “orgânica”, isto é, organizada, calculante (e como +) do poder incondicional do partido com a completa tecnificação. O mundo burguês não viu e, em parte, ainda não quer ver hoje que, no “leninismo”, como Stálin chama essa metafísica, tem se realizado um salto proeminente metafísico, com base no que, de um certo modo, a paixão metafísica dos russos de hoje pela tecnologia se torna inteligível, a partir do que o mundo técnico é trazido para o poder. O primariamente decisivo não é o fato de que os russos, por exemplo, constroem cada vez mais fábricas de tratores, mas, antes, que esta completa organização técnica do mundo se torna o fundamento metafísico da planificação e de todo o processo, e que esse fundamento é experimentado a partir do seu fundo e é trazido incondicionalmente ao processo do trabalho. A evidência na essência “metafísica” da tecnologia é para nós historicamente necessária, se a essência do homem ocidental histórico deve poder ser salva.

Mas tecnologia, entendida como moderna, isto é, como a tecnologia de máquinas de força, ela mesma já é uma conseqüência essencial e não a fundação de uma transformação da relação do ser com o homem. A tecnologia mecânica moderna é o instrumentário “metafísico” de uma tal transformação, que tem a ver com uma

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essência escondida da tecnologia, a qual, por sua vez, se insere naquilo que os gregos já chamam a Téx^fi. Talvez a relação transformada do ser com o homem, aparecendo na tecnologia, seja de tal espécie que o ser, ele próprio, se retraiu do homem e o homem moderno tem se precipitado num especial esquecimento do ser (em conseqüência, não se pode mais, ou não em primeiro lugar, ponderar a questão emersa em Ser e tempo tal como lá emergiu).

Talvez a questão muito discutida, se a técnica faz do homem o seu escravo ou se o homem se torna senhor da técnica, já seja uma questão superficial, porque ninguém se lembra de perguntar acerca de que tipo de homem é unicamente capaz de produzir a “dominação” da tecnologia. As “filosofias” sobre a tecnologia procedem de tal modo como se “tecnologia” e “homem” fossem duas “grandezas” dadas em si, duas coisas, como se o modo como o próprio ser aparece e se retrai já não tivesse decidido sobre o homem e a tecnologia, isto é, sobre a relação entre entes e homem, portanto, sobre a mão e a palavra e sobre seu desenvolvimento essencial.

A questão da Xr)9r| interroga essa relação do ser com o homem e por isso devemos, na elucidação da essência de TTpâypa, da ação da mão, nos referir à “máquina de escrever” assumindo que em toda parte uma meditação reflexiva é um pensar que pensa, na nossa história (isto é, a essência da verdade), na qual o futuro vem ao nosso encontro.

“Em geral” somos inclinados a considerar “a filosofia” como uma ocupação “abstrata”. Se agora, aparentemente de improviso e de repente, falamos “da máquina de escrever”, isso é tomado como uma digressão; assim se confirma que a visão usual não está, em geral, disposta a verdadeiramente refletir sobre o tão famoso “concreto”, ou seja, a caminhar para a proximidade essencial das coisas e levantar o encobrimento no qual eles estão lançados por mero uso e consumo; a Xf|0r| e a máquina de escrever - isto não é, de fato, uma digressão para alguém não submerso na obliteração do ser.

De acordo com Píndaro, aLSojç, temor, pelo qual o próprio ser cuida de sua essência, e por meio de cuja essência ele concede àXf|0eia aos entes e ao homem, tem Xá9a por sua essência contrária.

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As palavras poéticas de Píndaro sobre Xfj9r| atestam o fato que para os gregos a mútua essência contrária de áXf|0eia e XqGri era experimentada de modo originário. Podemos então esperar que esta correlação entre áXf|0eLa e Xrj0r|, num modo correspondentemente original, teria sido pensada pelos gregos e colocada no pensar. Essa expectativa não se realizou. Os gregos jamais pensaram de modo explícito através de áXf|9eLa e Xf|9q com respeito à sua essência e ao fundamento de sua essência, uma vez que já, isto é, anteriormente a todo pensar e poetar, estes vigem como a “essência” a ser pensada. Os gregos pensam, poetizam e “agem” no interior da essência de áXf|0eia e Xrj0r|, mas eles não pensam e poetizam sobre essa essência e eles não a “manuseiam”. Para os gregos, é suficiente ser tocado e circundado pela própria àXf|0eia. Que os gregos não tivessem, no seu início, a necessidade de um pensar sobre a essência da àXijOeia (e da Xf|0r|), isso é um sinal da necessidade sob a qual a sua essência está. E quando, na época da finalização do mundo grego, inaugura-se num certo sentido um pensar “sobre” áXf|0eia, então essa inauguração é precisamente sinal dessa iminente conclusão. Mas, na história do mundo moderno e de suas humanidades, a questão encontra-se de modo bem diverso.

Quando àXf|9eia e Xr|9r| são mencionadas explicitamente no âmbito da fala reflexiva dos gregos, lá essa fala tem o modo da saga primordial e é p.ü9oç.

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§ 6. A última saga dos gregos com respeito à essência contrária recôndita da áArjdeia, a Aij6rj (I): o mito conclusivo da Politéia de

Platão. 0 mito da essência da polis. Elucidação da essência do demoníaco. A essência dos deuses gregos à luz da àÀrjdet a. 0

“olhar” do extraordinário

a) A ttóXiç como o pólo da presença determinada dos entes a partir da áXr|0eia. Referência a Sófocles. A reverberação da essência conflitante de áXijOeia na essência contrária à ttóXlç: aiToXij.

Referência a Burckhardt

A apresentação mítica na Teogonia de Hesíodo mostra a origem da essência da Xif|0r| a partir de èpis (luta) e vú£ (noite). A ode de Píndaro providencia a clarificação de uma relação decisiva essencial. A nebulosidade sem sinal de Xf|9r| se refere a seu encobrimento, em que ele mesmo encobre a si próprio e nisso se retrai. Esta complexidade no velar e deixar desaparecer manifesta de modo suficientemente inequívoco a proveniência da essência de Xf)9r|. Sua proveniência é noturna. A noite vela. Mas a noite não vela necessariamente trazendo cada coisa para a negritude da mera escuridão. Antes, a essência de seu velar consiste em entregar ao encobrimento especialmente as coisas e o homem, e ambos, na sua relação de um com o outro. Assim, sobrevêm também a obliteração em sua essência noturna não pairando sobre os homens como seres vivos individualizados, produzindo mudanças nessa maneira de representar e tendo como conseqüência o fato de que um homem não consegue mais perceber objetos.

A obliteração rasga especialmente as coisas e os homens fora do desencobrimento, de tal modo que aquele que “se oblitera” mora em um âmbito no qual entes são subtraídos e o próprio homem é subtraído dos entes; até mesmo este retraimento recíproco, como uma relação, é subtraído do desencobrimento.

Poderiamos esperar que lá, onde a obliteração é experimentada de tal maneira como encobrimento que se retrai, que

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também imediatamente a relação entre Xf|9r| e áXr|9eia não seja somente nomeada, mas que deva ser pensada explicitamente e consignada à meditação antes de qualquer outra coisa. Esta expectativa, que é precisamente a nossa e, de modo algum, grega, não se realiza. Entretanto, a essência contrária recíproca entre àXf|9eia e Xij9r) vige como o feito básico dos entes como um todo, no seio do qual a humanidade grega está exposta à sua história. É quase como se o que já estava sempre próximo e tinha sido experimentado fosse colocado em palavras, explicitamente, apenas na idade da consumação da humanidade grega, uma consumação que não é uma transição no seu ápice, mas sim uma passagem alta da transição para o fim. O mundo grego vem à consumação no pensar de Platão, e o pensar de Aristóteles conhece e diz essa consumação da maneira mais extrema possível.

Assumindo, então, que na Xrj9r|, como essência contrária à àXf|9eia, vigora o oposto primordial à “verdade”, e assumindo, além disso, que algo da essência do ser mostra a si mesmo na essência dessa oposição, então a fala que expressa primordialmente a essência contrária de àXf]9eia, a Xf)0r|, e conseqüentemente expressando a própria essência de áXr|0eia, pode ser unicamente uma palavra correspondente ao caráter dessa saga primordial. Contudo, isso é |jlí)9oç.

Na época histórica da completude do pensar grego, isto é, em Platão, a fala plena do pensar se realiza na forma de “diálogo". É como se, antes do fim do pensar grego, esse verdadeiro pensar, por seu próprio caráter, quisesse uma vez mais falar sobre si e atestar a dignidade essencial que a palavra goza quando o homem está numa relação imediata com a àXf^eui. No diálogo platônico Fedro, na discussão sobre “o belo” (parte conclusiva), vemos ainda Platão reconhecer muito claramente a prioridade da palavra, imediatamente falada, sobre a meramente escrita. Mas onde estariam os “diálogos” de Platão, se eles nunca tivessem sido escritos?

Este diálogo de Platão, mais extenso em conteúdo e amplitude, trata da ttóXlç. O romanos dizem res publica, isto é, res populi, ou seja, isso que tem a ver com o povo organizado e estabelecido, o que é antes de tudo a “coisa” [Sache] que interessa e ocupa esse povo. Caracterizamos, usualmente, o “diálogo” de Platão nomeado acima

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sobre a ttóXlç , com o título Politéia. Mas a diferença entre a república moderna, a res publica romana e a ttóXlç grega é tão essencial como aquela entre a essência moderna da verdade, a rectitudo romana e a àXf|9eia grega. Essa relação já tem sua validade pelo fato de que a essência da 71-0X15 grega se funda na essência da áXr|0€La. Uma simples reflexão, mesmo se não se detém tematicamente, necessita nos levar a suspeitar dessa conexão entre áXr|0eia e ttóXlç . Se, então, a áXf|0eLa, como descobrimento, determina todos os entes na sua presença (e isso significa, para os gregos, precisamente 0 seu ser), certamente também a ttóXlç, acima de tudo, tem de estar no âmbito dessa determinação da áXf|0eLa; assim, a ttóXlç intenciona nomear a instância na qual a humanidade dos gregos tem 0 centro do seu ser.

O que é a ttóXlç? A própria palavra dá uma clara indicação;

para isso basta colocarmos em relação 0 olhar essencial iluminador de

tudo com a essência do ser e da verdade experimentada de modo grego.

ITóXlç é 0 ttóXo ç , o pólo, 0 lugar ao redor do qual cada coisa que

aparece para os gregos como um ente gira de um m odo peculiar. O pólo

é 0 lugar ao redor do qual todos os entes têm sua estruturação de tal

modo que, no domínio desse lugar, os entes se mostram em sua

estruturação e em suas condições de estruturação.

O pólo, como esse lugar, deixa os entes aparecerem no seu ser e mostra, cada vez, a totalidade de sua condição. O pólo não produz nem cria 0 ente no seu ser, mas, como pólo, ele é o lugar do descobrimento dos entes como um todo. A ttóXlç é a essência do lugar; nós dizemos, ela é a lugar-ização [Ort-schaft], ou seja, a morada histórica da humanidade grega. Porque a ttóXlç deixa cada vez 0 todo dos entes desse ou de outro modo virem para o descobrimento de sua estruturação, por isso a ttóXlç está relacionada essencialmente com o ser dos entes. Entre ttóXlç e “ser” vige um relacionamento primordial.

A palavra ttóXlç é, em sua raiz, idêntica à antiga palavra grega para “ser” = TTéXeLv, “emergir, levantar-se para 0 descoberto” (cf. Sófocles, Antígona, ttoXXò rà 'òewà ... TréXeL)12. A ttóXlç não é nem cidade nem Estado nem a mistura fatal dessas duas caracterizações inadequadas. Portanto, a ttóXlç também não coincide com a conhecida

12. Antígona, versos 332s.

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“Cidade-Estado”, e sim, antes, é a abóbada [Ortschaft\ do lugar da história da humanidade grega; nem cidade, nem Estado, e sim a abóbada [Stàtte] de sua essência. Nessa abóbada essencial [ Wesensstãtte] se reúne, originariamente, a unidade de cada coisa que, como o descoberto, advém ao homem e é concedido a ele como isto para o que o homem permanece encadeado no seu ser. A ttóXls- é a abóbada, reunida em si, do desencobrimento dos entes. Se agora, no entanto, como a palavra indica, a áXrjGeia possui uma essência conflitante, que aparece nas formas de oposição da desfiguração e obliteração, então na ttóXi s , como a abóbada essencial do homem, necessita viger toda a mais extrema essência contrária, e nessa vigência, todos os excessos, para o descoberto e para os entes, ou seja, o não-ser na multiplicidade de sua essência contrária. Aqui está escondido o fundamento primordial para aquele feito apresentado pela primeira vez por Jacob Burckhardt na sua plena amplitude e multiplicidade: é o caráter assustador, cruel, atroz que pertence à ítóXlç grega. Esta é a ascensão e queda do homem na sua histórica abóbada essencial - íx|ÚTroXiç - õttoXiç - transcendente na abóbada, desprovido de abóbada, sem teto, chama Sófocles (.Antígona) o homem. Não é nenhuma casualidade que o homem seja abordado desse modo na tragédia grega. Pois a possibilidade, e a necessidade da própria “tragédia”, provém desse singular enraizamento na essência conflitante de àXfjGeia.

Existe somente a tragédia grega e nenhuma outra além desta. Somente a essência do ser, como experimentado pelos gregos, tem esta originariedade, que faz “o trágico” se tornar aqui uma necessidade. Jacob Burckhardt, em sua preleção sobre a História da cultura grega [Griechische Kulturgeschichte], conhecidamente introduz uma tese que ele escutou como estudante de Bõckh, seu professor de filologia clássica em Berlim. A tese diz: “Os helenos eram mais infelizes do que a maioria do povo crê.” A apresentação de J. Burckhardt dos gregos, que ele repetiu várias vezes em suas preleções em Basel a partir de 1872, era construída inteiramente a partir dessa evidência antes de tudo intuitiva. Nietzsche possuía uma transcrição dessas preleções feita por um ouvinte e cuidava do manuscrito como seu tesouro mais precioso. Assim, o próprio Jacob Burckhardt contribuiu para o fato de Nietzsche ainda pensar a essência do mundo grego e de sua ttóXlç de modo romano. Pois Burckhardt considerava os gregos com a visão de uma “história da cultura grega”

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pela qual ele pensava “a história do espírito grego” (introdução, p. 3). Os conceitos de “espírito” e “cultura”, independentemente de como sejam delimitados, são representações pertencentes ao pensamento moderno. J. Burckhardt deve a essas representações uma caracterização própria, com base na sua descoberta do “renascimento italiano”. Por esse caminho fluem conceitos essencialmente romanos, românicos e modernos para dentro do pensar histórico de Jacob Burckhart Ele pensa o todo da história segundo as três “potências”: “Estado”, “religião” e “cultura”. O Estado é, visto de modo moderno, o Estado de poder. Burckhardt concorda com a frase de F. Chr. Schlosser que “o poder em si é mau”. Essa tese é então repetida com diversas variações. Poder é chamado de “demoníaco”, mas nenhuma reflexão é feita acerca da essência do poder, nem é dito em que poderia consistir o “demoníaco” aqui. A caracterização de poder como “mau” e “demoníaco” é um julgamento metafísico do que, na sua essência metafísica, permanece indeterminado. Mas uma discussão destes termos não alcança simplesmente o perímetro da essência da ttóXl s - A essência do poder é estranha à ttóXiç , com a conseqüência de que esta caracterização do poder como “mau” não encontra nenhum fundamento aqui. A essência do poder, como pensada no pensamento moderno acerca do Estado, é fundada na pressuposição metafísica de que a essência da verdade transformou-se em certeza, isto é, na autocertèza da essência humana que se assegura em si mesma, e que a essência da verdade se baseia na subjetividade da consciência. Nenhum conceito moderno “do político” é suficiente para se apreender a essência da ttóXlç.

b) Preparação para o atalho ao comentário acerca do diálogo de Platão sobre Xr)9r| e ttóXlç. A harmonia: Alkt]. O curso mortal da estadia na

polis e a presença dos entes depois da morte. Platonismo cristão. Referência a Hegel

Mas talvez a essência da ttóXi s receba uma luz adequada à àXf|9eia, e por isso iluminadora, de tal modo que reconheçamos por que também a desordem e até o desastre pertencem necessariamente à ttóXlç, como à abóbada essencial do homem histórico. Isso pertence à itóXls', porque todo descobrimento dos entes está numa luta com o

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encobrimento e, portanto, com a desfiguração e distorção. Se, no entanto, a essência do descobrimento e do encobrimento penetra a abóbada essencial do homem histórico, então um diálogo grego sobre a ttóXiç , desde que seja um diálogo marcado pelo pensamento, deverá tratar da essência da àXf|9eLa. Platão fala sobre áXf|0eLa, no modo de um |iu9oç, no início do livro VII de seu diálogo sobre a ttóXlç . Esse “mito” é conhecido como “alegoria da caverna” de Platão. Muitos significados têm sido atribuídos a esta “alegoria”, mas nunca o simples e mais óbvio. Nessa “alegoria” [Gleichnis], como o próprio nome sugere, fala-se de uma caverna, da dissimulação, do encobrimento e do descobrimento. Esse mesmo diálogo platônico acerca da ttóXlç, que contém um g,í)9oç sobre àXf|0eux, conclui, no final do livro X, com um outro px>0oç. O ponto alto desse |_lü9oç é o que fala sobre Xf|9r| (Platão, Politéia X, 642 b 2 - 621 b 7).

O mito da Xr|9ri, no qual o diálogo sobre a ttóXlç encontra a sua conclusão, é tão amplamente extenso e rico, que já por isso não pode ser apresentado aqui no seu todo. Outrossim, uma mera apresentação narrativa no lugar de uma interpretação detalhada é sempre uma coisa ruim. Para poder realizar uma tal interpretação, falta- nos inicialmente o essencial: uma experiência do traço fundamental do mito em geral e de sua relação com a metafísica de Platão. A partir de então a interpretação dos passos individuais desse |iO0oç particular seria facilmente colocada em movimento. Constringidos pela necessidade, seguimos aqui um atalho. Destacaremos os principais movimentos numa apresentação grosseira, mas o faremos com a intenção de trazer para o foco o movimento fundamental do todo do mito, ao menos segundo uma perspectiva. Isso coincide com a questão acerca de como a Xr|9r| está no todo deste mito, isto é, em que medida esse todo deve levar a nomear a Xf|9r|. O todo deste mito cobre e reforça o todo do diálogo sobre a ttóXlç . Na ttóXlç, como no lugar originário da essência do homem histórico, os entes se deixam, no todo, descobrir e encobrir; neste contexto, no sentido rigoroso da palavra, tudo o que está dis-posto para o homem, mas com isso também tudo o que se retrai dele, está presente, é dado como tarefa. “Dis-posto” [zu- gefügt\ compreendemos aqui não no sentido exterior de algo “acrescentado” ou “colocado ao lado”, mas no significado de: confiado [,zugewiesen], como o que se faz presença para a essência humana de

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tal maneira que ela está encadeada e integrada no que a ela se faz presente, pelo que o homem necessita dispor-se, para que sua essência esteja nos eixos [in den Fugen]. Assim, o que é dis-posto ao homem, o que se dispõe para, e o que o dispõe, chamamos com uma palavra alemã Fug, em grego: 8lkt|.

Nos versos já traduzidos do primeiro fragmento do poema doutrinário de Parmênides encontramos 8 lkt| junto com 0ép.iç. Se lá usamos “justeza” para traduzir a palavra 8 lkt] (na qual ecoam imediatamente para os gregos o verbo 8eÍKi/u|iL, mostrar, indicar e o verbo Suceiv, lançar), então nos vem à mente a conhecida palavra para o seu oposto: Un-fug, que traduzimos por desatino, moléstia. Mas a “justeza” [Fug] aqui entendida não é simplesmente a essência contrária para algum “desatino” [Un-fug] representado por nós. Na justeza, pensamos a ação de dispor que indica, mostra, confia e, ao mesmo tempo, ensina, “lança”. É para essa justeza que o homem deve dispor-se e, assim, fora dela ele também pode se equivocar no desatino, especialmente quando a indicação se encobre e se perde longe. Essa errância subtrai e arranca o homem longe e para fora da ttóXlç , de tal modo que ele se torna cíttoXlç . O emergir da essência humana na justeza e seu sustentar-se no interior da justeza, 8 lkt|, é a integração harmônica [Fügsamkeit], 8iKaLoaúvr|. A integração harmônica é aqui compreendida como desencobrimento da justeza, desencobrimento que não se faz nenhum mistério dessa justeza. O diálogo sobre a ttóXlç tem, pois, que lidar com essa abóbada essencial, com respeito ao que toma lugar nela e como o homem mora nela. O tema da Politéia é Siraioaui/q. De acordo com integração harmônica na justeza e em desacordo com ela, pode o homem ser Slkcuoç,

integrado harmonicamente, ou õôlkoç , desintegrado. Na meditação acerca da ttóXlç surge, então, a questão sobre o que é ordenado - em relação à abóbada essencial - para o homem justo, integrado e para o injusto, desintegrado, respectivamente, ou seja, o que permanece como que ao redor de cada pessoa e que integra a essência humana.

O sustentar-se na ttóXlç é uma estadia aqui sobre a terra, év9á8e ; essa estadia na ttóXlç , porém, é cada vez uma TrepíoSoç GavcrrocjTÓpoç (cf. Politéia X, 617 d 7), um caminho e um percurso pleno de perspectivas, o qual, atravessando o âmbito do

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espaço temporal concedido da estadia terrestre, firma o passo. Esse atravessar é um modo de andar chamado de Gavorro^ópos-; ele carrega a morte consigo e por isso se encaminha para a morte. Este modo de andar prenhe de morte pela abóbada essencial da história não esgota, porém, a marca e a viagem, isto é, o ser do homem como tal. Segundo a doutrina de Platão, a passagem do homem através de um pios, um “curso de vida”, não é a única, mas o homem retorna depois de um certo espaço de tempo numa nova forma, para começar um novo curso. A historiografia da religião chama isso de teoria da “re-encarnação”. Mas nós faríamos bem, aqui de novo, se permanecéssemos no âmbito do pensar grego. Nesse caso diriamos que, com a plenificação cada vez realizada do curso prenhe de morte, o ser do homem não chega ao fim. Isso significa que, em concordância com a essência do homem, de alguma maneira, mesmo depois da morte de cada um, os entes são e permanecem presentes ao seu redor. Por isso a meditação sobre a ttóXlç alcança por último a questão (Politéia X, 614 a 6):

a TeXeuTTÍaanTa éicÓTepou TrepLpiuei:

O que permanece ao redor de cada um, respectivamente (do integrado como do não-integrado), depois que ele terminou (a passagem prenhe de morte)? O que circunda o homem quando ele deixa este aqui da ttóXis ' e se firma “lá”, èicei? O que circunda o homem, onde ele é,

antes de começar novamente um novo caminho?

De acordo com as representações usuais, isto é, “cristãs” no sentido mais amplo, é feita a pergunta pelo “além”. O cristianismo, desde cedo, seguindo o caminho de ensinamentos judaico-helênicos, apoderou-se de um modo todo seu da filosofia platônica e cuidou para que, desde então até hoje, a filosofia platônica - que então também era entendida como o ápice da filosofia grega - viesse a aparecer na luz da fé cristã. Mesmo o pensar anterior a Platão e Sócrates é entendido a partir de Platão, como é evidente na designação ordinária desse pensar: é a filosofia “pré-platônica”, seus fragmentos são os “fragmentos dos pré-socráticos”. Não somente a filosofia grega

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aparece numa interpretação teológica cristã, mas até no interior da filosofia é apresentado como o primeiro estágio do pensar ocidental- cristão. Para a primeira meditação metafísica histórica sobre o todo do pensar do Ocidente, isto é, nas preleções de Hegel sobre a história da filosofia, entende-se a filosofia grega como o estágio do pensar imediato, ainda não mediado, e ainda não tendo vindo a si mesmo. Somente este último pensar, certo de si mesmo, no sentido moderno o primeiro “verdadeiro” pensar, é pensar atual. O cristianismo funciona aqui como um estágio de mediação. No seguimento de Hegel, a pesquisa historiográfica do século XIX adere a todos esses conceitos básicos, mas, ao mesmo tempo, num memorável auto-engano, recusa sua “metafísica” e busca refúgio em “Schopenhauer” e “Goethe”; mesmo lá a filosofia grega em geral e a filosofia de Platão em particular são representadas no horizonte de um platonismo cristão. O mesmo vale também para Nietzsche, cuja famosa interpretação dos filósofos “pré-platônicos” é platônica, isto é, schopenhaueriana e, como tal, não-grega. Mas o que poderia ser mais auto-evidente do que a convicção de que as mais apropriadas interpretações da filosofia de Platão são aquelas que se aproximam dele por meio da ajuda do “platonismo”? Esse procedimento é comparável a um que pretendesse “explicar” as folhas frescas da árvore pelas folhas caídas nó chão. Uma interpretação grega do pensar de Platão é o mais difícil, não porque seu pensar contém em si lugares especialmente obscuros e abismos, mas porque as épocas posteriores e nós, ainda hoje, somos inclinados a redescobrir imediatamente seu pensar próprio, posterior nessa filosofia. No contexto de nossas preleções devemos renunciar até a nomear as pressuposições básicas de uma interpretação do pensar platônico. As observações seguintes sobre püGoç de Platão a partir da Xf|9r) são, portanto, nessa perspectiva, uma visão provisória.

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Recapitulação

1) Politéia: o tóttoç da essência da ttóXlç . O caráter essencialmente não-político da Politéia da polis. O pólo de TTeXem. A impossibilidade de interpretar a polis com base no “Estado”, a 8lkt| e iustitia. Morte:

transição do “aqui” para “lá”. Platonismo

Meditamos sobre a essência contrária à áXf|9eLa, à verdade no sentido de desencobrimento. A essência contrária primordial à á-Xf|9eLa é Xf|9r|, isto é, o encobrimento sem sinal que se retrai a si mesmo como obliteração. A última palavra dos gregos que nomeia Xf|9r| na sua essência é o pDBoç conclusivo do diálogo de Platão sobre a essência da ttóXlç.

Um diálogo centrado no pensar fala sempre do ser dos entes. Um diálogo platônico sobre a ttóXlç não pode, portanto, ser uma consideração sobre uma ttóXlç particular existente aqui ou lá. O pensador pensa a ttóXlç como tal; ele diz o que a ttóXlç é, o que é sua essência. Essa essência, o que a ttóXlç é na totalidade de suas relações essenciais próprias, isto é, o que ela genuinamente é, significa ttoXltc lol.

O diálogo centrado no pensar sobre a ttóXlç é, sobretudo e apenas, um diálogo sobre a TroXLTéLa. Isso é o que o título diz. Mas esse título ainda não é sem equívocos. Justamente como a palavra grega oòciía é usada numa linguagem cotidiana e significa lá “patrimônio”, “possessão”, “bens”, “substância”, e, ao mesmo tempo, a palavra cotidiana oíxtlo é

elevada a uma palavra da linguagem reflexiva, vindo a significar a presença de cada coisa presente; assim, TroXLTeía significa, primeiramente, na linguagem do cotidiano, a “vida” pertencente à polis e determinada por ela, os afazeres nela e, então, de modo correspondente, significa a estrutura cada vez própria da polis, a partir da qual se deixa compreender algo como uma “constituição”. Essa última não necessita ser compreendida como uma seqüência de proposições e regras escritas, embora a palavra pertença tão originalmente à “constituição” que o que é escrito não apresenta simplesmente uma “fórmula” ou “formulação” derivada. A escolha de Platão deste nome TroXLTeía como o título de um diálogo centrado no pensamento sobre a ttóXlç diz que este tema será a

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estrutura essencial da TroXiTeía como tal e, conseqüentemente, a

essência da ttóXlç no todo.

Tem sido descoberto que a ttoXlt£lcl, descrita por Platão, jamais existiu “propriamente” na realidade e deveria, então, ser chamada “utopia”, “algo que não tem lugar algum”. A descoberta é “correta”, o único problema é que ela não compreende o que tem sido descoberto. Na verdade, é a evidência de que o ser dos entes “propriamente” não existe em nenhum lugar no âmbito dos entes, como se fosse uma de suas partes. De acordo com isso, o ser deveria ser, então, uma “utopia”. Mas na realidade ele, e unicamente ele, é precisamente o tóttoç para todos os entes, e a Politéia de Platão não é nenhuma “utopia”, mas justamente o contrário, ou seja, o tóttoç determinado metafisicamente da essência da ttóXlç . A Politéia de Platão é uma recordação do essencial e não um plano para o factual.

A ttóXlç é a abóbada essencial do homem histórico, o onde [Wo\ ao qual o homem como óqjou Xóyov éxov pertence, este onde a partir do qual cada ordem é ordenada a ele e no qual ele é ordenado. A ttóXlç é este onde, com o qual e no qual ordem é revelada e encoberta. A ttóXlç é o modo como o descobrimento e encobrimento da ordem acontece [statt-hat], de tal maneira que nesse acontecer [Statt-haben] o homem histórico chega especialmente à sua essência e especialmente à sua essência contrária. Por isso chamamos de ttóXlç, na qual o ser do homem se reuniu em seu relacionamento com os entes no todo, a abóbada essencial do homem histórico. Cada ttoXltlkóv , cada “político” sempre é somente um efeito da ttóXlç, isto é, da TToXLTeía. A essência da ttóXlç , e isso significa a TroXiTeía, ela mesma, não é determinada ou determinável “politicamente”. A ttóXlç é justamente algo tão pouco “político” como o espaço, ele mesmo, é algo espacial. A ttóXlç , ela mesma, é apenas o pólo de TTeXeLiç o modo como o ser dos entes, em seu descobrimento e encobrimento, dispõe por si mesmo de um onde no qual a história de uma raça humana permanece reunida. Porque os gregos são um povo como tal impolítico, impolíticos por essência; porque sua humanidade é primordial e exclusivamente determinada a partir do próprio ser, isto é, a partir da áXf|0eLa; por isso somente os gregos poderíam e, precisamente, tiveram que fundar a ttóXlç, e

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fundaram-na como abóbada, na qual têm lugar [statt-hat\ a reunião e a conservação da àXf|9eia.

A ocupação desprovida de pensamento da “pesquisa” “historiográfica” mistura épocas e civilizações essencialmente diferentes da história ocidental: o grego, o romano, o medieval, o moderno e o contemporâneo, num singular mingau historiográfico, e assim se atinge precisamente o oposto do que se pretendia. Esta quer ser uma meditação histórica baseada na nossa própria determinação histórica. Mas meditação jamais se dá pela falta de pensamento. A pesquisa histórica nunca consegue desvendar a história, porque tal pesquisa já é orientada sempre por uma opinião sobre história, uma opinião desprovida de pensamento, assim chamada óbvia, a qual pretende confirmar-se através dessa pesquisa e assim fazendo somente enrijece o óbvio sem evidência.

Assim como é impossível realizar uma interpretação da ttóXiç

com base no Estado moderno ou na res publica romana, assim o é uma interpretação da 8lkt| com base no conceito moderno de justiça e na iustitia romana. A 8íkt), entendida como a ordem que ordena, isto é, consigna para a humanidade suas relações e comportamento, toma sua essência de uma relação com áXf|9eia, mas Síkt] não se determina a partir da relação para ttóXlç ou através da ttóXlç.

Cada TTÓXig atual ocorre historicamente na terra èu9á8e - aqui. O “curso de vida” do homem transcorre por um circuito que é local e temporalmente delimitado, e é um caminho dentro de um circuito, um TrepíoSoç, e de fato um que é 9anaTO(t)ópo5, prenhe de morte, trazendo em si a morte e por isso conduzindo para a morte. A morte traz o presente curso para a sua conclusão, mas ela não é o fim do ser para a essência humana. A morte inicia uma transição do aqui, ev9á8e, para o lá, eicet. Essa transição é o começo de uma viagem que se conclui em si mesma, de novo, numa transição para um novo TTepíoSos' 9avaTo4>ópos. A questão que desponta então é: o que circunda a essência humana e o que seria para ela o permanente, depois que cada vez consumou o transcurso prenhe de morte aqui sobre a terra?

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Segundo o pensamento cristão, aqui está colocada a pergunta pelo “além”. Por muitas razões, o perigo de uma interpretação consciente ou mesmo inconsciente do pensamento de Platão é muito grande. Bem cedo o pensamento de Platão entrou, por intermédio de Filo, na interpretação helenista, e, por meio de Agostinho, na compreensão e interpretação cristã neoplatônica, e desde então permaneceu lá através das mais diversas variações. Mesmo aqueles que crêem estar livres das representações cristãs e entendem Platão segundo o humanismo e classicismo - portanto, supostamente “pagão” - ainda lá eles compreendem e pensam de um modo cristão, na medida em que “o pagão” é simplesmente o anticristão. Somente em termos de um apreço pelo cristianismo são os gregos “pagãos”. Mas até lá, onde se permanece simplesmente fora da diferenciação entre cristão e pagão, pensa-se a filosofia de Platão sempre platonicamente no sentido de um platonismo. Mas o que queremos objetar contra esta prática de pensar Platão “platonicamente”? Não é esse o único caminho apropriado ou, ao menos, mais “correto” do que interpretar a filosofia de Platão com a ajuda da filosofia de Kant ou Hegel? No entanto, a tentativa de interpretar Platão com o auxílio de alguma espécie de platonismo é a própria estagnação. Esse procedimento é igual àquele que tenta “explicar” a folha fresca da árvore a partir da folha caída no chão.

c) A questão do “aqui” e “lá”. Politéia X, 614 b 2, e o questionamento dessa referência ao mito

Platão distingue entre éuGáSe e éicel; dizemos de modo mais cuidadoso: o aqui e o lá. Fazemos bem em colocar de lado “céu”, “inferno”, “limbo” e “purgatório”. Mas isso não é suficiente de forma alguma, pois o “lá” dos gregos não é apenas diferente “em forma” e conteúdo, mas, também, “existe” em geral de um modo diferente, ou seja, como um modo da experiência grega do ser. Enquanto refletimos sobre isso de um modo adequadamente essencial, permanece-nos também inacessível o èicel, o “lá” dos gregos. Encontramo-nos sem auxílio diante do assim chamado mundo inferior, diante do “hades” e

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das “sombras” habitando “lá”. Costumamos nos ajustar com uma certa “psicologia de fantasmas”; só não nos fazemos primeiramente a simples pergunta: por que, então, lá há sombras? O caráter sombrio do ser no hades está conexo com a essência da experiência dos entes e seu desencobrimento? Então, assumindo que não permanecemos ligados a detalhes individuais e que não perguntamos como historiadores da religião, que figuras moram no “além” grego em lugar dos “anjos” e “demônios”? Mas mesmo se estamos preparados para reconhecer que no “além”, como experimentado pelos gregos, não somente há entes diferentes, mas, previamente a isso, o próprio ser, e até se temos uma certa idéia de que a distinção grega entre o que é aqui e o que é lá permanece orientada numa outra experiência do ser, mesmo assim não podemos nos furtar ainda a esta pergunta mais insistente: como então pode um pensador da qualidade de Platão simplesmente saber algo sobre o “lá”?

Essa nossa questão, aparentemente tão inteligente, chega então certamente tarde demais. Pois é com um [lüGoç que Platão responde à questão sobre o que circunda aqueles que completaram o curso mortal aqui, isto é, a questão acerca do que permanece no lá. No final do diálogo acerca da TroXiTeía, Platão faz Sócrates dizer

> uma saga. Muitos já fizeram questionamentos sobre por que simplesmente às vezes aparecem “mitos” nos diálogos platônicos. A razão estaria em que Platão de fato preparava-se para abandonar o pensar primordial em favor do mais tarde assim chamado pensar “metafísico”, mas precisamente esse pensar metafísico inicial ainda teria que preservar a recordação do pensar primordial. Por isso a saga.

No diálogo com Glauco, Sócrates narra a conclusão do mito, começando o diálogo com as palavras (Politéia X, 614 b 2):

AXX’ oò [lévTOi ctol, fju 8’ èycó, AXkívou ye cnTÓXoyov épco, àXX’ áXicípou pèv àu8pós, Hpòç tou’ Appievíou, tò yenoç TTap4>úXou.

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“Mas entrementes não quero contar a ti a ‘história’ selecionada para o entretenimento de Alcino (rei dos feácios), e sim um diTÓXoyov, uma apologia (defesa) de um bravo homem, de ‘Er’, filho de Armênio, um da tribo dos panfílios.”

O jogo de palavras entre oú AXkívou ye drróXoyou e àXX’ á\KL|iov [iev àvSpóç não pode ser reproduzido na tradução. Esse jogo de palavras, que introduz o p.D9oç, não é apenas jogo de palavras; ele deve mostrar a essência do Xóyoç aqui vindo à fala, ou seja, do puGoç. Este Xóyoç é chamado dTTÓXoyoç. drrróXoyoç é usado aqui num sentido essencialmente ambíguo e, de fato, cada vez em uma construção verbal diferente: dXicívou dTTÓXoyov e dXicípou dvópòç diTÓXoyov, isto é, um àtTÓXoyoç “para” Alcino, e um diTÓXoyoç dito por um bravo homem. No primeiro caso, de acordo com o significado de sua raiz, dTToXéyeiv, “colher” [auslesen], escolher - àtTÓXoyoç significa algo escolhido para o prazer de Alcino. No segundo caso, onde se entende de modo próprio, a mesma palavra àtTÓXoyoç significa “apologia”, pela qual o homem bravo distingue o que ele diz de tudo o mais que é dito, e assim o preserva na sua própria verdade. A palavra que segue não abandona o que ela diz, não dissipa alguma coisa no vazio do mero entretenimento e do palavrório sem compromisso. A palavra que segue é uma palavra que protege, uma palavra que resiste à importunidade da explanação ordinária e, tomada de modo estrito, pode ser dita e ouvida somente em sua forma propriamente essencial. Isso já estabelece decisivamente que nossa “referência” ao |iu9oç, como uma mera referência, é questionável por razões diversas. De “Er”, o filho de Armênio, diz-se outrora ter completado sua vida na batalha: õç turre èv ttoXépqj TeXeuTr|aaç. Quando, dez dias depois, eles recolhiam os mortos, que já estavam decompostos, “Er” foi integralmente salvo e trazido para a casa, onde ele, no décimo segundo dia, devia ser enterrado. Jazendo sobre a pira funerária, ele retornou à vida e, como alguém que retornou, narrou o que tinha visto “lá” (no lá). Porém, ele falou (614 b 9 - c 1),

éTTeiSij ou èK|3Tjvai, TÍjv 4mxÍF TTopeúeoGai peTa ttoXXcov, Km dcjuicvêicrGai o(j)âç elç tóttov T ivà Scapóuiov,

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sua “alma”, depois de ter sido elevada daqui, partiu com muitos (outros) numa viagem, e eles teriam então chegado numa certa espécie - como nós dizemos - de lugar “demoníaco”; e lá havia dois abismos (xáo\iaTa - xáos, aberturas) na terra próximos um do outro, e havia também dois outros abismos (cada vez aberturas) no céu opostos um ao outro. Ancacrraí estavam apontando para a ordem, mas estavam sentados entre esses abismos que se abriam para a terra e para o céu. A “Er”, o bravo combatente, eles deram a tarefa de tornar-se ayyeXou áuGpiÓTroiç yevéaGai tüv éicet (614 d 2) - um mensageiro aos homens sobre “o lá”. Por isso é necessário para ele áKoúeiu tê kcu GeâaGoa TrávTa tò év tój tóttw (614 d 3) - ouvir como, também, ver cada coisa nesse lugar, um lugar que é chamado Saip-ovioç.

d) tJmxG: o fundamento de uma relação com os entes. O conhecimento do pensador sobre daimonia. Referência a Aristóteles e Hegel.

AaipóvLov: a presença do extra-ordinário no ordinário. Os 8aíp.oveç, aqueles que acenam e mostram para dentro do ordinário

Aqui se faz necessário clarificar o que i};uxg e 0 Que 8aL(ióvLov significam. ijmXG é “a alma” - esta é a tradução correta, justamente como traduzimos àXf|Geia por “verdade” e i^eüSoç por “falsidade”. Mas, de fato, a palavra 4>UXG não pode ser traduzida. Se tentamos clarificar explicando tratar-se da essência do que é vivo, logo surge a pergunta, como a essência da “vida” pode ser pensada num sentido grego? tJ^XG significa o fundamento e o modo de uma relação com os entes. A relação da coisa vivente com os entes e, portanto, também uma relação com ele mesmo, pode existir: nesse caso a coisa vivente necessita ter a palavra - Xóyou ex.ov - porque unicamente na palavra o ser se revela. A relação da coisa vivente com os entes pode também não existir: Ccoou, a coisa vivente vive, certamente, mas então é £coov ãXoyov, uma coisa vivente sem a palavra, por exemplo, um animal ou uma planta. O modo como uma coisa vivente é posicionada em relação aos entes e com isso, portanto, em relação a si mesma, o ser colocado no descoberto, o estado de ser

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de uma coisa viva, é a essência da “alma”; ela alcança umTÓTTOÇ T I? 8ai[lÓVlOS.

Se traduzimos SaL|a,óuLOs por “demoníaco”, obviamente permanecemos próximos à palavra e aparentemente não a traduzimos. Na verdade, é precisamente uma “tradução” quando trans-pomos o 8oli|í .óvlov grego para uma representação indeterminada e semideterminada do “demoníaco”. “Demônios” são para nós os “espíritos maus” - pensado de modo cristão, “o demônio” e seus companheiros. Daimonia é então equivalente a “coisas de Satanás”; no sentido de que a gente, de um modo ainda cristão, crê no demônio e professa a sua existência, ou, de outro lado, num sentido correlato da moralidade iluminista, onde “o satânico” é compreendido como “o mal”, e o mal é uma violação dos princípios da boa cidadania. Com essa compreensão do “demoníaco” não encontraremos jamais a essência e a amplitude de essência do 8ai|ióvi.ov grego. Mas logo que tentamos nos aproximar do âmbito essencial do “demoníaco” experimentado de modo grego, necessitamos nos empenhar numa meditação que, do ponto de vista pedagógico, irá afastar-nos de novo do assim chamado tema da preleção.

Aristóteles, discípulo de Platão, relata num lugar {Ética a Nicômaco Z 7, 1141 b 7s) a concepção básica determinante da visão grega acerca da essência do pensador:

KGti TTepiTTÒ (ièn kcíi Baufiotcrrà xaXeTTÒ ôaipóvia eiSévai aÒTobç cjxíoir', ãxppaLa 8 ’ , ôtl oú tó àvGpwmva àyaGà £r|Toí)(7iv.

“Diz-se que eles (os pensadores) de fato conhecem coisas que são extraordinárias, e então admiráveis, e com isso difíceis, e portanto em geral ‘demoníacas’ - mas, então, sem utilidade, pois eles não estão buscando o que é, assim diretamente segundo a opinião dos homens, o bem para o homem.”

Os gregos, a quem devemos a essência e o nome de “filosofia” e o de filósofo, já sabiam bastante bem que pensadores não são “próximos

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à vida”. Mas eles unicamente concluíram, dessa falta de “proximidade à vida”, que os pensadores então seriam o que há de mais necessário - precisamente tendo em vista a miséria essencial do homem. Os alemães não teriam sido o povo de pensadores se seus pensadores não tivessem conhecido a mesma coisa. Hegel diz, no prefácio à primeira edição de sua Lógica, em 1812: "... um povo civilizado sem metafísica” é semelhante a um “templo abundantemente decorado, mas sem o santo dos santos”13.

A frase acima, citada de Aristóteles, diz que os pensadores conhecem 8aip.óvia, o “demoníaco”. Mas como poderíam “os filósofos”, esses excêntricos inofensivos que se ocupam com coisas “abstratas”, conhecer “o demoníaco”? Aai|ióvi.a é usado aqui como uma palavra de grande amplitude para o que é, do ponto de vista do homem ordinariamente ocupado, algo “excessivo”, “admirável” e, ao mesmo tempo, “difícil”. Ao contrário, o que é comum, o que o homem faz e o que ele persegue é, na sua maior parte, sem dificuldade para ele, porque sempre pode ir de um ente para o próximo, encontrar um caminho para escapar da dificuldade e uma explicação. A grande maioria dos homens persegue somente os entes ordinários; para eles estes são reais, não simplesmente “a realidade”. Mas mencionando “realidade”, a massa testemunha que, para além do que é ordinariamente real, ela tem algo mais em vista, que não vê claramente. A essência dos ttoXXol, dos muitos, não consiste no seu número e massa, mas no modo como “os muitos” se relacionam com os entes. Eles não podem jamais estar ocupados com os entes sem ter em vista o ser. Mas “os muitos” vêem o ser e, ao mesmo tempo, não o vêem. Mas porque eles sempre têm o ser em vista, embora não o tenham no foco, e somente operam, calculam e organizam os entes, eles sempre encontram seu caminho em meio aos entes e estão “em casa” [zu Haus] e “no seu elemento” [da-heim]. No interior dos limites dos entes, do real, dos “fatos”, tão freqüentemente requisitados, cada coisa é normal e ordinária.

Mas onde, ao contrário, o ser é visto no seu foco, lá se anuncia o não-comum, o excessivo que oscila para “além” do ordinário, é o que não pode ser explicado pelas explicações com base

13. Cf. obra de Hegel, ed. Verein von Freunden, vol. 3, p. 4.

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nos entes. Este é o extra-ordinário, com preendido verbalm ente, e não

no sentido usual, segundo o qual significa o im enso e o que jamais

tinha estado presente [N o c h -n ie -D a g e w e se n e ]. Po is o extra-ordinário,

adequadamente compreendido, não é nem espetacular nem

insignificante, porque não pode ser m edido no todo com a medida do

assim chamado “ padrão” . O extra-ordinário não é, portanto, o que

jamais tinha estado presente até então; é o que já vem sempre à

presença e anteriorm ente a todo “ caráter espetacular” . O extra­

ordinário com o o ser que brilha em cada coisa ordinária, isto é, nos

entes, e que muitas vezes brilha somente com o uma sombra de

nuvem, que se m ove silenciosamente, nada tem a ver com algo

monstruoso ou barulhento. O extra-ordinário é o simples, o sutil, o

inacessível para as garras da vontade, o que se subtrai a todos os

artifícios do cálculo, porque ultrapassa todo o planejam ento14. A

em ergência e o encobrim ento que mora em todos os entes

em ergentes, isto é, o próprio ser, é, por isso, o que a experiência

comum, que lida com os entes ordinários, necessita admirar, mesmo

quando ela, tendo o ser sempre em vista, consegue vê-lo de alguma

maneira propriam ente no seu foco. O admirável é, para os gregos, o

simples, o sutil, o próprio ser. O admirável, o que se mostra no

admirar é o extra-ordinário, que pertence imediatamente de tal m odo

ao ordinário, que jamais pode ser explicado a partir do ordinário.

Talvez, depois dessa exposição, possamos traduzir t ò

8 a i| ió v io v (“ o dem oníaco") por “ o extra-ordinário” . Podem os de fato

fazê-lo, desde que pensemos o extra-ordinário com o o que não pode

ser explicado com base no ordinário, com o o r e s u lta d o essencial do

ôaip.óvLov', e assim reconheçam os que o Sa ip .óy iou não é o

dem oníaco porque é o extraordinário, mas que é o extra-ordinário

precisamente porque possui a essência do S a ip .óv io i'. O 8cil|ió vlo u

não é idêntico em essência ao extraordinário no sentido acima

delim itado, e, acima de tudo, o extra-ordinário não é o fu n d a m e n to essencial do 8a ip .óv iov . O que é então o próprio 8aLp.óviov?

Podem os chamar o 8ai| ióvLov de extra-ordinário porque e na

medida em que pensamos o extra-ordinário com o o que em toda parte

14. Cf. Heidegger, Grundbegríffe (Conceitos fundamentais), preleções do semestre de verão de 1941; edição completa, ed. Petra Jaeger, vol. 51, Frankfurt, 1981.

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circunda o ordinário singular e em toda parte se mostra em todo ordinário, sem, porém, ser o ordinário. 0 extra-ordinário, assim compreendido, é, em relação ao ordinário, não a exceção, mas o “mais natural” no sentido da “natureza” compreendida de modo grego, isto é, da c|)ú(iis'. 0 extraordinário é isso de onde todo ordinário emerge, no que todo ordinário está suspenso, sem suspeitar no mais das vezes, e o que e para onde todo ordinário recai. Tò 8aip.óuLov é a essência e o fundamento essencial do extra-ordinário. É o que se apresenta no ordinário e nele essencialmente se constitui. A ação de mostrar-se no sentido de acenar e mostrar significa em grego ôciíoj - (Ôaíovreç - 8aíp.oueç).

Não existem “demônios” concebidos como espíritos maus que pairam por aí; em vez disso, eles determinam de antemão o que é ordinário, sem serem derivados do próprio ordinário. Eles acenam para o ordinário e mostram-no. Tò Scap.óviov’ é o que se mostra apontando para o que é o ordinário e, de um certo modo, então, para o que é e está presente em toda parte como o perfeitamente ordinário, o qual, no entanto, jamais é o simples ordinário. Para os homens de outras épocas, e também para nós, a quem a experiência primordial grega do ser é negada, o extra-ordinário necessita ser a exceção, explicável em princípio, do ordinário; colocamos o extraordinário ao lado do ordinário apenas naturalmente como o incomum. Temos dificuldade de compreender que o próprio ordinário, e somente enquanto é ordinário, é o extraordinário; que o extraordinário aparece “somente” na forma do ordinário, porque o extra-ordinário acena para o ordinário, e no ordinário o aceno é como que do mesmo caráter do próprio ordinário.

Encontramos dificuldade de compreender a essência simples do 8aLp.óvLon, porque não experimentamos a essência da à\f|0eia. Pois os 8aí|ioveç, aqueles que se mostram, que acenam, são aqueles que são assim como são, somente no âmbito essencial do desencobrimento e do auto-des cobrir-se do próprio ser. Noite e dia têm sua essência a partir do qi e encobre e do que se desencobre, e é auto-iluminante. O que é iluminado, no entanto, não é somente o que é visível e compreensível, mas, anteriormente a isso - como o que emerge - é o que supervisiona cada coisa que vem à luz, permanece

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nela e nela repousa, isto é, todo ordinário, e já supervisionando fita fixamente todo o ordinário de tal modo que o extraordinário aparece justamente no próprio ordinário, somente neste e de dentro do ordinário.

e) O vislumbre (9eáw) que oferece a visão do ser. O ver a partir de dentro (vislumbre) do ser (eíSoç). O deus grego (ôaípw ) que, no ver, apresenta-se no desencobrimento. O que vê para dentro do ordinário:

o extra-ordinário. O aparecer do extraordinário no ver do homem

“Ver” [blicken] em grego é Geáco. De modo curioso (ou diriamos de modo admirável) somente a forma mediai Geáopm é conhecida, traduzida como “concentrar o olhar” [anschauen] ou “contemplar” [zuschauen]; por isso falamos do GéaTpou, o lugar do espetáculo [Schau-platz], o “teatro”. Pensado de modo grego, entretanto, 6ecíop.ai significa prover alguém com o olhar, o olhar, isto é, Géa, no sentido do vislumbre, no qual algo mostra e apresenta a sj mesmo. 0eáco, vislumbrar, não significa por isso, de forma alguma, o ver no sentido do observar e refletir representativo, através do que o homem se orienta para os entes como para o “objetos” e os apreende. 0eám é antes o ver, no qual aquele que vê se mostra, aparece e “é aí”. 0eáto é o modo fundamental, no qual o que vê se apresenta (Saíto) no vislumbre de sua essência, isto é, emerge, como descoberto, no descoberto. O ver, também o ver do homem, é originariamente experimentado, não a apreensão de algo, mas o automostrar, em vista do qual somente então se torna possível um ver que apreende algo. Se o homem experimenta o ver somente em termos de si mesmo e compreende o ver precisamente “desde si”, como ego e sujeito, então o ver é uma atividade “subjetiva” direcionada para objetos. Se, no entanto, a gente não experimenta seu próprio ver, isto é, o ver humano, na “reflexão”, como alguém que representa a si mesmo vendo, mas, em vez disso, se o homem experimenta o ver no deixar ser encontrado sem reflexão, como o vislumbre do homem que lhe vem ao encontro, então o olhar nele, da pessoa que encontra, mostra a si mesmo como aquilo no que espera o outro como no encontro,

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isto é, aparece para o outro e é. O ver que espera o outro e o olhar humano assim experimentado descobrem o homem próprio do encontro no seu fundamento essencial.

Nós, homens modernos, ou falando de modo mais amplo, toda a humanidade depois dos gregos, temos nos desviado, há muito tempo, de tal modo que entendemos o ver exclusivamente como o dirigir-se representativo do homem para os entes. Mas desse modo o ver simplesmente não chega à visão; em vez disso é entendido somente como uma “atividade” auto-realizada, isto é, um ato de re- apresentar. Re-apresentar [Vor-stellen) significa aqui: apresentar diante de si, trazer para diante de si e dominar, assaltar as coisas. Os gregos experimentam o ver antes de tudo e propriamente como o modo no qual o homem emerge e vem à presença com outros entes, mas como homem na sua essência. Pensando modernamente e por isso também insuficientemente, mas para nós de forma mais compreensível, podemos resumir: o olhar, 0éa, não é o olhar como atividade e ato do “sujeito”, mas o vislumbre como emergir do “objeto” e seu ir e vir ao encontro. Ver é automostrar-se e, na verdade, aquele automostrar-se no qual a essência da pessoa que encontra se reúne em si, no que a pessoa do encontro “emerge” no duplo sentido de que sua essência é colhida neste olhar como a soma de sua existência recolhida, e que esse todo recolhido e simples dessa essência abre a si mesmo no olhar - abre certamente para deixar vigorar no assim descoberto, ao mesmo tempo, o encobrimento e o abismo de sua essência.

(Ver, 0eaov, é: oferecer o vislumbre, ou seja, o vislumbre do ser dos entes, que são os próprios entes enquanto aqueles que vislumbram. Mediante um tal olhar o homem se distingue e pode se destacar somente através disso, porque esse vislumbrar que mostra o próprio ser não é algo humano, mas pertence à essência do próprio ser como pertencendo à aparência no descoberto.)

Portanto, somente se já pensamos, ou ao menos buscamos experimentar o fato de que a “essência” e o ser para os gregos têm o traço fundamental do autodescobrir-se, somente se pensarmos áXf|0eia, somos capazes de pensar o Oedoo, o ver, como o modo fundamental do aparecer e da essência que se mostram e se oferecem

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no ordinário. Somente se experimentarmos esses estados de coisas simples e essenciais compreenderemos o que de outro modo é completamente incompreensível: que ainda no fim do mundo grego, ou seja, em Platão, o ser tenha sido pensado em termos de “vista” [Anblick] e “perfil” [Aussehen], no que algo mostra a si mesmo, a partir da “fisionomia” [Gesicht], que cada vez “faz e perfaz” “uma coisa” ou, em geral, um ente. As “fisionomias” que as coisas têm, seu “perfil”, significa elSoç ou Í8éa. O ser - Í8éa - é o que em todos os entes mostra a si mesmo e o que a partir dele brilha através deles; esta é a razão precisa pela qual o homem pode apreender os entes como tais. Isto que brilha em todo ordinário, o extra-ordinário como o que se mostra de antemão, é o que desponta originariamente no sentido eminente: rò Befiov, isto é, tò 9elov. Podemos traduzir “corretamente”, embora sem pensar de modo grego, por “o divino”. Ol 9eoí, os assim chamados deuses, aqueles que despontam no ordinário e brilham em toda parte no ordinário, são ol 8aí|i,oveç, aqueles que indicam e acenam.

\Porque o deus é, como deus, aquele que vê e aquele que vê

como quem emerge para a presença, Beácov, o deus é o Saiinu - Saípcou, aquele que no ver se apresenta, ele mesmo, como o descoberto. O que se apresenta ele mesmo no ver é um deus, porque o fundamento do extra-ordinário, do próprio ser, possui a essência do aparecimento autodesvelante. Mas o extra-ordinário aparece no ordinário e como o ordinário. O que vê aparece na vista e “no perfil” do ordinário, dos entes. Aquele que no interior do ordinário traz à presença por sua própria visão é o homem. Por isso a vista do divino necessita reunir-se a si mesma no interior do ordinário, no âmbito da essência da visão humana, e necessita ser colocada ali em sua configuração. O homem, ele próprio, é esse ser que tem a característica, o que o distingue, de ser tocado pelo próprio ser, de tal maneira que no mostrar-se do homem, no seu ver e na sua vista, o próprio extraordinário, o deus, aparece.

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Recapitulação

2) 0 não-demoníaco do Saípoveç. A emergência desvelante do ser: o auto-iluminar-se. O ver (perceber), o modo primordial da emergência na

luz. A posição intermediária do animal (Nietzsche, Spengler). O homem: o vislumbrado. 0 éa e 9eá: a mesma palavra. Referência a Heráclito,

fragmento 48. Insuficiente elucidação das divindades gregas. A visão como o decisivo para o aparecimento do extraordinário no seio do

ordinário. O extra-ordinário mostrando-se no interior do ordinário e sua relação, fundada no ser, com as divindades

O “mito” que conclui o “diálogo” de Platão sobre a essência da ttóXiç e, então, ao mesmo tempo, num outro sentido, abre o diálogo, conclui com uma saga sobre a essência de Xf|0rj, a essência contrária de áXf|0eLa. Essa saga é a história do combatente “Er”. Depois que este tinha completado na batalha sua vida “aqui”, começou “lá”, com muitos outros, a passagem que ele necessitava experimentar antes de, novamente, como ser humano, depois de uma nova decisão, começar um novo curso “aqui”. Ao combatente é dada a tarefa de entrever no olhar o caminho “lá” e o lugar a ser atravessado, e de, como um mensageiro (dyyeXoç), anunciar aos homens no “aqui”.

A essência dos lugares, sua co-pertença e sua seqüência no “aqui”, isto é, toda a região do “lá”, é um tóttos Saip.óvios'. Uma vez que, como há de se mostrar, a Xf|0r| é o mais extremo e último lugar nessa região “demoníaca”, temos de alcançar um claro entendimento do que é pensado aqui e no pensamento grego como tal pela palavra 8cil|j .óvlov, para assim apreender o caráter locativo determinante de Xf|0r|. Nossas representações usuais, confusas e tenebrosas do “demoníaco” em nada ajudam para esclarecer a essência do 8ai|ióuLOu. De outro lado, nossa exposição deverá permanecer dentro dos limites de uma mera alusão. Não será, pois, possível manter distantes todos os mal-entendidos.

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Como preparação anotamos que o extra-ordinário brilha através do âmbito familiar dos entes com os quais temos a ver e que conhecemos, entes que chamamos de ordinários. “O extra-ordinário” é compreendido aqui de modo inteiramente “literal”. No uso desta palavra abandonamos toda representação do gigantesco, espetacular, exagerado, excêntrico. Na verdade, o extra-ordinário em sua realização não-essencial pode se esconder sob tais figuras. Mas em si mesmo, em sua essência, é o que não chama atenção, o simples, o sutil, aquele, no entanto, que brilha em todos os entes. Se concebemos o extra­ordinário como o simples que brilha no ordinário, que não surge do ordinário, mas que, no entanto, aparece de antemão em tudo o que é ordinário, brilhando através e na cercania desse, então se torna claro que a palavra “extra-ordinário”, como usada aqui, não tem nada absolutamente em comum com seu sentido banal, como algo impressionante e “excitante”. Neste presente contexto, o extra­ordinário não tem nenhum traço de outros significados usuais e comuns associados a esta palavra.

O que chamamos de “extra-ordinário” nós o apreendemos com base no ordinário. O que o assim chamado extra-ordinário é em si mesmo e o que possibilita antes de tudo o caráter do extra­ordinário, em conseqüência, isso está baseado no deixar os entes virem ao seu brilho, na auto-apresentação, em grego: Ôaíco.

O que deixa os entes virem ao seu brilho, no entanto, jamais pode ser explicado com base nos entes nem construído a partir dos entes, mas é o próprio ser. O ser que brilha para a cercania dos entes é t ò balou - 8al|iou. Descendo do ser para os entes, e então acenando para eles, estão os SaíovTeç - 8aíp.oues-. Os “demônios”, assim entendidos, são completamente “não-demoníacos”, isto é, julgados em termos de nossa representação usual e sombria do “demoníaco”. Mas esses não-demoníacos 8aí|j.oueç nada têm de “inofensivo” ou “acidental”. Eles não são adições casuais aos entes que o homem poderia passar adiante sem perda de sua própria essência, e poderia colocar de lado, e considerá-los somente de acordo com seus caprichos e necessidades. Em conseqüência dessa sutil irreversibilidade, os 8aíp.oues são certamente mais “demoníacos” do que “demônios” no sentido usual poderíam ser. Os 8aíp.oves' são

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mais essenciais do que qualquer ente. Eles não só dispõem os “demônios” “demoníacos” na disposição do horrível e amedrontador, mas determinam toda disposição essencial afetiva do respeito e alegria até a tristeza e espanto. Aqui, naturalmente, essas “disposições afetivas” não devem ser entendidas no sentido moderno subjetivo como “estados psíquicos”, mas devem ser pensadas de modo mais originário como afinações, para as quais a voz silenciosa da palavra do homem encontra afinação na sua relação com o ser.

Nós, porém, que vivemos tão tardiamente, podemos somente experimentar a essência do óaípoveç como brilhando no ordinário e se apresentando eles próprios nos entes e, desse modo, acenando nos entes para o ser, somente sob a condição de ao menos alcançarmos a essência da dXf|0eLa numa relação intuitiva e assim reconhecermos como o desencobrimento e a emergência de toda a essência do ser, eclodindo originariamente, vigora entre os gregos. Na medida em que o ser vige a partir da dXf|9eLa, pertence a ele o emergir auto- desvelante. Nós denominamos isso a ação de auto-iluminar-se e a iluminação, a clareira (cf. Ser e tempo). Esses nomes se originam, de fato, de uma experiência do pensar primordial, para a qual a dXr|0€La necessita ser pensada de acordo com sua “verdade” própria, a ser percebida somente nela mesma. Os outros nomes, que aqui aparecem como que involuntariamente, não consistem numa mera substituição de designações para algo que permanece pensado no mesmo modo. O que é clarificado mostra-se, ele mesmo, originariamente na transparência do diáfano, isto é, como o esplendor e a luz. Somente na medida em que a áXrjGeia vige, ela faz a clarificação irromper como descoberto. Porque a iluminação ocorre na essência encoberta da dXf|0eia, experimentamos emergência e presença, isto é, o ser, “na luz” do esplendor e da “luz”. O auto-descobrir-se luminoso se mostra, ele mesmo, como o brilhar. (O sol brilha^) O que brilha é o que mostra-se a si mesmo a um ver. O que aparece para o ver é a visão que acontece no homem e que o toca a vista. O ver [Er-blicken\ que o homem realiza em relação à vista [Blick] que aparece já é a resposta para essa vista originária, que, então, eleva a visão humana para sua essência. Assim, como conseqüência da vigência da dXf|9eia, e somente por causa dela, ver é o modo originário da emergência na luz e do vir à luz, isto é, do brilhar para o descoberto. Devemos

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certamente compreender aqui o ver, de modo originariamente grego, como a maneira pela qual um homem nos encontra vendo-nos, e, no ver, reúne a si próprio nessa emergência desveladora de si e nisso, sem reter nenhum resto, apresenta sua essência e a deixa “emergir”.

Esse ver que possibilita então o presencializar é, por isso, mais originário do que a presença de coisas, porque o ver auto- desvelante, segundo a plena essência do descobrimento, abriga e o ao mesmo tempo encobre algo não-descoberto. A coisa, ao contrário, desprovida de olhar, aparece somente de tal modo que ocorre no descoberto, mas ela mesma nada tem a desvelar e, conseqüentemente, então, nada a ocultar.

Aqui o animal tem uma posição intermediária peculiar. Animais, assim se diz, “nos enxergam”. Mas os animais não vêem. O “espreitar”, o “farejar”, o “fitar” ou “vigiar” do animal jamais é um autodesvelamento do ser e, no seu assim chamado ver, o animal jamais produz uma auto-emergência em um ente descoberto para o ser. Nós somos sempre aqueles que primeiramente acolhem no descoberto um tal “ver” e aqueles que, a partir de nós, interpretam o modo como os animais nos “vigiam” como sendo um ver. Por outro lado, lá onde o homem experimenta somente vagamente o ser e o descoberto, o “ver” animal pode concentrar em si uma especial força de encontro. Ver no sentido originário de um auto-apresentar-se emergente, isto é, determinado a partir da àXfjBeui é, em grego, Qeáco. Em contrapartida, o ver no sentido de apreender, que é compreendido com base no apreendido, e que deixa o ver do encontro vir a si e o aceita - este ver do apreender é expresso pela forma mediai de Geáoj na palavra 9eáop.ai, deixar a vista que o homem encontra advir sobre si mesmo, isto é, perscrutar [erblicken\. Os gregos conhecem o ver no sentido do apreender, assim como, ao contrário, também nós, ao lado de um tal ver como um ato da representação subjetiva, conhecemos também a visão do encontro. Mas a questão não é se essas duas formas essenciais de ver, a do encontro e a do apreender, são conhecidas ou não; a questão consiste, antes, em se investigar se o ver que emerge para a presença ou o ver do apreender tem a prioridade essencial na interpretação das aparências, e em que base essa primazia está determinada. De acordo

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com a prioridade da subjetividade na modernidade, é decisivo ver como um ato do sujeito. Na medida em que, nos termos de Nietzsche, o homem é o animal identificado como o super-homem, o animal tem sua essência na vontade de poder, o ver do sujeito é o ver de um ente que transcende no fato de calcular, isto é, de conquistar, burlar e atacar. O ver do sujeito moderno é, como disse Spengler, seguindo Nietzsche, o ver do animal predatório: o espreitar.

Também os gregos experimentaram o ver como uma atividade do homem. Mas o traço fundamental deste ver intenciona a compreensão, não a espreita, na qual os entes são como que fisgados, e assim se tornam objeto contraposto para uma conquista. Para os gregos, ver é a “percepção” [V e rn e h m e n ] dos entes com base numa acolhida originária do ser, razão pela qual os gregos também não conhecem o conceito de objeto e jamais podem pensar o ser como objetividade. Os gregos experimentam o ver compreensivo como percepção, porque esse ver é, como tal, determinado originariamente pelo olhar do encontro. No reino essencial da àXf|9eLa esse ver tem a primazia. No “âmbito” desse ver primordial, o homem é “somente” aquele que é visto. Mas esse “somente” é de tal maneira essencial que o homem, tão-somente enquanto visto, é aceito e recebido na relação do ser e assim é trazido à percepção. O que vê é o que vê no desencobrimento: t ò 9eâov é t ò Gelou. Traduzimos corretamente esta palavra, mas de modo impensado, e presunçosamente vazio, por “o divino”. ©eáouTeç são aqueles que vêem para dentro do descoberto. 9éa, a vista, como a essência da existência emergente, e Geá, a deusa, são uma só e mesma “palavra”, considerando que os gregos não usavam acentos em sua escrita e, acima de tudo, reconhecendo que os gregos reservavam uma originária atenção para essa consonância das palavras e sua saga ambivalente e velada. Nesse aspecto pensamos, por exemplo, no fragmento 48 de Heráclite;

Tw ovv TÓfJcoL õnop-a (Bíoç, épyou Sè GávaTOj.

“O nome próprio para arco é Plós-” - o arco significa e “é” na existência grega (a) “vida” (não como “biológica”, porém como curso de vida marcada pelo destino); mas o que ele produz e coloca nisso é

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a “morte”. Pioç é ambígua. Do arco emerge, e no o vôo, o curso da flecha. O “arco” que faz irromper deixa, no entanto, ao mesmo tempo, sucumbir. õuop.a é o nome, a palavra que expressa, não o simples eco e som. A palavra (3loç é em si ambígua e expressa nesta ambigüidade justamente a essência da vida que traz a morte. Os gregos ouvem 9éa - 0eá assim como ouvem (Bloç - Plóç. 0eoí, os assim chamados “deuses”, são aqueles que vêem para dentro do descoberto e por isso dão um aceno, são OeáovTes-, são por essência SaíouTeç - 8aí|j.oveç, os extra-ordinários que se apresentam, eles mesmos, no ordinário. Ambas as palavras, ©edovTeç e ôaíouTes', expressam a mesma coisa, se pensado essencialmente. No entanto, os nomes 0eoí e Saíp.ones' (“deuses e demônios”) não dizem em seus significados usuais o originário que expressam. No mais das vezes a saga de uma palavra é distorcida e abafada por seus “significados”.

Aqueles que brilham no ordinário aparecem no ordinário como algo ordinário. Aqueles que vêem estão presentes como os que vêem no cotidiano, isto é, como homens na forma de homens. No que é ordinário, o homem aparece como aquele que está presente pelo modo de ver. De certo modo assim também aparece o animal, razão pela qual no início o divino também tem a forma do animal. Mas precisamente essa circunstância testemunha que nem o “animal” como tal nem o “homem” como tal, e sim seu olhar é o que é decisivo para o aparecimento do extra-ordinário. Assim, os deuses aparecem na forma de homem não porque eles são pensados como “humanos” e antropomorfizados, mas porque os gregos experimentam o homem como o ente cujo ser é determinado através de uma relação do próprio ser, que se autodesvela, para o que, com base nessa relação, chamamos de o “homem”. Por isso o olhar do deus que irrompe do ser pode emergir “no” homem e pode ver para fora a partir da forma de “homem” como reunido no olhar. Por isso também os homens muitas vezes são divinizados e pensados de acordo com a forma divina, uma vez que deuses e homens recebem sua respectiva e distinta essência do próprio ser, isto é, da áXf|0eia.

A informação “antropomórfica” e “teomórfica” na “explicação” moderna dos deuses gregos é errônea em todos os casos. Essa “explicação”, que os deuses seriam privados dos atributos

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divinos segundo a medida humana e que os homens seriam divinizados de modo desumano, é essencialmente errônea, porque se refere a um questionamento que no perguntar já erra e também necessita errar, uma vez que o único reino da áXf|9eLa, que unicamente ilumina tudo, não é conhecido nem experimentado. Não é no reino dos deuses individuais que as divindades gregas manifestam o maravilhoso e o “demoníaco” no sentido verdadeiro, mas como fundado na proveniência de sua essência.

Pode ser óbvio que os deuses gregos, que não são mais, permaneçam objeto de experiência somente a partir do ser pensado de modo grego. Entretanto, não pensamos o ser que é aqui nomeado e não refletimos acerca dele de antemão, mas, em vez disso, na nossa pressa comum, de acordo com nossa escolha arbitrária ou com nosso gosto, ou sem refletir, supomos alguma idéia de ser não experimentada numa maneira decisiva e não correspondentemente elucidada. Assim se afirma, sempre de novo, a mais cômoda informação, de esclarecer esses deuses como um “produto” “do homem” e éspecialmente do homem “religioso”. Como se esse homem pudesse, apenas por um momento, ser homem sem a relação desses deuses para sua própria essência, isto é, sem deixar essa relação repousar no próprio ser.

0 A diferença entre os deuses gregos e o Deus cristão. A palavra como lugar de nomear o ser no seu iluminar a partir de dentro e o

mito como o modo da relação ao ser que aparece. O homem: o proferidor de Deus. “Declínio” de culturas (Nietzsche, Spengler). O

traço fundamental do esquecimento do ser: o a-teísmo

Os gregos não fantasiaram os deuses de forma humana nem divinizaram o homem. A essência dos deuses gregos não pode ser explicada por um “antropomorfismo”, como tampouco a essência do homem grego pode ser pensada como um “teomorfismo”. Os gregos não humanizaram os deuses nem divinizaram o homem; pelo contrário, experimentaram os deuses e o homem na sua essência distinta e na sua relação recíproca, com base na essência do ser no

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sentido de uma emergência autodesvelante, isto é, no sentido de ver e indicar. Essa é a razão por que somente os gregos têm um claro conhecimento da essência dos “semideuses”, í|pí9eoi, que habitam no meio, entre os deuses e os homens.

A informação “antropomófica” dos deuses gregos e a informação “teomórfica” dos homens gregos, os quais nemhumanizaram nem revestiram com formas humanas os deuses, nem divinizaram os homens, são ambas respostas igualmente semfundamento a questões insuficientemente clarificadas. Perguntar se os gregos revestiram as “pessoas divinas” com formas humanas, ou se as personalidades humanas teriam sido divinizadas como pessoas divinas, com isso pergunta-se acerca de “pessoas” e “personalidades”, sem antes ter determinado a essência do homem e das divindades como são experimentadas pelos gregos e sem ter determinado, ao menos o mais próximo, isto é, o fato de que para os gregos não há nem “sujeitos”, nem “pessoas”, nem “personalidades”. - E como se poderia querer determinar o mínimo sobre uma “antropo-morfia” ou sobre uma “teo-morfia” sem antes fundar a essência de popcf)f| como é experimentada pelos gregos e a essência dos conceitos gregos como “formar”, “devir” e “ser”? Como ter êxito nisso sem que, antes de tudo e de cada coisa, a essência da áXr|0eLa seja mais bem conhecida?

A essência fundamental das divindades gregas, diferentemente de todas as outras, inclusive do Deus cristão, está no fato de que os deuses gregos se originam da “essência” (“vigência”) e o ser se “essencializa” (“vige”). E esta é, portanto, a razão por que a luta entre os deuses “novos”, isto é, olímpicos, e os deuses “antigos” é a luta que, acontecendo na essência do ser, determina a irrupção do próprio ser na emergência de sua essência. Esse mesmo nexo essencial é a razão por que os deuses gregos, como também os homens, nada podem diante do destino ou contra ele. A polpa vige sobre deuses e homens, enquanto, por exemplo, no pensamento cristão, todo o destino é a obra da “providência” divina do Deus criador e salvador, que, como criador, domina e calcula todos os entes como criados, razão pela qual Leibniz ainda pode dizer: cum Deus calculat, fit mundus - “porque e enquanto Deus calcula, o mundo surge”. Os deuses dos gregos não são “personalidades” e “pessoas” que dominam o ser, mas são o próprio ser,

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que vê de dentro para fora em direção aos entes. Mas porque o ser sempre e em toda parte sobrepuja infinitamente todos os entes e os transcende a todos, por isso, onde a essência do ser veio originariamente para o descoberto, lá os deuses, como é o caso entre os gregos, “transcendem” a tudo e, dito de modo cristão e moderno, são mais “etéreos” e mais “espirituais”, apesar de suas “qualidades humanas”. Precisamente porque os “deuses” são Saíponeç - 0c áovre ç e co- aparecem no familiar e ordinário, seu extra-ordinário é tão puro na medida e na suavidade que, quando eles aparecem alStós e xápLç - no temor e na graça do ser -, brilham em toda parte de antemão; brilhando, acenam, e acenando, harmonizam. Quando, então, denominamos os deuses gregos “aqueles que harmonizam”, pensamos sua essência de modo mais originário; podemos, porém, assim denominá-los, porque o temor, a graça e o brilho da suavidade pertencem ao ser e são experimentados na fala poética como aiScos' e xápis e, no pensamento, como Gaupaoróv e 8aip.óviov. Dessa luz que harmoniza e acena, surge o brilho do Gelou, o brilhar. Somente por causa deste brilho foi, ao mesmo tempo, concedida aos gregos também a experiência do escuro, do vazio e do escancarado. Enquanto a palavra usual germânica Got significa, de acordo com sua raiz indo-européia, um ente [Wesen] que o homem invoca e é, pois, o invocado, os nomes gregos, relacionados ao que chamamos deus [Gott], expressam algo essencialmente diferente: Geóç - Geriuju e haípuou - Saítov significam o ver auto-emergente e o ser que se doa para os entes; aqui o deus e os deuses, já pelo próprio nome, não são vistos a partir do ponto de vista do homem, como invocados pelos homens. E quando os deuses são de fato invocados, por exemplo, em antigas fórmulas de juramento, lá são chamados CTUuÍCTTOpeç, aqueles que “vêem”, e têm visto e, como tal, têm os entes no desencobrimento e podem, então, acenar para eles. Mas como owícrTopeç, eles não são “testemunhas”, uma vez que a “ação de testemunhar”, enquanto não a compreendemos originariamente como criar (a vista) a partir de dentro, já é fundada no ter visto de alguém que vê. Os deuses são como GeáovTeç, necessariamente, loropeç. loTopía significa “trazer para a visão” (da raiz fid; videre, visio), colocar na luz, trazer para a clareza. Por isso é próprio ao icrropelv, genuinamente e antes de tudo, o raio de luz. (Cf. Ésquilo, Agamenon 676, onde é dito de

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Menelau: el yovv tls aKTiç f]XLOi> viv ioropel - se ainda algum raio do sol o tem na visão, isto é, o faz ser visível, o deixa estar na luz.)

Entretanto, o nome e a designação da divindade (0elov), como de quem vê e faz brilhar a partir do interior (9eâov), não é uma mera expressão vocal. 0 nome, como a primeira palavra, deixa o que é designado aparecer na sua presença primordial. A essência do homem, como experimentada pelos gregos, é determinada com base nessa relação para o ser auto-emergente, de tal modo que o homem é aquele que tem a palavra. Mas palavra diz a ação de deixar aparecer o ser, nomeando-o segundo a vigência da palavra. O homem é o Cqiov Xóyov lypv - o ente que emerge no nomear e dizer, e que, no dizer, mantém sua essência. A palavra como a ação de nomear o ser, o |i.u0oç, nomeia-o no seu ver primordial a partir do interior e no seu brilhar - nomeia t ò 0âov, isto é, os deuses. Uma vez que t ò 0elov e t ò 8aip.óviov (o divino) são o extra­ordinário que olha para o descoberto e os apresenta no ordinário, então |iD0oç é o único modo apropriado da relação com o ser que aparece, uma vez que a essência é determinada, como essencialmente o são Gelou e òaipóvioi', com base no desencobrimento. Por isso o divino, como a ação de aparecer, e como o que é percebido no aparecer, é o que há que ser dito e o que é dito na saga. Por isso o divino é o “mítico”. Por isso a saga dos deuses é “mito”. É por isso, então, que o homem na experiência grega, e somente ele, em sua essência e de acordo com a essência da àXr|0eia, é aquele que diz o divino. Porque é assim, isso somente pode ser entendido e pensado com base na essência da àXf|0eLa, na medida em que esta vige de antemão através da essência do próprio ser, através da essência da divindade e da essência da humanidade, e através da essência da relação do ser com o homem e do homem com os entes.

Mas o que acontece se precisamente essa essência da àXf|0ei.a, e com ela a essência primordial do ser, que se manifesta por si mesma, se desfiguram mediante transformações, e por causa de tais desfigurações fmalmente são vítimas do encobrimento no sentido da obliteração? O que acontece então, se a essência do ser e a essência da verdade são esquecidas? O que acontece então, se o esquecimento do ser circunda com erros a história da humanidade histórica de modo invisível e sem sinais? Se a divindade originária emerge com base na essência do ser, não deveria o esquecimento do ser ser o fundamento para o fato de que, desde

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então, a origem da verdade do ser se retraiu, ela mesma, no encobrimento, e nenhum deus pôde então aparecer emergindo do próprio ser?

O “a-teísmo”, corretamente entendido como a ausência dos deuses, tem sido, desde o declínio do mundo grego, o esquecimento do ser que se apodera da história ocidental como o traço fundamental dessa história mesma. O “a-teísmo”, compreendido no sentido da história essencial, não é, de forma alguma, como popularmente se costuma pensar, um produto de pensadores livres que se tornaram selvagens. O “a-teísmo” não é o “ponto de vista” de “filósofos” que se comportam de modo soberbo. Além disso, o “a-teísmo” não é o lamentável produto das maquinações de “maçons”. “Ateístas” de tal espécie são eles mesmos já os últimos rebotalhos da ausência dos deuses.

Mas como deve uma aparência do divino no todo poder encontrar a região de sua essência, isto é, do desencobrimento, se e enquanto a essência do ser é esquecida e, com base neste mesmo esquecimento, a desconhecida obliteração do próprio ser é elevada a princípio de clarificação de todos os entes, como isso acontece em toda metafísica?

Apenas quando o ser e a essência da verdade vêm a ser re­cordadas fora do esquecimento, a humanidade ocidental poderá assegurar- se da pré-condição, prévia mais preliminar, para o que é o mais preliminar de tudo que é preliminar, isto é, uma experiência da essência do ser como o domínio, no qual uma decisão sobre os deuses e sobre a ausência dos deuses pode somente então ser preparada. Mas não recordaremos o ser ele próprio e sua essência enquanto não experimentarmos a história da essência da verdade como o traço fundamental de nossa história, enquanto calcularmos a história somente “historiograficamente”. Pois é um cálculo historiográfico quando chegamos a conhecer os gregos como algo do passado e estabelecemos que eles “decaíram”, uma constatação feita na maior parte das vezes na forma “historiográfica”, dizendo que o helenismo poderia conter para nós “valores eternos”. Como se a história essencial pudesse ser algo que se deixasse “calcular em valores”! A obediência a “valores eternos” das culturas do passado é a forma básica, na qual os historiadores se desvencilham da história, sem tê-la simplesmente experimentado, e assim destroem todo o sentido de tradição e diálogo.

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Mas se já continuarmos a falar de povos que “decaíram” e do mundo grego “decaído”, o que então sabemos da essência do decaimento histórico? E se o decaimento do mundo grego for aquele evento pelo qual a essência primordial do ser e da verdade poderíam ser abrigados de novo em seu próprio recolhimento e com isso se tornarem significativos para o futuro? O que seria, se “declínio” não significasse fim, mas sim começo? Toda a tragédia grega fala do declínio. Cada um desses declínios é um começo e uma emergência do essencial. Quando Spengler, completamente no espírito da metafísica de Nietzsche e fazendo esta ainda tornar-se em toda parte mais grosseira e superficial, fala do “declínio do Ocidente”, ele não está falando em parte alguma da história, pois rebaixou, de antemão, a história a um “processo biológico” e fez dela uma estufa de “culturas”, que crescem e fenecem como plantas. Spengler pensa a história, se ele simplesmente a pensa, como um caminho sem história. Ele entende “declínio” no sentido do simples chegar ao fim, isto é, como um perecimento representado biologicamente. Os animais “declinam”, eles perecem. A história decai na medida em que retorna para o encobrimento do começo - isto é, ela não declina no sentido do perecimento, porque jamais pode “declinar” desse modo. Se aqui, para a clarificação do 6ai|ióuiov, acenamos para a essência das divindades gregas, então não temos em mente coisas antiquadas ou os objetos da historiografia, mas história. E história é o evento da decisão essencial sobre a essência da verdade, cujo evento é sempre um vir-a-ser [Kommende] e jamais algo passado [ Vergangene]. No esquecimento, porém, somos subservientes ao passado do modo mais duro possível.

g) O divino como o que se dá a partir do interior no descoberto. O daimonion: o ver em sua silenciosa recepção para a pertença ao ser. O domínio do descobrimento da palavra. A “correspondência” do divino e

do mítico (tò 0c"lou e ó [iu0oç). O trazer-para-a-obra (arte) do desencobrimento e seu médium na palavra e no mito. Eò8ai|j.ovía e

SaiiióuLoç tóttoç

Deixamos para trás o esquecimento do ser, na medida em que podemos fazê-lo assim e na medida em que podemos, como tal, fazer

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deste modo “por nossa própria” iniciativa. Entretanto, se pensarmos a essência primordial do ser, isto é, a áXqGeia, e se pensarmos na áXf|0eia de tal modo que pensemos sua essência ainda mais primordialmente, então experimentaremos o que seja “o demoníaco” no sentido do 8«L|ióuiou grego.

O 8ai|ióuLoy é o caráter essencial do Gelou, como aquele que, olhando para o ordinário, vê a partir do interior, isto é, aparece. Esse aparecimento é em si mesmo Solou, o divino, que se dá a partir do interior no descoberto. O que se dá a partir do interior no descoberto e aparece tem como modos básicos de aparecimento a visão e a fala, devendo-se notar que a essência da fala não consiste no som vocal, mas na voz [Stimme], no sentido da instância que harmoniza sem som [lautlos Stimmenden], que acena e traz a essência do homem a ele mesmo, trazendo-a, propriamente, para sua determinação histórica [Bestimmung]: é seu modo de ser o “ali” [Da], isto é, a clareira ekstática do ser (cf. Ser e tempo, § 28s). O ver na silenciosa recepção da pertença autoperceptiva e concentrada a partir do ser é o 8ol|j.óulou. Essa “exigência” do divino, fundada no próprio ser, é acolhida pelo próprio homem no dito e na saga, porque a ação de descobrir o desencoberto e de resgatar o descoberto toma lugar apenas e somente na linguagem.

A vista para o desencoberto vige apenas e somente na palavra reveladora. A vista somente vê e é a automanifestação que manifesta o que é, somente, no domínio revelador da palavra e da percepção narrativa. Só se reconhecermos a relação originária entre a palavra e a essência do ser, seremos capazes de compreender por que os gregos, e somente para eles, o que é narrado no mito (ó puGos) necessita falar numa “cor-respondência” [ent-sprechen] com o divino (tò Gelou). Esta cor-respondência é, na verdade, a essência primordial de toda correspondência (homologia); a palavra “cor-respondência [Entsprechung] necessita, então, ser tomada essencial e literalmente. Com a evidência nessa correspondência, na qual um dito, uma palavra, uma saga, corresponde ao ser, isto é, desvela falando dele como o mesmo numa comparação, somos, então, colocados numa posição de, finalmente, poder dar uma resposta ainda por ser dada, a uma questão colocada anteriormente.

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Em nossa primeira elucidação da essência do [lOGo? como da saga reveladora, na qual e para a qual o ser aparece, afirmou-se que, de acordo com a dignidade essencial da palavra, a poesia e o pensamento têm o máximo grau histórico de dignidade para os gregos. Essa indicação deveria despertar uma objeção, à qual as elucidações realizadas do 8ai|ióiAOv e do Gelou deram ainda maior significado. Para os gregos, os entes aparecem no seu ser e na sua “essência” não somente na “palavra”, mas igualmente na escultura. Se, na verdade, o divino, no sentido grego, tò Gelou, é precisamente o ser ele próprio vendo do seu interior para o ordinário, e se a essência divina aparece precisamente para os gregos na arquitetura de seus templos e na escultura de suas estátuas, o que acontece, então, com a afirmada prioridade da palavra e de acordo com a prioridade da poesia e do pensamentol Para os gregos, não são arquitetura e escultura, justamente com respeito ao divino, de um grau mais alto de dignidade ou ao menos do mesmo grau, como poesia e pensamento? Não há aí uma razão bem justificada para nosso procedimento de formarmos, com base na arquitetura e escultura, uma “imagem” “histórica” paradigmática da essência do mundo grego? Só podemos colocar e discutir essas amplas questões aqui dentro dos limites postos por nossa meditação acerca da essência do 8aLp.óviov.

É fácil ver que aqui se pergunta acerca das “classes de arte” e de seu nível de qualidade: arquitetura, escultura, poesia. Aqui estamos pensando sobre a essência da arte, na verdade, não em geral e vagamente nem como uma “expressão” da cultura ou como uma “testemunha” do potencial criativo do homem. O foco do nosso interesse é mostrar como a obra de arte “da própria arte” deixa o ser aparecer e o traz para o desencobrimento. Perguntar assim está distante do pensamento metafísico acerca da arte, pois este pensa “esteticamente”. Isso significa: a obra é considerada com respeito ao seu efeito sobre o homem e sobre sua experiência vivida. Mas, na medida em que a própria obra é considerada, é vista como produção de uma criação, “criação” essa que expressa um “impulso de vivência”. Mesmo quando se considera em si mesma a obra de arte, ela é tomada como “objeto” e “produto” de uma experiência de vivência criativa ou imitativa. Isso significa: é constantemente concebida com base na percepção (aíaGeCTLç) humana subjetiva. A

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consideração estética da arte e da obra de arte começa precisamente (pela necessidade essencial) com o início da metafísica. Isso significa: a atitude estética em relação à arte começa no momento em que a essência da áXqBeia é transformada em ófioítocus, na conformidade e correção do perceber, apresentar e representar. Essa transformação começa com a metafísica de Platão. Uma vez que, na época antes de Platão, por razões essenciais, uma consideração “sobre” a arte não existia, assim todas as considerações ocidentais da arte e todas as explicações da arte e a história da arte em geral são, de Platão a Nietzsche, “estéticas”. Se estamos atentos à metafísica, percebemos que, neste fato metafísico básico da dominação contínua da estética, nada se altera se, em vez de um assim chamado “esteta” culto e esnobe, temos, por exemplo, um camponês que “experimenta” com seu instinto “natural” um nu numa exposição de arte. O camponês, nesse caso, também é um “esteta”.

Depois disso que estamos considerando, e pensando sobre a dominância deste fato, necessita surgir em nós a suspeita de que, em nossa presente pretensão de determinar algo sobre a arte dos gregos, a banalidade do modo estético de considerar pode de antemão sobrecarregar nosso acesso com pontos de vista impróprios e distorcidos.

Segundo a opinião usual, existem diferentes “classes” de arte. A própria arte é a ação de formar e moldar, é a “criação” de uma obra a partir de um material. Arquitetura e escultura usam pedra, madeira, bronze, cores; música usa tons, poesia, palavras. Pode-se, então, lembrar que, para os gregos, a apresentação poética da essência dos deuses e de sua dominação era certamente essencial; ainda não menos essencial, e quase mais “impressionante”, por causa de sua visibilidade, seria a apresentação dos deuses imediatamente em estátuas e templos. Arquitetura e escultura usam, como material de base [ Werkstoff\, materiais relativamente estáveis como madeira, pedra e bronze. Elas são independentes do hálito fugidio da palavra, que rapidamente desvanece e, além disso, se revela ambígua. Por isso, através destas classes de arte, arquitetura, escultura e pintura, foram colocados limites essenciais para a poesia. As primeiras não necessitam da palavra, enquanto a última necessita. Essa visão,

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porém, é muito errônea. De fato, arquitetura e escultura não usam a palavra como seu material de base. Mas como poderíam lá estar templos ou estátuas, existindo para o que eles são, sem a palavra? Certamente essas palavras não necessitam das descrições da história da arte. Os gregos eram afortunados por não necessitarem de historiadores da arte, da literatura, música e filosofia; a sua história escrita é essencialmente diferente da “historiografia” moderna. Os gregos tinham o bastante com as tarefas dadas a eles pela poesia, pelo pensamento, pelas construções e esculturas.

Mas a circunstância de que num templo ou numa estátua de Apoio não existem palavras como material de base a ser trabalhado e “forjado”, não prova ainda de forma alguma que essas “obras”, no que elas são e como são, não necessitem da palavra, e especialmente dela, de um modo essencial. A essência da palavra, considerada nas suas possibilidades totais, não consiste primeiramente no seu som vocal, nem na loquacidade e barulho, nem na sua função meramente técnica de comunicar informações. A estátua e o templo estão num diálogo silencioso com o homem no desencoberto. Se não fosse a palavra silenciosa, então o deus que vê como visão da estátua e de seus traços configurados jamais podería aparecer. E o templo, sem estar no reino revelador da palavra, jamais poderia apresentar-se como a casa do deus. O fato de que os gregos não descrevam nem falem sobre suas “obras de arte” “esteticamente” testemunha que as obras estavam, na verdade, protegidas na clareza da palavra, sem o que uma coluna não seria coluna, um tímpano não seria tímpano, um friso não seria friso.

Por isso, de um modo essencialmente único, através de sua poesia e de seu pensamento, os gregos experimentam o ser no desencobrimento da saga e da palavra. E somente por isso sua arquitetura e escultura têm a nobreza do construído e do esculpido que elas mostram. Essas “obras” estão no médium da palavra, o que significa no médium da palavra que fala essencialmente, no âmbito da saga, no âmbito do “mito”.

Por isso, a poesia e o pensamento têm aqui a prioridade, que não é compreendida se os representarmos “esteticamente” como a primazia de uma “espécie de arte” em face das demais. Similarmente, em

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geral, “a arte” não era o objeto de uma “cultura” e de um impr vivência, mas sim a ação de “trazer-para-a-obra” [Ins-Werk-bringen\ o desencobrimento do ser a partir da vigência do próprio ser.

No [iu0os' aparece o 8aip.óvLoy. Como a palavra e a possibilidade de “ter a palavra” sustentam a essência do homem, ou seja, a relação do ser com o homem, assim, no mesmo nível de essência, isto é, em relação com o todo dos entes, o 8ai|ióviou determina a relação básica do ser com o homem. Por isso, na antigüidade grega posterior, com Platão e Aristóteles, uma palavra era ainda essencial, uma palavra que nomeava esta relação do ser com o homem. Esta palavra é eò8ai|ioiÁa.

Pela tradução romano-cristã no sentido da beatitudo (isto é, o estado do beatus, do bem-aventurado), a eò8ai|iouía foi obviamente transformada numa mera qualidade da alma humana, a “felicidade”. Mas aj8cu|_iovía significa o “ev”, vigente na medida adequada - a

,y manifestação e a presencialização do Soap.óvLOv.

Isso não é um “espírito” habitando alguma parte no interior do peito. A fala socrático-platônica do 8aLp.óviov, como de uma voz interior, significa somente que sua afinação e determinação não provêm de algum ente previamente existente, mas do ser ele próprio, invisível e não apreensível, que é, porém, mais próximo ao homem do que qualquer manipulação imperiosa de algum ente.

Onde o 8ai|ióviov, o divino que se dá a partir do seu interior no desencobrimento, o extra-ordinário, necessita ser propriamente dito, a fala é uma saga, um p.ü0oç. A conclusão do diálogo platônico acerca da essência da ttóXlç fala de um ôaip/m oç tóttoç. Agora entendemos o que esse nome significa.

Tóttos significa em grego lugar [Ort], entendido, porém, não como mera posição numa multiplicidade de pontos, em toda a parte homogênea. A essência do lugar consiste em que ele mantenha reunida, no lugar [Wo] presente, a circunferência do que é em seu nexo, o que pertence a ele e é “nele”, no lugar. 0 lugar é a manutenção, originariamente reunida, do que está numa relação recíproca de co-pertença, e forma, então, na maioria das vezes, uma multiplicidade de lugares interligados mutuamente, o que

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denominamos localidade [Ortschaft], No domínio de extensão da localidade existem, então, caminhos, passagens e veredas. Um 8ai|ióvLOÇ tóttoç é uma “localidade extraordinária”. Isso diz agora: um lugar, em cujos lugares e passagens o extra-ordinário brilha explicitamente e a essência do ser vige num sentido eminente.

§ 7. A última saga da Grécia sobre a essência contrária da dXrjOeLa, a Xrjdrj (II). O mito final da Politéia de Platão. O

campo da Xrjdg

a) A localidade do extra-ordinário: o campo do encobrimento que se retrai. A exclusividade do extra-ordinário no local da Lethe. A visão de

seu vazio e o nada do retraimento. A água sem recipiente do rio “Sem-cuidado” no campo da Xr|Qir|. A salvação do desencoberto pelo

pensamento que pensa e a porção do pensador

A localidade, evocada no mito final da Politéia de Platão, não está nem na “terra” nem no “céu”. Ao contrário, nessa localidade se mostra, e até mesmo exclusivamente, o que remete e acena para o subterrâneo, que pertence à terra, e para o sobreterrâneo. Subterrâneo e sobreterrâneo são os locais, onde o “demoníaco” surge à superfície e desaparece no centro da terra. São os locais dos deuses. Na localidade do extra-ordinário encontram-se os que vêm do subterrâneo e do sobreterrâneo, para percorrer este 5ai|ióvios' tóttoç, antes de novamente atravessar uma nova viagem mortal sobre a terra. Na viagem pela localidade do extra-ordinário, os lugares são atravessados segundo estados e tempos muito bem delimitados.

O último lugar dentro da localidade do extra-ordinário, e com isso o lugar em que os viajantes devem manter-se imediatamente antes de nova viagem mortal, é tò rf\s Af|0r|ç TTeSíov, o campo do encobrimento que se retrai, no sentido do esquecimento. É nesse campo da Xf|9r| que se recolhe toda a viagem. Aqui vige e atua o “demoníaco” de toda a localidade, no mais alto e sumo grau de sentido. O guerreiro evocado na narrativa conta que o caminho pelo

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campo da Xf|9r| passa por um calor que tudo devora e por um ar que tudo sufoca: Kal yàp eivai aírrò (tò TÍjç Af|0r|ç rreôiou)K€vòv SevSpmv T€ Kal õaa -yfj c))úei (621 a 3s). “Este campo do encobrimento em retração é, em si mesmo, ermo de vegetação, bem como vazio de tudo que (a) terra faz brotar”. Este campo do encobrimento é contra toda 4>úais\ A Xfj0r] não permite nenhum cfmeiv, nenhum surgir e brotar. A XfjBr] aparece como essência contrária da c|)úcris. Se compreendermos, porém, (jurns como “a natureza” e Xf|0r| como o “esquecimento”, então não há como perceber, porque ((mais e Xf|0r| hão de contrapor-se, pois ambas haverão de chegar a um relacionamento acentuado uma com a outra. Se, no entanto, pensarmos como os gregos, então tornar-se-á claro que, como um retrair-se e encobrir-se essencial, a Xf|0r| nunca deixará surgir, em canto algum, alguma coisa e se há de voltar contra todo brotar, isto é, contra a cfmais'. O campo da Xf|0r| bloqueia qualquer descobrimento do ente e, portanto, do ordinário. A XiqGri faz desaparecer tudo no lugar de sua essência, que é ela mesma. Todavia, o que distingue e caracteriza esse lugar não reside apenas na completude do retraimento, por assim dizer, na pretensa quantidade do encobrimento. Ao contrário, vale muito mais ver: a “ausência” [weg) do que se retrai, já em si mesma, vige e vigora na própria essência do retraimento. A “ausência” do que se retrai e encobre não é um “nada”, mas o fazer tudo desaparecer no retraimento é a única coisa que se oferece nesse lugar. O lugar fica vazio - nele nada há de ordinário. Entretanto, o vazio é o que aqui permanece e tem vigência. O nada do vazio é o nada do retraimento. O vazio do lugar é a vista, que dentro dele vê e o “preenche”. O lugar da Xr|9r| é a locanda [Wo], em que vige e vigora o extra-ordinário numa exclusividade característica. O campo da Xr|0r) é “demoníaco” num sentido excepcional.

Porém, à medida que esse lugar deixa e faz aparecer e vigorar em seu âmbito alguma coisa, então isso mesmo que pertence ao campo da Xr|0r| deve ser da mesma essência que o campo. A única coisa que os viandantes encontram no campo é um rio. Todavia, o nome do rio já demonstra que está de acordo com o lugar, e isso significa que serve e obedece à essência da Xrj9r|. O rio no campo da Xf|9r| tem o nome de A|iéXr|ç, o que significa: “sem-cuidado”. O guerreiro, que narra o p.O0oç do ôaip.óvLOç tóttos', afirma:

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<7Kr|vâCT9a i o u v acj)ds ' rí8r | é a T T é p a s y iy v o p .é v r is '

Trapà TÒy ApiArjTa TTOTapóy, o v t ò ítôwp á y y e L o v

oú8èv c r r c y e i v (621 a 4s).

“Eles teriam, então, estendido a tenda, depois que o anoitecer já despontou, à margem do rio ‘Sem-cuidado’, cuja água não guarda nenhum continente, isto é, não pode acobertar” (CTTéyrj, o teto, a cobertura).

Tal água não conhece o cuidado (p.eXénj) de nada que contrarie o desaparecimento [Verschwindung] e o descaminho [Entgãngnis] e, com isso, o encobrimento em retração. Esta água que não se deixa conter em nenhum continente, porque, já em si mesma, é puro descaminho e não conhece a p.eAérr| Trjs' àXf|0eiaç, o cuidado pelo desencobrimento, o cuidado que o ente fique resguardado no desencoberto e nele esteja e permaneça constantemente. O “cuidado” aqui não designa, de forma alguma, qualquer preocupação ou melancolia com alguma situação externa do mundo e do homem. Ao contrário, o cuidado cuida aqui unicamente do desencobrimento e pertence ao âmbito do Saipióviov. O cuidado pertence ao acontecer de apropriação da essência de descobrir e encobrir. Assim, o correspondente “descuido” não é nem uma descura qualquer de algumas coisas, nem é apenas uma propriedade do homem. O “descuido” está unicamente em não cuidar da verdade, que cuida da regência da Xf|9r|, o encobrimento que retrai; é por isso que também esse des-cuido é um 8aL|ióviou. Na medida, portanto, em que no âmbito do pensamento essencial, que pensa a essência do ser e o desencobrimento da verdade, surge a palavra do “cuidado”, pensa-se coisa totalmente diferente do que o enfado de um “sujeito” humano, que cambaleia pelo “nada em si”, uma “vivência” obstinada numa nulidade vazia.

A água do rio, que escorre no campo da Xfj0r|, esquiva-se de qualquer continente e se concentra em empreender apenas um único retraimento, que leva tudo a esvair-se e assim tudo encobre. Aquele,

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porém, que, após a travessia do Saip.óvios' tóttoç, vai iniciar uma viagem na terra deve beber antes das águas do rio “Sem-cuidado” e beber uma certa medida:

p.eTpov gèv ouv tl Toü ü8aT oç uôctiv ávayicaiov e iv a i m e iv ,

“uma certa medida, porém, desta água todos têm necessidade de beber” (621 a 6s).

Todo homem, que atravessa a viagem mortal pela terra, está na terra de tal modo e de tal maneira no seio do ente que, em razão daquela bebida, lhe reina um encobrimento e retraimento do ente. E de tal maneira que o ente só é enquanto se dá também e, em contraste com esse encobrimento e esse retraimento, vige um desencobrimento, em que o desencoberto pode vir a ser retirado e permanecer como tal. É pela bebida comedida que o homem, ao retomar para a terra, traz consigo uma co-pertinência essencial com o âmbito do encobrimento das essências. Todos, sem dúvida, estão, até certo ponto, no âmbito do encobrimento das essências -

toíiç 8è ^povrpei [if] awCoúévoLç p-Aéov muau tou péTpou -

“aqueles, porém, que não foram salvos pela percepção, bebem além da medida” (621 a 7s).

<l>póvriCTLS significa aqui a percepção daquele ver por dentro, que per­cebe [Ein-sehens] o que constitui propriamente o visível e desencoberto.

A per-cepção significada aqui é o brilhar da visão de essência, isto é, da “filosofia”. c|)póvinaiç diz aqui o mesmo que “filosofia” e este título diz: ter a visão do e para o essencial. Quem souber ver assim é um arnCóp-evous', um salvo, alguém, a saber, que “foi salvo” pela e para a referência do ser com o homem. Também a palavra crip£e iv, como 4>póvr|CTiS' e 4>iXoaoc()ía, é uma palavra essencial. Os pensadores gregos falam de crípCeiv tò cf>aivóp.eva - “salvar os fenômenos, isto é, o que aparece”; isso significa: reter e resguardar no desencobrimento o que se mostra, na condição em que se mostre e tal

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como se mostra, a saber, preservá-lo contra o encobrimento e deslocamento corruptor. Quem assim salva (preserva e resguarda) é em si mesmo alguém que salva o desencoberto e, por isso, um preservador. Quem não o é, a quem falta, pois, a visão da essência, é àvev cjHXoaocjHas', “sem filosofia”. Assim, a “filosofia” não é uma mera ocupação profissional do pensamento com conceitos gerais, à qual alguém pudesse se dedicar ou também não, sem que com isso se desse e acontecesse qualquer coisa de essencial. Filosofia é o estar interpelado e desafiado pelo próprio ser. A filosofia já é em si mesma o modo fundamental de ser em que o homem no meio dos entes se comporta e atém ao ser. Os despossuídos e destituídos da filosofia são os “desprovidos de visão e per-cepção”. Eles se entregam e abandonam ao que a cada instante aparece e com igual velocidade também desaparece. Acham-se dedicados ao esvair-se e encobrir-se do ente, do que é e está sendo. Bebem além da medida da água do rio “Sem-cuidado”. São os descuidados, que se sentem bem na ausência de pensamento, que se esquivaram a todo apelo dos pensadores. Esses descuidados são aqueles que se alegram por terem deixado para trás e abandonado todo cuidado de pertencerem a um povo de poetas e pensadores. (Nos últimos dias foi anunciado e proclamado pelo ministério da propaganda que, de agora em diante, os alemães já não necessitam de “pensadores e poetas”, mas de “trigo e óleo”.)

Como atenção ao apelo que o ser faz ao homem, a “filosofia” é primordialmente o cuidado do ser e nunca uma questão de “cultura” e conhecimento. Por isso é que alguém pode dispor de uma grande soma de conhecimentos eruditos sobre as doutrinas filosóficas e opiniões dos filósofos sem nunca ser “filósofo”, sem saber “filosofar”. Outros, por sua vez, podem ser tocados pelo apelo do ser, sem saber o que é nem responder ao apelo do ser em um e através de um pensamento correspondente.

Ao pensamento que pensa, pertence, sem dúvida, um saber e um cuidado com o sentido da reflexão e um esmero da palavra que sobrepuja essencialmente todas as exigências de mera exatidão científica. Pela experiência dos pensadores gregos, esse pensamento continua sendo sempre um salvamento do desencoberto do encobrimento, no sentido de uma retração que esconde. É uma

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retração de que se faz a experiência no pensamento de modo muito mais originário do que em qualquer parte. O pensador há de ter bebido, especialmente da água do rio “Sem-cuidado”, na devida medida. É que o “ver” no sentido da visão de essência próprio do pensamento não se dá nem acontece por si mesmo, mas se acha, muito diferente do “ver” e “olhar por algo” corriqueiros, cercado e ameaçado pela possibilidade de enganar-se na visão. Porém, o que acontece com aquele que não somente não bebe além da medida, mas que, de modo geral, sempre bebe somente desta água?

Recapitulação

1) Campo e XrjGr|. O que, entre os gregos, é de deus: o extra­ordinário no ordinário. O Gelou na dXr|9eia do princípio e na

Xrj6r|. AXr|Geia e 9ed (Parmênides)

Lá pelo tempo em que a Grécia se despede da sua história essencial, chega-lhe à palavra, ainda uma vez, a saga da essência contrária da áXf|6eia, no puGoç da Xf|6r|. Nessa saga, que fecha e conclui o diálogo Politéia de Platão, conta-se, ao final, da Xf|9r|. Essa constatação é correta, todavia, nessa forma descurada, torna-se também ocasião para se desconhecer a essência da Xf|6r| aqui invocada. Na verdade fala-se tò TÍjç Af|9r|ç TTeSíou - do campo do encobrimento que se retira e esvai. Platão não diz simplesmente tò TTeòíou Tfjç Af|6r|S', mas tò TÍjç Af|Gr|S' Treòíov. De início a relação entre o campo e a Xf|6r| fica indeterminada, porque a expressão usada, o genitivo, pode significar várias coisas: ora o campo em que a Xf|9r| ocorre e aparece. Nesse sentido, a relação recíproca entre o campo e a Xf|9r| é indiferente. O campo, porém, pode ser determinado em sua condição e caráter de campo pela Xf|Gir| e tornar-se assim uma área exclusiva dela. Nesse caso, campo e Xf|9ri continuam distintos um do outro, mas já não são indiferentes um para o outro. Por fim, o campo e sua condição e caráter de campo podem pertencer à própria Xf|9r|. Nesse caso, campo e Xf|9r| já não se distinguem um do outro, mas a

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própria XrjOri já é em si mesma o campo. Ela é a localidade e o lugar de tal maneira que o retraimento retentivo já não acontece em algum lugar num campo, mas se desenvolve em si mesmo, como o lugar para tudo que lhe há de pertencer. E desse modo e nesse sentido que se deve pensar “o campo da Xq0r|”. Esse campo pertence a um conjunto com outros lugares, que formam, em comum, um tóttoç 8ai|Jióvi.os: uma “localidade demoníaca”.

O esclarecimento da essência do 8cap.óviou nos leva a esclarecer a essência do Gelou. Tudo isso acena e remete para a essência dos deuses gregos. Seria um grosseiro mal-entendido se levasse à convicção de podermos agora garantir para “nós mesmos” uma certeza sobre a essência dos deuses gregos e assim assegurar-nos de sua proximidade. O aceno dado não chega a tanto. Só pode recordar que, enquanto a essência da áXf|9eia continuar entulhada, não nos é concedido nem mesmo suportar mal a distância dos deuses gregos e reconhecer nessa distância um acontecimento de apropriação de nossa história, nem fazer a experiência daqueles deuses tal como foram. Em vez disso, estamos sempre ainda no perigo de nos iludir e convencer de ter um relacionamento imediato com os deuses gregos através de caminhos literários por meio de livros, conferências e folhetins. Aqui não importa se essa literatura de uma monotonia erudita no estilo da história das religiões ou se os resultados da história das religiões são elaborados e narrados de uma forma mais poética. Sem dúvida, o caminho para esses deuses e sua distância passa pela palavra. Mas essa palavra não pode ser “literária”. (Especialistas sabem por si mesmos que o livro de W. F. Otto, Os deuses da Grécia [Die Gõtter Griechenlands] não é desse tipo; todavia, também lhe falta ainda o passo para dentro do âmbito da áXf|0eLa.)

Para um grego, o divino, a deidade funda-se diretamente no extra-ordinário do ordinário. E na diferença entre um e outro que aparece e chega à luz. Em parte alguma encontramos a expansão extraordinária do ente, na qual e pela qual o divino tivesse de despertar e o sentido para o divino tivesse de ser mobilizado. Por isso é que a questão do “dionisíaco” também deve ser desenvolvida como questão grega. Por muitas razões poderemos duvidar se a interpretação de Nietzsche do dionisíaco tem consistência, ou se não

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representa uma interpretação grosseira, que transpõe para a Grécia o “biologismo” ingênuo do século XIX. Na Grécia reina, por toda parte, antes de mais nada, a claridade simples do ser, que deixa todo ente manter-se no brilho e afundar-se na escuridão.

Por isso, tudo que pertence ao aparecimento do ser é sempre ainda à maneira do extra-ordinário, de modo que o divino não precisa ajuntar-se posteriormente ao ser nem tem a sua existência comprovada. Se, pois, a âXf|9eia pertence à essência do ser originário e com ela à sua essência contrária, a Xí|9r|, então ambas são, originariamente, um 9eiov, algo de divino. É por isso que, mesmo para Platão, a Xf|9r] é de essência “demoníaca”. Será, então, que ainda nos causará espanto se, no pensamento originário de Parmênides, a òXf|9eLa aparecer e se apresentar como 9ed - como deusa? Deveria causar-nos agora muito mais estranheza, e mais que isso, se não fosse assim.

A Xf|9r| no “mito” de Platão é o 8ai|j.óuioi' de um campo que não se localiza no aqui, mas no lá. O campo é a última passagem em que os viajantes têm de estar imediatamente antes de sua transferência de lá para cá. Diz-se, então, do “campo da Xf|9r|s”: k ç v ò v SéuSpwi/ T € K d! ò o a yfj 4>úei - “de vegetação e de tudo que a terra gera e germina [aufgehen láíèt]".

b) A medida do encobrimento retrativo do desencobrimento. O perfil da LSéa de Platão e a fundação da anamnese (tanto quanto do

esquecimento) no desencobrimento. Ar|9r|: ttçS íou . A percepção do início da poesia de Homero e da sentença de Parmênides. A

impossibilidade de esquecer da áXf|0eLa pelo retraimento da Xr|9r|. A suspensão da experiência através do procedimento desde Platão

(Téxvoi). Aceno para Homero, Ilíada XXIII, 358s

tòv 8è áei móvTa uáuTcou émXaiAtóuecrôaL - “aquele, porém, que beber continuamente (desta água), cujo relacionamento com o ente em seu todo e consigo mesmo estiver no encobrimento, que tudo retrai e não deixa conter nada” (621 a 8s). Sobre este relacionamento já não se perde nenhuma palavra. Um relacionamento

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assim não poderia haver, como homem, na terra, pois todo ente ficaria encoberto, nem existiría nada de descoberto com que o homem se pudesse relacionar num descobrimento, isto é, para os gregos, na linguagem (|_iü0os, Xóyos). Onde reina completo esquecimento, completo no sentido de sem medida - e isso é encobrimento -, este não pode oferecer fundo essencial para o ser humano, pois não permite nenhum descobrimento e priva assim o desencobrimento de toda base para sua essência. Pelo contrário, vemos, então, que pertence à possibilidade do desencobrimento uma medida de encobrimento de retração. Como encobrimento que não deixa surgir e, portanto, faz retrair-se, mas ao mesmo tempo proporciona ao descobrimento a base para sua essência, a Xfj0r| reina no desencobrimento.

O homem provém da localidade deste lugar extraordinário e divino do encobrimento que retrai. Visto que, pois, a Xf|0r| pertence à essência da àXqGeia, o próprio des-encobrimento em si mesmo já não pode reduzir-se ao simples afastamento do encobrimento. O à- privativo de d-Xf|0eia não diz de forma alguma apenas um “des-” e um “não” geral e indeterminado. Ao contrário, com referência ao encobrimento, enquanto o retraimento do que aparece e de seu aparecimento é antes e de modo necessário a preservação e a retenção do des-encoberto. O reter se funda numa contínua preservação e conservação. Tal conservação do desencoberto acontece e se dá com pureza e transparência de essência, quando o homem se empenha livremente pela conquista do desencoberto, de modo ininterrupto e ao longo de toda a viagem mortal sobre a terra. Empenhar-se livremente pela conquista de alguma coisa e só pensar nisso, diz-se em grego |iuáo|iai; aquilo que “continuamente” e sempre arrasta por um caminho e ao longo de uma viagem expressa-se, em grego, pela preposição e advérbio àvá - assim àuá|iur|CTiç é a preservação límpida e pura do que se pensou na direção e para o desencobrimento. Platão compreende o sendo, que se mostra e, ao mostrar-se, chega ao desencobrimento; Platão compreende-o como aquele que entra na visão e assim desabrocha em seu perfil, explode em sua fisionomia. E o elóos, pois el8os é o “perfil” em que, inserindo-se, uma coisa vige e vigora desencoberta, isto significa, em que ela é. E L8éa diz a visão e a vista que uma coisa oferece, a feição em que e com que encara o homem.

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Pensando no sentido em que Platão pensou, o desencobrimento acontece e se dá em sua propriedade como L8éa e eiSoç. E nelas e por elas que o ente, a saber, o vigente, vige em seu vigor. A L8éa é a feição com que e em que o ente, descobrindo-se cada vez, encara o homem. A LSéa é a vigência do vigente: o ser do ente. Todavia, porque a áXf|9eia é a suspensão da Xf|9r|, por isso o desencoberto há de ser preservado no desencobrimento e nele conservado e resguardado. O homem só pode comportar-se com o ente, como o desencoberto, por continuamente remeter-se ao desencobrimento do desencoberto, isto é, por pensar a LSéa e o eiSoç, e desse modo resguardar o ente de retrair-se para o encobrimento.

No sentido de Platão, e isso significa pensar de modo grego, a referência ao ser do ente é, pois, ává|ivr|criç. Geralmente traduz-se a palavra por “lembrança” ou “recordação”. Com esse tipo de tradução tudo se reduz ao “psicológico” e não se capta a referência à essência da LSéa. A tradução de ch'á|j.vqciiç por “recordação” leva a achar que aqui se trata apenas de alguma coisa “esquecida” que volta de novo para a mente. Entretanto, sabemos, neste meio tempo, que os gregos experimentam o esquecer e esquecimento como um acontecimento em que o ente se retrai e encobre seu próprio ser; também o assim chamado “lembrar-se” ou “recordar-se” fundamenta-se no desencobrimento e no descobrimento.

De fato, é com Platão também que, junto com uma transformação da essência da áXr|9eia em Óiiolojctlç, começa simultaneamente uma transformação da Xf|9r|, isto é, aqui, da ài'áp.ur|CTiç que lhe age em contrário. O acontecimento que retrai o próprio do encobrimento se transpõe e transforma no comportamento humano de esquecer e esquecimento. Igualmente, o que se contrapõe e contraria a Xr|9r) torna-se uma recuperação e retomada da parte do homem. Enquanto, porém, pensarmos a áváp.i/riCTLç de Platão e o émXavúáveoDai apenas a partir do que veio depois, falando modernamente, a partir do “sujeito”, apenas como “recordação” e “esquecimento”, não vamos apreender o fundo da essência grega, que no pensamento de Platão e no pensamento de Aristóteles lança mais uma vez seus últimos raios.

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A saga sobre a água do rio “Sem-cuidado” é a última palavra que o guerreiro diz sobre o Saip.óvios' tóttoç. O |ií)0os alcança seu clímax na saga do campo da Xr|0T]. A visão do pensamento, que se recolhe a captar a essência, chega à linguagem no diálogo sobre a essência da ttóXiç e se orienta e dirige para o âmbito do encobrimento, que se retrai. É o único necessário: pois a á-Xfj0eia, de que se trata de fazer a experiência, está fundada, ela mesma, em sua essência, na direção da Xf|0q. Entre elas não há mediação nem trânsito, uma vez que ambas, em si mesmas, se pertencem reciprocamente uma à outra de modo imediato. Em toda parte, onde a co-pertinência é de essência, a passagem de um para o outro é sempre “repentina”, o que, cada vez, só se dá num átimo e a partir de um instante. É por isso que o guerreiro termina de “contar” o IO.Ú0OS' com as seguintes palavras:

éue l8t| 8è Koi|iT]0fjvaL kcu péaas vúioras yeuécrGai, PpovTqv tê íca! creLapòv yevétjGai, ra! èuTeúBeu é£amur|S' dXXov dXXq 4>épea0aL auto eis tt]u yéveaiu, dTTouTas tocrrrep daTepas-.

“Depois, porém, de se terem recolhido para o repouso e de ter chegado a meia-noite, abateu-se uma tempestade e começou um terremoto e de lá (do campo da Xq0q) cada um dos outros foi carregado de repente para cima, na direção da excelência emergente (do ser na terra), correndo para lá rápido, como estrelas (cadentes)” (621 b ls).

aÚTÒS' 8è tou |ièu úôaToç KtoXu0f|uai melu'

“Ele mesmo, porém, foi impedido, decerto, de beber da água” (621 b 5s).

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Com isso fica decidido que o [iu0oç não tira um desencoberto do encobrimento, mas fala a partir do âmbito onde surge a unidade originária da essência de ambas, onde mora o originário.

ottt] pévTOL ícat õttüjç e is tò awp.a àcjÚKOiTO, oúk elbévaL, áXX’ è^aícjiyqç áua(3Xét[sas íSetu êw0ey aÒTÒy Keípeyoy em Tp Trupâ.

“Ele não sabe, porém, o caminho e a maneira como voltou à sua presença ‘corporal’, embora saiba que, de repente, abrindo os olhos se viu, de manhã, a si mesmo, deitado na pira” (621 b 5s).

O cintilar e o ver da L8éa, a luz, que se levanta, a manhã, o fogo e a pira - tudo isso evoca figuras e traços essenciais do pensamento grego que escutaríamos, de maneira indevida, estas últimas palavras do [10009, se quiséssemos ver nelas apenas uma conclusão metafórica da narrativa. Entretanto, não é este o lugar para perseguir e aprofundar essas referências. Todavia, não podemos deixar de escutar o que Sócrates, isto é, aqui o próprio Platão, ainda observa sobre o |iú0oç que acabou de narrar.

K ai oütwç, (5 FXaÚKCoy, [iü0oç èatóGri r a i oúk ÓTTOjXeTo, Kal f |p â ç a u acóaeLeu, a y Trei0(óp.e0a aÓTw, Kal TÒy tt|9 A t|0tis TTOTapòy eu 8LaPqaópe0a Kal Tfiy ijiuxfiu ou p ia y 0r |a ó p e 9a .

“E assim, Glauco se sô.vou e não se deixou perder uma saga. Também a nós ela nos poderá salvar, se quisermos obedecê-la. Neste caso, percorreremos, de maneira adequada, o rio que corre no campo da Xf|0q e não profanaremos ‘a alma’, isto é, o poder fundamental de dizer o ente” (621 b 8s).

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Novamente retorna, ainda uma vez, a fala de oú(eiv , de salvar e salvação. A saga da essência da Xf|0r| se acha preservada e resguardada do encobrimento que se retrai. O fato de este |iô0oç no todo ter de guardar a essência do encobrimento, mencionada por último dentro do descoberto, nós o reconhecemos num outro fato, no de Platão, no fim, invocando mais uma vez de todo o rico conteúdo do 11Ô0OÇ, tòv TÍjç Ar|0riç TroTap.óv, o rio que corre no campo da Xf|0r). A leitura superficial desta passagem já na antigüidade levou à falsa imaginação de um “rio Lethe”, como se a própria Xf)0r| fosse o rio. Todavia, Xf|0q não é o próprio rio, nem é simbolizada pela imagem do rio. A XijOri é ueôíov, campo, prado, a essência do lugar e da estada, donde se dá, de repente, uma passagem para o lugar e estada, que, na condição e como desencobrimento do ente, envolve e rege a viagem mortal do homem. A única coisa que pode preencher o vazio e ermo do campo do encobrimento, que tudo retrai, é um rio, porque as suas águas correspondem à essência do campo, visto que se negam a qualquer recipiente e carregam assim para toda parte a essência deste lugar do encobrimento retirante, onde elas se bebem, como porção. Só se pode atravessar o lugar da Xf|9r|, percorrendo a única coisa desse lugar, as águas desse rio. Caso se tratasse apenas de atravessar, as águas só passariam pelos caminhantes e não os tocariam nem lhes diriam respeito em sua essência. É o que deve dar- se e acontecer e só acontece quando a água é bebida e penetra no homem e o determina por dentro de sua essência. Somente assim é que se pode decidir o modo como o homem, destinado para o desencobrimento, há de, no porvir, de acordo com cada referência sua com o encobrimento em retirada, instalar-se e ficar no desencobrimento. A travessia devida, isto é, na medida certa, do rio no lugar da Xf)0r|, consiste em beber de suas águas segundo a porção destinada. A essência do homem, não apenas do ser humano individual em seu destino, só será salva se o homem e na medida em que o homem escutar, como ente que é, a saga do encobrimento. Pois somente assim é que poderá seguir aquilo que o descobrimento do desencoberto e o próprio desencobrimento em si exige e requer de sua essência.

Sem perceber o Saip.0vi.ov da Xr|0r|, nunca haveremos de avaliar o admirável que é a “mãe das musas” e, com ela, o princípio

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de essencialização da poesia, a “Mnemosyne”, a saber, a salvação originária da liberdade e a preservação originária do ser, sem o que a poesia haveria de ficar em toda parte sem o que fazer, isto é, sem o que criar. Se penetrarmos nesta conexão essencial entre ser e desencobrimento, entre desencobrimento e salvação contra o encoberto, entre salvação e preservação, entre ser e palavra, entre palavra e saga, entre saga e poesia, entre poesia e pensamento, haveremos de perceber, então de maneira diferente de qualquer outra vez, o início dos poemas de Homero:

Ilíada:Míjuii/ aei8e, 9ed, TTqXqiáSew AxiXfpç / oòXopéuqv,

Odisséia:dvSpa |iol evverre, Mouad, TToXÚTpoTTon, ôç pdXa TroXXà TrXáyx^1!»

Aqui não se “invoca” a “deusa” e a “musa”, visando a uma introdução solene. Aqui se diz que a saga da palavra poética é a sentença e o canto do próprio ser e o poeta é apenas éppr|veús, intérprete e hermeneuta da palavra. O poeta não invoca a deusa, o poeta, antes mesmo de dizer a primeira palavra, já é convocado e posto sob o apelo do ser e assim um salvador do ser diante do retraimento “demoníaco” do encobrimento.

Quando, no início de sua sentença, Parmênides chama a deusa AXf|Geia, não se trata, como os filólogos acham, de uma espécie de introdução ao que se convencionou chamar de “poema doutrinário”, seguindo a moda dos poetas, mas trata-se da indicação do lugar essencial, onde está o pensador, como pensador. Este lugar é O SaipÓVlOS TÓTTOÇ.

Para nós, homens de hoje, o puGoç da Xrj0r|, que leva à plenitude o diálogo sobre a ttóXlç, constitui a última saga da Grécia sobre a essência contrária encoberta da áXf|0eia. Essa essência contrária ao descobrimento, em que “se retém e contém previamente” o desencobrimento, conserva, de antemão, sua essência. O “contrário”

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da áXrjGeia não é nem a simples oposição adversa, nem a mera falta, nem a recusa de uma simples negação. A Xrj9r|, o esquecimento, sendo o encobrimento que se retira é aquele retraimento em que e pelo qual a essência da áXf|0€La se pode reter cada vez, exclusiva e justamente, e assim se fazer e permanecer inesquecida e inesquecível. A consideração, seu pensamento, do homem que considera, que se retém ao máximo uma coisa e que se pode retê-la o mais facilmente possível, quando se tem à mão continuamente presente e se pode então, agarrá-lo a qualquer tempo. Na verdade, porém, e isso significa agora, para nós, pensado no sentido da essência do desencobrimento, o encobrimento que se retrai é aquilo que, em grau mais elevado, acorda, afina e sintoniza a essência do homem com a conservação e a fidelidade. Para os gregos, o encobrir-se que retrai e se retrai é o que há de mais simples em todo simples, que eles preservam e resguardam no que experimentam como o desencoberto e deixam viger e chegar à vigência. Por isso é que Platão não podia inventar o |iu9oç da Xf|9r|; nenhum p.í)0oç é invenção, nem mesmo pode ser encontrado no resultado de uma busca. A palavra de uma saga é resposta, a resposta a uma aposta, à palavra do apelo que o próprio ser dirige à essência do homem e somente assim aponta para as veredas de uma busca e investigação no âmbito do que se lhe descobriu previamente.

Decerto, a época de Platão, quatro séculos depois, já não é a época de Homero. A potência, logo, tanto o gosto quanto a aptidão de dizer o ente do ser, visa mais e mais instalar a familiaridade e a morada no ente, entrementes alcançado a partir de perspectivas do procedimento humano produzidas pelo próprio homem. A palavra da saga não é mais fraca; o que acontece é que a percepção do homem é múltipla e está mais dispersa e, assim, por demais jeitosa, para fazer a experiência do que é simples e que, constantemente, porque originariamente vigora, é vigente. Nos últimos tempos da plenitude da Grécia, nós já constatamos as marcas da forma preliminar daquela constituição que um dia vai determinar a época da idade moderna no Ocidente. Dado que, nessa idade, por causa de uma insegurança em tudo caracteristicamente escondida, a segurança vale tudo, no sentido de uma certeza absoluta e incondicional, a garantia torna-se o traço fundamental de todo comportamento. Garantir não constitui aqui uma solidez e consolidação posterior, mas a segurança agressiva e

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preventiva em prol da segurança [Sicherheit], 0 conteúdo e o teor de tudo que é objetivo vale como o valor, na condição de ser a oportunidade inesgotável para a objetivação, no sentido de se assegurar a manutenção do mundo e da “vida”. A técnica (Téxvr|) e os modos de seu procedimento dominam e prevalecem sobre a experiência. A corrente já não corre por um curso misterioso de curvas e voltas formando para si suas margens, por ela despertadas, mas empurra apenas suas águas por entre canais uniformes de muros em concreto, que já nem são margens, na direção de uma “meta” preestabelecida sem desvios. O fato de justamente lá no tempo de Sócrates e Platão se empregar e se pensar muitas vezes a palavra t€)(vt"], embora com um sentido essencialmente diverso da técnica, no sentido de técnica moderna, indica e dá um sinal de que o procedimento suplantou a experiência. O experimento prevalece sobre a experiência. A possibilidade e o poder de escutar a saga se torna cada vez mais fraco e desenraizado de sua essência.

A saga de Homero não emudeceu. O p.t)9oç da Xf|9q, aliás silenciado, ainda está em vigor. Por isso também o p.ô9oç platônico da Xf|9r| continua sendo um pensamento em, não apenas um pensamento “sobre” a Xf|9ri, que tanto Hesíodo quanto Píndaro evocam. Este dizer pensante que invoca o |iu9oç preserva e resguarda o desvelamento originário da Xf|9r| e, ao mesmo tempo, nos ajuda a pensar, com mais atenção, no âmbito em que já Homero invoca a palavra contrária de Xf|9r|, a saber, a àXf|0eia.

No penúltimo livro (XXIII) da Ilíada encontra-se uma passagem, no verso 358s, a que se remete para finalizar a reflexão sobre a oposição dentro da essência da áXf|9eia. O canto trata dos funerais, da cremação e do sepultamento de Pátroclo, amigo caído, e das disputas convocadas em sua honra por Aquiles. A primeira será a disputa de carros. Depois que Aquiles sorteou a seqüência dos contendores,

crf||JX|ue 8è Tépg.<rr’ AxiAXeus TqXóGev kv Xeíw TTeôicu' uapà 8è ctkottòu elaev (XVTL06OV «bolVLKa, ÔUCÍOVa TTOTpÒS éoLO,ws pepvécoTO 8pópous kcu dXr|9eLqu àTroeÍTioi.

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“Mostra, porém, o ponto de curva (da pista) Aquiles mais adiante na vasta planície (fazendo-o aparecer) ao lado junto do ponto de visão da pista coloca o divino Fênix, o companheiro de luta de seu pai, para manter a corrida sob vigilância e pronunciar o desencoberto.”

WS' |ie|i,véu)TO Ôpó|ious - para reter, isto é, não deixar cair no encobrimento o percurso da corrida dos carros. Aqui a dX^Geta, o desencoberto da disputa, isto é, a disputa em sua vigência patente, se funda claramente num |ie(iuéqjTO - queríamos dizer num “não esquecer” [.Nichtvergessen]. Todavia, assim falsificaríamos a conjuntura, não há dúvida que, em grego, se pensa, de fato, com p.ip.vf|aKeiv e |i6|ii-T||icu a essência contrária de èmXavGávecrGai. Mas este se determina e constitui a partir de sua referência à Xf|Gr|. Assim, pois, mora na compreensão originária de |!i|ivf|CTKeiv o significado de reter e reter o desencoberto como tal. E esse reter, porém, não é um simples anotar, mas deixar-se prender pelo desencobrimento: a estada e permanência nele, como o que preserva e retém o desencoberto contra a retirada do encobrimento.

Recapitulação

2) A proveniência do homem da localidade extraordinária do encobrimento que retrai. O início da transformação na posição

fundamental do homem. A regência em conjunto da áXrjGeia e de |ié|ivr||iaL. Aceno para Homero, Ilíada XXIII, 358s

O mito de Platão, no fim da Politéia, diz que o homem que aqui na terra atravessa o curso mortal pelo ente em meio ao ente em seu todo provém da localidade extra-ordinária do encobrimento que retrai. É por isso que, ao voltar para a terra, o homem tem de então conquistar o ente livremente por si mesmo (fiuáo|iai) contra o

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encobrimento que retrai e que ele traz consigo como dote daquela localidade. Isso acontece de maneira que suspende o encobrimento e deixa assim aparecer o des-encoberto. O ente só se mostra no desencobrimento, porque o encobrimento cerca o homem de volta para a terra por causa da porção que teve de beber no rio do lugar da Xf|9r|. O |iü0oç interpreta a necessidade da áXr|0eia e a relação de sua essência com a Xf|0r|, como seu fundamento antecedente, pela proveniência da essência e pelo destino do homem. O acento dado a essa perspectiva para o homem já é um sinal de que se está transformando dentro da própria Grécia a posição fundamental do pensamento grego. Esta transformação indica o início da metafísica. A história da Grécia se inclina para a completude das possibilidades de sua essência. A Xf|0r| já não é experimentada puramente num e por um acontecimento de apropriação de um envio, mas pelo comportamento e atitude do homem, pensados no sentido do “esquecimento” posterior.

Se agora, porém, a Xrj9r|, como quer que possa ser apreendida, constitui originariamente a essência contrária da dXf|0eLa, e se corresponde à Xf|0r|, enquanto encobrimento que se retrai, uma perda no sentido de esquecimento, então deve também estar em correspondência originária com a àXf|0eLa uma retenção e preservação. Onde quer que haja áXijOeia, vige \west] e reina \waltet] também uma preservação e conservação do que se salva da perda. Desencobrimento e conservação, òXf|0eia e |ié|iur||mi, vigem e reinam juntos. Esta co- pertinência originária de ambos deve ter também, sobretudo sendo originária, a invisibilidade do que, como a fonte, vige por si mesmo em sua vigência. De fato, há um testemunho disso. Pensamos na passagem da Ilíada de Homero XIII, 358s, quando Fênix é posto por Aquiles na competição dos carros,

ojç |iep.uéüJTO Spógous kcu àXr]0eLTqv áiToeÍTTOi,

“para manter a corrida sob vigilância e proclamar com palavras o desencoberto”.

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Só de passagem, note-se de novo que áXr|0eia e eTroç desencobrimento e palavra - são mencionados juntos.

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PARTE II

A quarta indicação oferecida pela tradução de áXiíGeia. O espaço aberto e livre da clareira do ser. A divindade “Verdade”

§ 8. O significado mais pleno do des-cobrimento. A transição para a subjetividade. A quarta indicação: o aberto, o livre. 0 evento da áÀrjdeLa no Ocidente. A ausência de fundamento do aberto. A

alienação do homem

a) Preparação para a quarta indicação: a insuficiência de “desencobrimento” como tradução usada até agora. A ambigüidade da

palavra “des-cobrimento” e seu significado mais pleno. A luta na àXf|0eui primordial. Proximidade e começo. Referência a Homero. Os

dois sentidos do aparecimento: pura emergência e caráter de encontro. A essência do eu. Referência a Kant, Descartes, Herder,

Nietzsche. A prioridade do si-mesmo desde Platão e Aristóteles (TTepl ijmxfjS' 8, 431; Mét. a 1)

Mé|ivr||iai e áXf|9eia estão interligadas no verso 361 da Ilíada acima citado, sendo o desencobrimento, especificamente, uma conseqüência essencial do que se preserva. Isso significa que Homero faz a experiência da relação entre àXr|0eLa e Xf|0q numa simplicidade muito clara e compreende áXr|0eux com base na relação que esta estabelece com XqGr) enquanto retraimento que encobre. A tradução que Voss faz do verso “para tomar bom conhecimento do curso e

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proclamar tudo precisamente” não transmite o mais leve traço do que o grego está dizendo. áXr|0és, nessa tradução, tornou-se “preciso” e pé|iur||iai um mero “tomar conhecimento”. A intromissão de uma “subjetividade” e de um “comportamento subjetivo” na relação essencial entre áXf|9eia e p.é|iur||iai torna-se óbvia.

Nessa passagem, o desencobrimento e o que se mantém preservado, que para nós toma um sentido contrário de “esquecimento”, são mencionados como se isto se desse para os gregos espontaneamente, de uma maneira “natural”, na sua relação essencial. Mas, seria errôneo afirmar, somente com base nessa passagem, que o desencobrimento corresponde ao não-esquecimento e que àXqBés', o desencoberto, é precisamente o que é não-esquecido. Isso sempre ocorre dessa maneira, mas somente quando nós pensamos o esquecimento em termos de dXf|0eia, e não a partir da essência de Xq9q, enquanto esquecimento, o qual é entendido posteriormente como “esquecimento”, isto é, um comportamento do tipo psíquico-subjetivo.

Mas o “desencoberto” não pode, simplesmente, ser identificado com o não-esquecido, porque o “não-esquecido” pode ser alguma coisa falsa e não-verdadeira e, por conseqüência, não necessariamente o “não- esquecido” é também alguma coisa verdadeira, àXqBéç. Isso, porém, não se aplica ao desencoberto, tanto quanto não se aplica ao “não-esquecido”, na medida em que tanto um quanto outro podem ser alguma coisa falsa, bem como verdadeira? Além disso, o assim chamado “falso” certamente é, também, alguma coisa desencoberta e, portanto, deveria ser verdadeira. O que, então, distingue o desencoberto que nós chamamos de “o verdadeiro”? O “desencoberto” também aparece como mera semelhança.

Com essa indicação estamos lançando nossos olhares sobre ligações e abismos que o pensamento grego não evitou, embora nós mesmos possamos, com dificuldades, imaginá-los, pois confundimos impensadamente, nessas questões, nossa própria compreensão ordinária da essência da verdade, isto é, verdade no sentido de “correção” e “certeza”. Nós podemos ver agora que o simples desencobrimento, no qual também pode estar algo “falso”, não esgota a essência de áXqGeia. Falando mais prudentemente, até agora nós não pensamos a essência de àXf|9aa exaustivamente. De fato, pelo que nós

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já observamos, isto é, pela relação essencial que há entre dXf|0eLa e Xf|9r| (que se recolhe no encobrimento), um momento primordial da dXf|0eia manifesta a si mesmo, um momento que ainda não foi mencionado e que não é, de modo algum, dito na tradução “desencobrimento”, na medida em que nós consideramos “desencobrimento”, de um modo descuidado e indeterminado, simplesmente como a ausência e a eliminação do encobrimento.

O desencoberto é originariamente o que está resguardado no desencobrimento contra o encobrimento que se recolhe, e, por esta razão, se encontra protegido, e como tal é o que não se subtraiu. O desencoberto não se torna presente de maneira indeterminada, como se o véu do encobrimento, simplesmente, tivesse sido removido. O desencoberto é o não-ausente [Un-abwesende], sobre o qual o recolhimento do encobrimento não mais vigora. Tornar-se presente [An-wesen] é, em si mesmo, um emergir, isto é, um radical desencobrimento, de tal maneira que o que emerge e o que se descobre é assumido no desencobrimento, resguardado por ele e nele protegido. “áXqOéç”, o “desencoberto”, revela para nós, de forma mais clara, sua essência, precisamente a partir da sua relação com Xr|9r|. O desencoberto é o que entrou na tranqüilidade do puro aparecer de si mesmo e da “aparência”. O desencoberto é o que está, portanto, resguardado. O tornar-se claro pertencente à essência da essência contrária, Xr|0q, como o recolhimento do encobrimento, é o que permite a essência do desencobrimento ser trazida à luz.

Inicialmente, desencobrimento poderia dizer apenas algo como “des-velamento” [Ent-hehlung] do velamento, isto é, do encobrimento. Mas o des-cobrimento [Ent-bergung] não diz a simples remoção e eliminação do en-cobrimento [Ver-bergung]. Devemos pensar des-cobrimento exatamente da mesma maneira como pensamos, por exemplo, o “e-mergir” e, ao mesmo tempo, o “des­envolver-se”. E-mergir significa liberar o que está contido; o des­envolver-se remete para um deixar surgir as dobras do múltiplo na sua multiplicidade. A primeira tendência é tentar compreender o des­cobrir em oposição a encobrir, assim como desembaraçar está em oposição a embaraçar. O descobrimento, contudo, não resulta, simplesmente, em algo descoberto como desencoberto. Em vez disso,

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o Gfescobrimento é ao mesmo tempo um encobrimento, assim como inflamar não elimina a chama, mas a integra em sua essência. O descobrimento está igualmente “para ” um ocultar-se do desencoberto e isto como presenciálização do desencobrimento, ou seja, no ser. Em tal ocultar-se, primeiramente emerge o descoberto como um ente. “Des-cobrimento”, agora, significa penetrar no ocultamento: isto é, preservar o desencoberto no desencobrimento. A palavra “des­cobrimento”, apropriação do que somente uma profunda meditação poderia revelar, contém, num sentido mais pleno, como também, constitutivo na sua essência, este momento de abrigo, enquanto “desencobrimento” diz, somente, a remoção do encobrimento. A palavra “des-cobrimento” é, essencial e advertidamente, ambígua naquilo que expressa um duplo sentido intrínseco na unidade: por um lado, como cfes-cobrimento, é a remoção do encobrimento, ou seja, do encobrimento que se retrai (Xf|0r|); assim, o c/es-cobrimento é, então, também, supressão da distorção e do deslocamento (4>eu8oç). Por outro lado, contudo, como des-cobrimento, é o recolhimento do encobrimento, isto é, a assunção e a preservação no desencobrimento.

Entendido na plenitude de sua vigência, “o descobrimento” remete para a cobertura protetora do que está descoberto na dinâmica do desencobrimento. Em si mesmo, o descoberto já é de essência protetora. Tal nos mostra o bruxulear da Af|0r| e sua vigência arrebatadora, que sempre remetem para a ausência, para o desaparecimento, para a exclusão.

A meditação sobre o sentido da contraposição regente no descobrimento do desencobrimento deveria, pois, ensinar-nos não somente que além da desfiguração e da falsidade, isto é, além da não- verdade acontece e se dá ainda uma outra essência contrária à verdade, a saber, a Afj0T]; mas, também, que o pensamento do sentido vai ainda mais longe e percebe que da essência contrária à verdade se desentranha, mais originariamente, a essência da áAf|0eia, nela mesma, instalando, em princípio, unidade no próprio combate da oposição. A dAf|0eia é contra o encobrimento e neste ser “contra” é também a favor da proteção do encoberto, isto é, favorece a guarda do que se encobre. Por ser pela guarda e a favor da proteção do des­encoberto, a dArjOeia é contra o encobrimento.

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Este ser “a favor” [Für] e “contra” [Gegen] da áXT]0eLa não é, em si mesmo, um “duelo”, que em sua vigência desnucleasse um do outro e assim caísse fora da essência, mas é o combate [Streit], a partir do qual a áXr|9eLa vem a ser unidade e toma empuxe para a unidade. A unidade vigente no combate da essência primordial é o que constitui e perfaz a intimidade.

Sem dúvida, os gregos pensaram e disseram sobre essa essência mais arcaica da àXr|0eia ainda menos do que sobre a essência da Xf|9r|: pois, para eles, a áXr|9eia é simplesmente o princípio de todo vigente. Os gregos, portanto, não conhecem nenhuma necessidade, nem sentem nenhuma ocasião para colocar sua poesia, seu pensamento e sua língua fora e de volta para este princípio. É que, nesse princípio, já havia surgido bastante do que lhes fora confiado à saga de poesia e pensamento e lhes tinha sido estabelecido e entregue. Epígonos e diferentes, nós é que devemos recordar e seguir as indicações da palavra “desencobrimento” neste primeiro princípio da história ocidental, a fim de pressentir mesmo à distância de uma rememoração.

Seguindo a terceira das indicações mencionadas até aqui e pensando a essência em oposição do “desencobrimento”, além dos limites da oposição corrente (entre verdade-não-verdade), as duas indicações evocadas de início adquirem um perfil mais nítido. O fato de o “desencobrimento” depender de “encobrimento” diz mais do que a simples decomposição do sentido da palavra “des-encobrimento” parece proporcionar. De igual modo, o “des” no des-encobrimento mostrou uma variedade de “contraposição”, e deu um aceno para a essência de combate da verdade. Se agora, porém, na visão da Xf|9r|, aparece dentro da vigência do descobrimento o traço fundamental da proteção e se esta proteção guarda no desencobrimento o que há de proteger e salvar, levanta-se a questão que é, então, o próprio do desencobrimento em si mesmo para poder salvar e guardar.

Assim torna-se urgente seguir uma quarta indicação que a palavra “desencobrimento”, a ser traduzida, proporciona e entrega à atenção reflexiva do pensamento. O que a quarta e última indicação nos permite observar e que, aos poucos, temos de apreender a experimentar, é que os gregos invocaram, pensaram e fundaram

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muito menos do que os traços já mencionados na essência da àXfj0eia. E, não obstante, o que agora se trata de indicar repousa e jaz, originariamente, na vigência de desencobrimento ainda encoberto. Tentamos perceber aqui algumas coisas, sem de início fazer referência às indicações precedentes. Nessa tentativa, porém, intensifica-se e cresce, necessariamente, a aparência de se re-introduzir dentro da essência da áXr|0eia algo que não está por lá. Avaliado pelos limites aduaneiros do horizonte da historiografia e pelo que se pode constatar historiograficamente, bem como pelos “fatos” tão a gosto por toda parte, o que “de fato” se disse aqui “sobre” a áXf|0eia é uma interpretação invasiva. Se, ao contrário, não se impuserem à história horizontes historiográficos e, com eles, entupirem a história; se, ao contrário, se deixar o princípio ser o princípio que é, então vale uma outra lei. Segundo essa lei, nós não podemos introduzir bastante no princípio, ou melhor, nós não podemos interpretar bastante a partir do princípio, se não levarmos em conta o princípio no rigor de sua essência e não ficarmos presos a nossos caprichos. Pois a reflexão que busca, desse modo, correr atrás da essência essencial da “verdade” não quer nem pretende encontrar apenas, num zelo autoconfiante, o que se pensou ou não se pensou no passado. Tal reflexão queria apenas preparar o que a verdade em vigor, “mais viva” do que a tão invocada “vida”, tem a ver com o destino histórico do homem, porque essa essência já se mostra em sua vigência sem que pensemos nisso ou que nos façamos “prontos” para ela.

O que tentamos trazer agora para o foco essencial mediante a quarta indicação, isto pertence ainda mais primordialmente à essência da áXf|0eux do que a essência contrária discutida até agora em toda a sua multiplicidade. Uma vez que nosso foco deve ser direcionado para algo que vem à presença mais primordialmente na àXr|0eia, por essa razão o que deve ser acenado já é desvelado junto com a áXf|0eia e através desta como o que emerge para nós ainda mais proximamente do que o mais próximo, emerso para nós, antes de tudo, na essência da áXf|0eia. Porque o que agora deve ser acenado nos é ainda mais próximo do que o usualmente e “imediatamente” mais próximo, por isso é, também, correspondentemente, o mais difícil de vislumbrar. Assim, no zelo do ver o ordinário da percepção sensível, deixamos de considerar o que se atém às coisas visíveis e à

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circunvisão sob e entre elas em relação à nossa visão o mais próximo de tudo, ou seja, a clareza e sua própria transparência, através da qual o zelo de nosso ver corre e necessita transcorrer. Experimentar o mais próximo é o mais difícil. No curso de nossos processos e ocupações, isto é justamente tomado como se fosse o mais fácil. Porque o mais próximo é o mais familiar, não necessita de uma apropriação especial. Não costumamos refletir sobre isso. Assim permanece o que é o menos digno de ser pensado. O mais próximo aparece então como se fosse um nada. De modo rigoroso, o homem não vê imediatamente nem mesmo o mais próximo, mas sempre o que é posteriormente o mais próximo. A insistência e a pressa pelo que é posteriormente o mais próximo expulsa o mais próximo e sua proximidade do âmbito da experiência. Isso resulta da lei da proximidade.

Esta lei de proximidade está fundada na lei do princípio. O princípio não permite de pronto, a si mesmo, emergir como princípio, mas em vez disso retém, na sua própria intimidade, seu caráter de princípio. O princípio, então, se mostra primeiramente no principiado, mas ainda aqui, nem imediatamente, nem como principiado. Mesmo se o principiado aparece como principiado, podem seu princípio e a essência do princípio, na sua totalidade, permanecer encobertos. Entretanto, o princípio, primeiramente, encobre a si mesmo naquilo que já provém dele e já se desdobra de certo modo como continuidade. Assim que principia, o princípio deixa primordialmente para trás a proximidade de sua essência primordial, e dessa maneira a encobre. Por isso a experiência primordial, de nenhuma maneira, garante a possibilidade de pensar o próprio princípio em sua essência. O primeiro princípio é o decisivo de tudo. Contudo, ainda não é o princípio primordial, isto é, o princípio que simultaneamente ilumina a si mesmo e seu âmbito essencial e em tal modo primordial. Este princípio do princípio primordial vem a acontecer por último. Porém, não sabemos nem o caráter nem o último momento da história e, certamente, nem sua essência primordial.

Por isso a completude da história do primeiro princípio pode ser um sinal histórico da proximidade do princípio primordial, o qual, posteriormente, inclui a história futura na sua proximidade.

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Segundo a lei que regula o princípio em seu principiar, mesmo os gregos, necessariamente, deixam escapar o que está mais próximo na essência da àXr|9eia. Este não-perceber não decorre de uma falta de atenção, não é conseqüência de negligência ou incapacidade, mas, pelo contrário: é precisamente em virtude de sua fidelidade para a experiência mais primordial do que no princípio se oculta que os gregos não percebem a primordialidade do princípio. Mas porque, de outro lado, o mais próximo já mora em tudo o que é próximo, o que é mais próximo na essência da áXf|9eia deve então estar expresso na fala dos gregos, ainda que somente acidentalmente, isto é, no sentido de um vago olhar, embora não explicitamente visto.

A passagem da Ilíada (B 348s), anteriormente elucidada, onde Nestor fala do retorno dos gregos e do raio de Zeus (indicando para a direita) por ocasião da partida dos gregos para Tróia, revelou uma profunda conexão entre o 4>eúSoç, a distorção como um velamento, mas, também, como um descobrimento, e o (jxxíneiv, o mostrar como deixar aparecer. O descoberto, que permanece na claridade “do dia”, é o que aparece de si mesmo e, aparecendo, mostra-se a si mesmo e, neste mostrar-se a si mesmo, torna-se presente, e a isso os gregos dizem “é”. Dessa maneira, a experiência grega é uma revelação da mais original relação entre o descoberto e aquilo que aparece. Ambos são, em certo sentido, o mesmo, mas, também, não o mesmo. Pois na essência do aparecer se esconde uma ambigüidade que pode se decidir em mais de uma maneira. O aparecer se funda no puro brilho, o qual entendemos como uma luz radiante. O mesmo aparecer, contudo, é um mostrar-se, encontra uma recepção e uma percepção. A percepção pode apreender o que mostra a si mesmo simplesmente como o que é percebido no perceber e pode-se deixar passar como uma coisa incidental e, em última instância, esquecer. É o aparecer que habita no mostrar-se de si mesmo, isto é, aparecer no sentido puro de brilhar e irradiar. O descoberto é então experimentado, mais e mais,b apenas na sua relação com os homens e nos termos do homem, isto é, no seu caráter como alguma coisa encontrada. Mas não é por isso, necessariamente, que o homem, ainda que pense a relação do ser para si mesmo enfaticamente nos termos de si mesmo, deva também colocar a si mesmo como um sujeito no sentido moderno e tornar o ser sua representação.

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0 ser próprio do homem inclui por necessidade, como não- essencial, um modo de ser egoísta [Selbstigkeit] e voltado para si mesmo [Selbstsucht], Isso não coincide de forma alguma com o eu, que constitui a essência da “subjetividade”, isto é, com a soberania rebelde do homem moderno. Mas mesmo a essência do ego [Ichheit] não consiste num isolar-se a si mesmo dos outros entes (esta exclusão é chamada de “individualismo”). Pensada metafisicamente, a essência do ego consiste mais num fazer de todos os outros entes alguma coisa que não pertence a si, ou seja, seu objeto, seu estar além e em contraposição, seu projeto (objeto). A essência da egoidade [Egoitãt] se distingue na experiência de todos os entes como objetivo e como um lançar-se além e contra suas próprias re-presentações. Através disso, o ego se volta para a totalidade dos entes e a apresenta a si mesmo como algo a ser dominado. Somente no reino essencial da subjetividade torna-se historicamente possível uma época de descobertas cósmicas e conquistas planetárias, pois apenas a subjetividade marca os limites essenciais de uma objetividade incondicionada e faz isso, em última instância, como um clamor do seu querer. A essência da subjetividade, chamada por egoidade da perceptio e da repraesentatio, é, assim, essencialmente distinta do “egoísmo” do eu individual e, de acordo com Kant, a essência do ego consiste precisamente no vigor da consciência em geral, como a essência de uma humanidade que se coloca para si mesma. 0 si-mesmo [Selbstsein] no sentido da subjetividade e egoidade desdobra-se a si mesmo, em conseqüência, em muitas formas, as quais se alcançam, historicamente, como nação e povo. Os conceitos de povo e gente se fundam na essência da subjetividade e da egoidade. Somente a partir de quando a metafísica foi fundada na subjetividade e na egoidade, isto é, a verdade dos entes no todo, os conceitos de nação e povo obtêm a fundação metafísica, na qual eles encontram sua relevância histórica. Sem Descartes, isto é, sem a fundação metafísica da subjetividade, Herder, ou seja, a fundação do conceito de um povo não poderia ser pensada. Se alguém pode estabelecer relações historiográficas retrospectivamente entre estes dois momentos, isto é um fato indiferente, uma vez que relações historiográficas são sempre somente fachada, e na maior parte das vezes aquela fachada que se oculta de ligações históricas. Na medida em que não conhecemos com evidência suficiente a essência própria da subjetividade como um modo moderno

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de si-mesmo, caímos no erro de pensar que a eliminação do individualismo e da dominação do indivíduo é, por isso mesmo, a superação da subjetividade. Diferentemente do “individualismo” do século XIX, o qual protege o pluralismo e o “valor” do único, e tem como a sua essência contrária a falta de distinção do rebanho, Nietzsche vê surgir uma nova forma de humanidade caracterizada como “típico”.

Numa nota do ano de 1888 (cf. Vontade de poder, n. 819), Nietzsche diz: “O sentido para e o prazer na nuance (a própria modernidade), no que não é geral, vai contra o impulso que tem seu prazer e sua força na apreensão do típico...” Nietzsche entende por “tipo” a subjetividade que, com base na vontade de poder, instala-se numa dominação incondicionada e se endurece no sentido do “poder”. O “sintoma da força” dessa subjetividade, isto é, a marca dessa força em direção ao tipo, é “a preferência por coisas questionáveis e aterrorizadoras...” (cf. Vontade de poder, n. 852). Nietzsche não está “pregando” aqui uma moral permissiva ou uma “filosofia” especial para os alemães, mas, em vez disso, está pensando, como um pensador que ele é, os entes em seu ser. Ele pensa o que é no mundo da história, o que, porque já é, há de vir a ser15. Assim que nós paramos de interpretar Nietzsche de acordo com as idéias burguesas do fim do século XIX e passamos a conceber suas idéias dentro de um nexo histórico em relação ao qual elas exclusivamente pertencem, isto é, com base na sua relação com a metafísica do idealismo “objetivo” e com a metafísica do Ocidente como um todo, reconhecemos que o conceito de “super-homem” manifesta a essência contrária da “consciência absoluta” da metafísica de Hegel. Mas não conseguiremos entendê-los, se não tivermos entendido a essência da subjetividade.

A forma essencial da subjetividade inclui em si um modo do ser-próprio do homem. Mas nem todo modo de ser-próprio do homem é, necessariamente, subjetividade16. Na medida em que fracassamos em reconhecê-lo, corremos o risco de confundir o próprio de ser homem como “subjetividade” ou como “subjetivismo”. A apresentação usual da sofistica grega e de Sócrates também é vítima desta

15. Cf. obra de Nietzsche, Vontade de poder, ed. Grossoktav, vol. XIV, n. 852.16. Cf. Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 64, p. 400407.

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superficialidade de comparação e mistura historiográficas. Agora, na medida em que o pensamento de Platão, bem como a metafísica de Aristóteles, passaram por uma confrontação com a sofistica e com Sócrates, o si-mesmo do homem e, conseqüentemente, a sua essência, receberam um privilégio peculiar no início da metafísica. Isso é imediatamente evidente no modo como os entes, enquanto o que aparece no desencoberto, são exclusivamente determinados em relação à percepção (vous) e à ^ux1!, à essência da “vida”. E isso nos conduz finalmente para a proposição afirmada por Aristóteles no seu tratado TTepl tl^XhS' (T 8, 431 b 21): f) i|>uXT] rà òvra mós è<m... “A alma - a essência da ‘vida’ - é em certo modo os entes” - isto é, de certo modo o ser dos entes, como a percepção do percebido, funda-se na “alma”. Isso soa como uma afirmativa da Crítica da razão pura de Kant, de acordo com a qual as condições de possibilidade da experiência são simultaneamente as condições de possibilidade dos objetos da experiência. Mas a tese de Aristóteles somente soa como tal. Aristóteles não está dizendo que o ser dos entes deveria repousar em e consistir na representação de um ego que representa, isto é, como sujeito de uma consciência e de uma certeza de si mesmo. E claro que o ser dos entes, como o ser do que mostra a si mesmo e aparece, é desencobrimento, mas desencobrimento tem ainda a essência na c úctis.

Assim, Aristóteles chama o propriamente ente t ò cjxiuepüiTaTa TrávTüJU (MeT. a 1), isso que, em todas as coisas, é o mais aparente, no que tem se mostrado já anteriormente a todas as coisas e em toda parte. Mas t ò (jiavepojTCíTa TTávTcou contém a determinação distintiva tõ Trj cjwuei c^auepoJTaTa uávTcov (933 b 11), o que aparece de tal modo que essa aparência é determinada com base na auto-emergência [Aus-sich-her-aufgehen]: a 4>úctis.

Assim, no início da metafísica duas coisas são mantidas: aparecer no sentido de emergir e surgir, mas, também, aparecer no sentido do mostrar-se para uma percepção e para uma “alma”. Aqui se esconde a razão peculiarmente vaga para o caráter transitório que marca a metafísica no seu início e a deixa tornar-se o que ela é: por um lado, em relação ao princípio, a última luz do primeiro princípio, e, por outro lado, com respeito à sua continuação, o primeiro início

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do esquecimento do princípio e de seu encobrimento. Porque o tempo posterior interpreta o pensamento grego somente quanto a posições metafísicas posteriores, isto é, na luz de um platonismo ou aristotelismo, e porque nisto interpreta Platão da mesma forma como Aristóteles, de modo medieval, ou de modo moderno leibnitziano- hegeliano, ou até de modo “neokantiano”, por isso é quase impossível para nós atualmente recordar a essência primordial da aparência no sentido de emergência, isto é, pensar a essência da <t>úaiç. Dessa forma, permanece também oculta a relação essencial entre 4)Úctlç e dXr|9eia. Na medida em que se faz referência a essa relação, ela parece, verdadeiramente, estranha. Mas se 4>úois significa o emergir que surge, e nada do que pensamos com “ratio” e “natureza”, então c|)Úctlç é uma palavra igualmente originária para o que a áXf|0eia nomeia. Por que então o poema doutrinário de Parmênides, que fala da áXf|9eLa, não poderia trazer o título: TTepi <j)úaeioç, “Acerca da emergência no desencoberto”?

Nós, contemporâneos, somente com dificuldade e lentidão, nos damos conta da falta de evidência que é a palavra “natureza” como tradução de 4>úctiç. Mas mesmo se temos isso reconhecido, ainda há um amplo caminho para a transformação do experimentar e do pensar, que nos traz mais uma vez próximos do primeiro princípio, para estarmos mais próximos do princípio porvindouro. Sem entrever a essência da c|u>cnç, também não vemos aquele mais próximo na áXr|9eia, em direção ao qual nosso pensar agora está a caminho.

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b) A quarta indicação: o aberto como a essência primordial do desencobrimento. Referência a Ser e tempo e a Sófocles, A ías V,

646s. O tempo como deixar aparecer e encobrir. Referência a Hõlderlin. O tempo como “fator” na modernidade. A presencialização

da abertura no desencobrimento. A “identificação” de abertura e liberdade. A àXf|0eia como o aberto da iluminação

Queremos concluir nossa elucidação da essência de áXf|9eia através da quarta indicação que a tradução de áXf|0eia pela palavra “desencobrimento” oferece.

Pensando de modo prévio, podemos dizer que o aberto vigora na essência do desencobrimento. Imediatamente pensamos com esta palavra no que não é fechado, que é, portanto, aberto. Pensado desse modo, o aberto se mostra como uma conseqüência do abrir e do descobrir. Num primeiro momento, ainda permanece não decidido se o aberto, aqui pensado, necessita ser ou não o fundamento essencial do descobrimento, dado que, em primeiro lugar, é possibilidade de desencobrimento antes de ser meramente seu resultado. Primeiramente faz-se necessário ver que os gregos experimentaram como tal, no reino da essência de àXf|06La, algo que os obrigou, de algum modo, a falar do aberto. Mas em nenhum lugar encontramos entre os gregos o conceito essencial do aberto. Pelo contrário, encontramos, no reino essencial de dX^OeLa e do pensar grego sobre o ser, palavras e nomes que, embora de modo somente aproximativo, se referem ao que chamamos aqui de aberto.

Como testemunho nos serve um dito simples da poesia grega. Este dito também foi escolhido aqui porque nos faz pensar, ainda uma vez, de uma maneira misteriosamente simples acerca da unidade essencial das palavras fundamentais da fala grega, unidade esta sobre a qual refletimos mais de uma vez no curso de nossa meditação. Este dito nomeia a relação entre encobrimento e descobrimento, aparência e emergência. Ele dá imediatamente a indicação para o que orienta nossa reflexão. O dito expressa, simultaneamente, o que poderia ser chamado de uma palavra prévia para o falar da essência do ser.

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0 dito fala do “tempo”. Em Ser e tempo, o tempo é experimentado e nomeado como a palavra prévia [Vor-wort] para a palavra “do” ser. O dito grego sobre o tempo está numa tragédia de Sófocles, em Aias (V, 646s) e diz:

dirauG’ ô paKpòs KávapíBp.TiTOS' xpónoç 4>úei t ’ dSr|Xa kol fyavévTa KpúnreTai'

“O movimento amplo, incalculável do tempo deixa emergir cada coisa (ainda) não aberta, mas, também, encobre (de novo) em si mesmo o que apareceu.”

Pensemos o dito partindo do seu fim. Lá está a palavra KpÚTTTeToa. KpÚTTTeaGai significa: retomar em si mesmo,salvaguardar em si mesmo e encobrir. Esse é o modo como xpó^os, “o tempo” encobre. “Tempo” é primordialmente, para os gregos, em cada caso, e somente, o tempo “reto” ou o “errado”, o tempo apropriado ou o tempo não-apropriado. Isso significa que cada ente tem, cada vez, seu tempo. “Tempo” é aí, cada vez, “o tempo, para o qual” isto ou aquilo acontece, ou seja, o “ponto do tempo”, o qual não significa o “pontual” do “agora”, e sim o “ponto” no sentido do local, da localidade cuja aparência no seu aparecer pertence temporalmente a um “tempo” único \je-“weils’\ O “tempo” aqui não é uma “série” ou “seqüência” de “agoras pontuais” indiferentes. Em vez disso, o tempo é algo que no seu modo carrega os entes em si, liberando-os e os retomando.

“Tempo”, compreendido de modo grego, xpóws, corresponde em essência a tóttoç, que erroneamente traduzimos por “espaço”. Porém, tóttoç é o lugar, e especificamente aquele lugar ao qual algo pertence, por exemplo, fogo, chama e ar para cima, água e terra para baixo. Assim como tóttoç dispõe a pertença de um ente para seu lugar de presentificação, assim o xpónoç dispõe a pertença do aparecer e desaparecer ao seu “então” e “quando” destinados. Por isso, o tempo é chamado (xaKpóç, “amplo”, no sentido da possibilidade, indeterminável a partir do homem e marcada cada vez pelo tempo singular, de liberar os entes para o seu aparecer ou retrair-se. Uma vez que o tempo tem sua

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essência neste deixar aparecer e retomar, o número não tem nenhum poder em relação a ele. O que concede a cada ente, cada vez, seu tempo de aparecer e desaparecer, se subtrai essencialmente a todo cálculo.

Que o deus dos gregos, mais antigo do que o supremo dos deuses olímpicos, o “antigo Pai” de Zeus, se chame “Kronos” e traga o nome do “tempo”, isso somente pode ser avaliado por nós se nos dermos conta de que as divindades gregas, em geral, consistem em um ver e aparecer, e que “tempo” é o que deixa aparecer e encobrir. Na essência abscôndita do deus imemorial “Kronos” repousam os “antigos amigos”, “a partir” dos quais “todo poder surge” (Hõlderlin, Natureza e arte ou Saturno e Júpiter [Natur und Kunst oder Saturn und Júpiter], IV, 47)17. A essência originária do tempo é essencialmente distante do número, do cálculo e de todos os “artifícios”: àuapL0|ir]TOS'.

Reconhecidamente, já entre os gregos, na Física de Aristóteles, a essência do tempo era entendida precisamente com base no “número”. Isso certamente nos leva a pensar na razão pela qual, antes de tudo, a determinação aristotélica da essência de xpóvoç domina o entendimento ocidental do tempo desde então. Não somente nas fórmulas matemáticas da física moderna, mas, em geral, em todo o comportamento humano em relação ao “tempo”, este se torna um “fator”, isto é, um “trabalhador” que “trabalha” “contra” ou “a favor” do homem, ou seja, “contra” ou “a favor” do cálculo, por meio do qual o homem faz planos para dominar os entes e assegurar-se neles. Pensando em termos modernos, o tempo é algo que o homem coloca em seu cálculo, e isto como o enquadramento vazio da progressão de ocorrências, uma depois da outra. Em toda parte, não somente na física, o tempo é o “parâmetro”, isto é, aquelas coordenadas, ao longo (uapd) das quais transcorre toda medição (p .é T p o u ) e cálculo. O homem usa e consome o tempo como “fator”. Como conseqüência dessa disposição, que consome e consuma, o homem constantemente tem cada vez menos tempo, apesar dos seus esforços de economizar tempo, isso porque economizar e poupar tempo é necessário até mesmo nos mais ínfimos procedimentos tecnológicos. Para o homem moderno, o sujeito para o qual o “mundo” se tornou exclusivamente

17. Cf. obra de Hõlderlin, ed. Hellingrath, vol. IV, p. 47.

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um “objeto” uniforme, também o tempo tornou-se um objeto de consumo. 0 homem moderno, por isso, sempre “tem” cada vez menos tempo, porque, de antemão, apropriou-se do tempo somente como cálculo, e fez dele uma obsessão, embora ele presumivelmente seja o legislador, cujas leis dominam o tempo. Para o pensamento primordial grego, pelo contrário, o tempo é que concede cada vez tempo e é ao mesmo tempo o tempo concedido, e assim lança o homem e todos os entes em sua disponibilidade, determinando em todos os casos o aparecer e o desaparecimento dos entes. 0 tempo descobre e encobre.

Então, o tempo pode KpÚTTTeaOai, ou seja, pode abrigar de novo em si mesmo somente o que já apareceu: fy a v é v T a . Entes, que se tornam presentes e se ocultam na ausência pela “varredura” do tempo, são entendidos aqui no sentido do aparecer. Contudo, o que aparece ao aparecer é o que é somente na medida em que surge e emerge. Uma tal coisa só pode, então, entrar em vigência, na medida em que deixa o aparecer emergir: a cf>úais', 4>úeiv (cf. acima Xrj9r) - mythos) é dita a respeito da terra, f] yrj <j>Ú6L - a terra deixa emergir. Freqüentemente, e mesmo corretamente, traduzimos 4>úeLV como “crescer”, mas, assim fazendo, esquecemos de pensar este “tornar-se” e “crescer”, dentro da experiência grega, como um emergir da semente e da raiz a partir do encobrimento na escuridão da terra para a luz do dia. Ainda hoje dizemos, embora somente como uma figura de linguagem: o tempo traz para a luz do dia; cada coisa necessita (para o seu desabrochar) de seu tempo. O <j)úeLV da cj)úüiç, o deixar emergir e a emergência, deixa aquilo que emerge aparecer no desencoberto.

Reconhecidamente, Sófocles não usa a apalavra àXf|9eia - desencobrimento - no seu dito sobre o tempo, o tempo que esconde (KpÚTTTeTai) e deixa emergir (4>úei). O poeta também não diz que o tempo deixa o velado emergir, 4>úei rà XaOóvTd mas, em vez disso, diz 4>úei tò âSqXa - o tempo deixa emergir no aparecer o que está determinado a aparecer, mas ainda não é SfjXov; d-òr|Xov, o não- manifesto [Un-offenbare]. Corresponde ao não-revelado o abertamente revelado, assim como ao velado corresponde o não-velado, isto é, o que emergiu para o aberto e apareceu no aberto. A abertura vige no desencobrimento. O aberto é o mais próximo, que nós co-intencionamos

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na essência do desencobrimento, embora sem prestarmos atenção ou genuinamente o considerarmos; apenas deixamos vislumbrar sua própria essência, de tal maneira que a presença desse aberto poderia ordenar e guiar toda a nossa experiência dos entes. Nós já sabemos: o desencoberto e o desencobrimento (àXr|0és') têm uma importante relação com eiraç, puGoç, Xóyoç, isto é, com a palavra. O dizer e a saga estão relacionados essencialmente ao ^>aivópevov, com o que se mostra por si mesmo no desencobrimento. A fala descobridora numa assertiva é, portanto, mesmo para Aristóteles, áTro(f)a.LPe(j0aL - trazer para o aparecer. Em vez de áiTO(j)aí,vea0aL, Aristóteles freqüentemente diz, como Platão e os primeiros filósofos, SpXoüu - colocar no aberto18. Na saga do desencobrimento (áXf]0eia), da (jurns, do emergir para o desencoberto, do c^atuecrGai (aparecer e deixar aparecer), do KpÚTTT£(T0ai (encobrir), do XavGáue iv (do ser oculto) o que é sempre nomeado, embora para a maioria apenas acidentalmente, é: tò SíjXou, aquilo que se instala no aberto e, portanto, o aberto.

A essência do desencobrimento nos dá a indicação para o aberto e a abertura. Mas o que é isso? Aqui os gregos silenciam. Nós encontramos a nós mesmos sem suporte ou assistência, quando se torna necessário refletir sobre a essência do aberto vigente na áXf|0eux. Esta reflexão parece estranha para a perspectiva ordinária especialmente porque mostra que o aberto não é, de modo algum, apenas o resultado e a conseqüência do descobrimento, mas o fundamento e o princípio essencial do desencobrimento. Pois descobrir, isto é, deixar aparecer no aberto, somente pode ser cumprido por aquilo que oferece previamente este aberto e, então, é em si mesmo um abrir-se e, por isso, essencialmente aberto. Em vez disso, nós também podemos dizer: o que já é “livre” a partir de si. A essência velada do aberto como um abrir-se [Sich-Òffnenden] primordial é a liberdade [Freiheit],

Ao equipararmos abertura e liberdade, estamos relacionando- os com algo familiar e, então, a essência do aberto parece se fazer compreensível. Mas, na verdade, isso é uma mera aparência, e até mesmo uma aparência múltipla, na medida em que a “equiparação” de

18. Cf. Ser e tempo, Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2006, § 8 e 44, respectivamente p. 79s e 282s. O § 7 deve ser pensado juntamente com o § 44.

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abertura e liberdade corretamente pensada funda uma abertura ainda obscura na essência da liberdade, essência esta que, em sua proveniência, é igualmente obscura. Em toda a metafísica, a essência da “liberdade” é pensada na relação essencial com a “vontade” e a liberdade da vontade é concebida como uma marca diferenciadora da potencialização da alma, isto é, é concebida nos termos do comportamento humano. Mas para nós, agora, faz-se necessário pensar a essência da liberdade numa unidade essencial com o conceito mais primordial de áXrjGeia, e numa visão que elucide a essência do aberto. Por isso, temos que compreender o sentido de liberdade, ao qual o homem deve primeiramente se ater, em consonância com sua essência, se ele for capaz de deixar os entes se manifestarem no aberto que eles são enquanto entes.

O livre é a garantia, é o lugar que abriga o ser dos entes. O aberto, enquanto o livre, abriga e salvaguarda o ser. Pensamos ordinariamente o aberto, o livre e o amplo certamente antes como condição de evasão, dispersão e distração. O aberto, e sua extensão para a vastidão do ilimitado e do sem-limites, são zonas sem apoio, onde cada jornada se perde no insustentável. O aberto não oferece abrigo ou segurança. O aberto é antes o lugar, o espaço de jogo do ainda indeterminado e não-decidido e, portanto, é uma ocasião de erro e de desvio. Assim, ao olhar para o aberto, duas questões imediatamente surgem. Em primeiro lugar, enquanto um originar-se na liberdade primordial, como se pode supor ser o aberto a essência originária do desencobrimento? Segundo, como pode o aberto ser essencialmente abrigar-se?

Não pode ser negado que a essência primordial da verdade, a á\f|0eia, refere-se à essência do aberto e da abertura. Embora os gregos não tenham explicitamente tematizado ou nomeado o aberto como a essência da áXqGeia, eles o experimentaram, porém, constantemente, numa perspectiva, ou seja, na forma essencial do iluminado e do que ilumina, mas isso por sua vez no brilhar da luz que concede claridade. Nós já mencionamos incidentalmente o aberto como o iluminado quando caracterizamos os 8aí[ioveç e os 9eáovTes' como aqueles que vêem e aparecem na luz, e já indicamos a conexão entre clareira e luz. A luz é o esplendor determinante, o

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brilhar e o aparecer. “A luz”, em sentido eminente, brilha como luz do sol. Com base na “alegoria da caverna” de Platão, podemos aferir imediatamente a conexão entre sol, luz, desencobrimento e desvelamento, por um lado, e entre escuridão, sombras, encobrimento, velamento e caverna, por outro lado.

Essa referência para a essência da áX^Beia no sentido do aberto da clareira e da luz servirá para concluir nossa elucidação da experiência grega da essência da verdade. Provavelmente, então, necessitamos somente de alguns passos para “esclarecer” essa essência da verdade de uma maneira que possa satisfazer também às exigências do pensamento moderno e usual.

c) Luz e ver. O esclarecimento “natural” da verdade do iluminar em termos dos “homens visuais” gregos em contraposição à visão

desvelante. O perceber vidente. AXfjGeLa: o evento na paisagem da tarde que encobre a manhã. 9eâu-ópâv e teoria

Tão-somente a luz, entendida como claridade, concede a possibilidade da visão • com isso a possibilidade do ver do encontro, como também da apreensão. Vislumbrar é um ato do ver. Ver é um poder do olho. Com isso parecemos atingir um “ponto” que poderia explicar inteiramente a verdade para os gregos como a essência da àXf|9eLa, isto é, agora, como a essência do iluminado e do aberto. Os gregos eram, como se diz, “homens visuais” [Augenmenschen]. Eles apreendiam o “mundo” primeiramente através dos “olhos” e, então, eles “naturalmente” prestavam atenção ao ver e à visão. Além disso, deviam, então, considerar a luz e a claridade. A partir do iluminado, do claro e da transparência (8ia4>auég) da luz é somente um passo para a iluminação e o iluminado, isto é, precisamente para o aberto e, então, para o descoberto como o essencial. Se recordarmos que os gregos eram “homens visuais”, e se pensarmos o desencobrimento como abertura e iluminação, então, a prioridade essencial de áXrjGeia torna-se “compreensível” repentinamente. Essa referência à característica básica do aberto na essência da àXqGeia nos coloca na trilha da “explicação mais natural possível” da áXr|0€La.

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A essência grega da verdade - o desencobrimento, o aberto, o iluminado, o claro - é assim explicada pelo fato de que os gregos eram “homens visuais”. Com esta “explicação” poderiamos concluir nossa discussão sobre a essência da áXf|0eia como é experimentada pelos gregos. No entanto, para poder concluir esta discussão de maneira um pouco mais limpa, deveremos ainda colocar de lado um momento problemático. Tem sido dito que os gregos eram “homens visuais” e, por isso, sua interpretação do mundo estava focada no ver, no olhar e na luz. Por que, porém, eram os gregos “homens visuais”? Não são todos os povos “homens visuais”? Certamente eles o são, na medida em que têm olhos e vêem. Mas a caracterização familiar dos gregos é realizada na suposição de que, para eles, “o olho” tinha uma importância especial. De novo voltamos à questão: por quê? Poder-se- ia responder: porque lá, na Grécia, a luz é especialmente impressionante. Então não seria o olho como olho, mas a luz que predomina e determina a prioridade do iluminar. Além disso, o poder da luz não impera menos na terra dos egípcios e, em certo grau, na terra dos romanos. Mas lá não encontramos nada da essência da verdade no sentido da dXf|0eLa. Mas precisamente isso, podería alguém retrucar, prova que os gregos eram “homens visuais” numa medida especial. É simplesmente um fato dado. É algo “último”, como que a “substância” desta humanidade. No momento não queremos de forma alguma negar o “fato” de que os gregos eram homens visuais, ou que, no seu mundo, a luz e o ver desempenhavam uma papel proeminente. Entretanto, permanece a questão, a qual, apesar de todos os “fatos”, ainda deve ser colocada de novo, se a referência a esses fatos ao menos “explica” a essência da áXf|0eia, se uma tal essência deixa simplesmente “explicar-se” pelos “fatos” ou pelos “fatos” reunidos de modo aleatório. Podemos ainda nos questionar se simplesmente o “explicar”, com respeito ao que é o essencial, nos coloca numa relação com o que é essencial da essência, ou se pode simplesmente nos colocar. Aproximamo-nos, então, da questão acerca do caráter e do verdadeiro sentido da meditação que temos perseguido sobre a essência da áXr|9eia.

Que os gregos eram “homens visuais”, para os quais o olho tinha uma grande prioridade, o que isso contribui para uma elucidação da essência da verdade como desencobrimento, abertura e

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iluminação? Isso não contribui em nada, pois não pode ter a mínima significação. Esse fato não pode significar nada, pois o funcionamento factual do olho não dá nenhuma informação, e não pode dar informação alguma sobre a relação do homem com os entes. O que é precisamente um “olho” sem sua habilidade para ver? Nós não vemos porque temos olhos, mas temos olhos porque podemos “ver”. Mas o que significa “ver”? Sobre isso compreendemos, segundo o mais amplo conceito, do qual também toda “ótica” física, fisiológica e estética se funda, um encontro imediato com entes, coisas, animais e outros homens, na luz. O que, no entanto, nos acrescenta alguma luz, não importa quão luminosa, e o que poderia fazer um instrumento ótico, não importa quão refinado e multidimensional, se o próprio poder de ver não avistasse de antemão os entes através do instrumento do sentido visual e por meio da luz? Do mesmo modo como o olho sem a habilidade de ver não é nada, assim a habilidade de ver, por sua parte, permanece uma inabilidade se ela não vem para o jogo numa relação já estabelecida do homem com os entes visíveis. Mas como poderíam os entes aparecer para o homem, se o homem já não se relacionasse essencialmente com os entes enquanto entes? Mas como pode vigorar esta relação do homem com os entes enquanto entes, se o homem não está em relação com o ser? Se o homem já não tivesse o ser em vista, então não poderia nem simplesmente pensar o nada, e muito menos experimentar os entes. Mas como deve o homem permanecer nesta relação com o ser, se o próprio ser não se dirige ao homem e não exige sua essência para a relação do homem com o ser? Mas que outra coisa é esta relação do ser com a essência humana do que a iluminação e o aberto, que se têm iluminado eles mesmos para o desencoberto? Se uma tal iluminação não vigorasse como o aberto do próprio ser, então o olho humano não poderia jamais tornar-se e ser o que é, ou seja, o modo como o homem vê no comportamento os entes que encontra, um comportamento no qual os entes se revelam. Uma vez que a essência primordial da verdade é “desencobrimento” (á-Xf|0€ia), e uma vez que áXf|0eia já é no encoberto o aberto e autoluminoso, então a iluminação e sua transparência podem aparecer como tal na configuração do iluminar da claridade e de sua transparência. Somente porque a essência do ser é àXf|0eia, pode a luz da iluminação alcançar uma prioridade. Por isso a emergência

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para o aberto recebe o caráter do brilhar e aparecer. Por isso a percepção da emergência e do desencoberto é uma percepção do que brilha iluminado, isto é, o ver e o vislumbrar. Apenas por isso, porque o vislumbrar é exigido desse modo, pode “o olho” receber uma prioridade. Não porque o olho é “ensolarado” [sonnenhaft], mas porque o sol, enquanto ele próprio é radiante da luz e da essência da áXf|0€La, por isso pode o olho do homem “vislumbrar” e tornar-se sinal para a relação do homem com o desencoberto como tal. Porque a essência da verdade e do ser é a áXf|0eia, o aberto, por isso podiam os gregos usar o “olho” para caracterizar a relação essencial do homem com os entes - isto é, a ^uxh» a alma - e podiam falar do õp.p.a Tfjç ^ihCns, do “olho da alma”.

Mas os gregos falam também do diálogo “da alma” consigo mesma (Xóyoç), e a essência do homem consistiría no Xóyov êxeiv. Se, conseqüentemente, a essência da “alma” é determinada pelo Xóyoç, e isso num modo que não é menos essencial do que a determinação pelo vislumbrar perceptivo, e se o último vigora na iluminação da àXijOeta, então o Xéyeiv da alma humana necessita ser fundado pelo Xóyoç, que na sua essência não é nada mais do que a àXfiOeia'1'.

A essência da verdade é primordialmente àXf|0eia não porque os gregos eram “homens visuais”, mas os gregos somente podiam ser “homens visuais” porque é a àXr|0eia que determina a relação de sua humanidade com o ser. Isto, e somente isto, ou seja, que a essência da verdade se origina como áXr|0eia, escondendo, no entanto, ao mesmo tempo a si mesma, é o evento da história do Ocidente.

Segundo essa origem essencial da áXr|0eLa, o Ocidente [Abendland] é a paisagem ainda não decidida e delimitada da terra, sobre a qual está descendo uma tarde [Abend], que, enquanto tarde, principia essencialmente a partir dessa irrupção e, por isso, oculta em si a manhã dessa paisagem. Porque a essência da verdade vige como 19

19. Cf. sobre o logos de Heráclito, edição completa, vol. 55, ed. Manfred S. Frings, Frankfurt, 3. ed., 1994, p. 185-402, como também o epílogo do editor, p. 405. Nota da tradução: Martin Heidegger, Heráclito. A origem do pensamento ocidental. Lógica. A doutrina heraclítica do lógos, Relume-Dumará, Rio de Janeiro, 1998.

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áXf|0eLa, o aberto e iluminado determina o que aparece no seu interior e o faz ser forma essencial do reconhecimento, que brilha a partir do seu interior no iluminado. Em correspondência a este reconhecer do que aparece, a ação desvelante de perceber e captar os entes, isto é, o conhecer [Erkennen], é compreendido como um reconhecer e ver.

O reconhecimento do ser, que brilha a partir do seu interior nos entes, significa em grego Géa. O olhar voltado para o captar no sentido de ver é, em grego, ópdco. Reconhecer o olhar do encontro, em grego, Geâu - òpâv, significa Geopáw - GeoopeTu, Gecopía. A palavra teoria significa, pensada simplesmente, a relação perceptiva do homem com o ser, uma relação que o homem não produz, em cuja relação, antes, o próprio ser somente coloca a essência do homem.

Na verdade, quando as épocas posteriores e também nós, atualmente, falamos de “teoria” e “teorético”, todo o primordial se torna esquecido. O “teorético” é uma composição representativa do sujeito do homem. O “teorético” é somente ainda o “simples teorético”. O “teorético” necessita, para se “confirmar na verdade”, ser então confirmado na “práxis”. Sem uma tal comprovação, uma relação com a “realidade” lhe é negada. Mesmo onde, dentro de certos limites, se reconhece um significado próprio ao teorético, calcula-se que um dia poderia vir a ser utilizável “praticamente”. Essa perspectiva de sua utilidade justifica o comportamento anterior, meramente “teorético”, como inevitável. O prático, isto é, o sucesso e a produtividade, é a medida e a justificativa do teorético. Já há quatro décadas os americanos estabeleceram esta doutrina como a filosofia do “pragmatismo”. Através desta “filosofia” o Ocidente não será nem redimido, nem salvo. Os gregos, porém, que são unicamente os custódios do começo do Ocidente, experimentaram, imediatamente, na Geuipía, a relação essencial com os GedovTeç, com o Gelou e com o SaL|ióuiov. Por isso os gregos não necessitam calcular primeiro um “valor” prático em relação à Getopía para “confirmá-la na verdade” e justificá-la diante da suspeita de um “simples” “teorético”, o qual foi rebaixado para algo “simplesmente abstrato” e corre como um horror. Com um tal distanciamento do “teorético” como “do abstrato” distanciamento da Géa, da vista do ser, podemos ainda nos admirar

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acerca do “ateísmo”, que circula não apenas entre os “livre- pensadores”, mas, também, no “movimento ateísta”?

Que a experiência grega fundamental do ser seja Bewpía, isso não testemunha apenas e somente a primazia do ver e do vislumbrar, mas testemunha previamente a vigência originária da essência da áXf|9eia, no que se presencializa algo como iluminação, iluminado e aberto. Na medida em que seguimos essa indicação da essência do desencobrimento e na medida em que pensamos o aberto, nossa meditação acerca da essência da áXfjGeia é trazida, obviamente, não para o seu fim, mas, somente agora e primeiramente, para o seu começo.

d) O aberto no começo da meditação com a palavra àXf|9eiot. O pensar essencial: o salto para o ser. Entes descobertos no abrigo do sem-chão da abertura (livre) do ser. O encobrimento da decisão de

concessão para o homem do desencobrimento no aberto que se resguarda. A habilitação, através da concessão do ser, de ver o aberto:

um começo histórico. A alienação do homem diante do aberto

O começo [Anfang] exige de nós, para quem a história se desenvolveu a partir do começo, o início [Beginn] de uma meditação que pensa acerca da essência do “aberto”. Nomeando “o aberto” [Offene] e usando a palavra “abertura” [Offenheit], parecemos representar algo conhecido e compreensível. Mas, ao contrário, tudo se confunde no indeterminado. A não ser que tomemos agora a sério a palavra “aberto” e a pensemos dentro do nexo essencial único que a meditação, realizada até agora, acerca da essência da áXr|9eia trouxe para mais próximo de nós. Assim, usaremos a expressão “o aberto” somente na sua unidade indissolúvel com a áXf|9eia e com a essência da dXr|9eia como foi experimentada primordialmente.

Nesse contexto, o aberto é a luz do que se auto-ilumina. Chamamo-lo como “o livre” [Freie] e sua essência como “a” liberdade [Freiheit]. Liberdade tem aqui um sentido primordial, estranho ao pensar metafísico. Podemos ser tentados a explicar a essência da liberdade, pensada aqui, como a essência do aberto, a base da

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delimitação tradicional dos vários conceitos de liberdade. Pois a tentativa seria de trazer para mais perto a essência do que chamamos “o aberto”, aproximando-o, gradualmente, por meio de nossas representações usuais.

Um caminho que é aberto, nós o chamamos livre. A entrada e a passagem são dadas. Estas se mostram como o espacial. O que pode ser atravessado nos é conhecido como a espacialidade dos espaços, como sua essência dimensional, uma essência que atribuímos também ao “tempo”, na expressão “espaço de tempo”. Com isso representamos o que provavelmente, por primeiro, encontramos quando nomeamos o “aberto”: uma extensão não-fechada e não-ocupada preparada para a recepção e distribuição de objetos.

O aberto, porém, no sentido da essência da áXf|9eia não significa nem espaço nem tempo entendidos usualmente, nem sua unidade, o espaço de tempo, porque tudo isso já empresta sua abertura daquele aberto, que vige na essência do descobrimento. Similarmente, em toda parte onde algo é “livre” de... no sentido de “desligado” “de”, ou é “livre” “para...” no sentido de ser e estar pronto para..., já vem à presença uma liberdade que libera, primeira e justamente, o espaço de tempo como um “aberto” a ser atravessado na extensão e expansão. O “livre de” e o “livre para” já reivindicam uma iluminação, na qual uma separação e uma doação constituem uma liberdade mais original que não pode ser fundada na liberdade do comportamento humano.

Jamais alcançaremos, portanto, o aberto como a essência da àXrjGeia simplesmente ampliando o aberto no sentido do “extenso” ou no sentido do “livre”, como usualmente entendido, de modo permanente e progressivo, a modo de um reservatório imenso, que tudo “contém”. Falando de modo rigoroso, a essência do aberto se revela, ela mesma, somente para o pensar que tenta pensar o próprio ser, no modo como nos é pré-anunciado para o nosso destino na história ocidental, como algo a ser pensado no nome e na essência da àXf|0ÇLa. Todo homem da história conhece o ser imediatamente, sem, no entanto, reconhecê-lo como tal. Mas do mesmo modo como é inegável esse conhecimento imediato do ser, assim, tão raro, permanece e tem êxito a tarefa de pensar o ser. Não como se este

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pensar pudesse ser difícil e sua realização exigisse arranjos especiais. Se aqui se pode falar de uma dificuldade, então esta consiste no fato de que pensar o ser é o mais simples, mas que o simples seja para nós o mais árduo.

Para pensarmos o ser, não é necessário o aparecimento festivo na veste de uma erudição pretensiosa ou no aparato de estados raros e excepcionais, ao modo de uma submersão e excesso místicos num sentido mais profundo. Tudo o que é necessário é o simples despertar na proximidade de todo e qualquer ente em sua disposição e inaparência, despertar este que, repentinamente, vê que o ente “é”.

O despertar para este “é”, permanecendo antes de tudo desperto para o “é” de um ente e no cuidado acerca da iluminação dos entes, isso constitui a essência do pensar essencial. O “é” dos entes, o ser, se mostra quando se mostra, cada vez, apenas, “repentinamente”, em grego éÇaíc|3vr|s-, isto é, é^acj)avf|S, no modo que algo irrompe para o aparecimento a partir do não-aparecimento. A esta irrupção essencialmente não-mediada e imediata do ser nos entes, os quais aparecem ao mesmo tempo e somente então como entes, corresponde então, da parte do homem, um comportamento que não mais se volta para os entes, mas repentinamente pensa o ser. Pensar o ser exige cada vez um salto [Sprung], um salto para o sem- chão [Boden-lose], a partir do solo habitual sobre o qual os entes sempre se acham num relacionamento conosco. É como se este sem- chão viesse à luz como o livre, e é o que denominamos quando consideramos nada de mais amplo nos entes do que seu “é”.

Esse pensar genuíno se dá por “saltos”, pois não conhece pontes, parapeitos e escadas do esclarecimento, que sempre somente deriva entes de entes, permanecendo no “solo” dos “fatos”. Esse chão é quebradiço. Ele jamais é sólido. Pois cada um dos entes, aos quais nos atemos excluindo tudo o mais, suporta graças somente a um esquecimento do ser, no que, no entanto, o ser é e está presente. Mas o ser não é um chão, mas é o sem-chão. É assim chamado porque primordialmente é separado de um “chão”, de um “fundamento”, e não necessita deles. O ser, o “é” de um ente, jamais está plantado no solo dos entes, como se o ser pudesse ser extraído dos entes e

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estivesse sobre eles como sobre seu fundamento. Somente os entes vistos em relação aos entes são plantados no solo. Ser, que jamais é plantado no solo, é o sem-chão, o que, naturalmente, somente por ser calculado a partir dos entes, mostra-se como uma carência, na qual nos encontramos sem suporte em nossa corrida sem sustentação pelos entes. De fato, caímos certamente no abismo, não encontramos nenhum fundamento, enquanto “nós” conhecermos e procurarmos um fundamento somente na forma de um ente e jamais realizarmos o salto para o ser e enquanto não deixarmos a paisagem familiar do esquecimento do ser. Este salto não exige digressões ou formalidades.

Em toda parte, a todo momento e na mais próxima proximidade do mais imperceptível dos entes, já mora a abertura da possibilidade de pensar explicitamente o “é” dos entes como o aberto, em cuja iluminação os entes aparecem como descobertos. O aberto, no qual cada ser é libertado para seu livre, o aberto é o próprio ser. Cada coisa descoberta é como tal resguardada no aberto do ser, isto é, no sem-chão.

O sem-chão, o que é libertado originariamente de todo chão e de sua fragilidade, é o que resguarda primordialmente. Mas, na verdade, não resguarda no sentido de uma “intimidade” que o homem busca em algum lugar no interior dos entes e arranja-a para si. O resguardar [Bergsame] do aberto não providencia um lugar de refúgio através do que o homem poderia se dispensar de sua essência. O aberto como tal resguarda a abóbada essencial do homem, dado que este, e somente ele, é aquele ente para o qual o ser se ilumina. O ser, enquanto aberto, resguarda em si toda espécie de desencobrimento dos entes. Portanto, no resguardar, o aberto recolhido encobre a decisão primordial em cuja originariedade o ser concede ao homem o desencobrimento, isto é, a verdade dos entes como um todo. O caráter dessa concessão [Zufügung] esconde e resgata o modo histórico como o homem, cada vez, pertence à concessão do ser, isto é, ao modo como, pela ordem, lhe é concedido conhecer o ser e, como único ente entre os entes, a vislumbrar o aberto. A decisão sobre essa concessão [Befugnis] acontece raramente. Acontece cada vez, situada num lugar, quando a essência da verdade, a abertura do aberto, é determinada primordialmente. E

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isso é o começo da história. De fato, o homem histórico, na medida em que é, pertence sempre à concessão do ser. O homem, e somente ele, vê constantemente para dentro do aberto no sentido do livre, pelo qual o “é” liberta cada ente para si mesmo e, com base nessa liberação, vislumbra o homem em sua vigilância com o aberto. Embora o homem, e somente ele, constantemente veja para dentro do aberto, isto é, encontre os entes na liberdade do ser, buscando ser tocado por eles, ainda assim ele não está, dessa forma, em condições de trazer o ser, ele mesmo, explicitamente, em sua propriedade. Quer dizer, está em condições de trazer o ser para dentro do aberto (para o livre), isto é, de poetizar o ser, de pensá-lo e dizê-lo. Porque somente entes desvelados podem aparecer e, de fato, aparecem no aberto do ser, o homem se atém, no primeiro momento, repentinamente e, então, constantemente, somente aos entes. Ele esquece o ser e nesse esquecer aprende a desconsiderar o ser e a alienar-se em relação ao aberto.

e) O aberto na forma da progressão irrestrita dos entes. O aberto: o livre da iluminação. O “aberto” da “criatura” na oitava Elegia de

Duíno de Rilke. Referência a Schopenhauer e Nietzsche. A exclusão do animal da luta entre desencobrimento e encobrimento. A excitação

do vivo

O ser, de cuja concessão o homem não pode se subtrair, ainda que no seu mais extremo esquecimento, flui, contudo, do homem para a totalidade indeterminada dos entes como uma conseqüência de sua alienação da àXrjGeia. Nesse sentido, o ser é identificado sem distinção com os entes ou, ainda, colocado de lado como um conceito meramente vazio. A distinção de todas as distinções e o começo de toda diferenciação, isto é, a distinção entre ser e entes é, então, completamente nivelada e, com a participação humana, relegada sem maiores considerações a um descuidado, através de um desprezo para aquilo que propriamente deve ser pensado, e rejeitada num extraordinário esquecimento e ausência de pensamento. Mas o ser permanece na maneira mais difícil de se considerar os entes como um

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todo e obtém este sentido de uma interpretação baseada em cada caso, embora de várias maneiras, acerca do domínio privilegiado dos entes. “Ser” se torna uma mera palavra pronunciada que encobre o que se subtraiu e se fechou, enquanto é precisamente o aberto que se abre.

Os entes procedem dos entes projetando-se em entes. Somente esta progressão “é”. Mas somente “é” no esquecimento do próprio “é” e de sua essência. Esta progressão ilimitada de entes, um depois do outro, e um no outro, é tomada como “o ser”. Essa progressão ilimitada de entes em entes refere-se, então, “ao aberto”, no sentido em que falamos de “mar aberto”, quando estamos em alto mar e todos os limites de terra desaparecem.

Assim é como Rilke, na oitava elegia de Duíno, compreende “o aberto”. O “aberto” é, para ele, a progressão constante pelos entes, eles mesmos, dos entes e para os entes, nos entes. O aberto como progressão ilimitada de entes permanece ligado a esse encadeamento de entes e assim está vinculado ao solo. O aberto da progressão irrestrita de entes nunca alcança o livre do ser, e é precisamente este livre que a “criatura” nunca vê; pois a capacidade de ver constitui o que essencialmente distingue o homem e, conseqüentemente, perfaz o limite essencial e insuperável entre animal e homem. “O aberto” no sentido de uma progressão interminável de entes em entes e “o aberto” como o livre da iluminação do ser, em distinção de todos os entes, são verbalmente o mesmo, mas, naquilo que as palavras nomeiam, são tão diferentes que nenhuma formulação por oposição podería indicar suficientemente o abismo que há entre eles. Pois oposições, mesmo que as mais extremas, exigem ainda um domínio no qual reciprocamente se dispõem. É precisamente isso que falta aqui. A metafísica, base da fundação do biologismo do século XIX e da psicanálise, mais precisamente, a metafísica do completo esquecimento do ser, é a fonte de um total desconhecimento das leis do ser, cuja última conseqüência é uma hominização desproporcional da “criatura”, isto é, do animal, e a correspondente animalização do homem. Esta é uma assertiva levada a cabo a partir da colocação fundamental do pensar, sobre o fundamento metafísico de um poetar.

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Poder-se-ia, então, objetar que com isso a poesia é distorcida de um modo inadmissível diante do julgamento da filosofia. Se “filosofia” e “poesia” fossem simplesmente duas ocupações humanas diferentes, existindo cada uma em si mesma e distintas pela sua essência, então, o que a gente vem dizendo poderia ser condenado como uma “estupidez”. E que importância teria, se a essência do pensamento e a essência da poesia recebessem, outra vez, apenas originariamente suas legitimações! E daí, se isso pudesse ocorrer, na medida em que o caráter de compromisso da palavra e da fala pudesse ser decidido primordialmente e tivesse que ser tomado para o cuidado do humano? Nossa preocupação, aqui, é somente bloquear o perigo de uma confusão sem pensamento de sons verbalmente similares para a mesma coisa. A observação seguinte, sobre a poesia de Rilke, deve ser entendida dentro dos limites desta intenção.

O que Rilke chama, especialmente na sua oitava Elegia de Duíno, de “o aberto” tem somente o som e a vocalização em comum com o que o pensar da essência da àXf|0€Lot concebe na palavra “aberto”. Uma breve elucidação do que Rilke diz sobre o “aberto” pode ajudar-nos a considerar de modo mais firme o aberto como pensado no âmbito essencial da áXf|0eia, mediante um contraste decisivo deste em contraposição às palavras de Rilke. Isso servirá para tornar nossa meditação acerca da dXf|9eia mais precisa.

Rilke fala do “aberto” especialmente em sua oitava Elegia de Duíno, dedicada significativamente a Rudolf Kassner. Não é nossa intenção apresentar uma interpretação completa dessa elegia, pois isso não é necessário. O necessário é somente indicar de modo inequívoco como a palavra de Rilke sobre o “aberto” é distinta em todos os aspectos do “aberto”, pensado em conexão essencial com a áXf|9eia e com o sentido de um questionamento do pensamento. A oitava elegia de Duíno começa:

“Com todos os olhos a criatura vê o aberto. Somente nossos olhos aparecem invertidos e todos colocados ao redor das criaturas como armadilhas, em torno de sua livre saída.O que está fora, sabemos apenas pela fisionomia do animal...”

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Os primeiros versos da elegia imediatamente dizem a quem é dado ver “o aberto” e a quem não é concedido. Os olhos da “criatura” e “nossos” olhos, isto é, os olhos humanos são colocados numa oposição segundo essa perspectiva. O que, então, significa aqui “criatura”? Creatura, de creare, significa “o que é o criado”. Creator é o criador. A creatio, criação, nesse sentido, é uma determinação fundamental bíblico-cristã dos entes. Omne ens est qua ens creatum, com a exceção do próprio criador não criado, o summum ens. Creatura no significado de ens creatum inclui, pois, também o homem. De acordo com a narrativa bíblica da criação, o homem é a creatura formada por último. Assim, creatura significa “a criação”, isto é, o mundo criado como um todo, no qual o homem é incluído como a “coroa da criação”. E nesse sentido que a palavra creatura ocorre na famosa Sequentia medieval, Dies irae, dies illa, um poema escrito por Tomás de Celano na primeira parte do século XIII. É dele também a célebre biografia de São Francisco de Assis.

A quarta estrofe do Dies irae, que talvez alguns tenham no ouvido, segundo a composição de Verdi, diz:

Mors stupebit et natura Cum resurget creatura Iudicanti responsura.

“A morte paralisa tudo o que emerge quando as criaturas todas se levantam para responder ao seu juiz.”

Se, porém, Rilke coloca “a criatura” em oposição ao homem e essa oposição é o único tema da oitava elegia, então a palavra “criatura” não pode significar creatura no sentido do todo da criação. A nítida delimitação dessa palavra na linguagem de Rilke exige uma interpretação das Elegias de Duíno como poesia unitária, e especificamente em sua conexão com os Sonetos a Orfeu, que muitas vezes vão bem mais além. Mas agora não é ocasião para isso, e, além

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do mais, nos faltam ainda as “pressuposições hermenêuticas” que necessitariam ser recolhidas da própria poesia de Rilke.

A palavra “criatura” [Kreatur], na poesia de Rilke, refere-se a “seres criados” [Geschópfe] no sentido estrito, isto é, de “seres vivos”, com exclusão do homem. Este uso da palavra “criatura” e “ser criado” não se refere à criação do criador, à maneira da fé cristã, mas “criatura” e “ser criado” são nomes para os seres vivos que, em distinção dos seres vivos dotados de razão, ou seja, o homem, são peculiarmente “indefesos” e “miseráveis”, e não sabem se ajudar. “A criatura” é, antes de tudo, “o animal”20. Uma vez mais deveria ser enfatizado que criatura não está sendo distinguida aqui do “creator” e, portanto, não deve ser colocada em relação a Deus através de uma tal distinção. Em vez disso, “a criatura” é o ser vivo não-racional em diferença do ser racional. Mas Rilke não toma o “ser criado” “não- racional” de acordo com a visão usual, como o ser menos potente, comparado com o mais alto, o mais potente, o ser humano. Rilke inverte a relação do poder do homem e das “criaturas” (isto é, animais e plantas). Essa inversão é o que é expresso poeticamente pela elegia. A inversão da relação de dignidade do homem e animal é realizada com respeito ao que ambos os “seres vivos” são respectivamente capazes em termos “do aberto”. O “aberto” é, dessa forma, o que determina em sua vigência ambos e todos os entes. É isso, então, o próprio ser? Certamente. Assim, tudo depende disso, de que reflitamos sobre o “sentido” no qual o ser dos entes é experimentado e dito aqui. “O aberto” não é sem relação com a àXf|9eta, se esta é a essência ainda encoberta do ser. Como poderia ser de outro modo? Mas “o aberto” segundo a palavra de Rilke e o “aberto” pensado como a essência e a verdade da àXf|0eia são extremamente distintos, tão

20. Cf. a “pequena” criatura, a mosca, e o “grande” pássaro, o morcego. Cf. carta a L. Salomé, de Duíno, em 1/3/1912: “animal” e “anjo” (Rainer Maria Rilke, Cartas dos anos 1907 a 1914, ed. Ruth Sieber-Rilke e Carl Sieber, Leipzig, 1933; carta a Lou Andreas Salomé, de Duíno, em 1/3/1912, p. 211s, especialmente p. 212).Para Rilke, a “consciência” humana, a razão, o Xóyos, é precisamente a limitação que faz o homem menos potente do que o animal. Devemos, portanto, tornar-nos “animais”? Cf. carta de Muzot, em 11/8/1924, p. 282: “Contra-pesos”. Cf. a nomeação de pássaros, criança, amado (Rainer Maria Rilke, Cartas de Muzot, ed. Ruth Sieber- Rilke e Carl Sieber, Leipzig, 1935. Carta de Muzot a Nora Purtscher-Wydenbruk, em 11/8/1924, p. 277s).

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longinquamente distintos como o começo do pensar ocidental e a completude da metafísica ocidental - e, no entanto, precisamente se copertencem, como o mesmo.

“Com todos os olhos a criatura vê o aberto. Somente nossos olhos...”

não vêem o aberto, não imediatamente. O homem vê o aberto tão pouco, que ele necessita do animal para ver. O quinto e sexto versos dizem claramente:

“O que está fora, sabemos apenas pela fisionomia do animal...”

O que Rilke pensa com o aberto, só podemos compreender e, como tal, propriamente questionar, se primeiramente virmos claramente que o poeta tem em mente a diferença entre o animal e o ser vivo desprovido de razão, por um lado, e o homem, por outro lado. Guardini, ao contrário, interpreta essa elegia como se, com base na relação “da criatura” - diriamos como ens creatum - com o “aberto”, o poema fosse uma espécie de prova da existência de um Deus criador.

A oposição de animal e homem, ser vivo sem-razão e racional, é uma distinção cuja forma primordial deve ser buscada entre os gregos. Já estamos familiarizados com essa distinção a partir de nossas observações anteriores. O homem é, de acordo com t ò

£íoov Xóyou e\ov, o que emerge de si mesmo e, neste emergir e nesta relação com o que emergiu, “tem a palavra”. “O animal”, ao contrário, é o que emerge de si mesmo, para quem a palavra é recusada - óqiou a-Xoyov. A essência da linguagem, porém, é para os gregos e, ainda, para Platão e Aristóteles, t ò àuo^aíveaGai - deixar aparecer o descoberto como tal, o que ambos os filósofos expressam como t ò SqXoüv: o revelar do aberto. Porque ele tem a palavra, o homem, e ele unicamente, é o ente que vê para dentro do aberto e vê o aberto no sentido de 0X71065. O animal, ao contrário, não vê para

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dentro do aberto, nunca o faz, nem com um único de todos os seus olhos. 0 começo da oitava elegia de Rilke diz justamente o contrário. Com isso Rilke realiza uma inversão da determinação metafísica ocidental do homem e do animal em sua “relação” com o aberto?

O problema é que, como uma condição fundamental da essência de uma inversão (“revolução”), justamente isso, em relação ao que é invertido, permanece o mesmo e necessita ser mantido como o mesmo. No presente caso, porém, isso não acontece, pois o aberto pensado por Rilke não é o aberto no sentido do desencoberto. Rilke não conhece e não suspeita nada da áXf|0eia, e tão pouco como conhece Nietzsche. Assim, Rilke permanece preso aos limites da determinação metafísica tradicional do homem e do animal. Especificamente, Rilke assume a forma dessa determinação que se consolidou durante a modernidade, nos séculos XIX e XX: do Ctoov Xóyov éxoy grego para o animal rationale. Essa determinação essencial do homem como o “ser vivo racional” é tão distante da determinação grega como a veritas e a certitudo da dXf|0eia. Como animal rationale, o homem é o “animal” que calcula, planeja, volta-se para os entes como objetos, representa o que é objetivo e ordena-o. O homem se relaciona consigo mesmo em toda parte, direcionado para objetos, isto é, para o que se coloca sobre e contra ele [Gegenstànde], os ob-jetos [Ob-jekte]. Isso significa que o próprio homem é o “sujeito”, o ser [Wesen] que, colocando-se para si mesmo, dispõe de seus objetos e, desse modo, assegura-os para si. Rilke sempre pensa o homem nesse sentido metafísico moderno. Esta compreensão usual metafísica do homem é em toda parte a pressuposição para a tentativa poética de interpretar a essência do homem no sentido da metafísica biológica moderna. O homem é o ser vivo que, por meio da re­presentação, traz os objetos para si e, no trazer, vê para dentro do que é objetivo e, no ver, ordena os objetos e, nesse ordenar, postula debaixo de si o ordenado como algo dominado, como sua possessão.

A parte conclusiva da elegia expressa tudo isso de modo inequívoco, e através disso testemunha que a distinção entre homem e animal ou, mais precisamente, a interpretação do ser humano com base no animal é o tema que perpassa toda a poesia:

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“E nós: espectadores sempre e em toda parte, para quem tudo está voltado e jamais fora disto! Somos inundados com isto. Ordenamo-lo. Isto decai. Ordenamo-lo de novo e decaímos nós mesmos.”

A palavra decisiva desses versos é: "... e jamais fora disto!”, isto é, jamais para dentro do “aberto”, que “a criatura” “vê com todos seus olhos,” contra o que nós podemos saber do “fora”, e do que “está fora”, “sabemos apenas pela fisionomia do animal”. O que Rilke então pensa com o “aberto”? Segundo o pensar óbvio, quando pensamos no “aberto”, pensamos em algo aberto em oposição a algo fechado. Não-fechado e aberto é, então, “um espaço”. O aberto se refere ao domínio essencial do espaço, mesmo se o pensamos como o que foi trazido para a luz, no sentido do resguardado e desencoberto. Na trilha do pensar que pensa a áXf|0eLa em sua essência chegaremos àquele ponto, no qual deveremos nos perguntar sobre a relação entre o desencoberto e espaço. Devemos pensar o desencoberto com base na essência do que é espacial, ou o que é espacial e todo espaço é fundado na essência da d\f|0eia como experimentada primordialmente? Em todo o caso, o aberto refere-se ao que é espacial. A fala de Rilke sobre o “jamais fora disto” e o “que está fora” refere-se a este âmbito. Além do mais, a elegia diz:

“N ó s jamais temos, nem mesmo por um único dia, o puro espaço diante de nós, no qual as flores infinitamente emergem”.

“Infinitamente” significa aqui “sem-fim”, sem se ater a um limite, como também “como um todo”. “Emergir”, obviamente, não se refere aqui ao que os gregos pensam com a palavra cfnjeiv, mas significa o “imergir” através do qual, por exemplo, ao dissolver-se açúcar em água, o imergente se dissolve e é absorvido num todo do ar e das relações cósmicas. Este imergir é possível por não haver nada que esteja sobre ou contra o “ser vivo” (planta ou animal) como objeto, através do que o ser vivo seja rastreado sem cessar em si mesmo e constrangido à re-flexão. O significado básico, determinante e envolvente de tudo da palavra “aberto” para Rilke, é o ilimitado, o

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infinito, no qual os seres vivos respiram e se dissolvem ilimitadamente para dentro das relações causais sem-fim de natureza, para flutuar nesse ilimitado. Em concordância com esse âmbito ilimitado, Rilke chama o animal de “o animal livre”. Em que medida, no entanto, Rilke pode dizer: “Com todos os olhos a criatura vê/ o aberto” e em que medida “o aberto” é “tão profundo na face do animal”, isso é o que o poeta necessita justificar poeticamente. 0 que necessitamos clarificar primeiramente, antes de tudo, é o que significa aqui “ver”. Rilke diz de “nossos olhos”, que eles seriam “como invertidos”. Eles não se dirigem para o âmbito do sem-objeto [Gegenstandslose], mas no re-presentar [Vor-stellen] do objeto [Gegenstandes] eles são voltados, através deste, para si mesmos, na direção oposta. Quando, então, nossos olhos vêem a criatura, ela é captada como um objeto por nossa representação; a “livre partida” do olhar da criatura para o aberto é bloqueada e destorcida por nossa objetivação. Nossos olhos são “armadilhas” para o ver do animal, armadilhas que o captam e o aprisionam. “Armadilhas” que atingem, fecham e impedem o aberto, o pensamento do que é expresso de modo mais próximo pela expressão “mar aberto”. Este é alcançado quando todos os limites da terra desapareceram. O aberto é a ausência de bordas e limites, o sem-objeto, não pensado como falta mas como o todo originário do real, no qual a criatura é imediatame.nte admitida, e isso quer dizer liberada.

O homem, ao contrário, é forçado para uma relação com objetos através de si mesmo como o sujeito, uma relação que coloca o todo do que Rilke chama o aberto e que, ao mesmo tempo, fecha o que nessa relação emerge. Segundo Rilke, o animal vê mais do que o homem, pois seu olhar não é embaraçado por nenhum objeto, mas, não sabemos obviamente como pode ir infinitamente para o sem- objeto. O animal “tem diante de si” o ilimitado [Grenzenlose]. Ele jamais encontra um limite em sua marcha, por isso também não encontra a morte. O animal é, no seu percurso para o infinito, “livre de morte”, percurso este que não o faz voltar-se para si, como é o caso da representação humana, e jamais vê o que está atrás dele. O ilimitado como um todo pode, pois, ser chamado “Deus” num modo difuso de falar. Assim, nesta elegia, Rilke diz:

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“o animal livretem seu perecimento constantemente atrás de si, e diante de si Deus, e quando se move, move-se na eternidade, assim como as fontes se movem”.

Tudo isso soa muito estranho; é, porém, somente uma concreção poética da metafísica popular biológica do fim do século XIX. Aí, e necessariamente desde Descartes, o representar do homem é chamado de consciência dos objetos, uma consciência consciente de si mesma e refletida em si. E assim o comportamento do animal não é consciente de si e, nesse sentido, é um pressionar inconsciente e um acionar dos impulsos (instintos) numa direção não determinada objetivamente.

A prioridade do inconsciente sobre a consciência corresponde à prioridade do animal livre por sobre a essência aprisionada do homem. O espírito da filosofia de Schopenhauer, mediada através de Nietzsche e de doutrinas psicoanalíticas, está por detrás desta poesia. Embora a metafísica de Nietzsche com respeito à doutrina da vontade de poder permaneça fora do alcance da poesia de Rilke, vige, porém, ainda um elemento comum decisivo: a essência do homem concebido com base na essência do animal. Aqui é “poetizado”, lá é pensado. Com base em um puro ponto de vista metafísico, isto é, com respeito à interpretação dos entes como racionais e irracionais, o domínio da experiência poética fundamental de Rilke não é no todo distinto da posição fundamental do pensar de Nietzsche. Ambas são tão distantes como possível da essência da verdade como áXfj0eLa, como eram distantes a metafísica moderna e a metafísica medieval como tais. Entretanto, a metafísica moderna, numa unidade com a metafísica cristã medieval, repousa sobre o mesmo fundamento, ou seja, a transformação romana da metafísica de Platão e Aristóteles, e assim é fácil ver a poesia de Rilke como a concreção terminal da metafísica moderna no sentido de um cristianismo secularizado e é fácil mostrar que o secularizado é precisamente apenas um epifenômeno do fenômeno originário do cristianismo. Uma tal interpretação faz a poesia de Rilke parecer uma espécie de cristianismo infeliz, ao qual se faz necessário ajudar, mesmo com o perigo de, nesta apologia,

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corrermos o risco de ir contra a palavra expressa e a vontade do poeta.

Ao mesmo tempo, outros poderíam replicar não estarem interessados numa exploração apologética cristã da poesia de Rilke. Mas nós rejeitamos também toda tentativa de medir a poesia com a medida de uma “filosofia”. Nós aderimos somente à palavra poético- artística. - Essa é certamente uma atitude genuína e que faz justiça ao poeta. Mas ela deixa uma questão não interrogada, ou seja, em que consistiría a obrigatoriedade própria da palavra poética? Essa pergunta se funda numa questão ainda mais essencial: que verdade é própria à poesia enquanto poesia? O mero apelo a experiências pessoais e impressões, o que significaria apelar ao próprio poeta como o último suporte da validade de sua palavra, é aqui pouco demais, isto é, é simplesmente nada numa época na qual não somente o ser e o não-ser de um povo estão em decisão, mas quando, antes de tudo, a essência e a verdade do ser e do não-ser, eles próprios, e nada menos, estão como tais em jogo. Desse modo poderia ser mais importante, isto é, mais objetivo, inserir a poesia de Rilke na tradição da consciência cristã do que entregá-la a “experiências” subjetivas de um indivíduo perplexo.

Nosso pensar seria por demais estreito e, ao mesmo tempo, torto, se estivéssemos a defender a visão de que, ao nos referirmos ao “aberto” em Rilke, estaríamos medindo sua poesia com a medida própria dos conceitos filosóficos, para, então, julgar e até condenar de acordo com essa medida. Na verdade, a palavra de Rilke sobre o “aberto” foi colocada em relação ao reino essencial da dXf|0€La. A questão é, se isto é somente um assim chamado conceito filosófico ou se, no curso de nossa reflexão, tenha se tornado suficientemente claro que a áXf|9eia nomeia um evento, a cujo âmbito pertence também a palavra de Rilke sobre o “aberto”, justamente como o faz cada palavra ocidental que fala do ser e da verdade, de modo que este falar ainda possa experimentar e saber daquele evento ou ter desde longo tempo esquecido seus últimos tremores.

Existe, evidentemente, um abismo entre o que Rilke chama de “o aberto” e o aberto no sentido do desencobrimento dos entes. O “aberto” que vige na áXf|9eia deixa apenas os entes emergirem como

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entes e virem à presença como entes. O homem unicamente vê woç aberto. De modo mais específico, o homem consegue, antes de tudo e na maioria dos casos, ter um vislumbre para o aberto, relacionando-se ele próprio sempre com os entes, possam estes entes ser entendidos de modo grego, como o que emergindo se faz presente, ou, no sentido cristão, como ens creatum, ou, no sentido moderno, como objeto. No seu comportamento com os entes, o homem vê previamente o aberto, na medida em que habita nessa abertura e no projeto aberto pelo ser. Sem o aberto, que é como o próprio ser vem à vigência, os entes não poderíam nem ser descobertos nem ser encobertos. O homem, e somente ele, vê para dentro do aberto, sem, porém, avistá-lo. Apenas a visão essencial do autêntico pensar avista o próprio ser. Mas também aqui o pensador pode avistar o ser somente porque ele, como homem, já o vislumbrou.

O animal, ao contrário, não vê nem vislumbra o aberto no sentido do desencobrimento do desencoberto. Por isso, o animal não pode se movimentar no fechado como tal, como também não pode relacionar o si-próprio com o encoberto. CPanimal é excluído do reino essencial da luta entre desencobrimento e encobrimento. O sinal desta exclusão essencial é que nenhum animal ou planta “tem a palavra”.

A referência à exclusão do animal do reino essencial do desencobrimento começa a resolver para nós o enigma de todo o ser vivo, entendido este como enigma, pois o animal está relacionado, e de modo essencialmente diverso, com seu ciclo alimentar, de sobrevivência e sexual, diferentemente do modo como a pedra está relacionada com o chão sobre a qual ela repousa. Nas coisas vivas caracterizadas como plantas ou animais encontramos uma peculiar emergência de excitabilidade, pela qual o ser vivo é “excitado”, isto é, acionado para uma emergência em um ciclo de estimulação, com base no que atrai outras coisas vivas para o círculo de sua atividade. Nenhuma excitação ou estimulação de plantas ou animais os traz para dentro do aberto de tal modo que o que é excitado poderia deixar o excitante “ser” o que simplesmente é enquanto excitante, para não mencionar o que é antes da excitação ou sem ela. Plantas e animais dependem de algo fora delas, sem que sejam capazes de “ver” tanto o exterior como o interior, isto é, sem conseguir reter sob o aspecto descoberto no livre do ser. Jamais

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seria possível para uma pedra, não menos do que para um aeroplano, elevar-se para o sol em júbilo e acionar-se como uma cotovia, a qual, no entanto, não vê o aberto. 0 que ela “vê”, como ela vê e o que é isto que chamamos “ver”, já que constatamos nela “olhos”, isso permanece por ser interrogado. De fato, seria necessária uma capacidade poética originária para poder intuir este encobrimento dos seres vivos, uma capacidade poética para a qual muito mais coisas, coisas mais altas e coisas mais essenciais são colocadas como tarefas - desde que genuinamente essenciais - em contraposição a uma mera hominização de plantas e animais. Mas, na metafísica, o homem é também experimentado como um ser vivo e como “animal” no sentido mais amplo, com base em razões que remetem para o modo como o próprio ser se revela, originariamente, ele mesmo.

Uma vez que na metafísica o homem é experimentado e pensado como o animal racional, a animalidade é então interpretada a partir da medida da racionalidade como o irracional, o desprovido de razão, ou seja, em correspondência à racionalidade e à natureza instintiva. Desse modo, na metafísica, em suas repercussões metafísicas, o mistério do ser vivo permanece fora de atenção de todas as ciências; pois ou os seres vivos são expostos ao assalto da química ou eles são transferidos para o campo da “psicologia”. Ambos os caminhos presumem buscar o enigma da vida. Eles jamais o encontrarão. E isso não somente porque cada ciência adere somente à penúltima pressuposição e necessita pres-supor [voraus-setzen] a última como a primeira, mas porque o enigma da vida jamais será encontrado onde o mistério do ser vivo já tiver sido abandonado.

Também porque a poesia de Rilke não experimenta nem respeita os limites essenciais entre o mistério do ser vivo (planta - animal) e o mistério do ser histórico, ou seja, do homem, suas palavras poéticas jamais alcançarão o ápice de uma decisão fundadora histórica. É quase como se nessa poesia existisse operativamente uma hominização ilimitada e sem-fundamento do animal, pela qual o animal, em relação à experiência original dos entes como um todo, é justamente colocado sobre o homem e se torna de um certo modo um “super-homem”:

“O que está fora, sabemos apenaspela fisionomia do animal...”

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Deveriamos perguntar aqui: quem são eles que falam aqui no “nós”? O “nós” são os homens modernos da metafísica moderna, uma humanidade que, com respeito à experiência essencial do ser, extraviou-se no beco sem saída do esquecimento do ser.

Em relação ao homem atual, a poesia de Rilke tem muito de seriedade e empenho, mas não menos de confusão, falta de pensamento e fuga. Degustam-se palavras, mas não se sopesa a palavra. Assim, fala-se sem reflexão sobre o “aberto” mas não se questiona acerca da significância que possa haver com a abertura do aberto, se ela se refere somente a uma progressão infinita de objetos ilimitados ou se na palavra acerca do “aberto”, se pensa o desencobrimento, o qual por primeiro libera os objetos para uma objetividade como o livre, sem o que nem mesmo o nada podería irromper em sua negatividade, nem poderia por toda a parte brandir sua ameaça.

“O que está fora” e o que “é” como tal, seja “fora” ou “dentro”, ou em nenhum “espaço”, isso sabemos somente com base num conhecimento do ser, que ele mesmo vem à presença como o livre, em cuja iluminação os entes encontram o acesso para o desencobrimento e, a partir deste, a emergência para o aparecer e, com este, a ordem da presencialização.

§ 9. Oeá - AÁfjOeia. O ver do ser para dentro do aberto iluminado por ele. A indicação no interior da referência da palavra de

Parmênides: a viagem do pensador para a casa da AXfjOcia e seu pensar na proximidade do começo. O falar do começo da saga ocidental

Agora talvez já possamos ver algumas coisas mais claramente. O aberto vigente na essência da áXf|9ei.a é difícil de vislumbrar, não somente porque é o mais próximo, mas porque ilumina e, com isso, concede ao mais próximo, tudo j que é próximo e o distante como tal.

Mas essa dificuldade em vislumbrar o aberto é apenas um sinal do que poderia advir no interior de nosso olhar essencial, ou seja, de que seu acesso possa ser impedido por nós, quando nos falta competência para o que o próprio ser já sempre nos tem disposto e,

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por isso, sempre também de novo se subtrai, sem que possamos intuir esse evento.

Ao mesmo tempo, talvez agora possamos pensar e reter esta simples coisa, ou seja: a àXf|0eia é o ver do ser a partir do seu interior no aberto iluminado por ele mesmo e como ele próprio, aberto para o desencoberto de todo aparecer. O que é uma tal vigência, como isso poderia ser um simples “conceito”? O empenho de toda a nossa meditação precedente não tem sido outra coisa do que nos conduzir para uma experiência de pensamento dessa questão que nos causa espanto.

A AXf|0eia é 0ed, a deusa. Mas, de fato, somente para os gregos e, mesmo entre eles, apenas para uns poucos de seus pensadores. A verdade - uma deusa para os gregos no sentido grego - certamente.

Mas o que é essência da verdade para nós? - Nós não o sabemos, porque não compreendemos a essência da verdade, nem compreendemos a nós mesmos, e não sabemos quem nós mesmos somos. Talvez essa dupla ignorância sobre a verdade e sobre nós mesmos seja uma única e mesma. Mas já é bom saber deste não-saber, e precisamente por causa do ser, ao qual pertence o temor do pensar. Pensar não é saber, mas talvez seja mais essencial do que saber, porque está mais próximo do ser, está naquela proximidade que é encoberta de longe. Não sabemos a essência da verdade. Por isso nos é necessário perguntar sobre isso e, nessa questão, ser tocados de modo que experimentemos qual a condição mínima que necessita ser realizada, se nos dispomos a dignificar a essência da verdade como uma questão. A condição é que realizemos a tarefa do pensar.

A meditação tentada foi acompanhada por uma evidência. A saber: podemos pensar a essência da verdade somente se trilhamos no mais extremo limite do ente como um todo. Lá reconhecemos que se aproxima um instante da história, cuja singularidade não se determina, de forma alguma, apenas a partir da situação corrente do mundo e de nossa própria história nele. O que “está em questão” não é simplesmente o ser ou o não-ser de nosso povo histórico, nem o ser ou não-ser de uma “cultura” “européia”, pois nessas instâncias o que

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está em questão são, já e sempre, somente entes. Previamente a tudo isso, uma decisão primordial necessita ser realizada com respeito ao ser e ao não-ser mesmos, ao ser e ao não-ser em sua essência, na verdade de sua essência. Como os entes devem poder ser salvos e resguardados no livre de sua essência, se a essência do ser permanece não-decidida, não-interrogada e simplesmente esquecida?

Sem a verdade do ser, os entes jamais são estáveis; sem a verdade do ser, sem o ser e a essência da verdade, a verdadeira decisão acerca do ser e não-ser de um ente permanece sem a abertura de liberdade, a partir do que toda a história começa.

A questão retorna: o que é a essência da verdade para nós? A preleção deveria dar somente uma indicação para o reino, a partir do qual a palavra de Parmênides fala.

A indicação dentro de sua referência intencionava acenar para onde o pensador primordial está a caminho, ou seja, a casa da deusa AXf|9eia. A partir dessa casa também a genuína viagem de sua experiência recebe, então, a indicação do caminho. A casa da deusa é o lugar da primeira chegada na jornada do pensar, e é, então, o ponto de partida para o curso do pensar que carrega todas as relações com os entes. A essência dessa casa é inteiramente determinada pela deusa. Seu morar lá faz, antes de tudo, a casa ser a casa que é. Entretanto, no morar se plenifica a “essência” da deusa. Ela é o vislumbrar que se doa e mora, a partir do iluminado, no seu interior, para o desprovido de luz. A AXijOeia é o descobrimento que encobre em si toda a emergência, todo o aparecimento e desaparecimento. A AXr|9eLa é a essência do verdadeiro: a verdade. Esta vige em todo vigente e é a essência [Wesen] de toda “essência”: a essencialidade [Wesenheit],

Experimentar isso é o destino do pensador primordial. Seu pensar conhece na essencialidade a essência da verdade (não apenas a essência do verdadeiro) como a verdade da essência.

Como a essência da emergência ((jmcjis), a AXf|9eLa é o próprio começo. A viagem para a casa da deusa é o pensar que aponta para o começo. O pensador pensa o começo na medida em que pensa a AXf|9eia. Uma tal recordação [Andenken] é, em toda parte, o único

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pensamento [Gedanke] do pensador [Denkens]. Este pensamento, como o dito do pensador, entra para a palavra e para a saga do Ocidente.

Essa saga diz a essência da história, a qual, porque permanece o destino do ser e o ser apenas inesperadamente se ilumina, acontece sempre no inesperado da primordialidade do começo. A história afinada, a partir da essência primordial da iluminação do ser, envia os entes sempre de novo e sempre somente para o destino do declínio em encobrimentos de longa duração. De acordo com esse destino vigora aqui o declínio, a tarde do que emergiu primordialmente.

A terra incluída por essa história no seu espaço de tempo e nisso encoberta é o Ocidente [Abend-land, literalmente, “terra da tarde”], de acordo com o sentido primordial (ou seja, em termos da história do ser) desta palavra.

A saga ocidental diz o começo, isto é, a essência ainda encoberta da verdade do ser. A palavra da saga ocidental preserva a pertença da humanidade ocidental à região de casa da deusa AXr|0eia.

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Acréscimo

[Nota do editor alemão: O texto seguinte é um primeiro esboço com o propósito de recapitular o trecho da p. 115 até a p. 118, o qual não foi apresentado por Martin Heidegger durante a preleção.]

O homem moderno possui uma “experiência vivida” do mundo e pensa o mundo naqueles termos, isto é, em termos de si mesmo como um ente que, enquanto fundamento, está na base da fundação de toda a explicação e ordenação dos entes como um todo. Na linguagem da metafísica, o que está na base da fundação é subiedum. O homem moderno é, em sua essência, o “sujeito”. Somente porque ele é “sujeito”, podem seu eu [Ich] e seu ego [Ichheit] ser essenciais. Mas o fato de que um tu é colocado em oposição ao eu, pelo que o eu é colocado em seus limites e a relação eu-tu é colocada em sua valência, e que, então, o lugar do indivíduo é tomado pela comunidade, pela nação, pelo povo, pelo continente, e pelo planeta, isso de nenhuma forma, falando metafisicamente, cancela a subjetividade do homem moderno, mas antes, e somente então, a conduz para seu estado incondicional. No lugar do pensar essencial se impõe “antropologia”, a forma anglo-americana para o que é sociologia. Somente onde o homem se tornou sujeito, os entes não-humanos se tornam objetos. Somente no interior do âmbito da subjetividade pode irromper uma disputa sobre objetividade, sobre sua validade, sobre seu lucro e perda, e sobre suas vantagens e desvantagens em cada caso particular.

Dado que, porém, a essência do homem, para os gregos, não é determinada como “sujeito”, o conhecimento do começo do Ocidente histórico é difícil e estranho para o “pensar” moderno, pressuposto que a “vivência” moderna não simplesmente interpreta retroativamente suas vivências para dentro do mundo grego, como se o homem moderno experimentasse uma relação de intimidade pessoal com o helenismo pela simples razão de que organiza “jogos olímpicos”, periodicamente, nas principais cidades do planeta. Aqui, somente a fachada ainda é emprestada do mundo grego. Com isso, não é dito nada contra as próprias olimpíadas, mas contra a opinião errônea de que tais coisas

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tivessem alguma relação com a essência grega. Mas devemos sabê-lo, se quisermos reconhecer a essência completamente diversa da história moderna, isto é, se quisermos, ao mesmo tempo, experimentar nosso próprio destino na sua determinação essencial. Esta tarefa, no entanto, é por demais estranha e séria, a ponto de dever serem tomadas em consideração as opiniões sem pensamento e a tagarelice. Quem acolhe sem presunções o dito nessas preleções como o que é dito simplesmente, como uma palavra de atenção e de cautela incipiente no pensar, deverá rapidamente colocar de lado todas as “emoções” sentimentais de uma “tomada de posição” sem pensamento e apressada. Quem está sentado aqui somente para surpreender a esmo materiais para seus sentimentos políticos ou antipolíticos, religiosos ou anti-religiosos, científicos ou anticientíficos, está no lugar errado, e está trocando o que casualmente vem à sua mente numa tarde qualquer com o que tem sido dado como tarefa de pensar no Ocidente nestes dois mil e quinhentos anos, desde quando teve seu começo histórico. Na verdade, a estupidez em circulação não deve, para alguém que pensa, ser uma razão para renunciar a colocar o essencial na sua mirada pertinente. A simples tagarelice não pode ser estancada. Mas, pela mesma razão, a consideração do nível em que alguém, por demais indolente para pensar, se acha diz a possibilidade de colocar em risco o pensar essencial.

Nossas discussões sobre “o romano” têm sido interpretadas como possuidoras de uma tendência de hostilidade “ao cristão”. Deixemos para a teologia decidir se a meditação sobre a essência da verdade, que tentamos realizar aqui, não podería, tomada no seu contexto, ser mais frutuosa para a preservação da cristidade do que o desejo aberrante de construir novas provas “cientificamente” fundadas para a existência de Deus e para a “liberdade da vontade”, com “base” na física atômica moderna.

Primordialmente, a essência emergente do ser dispõe e determina o modo do resgate do desencoberto como a palavra. A essência da palavra dispõe e determina, primeiramente, a essência da humanidade de modo correspondente a ela e assim religa sua essência à história, isto é, ao seu começo essencial e à transformação da essência da verdade dos entes. Mas em nenhum lugar existe uma humanidade que forme para si mesma uma visão do ser e, então, com essa visão,

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providencie para si mesma como se o ser e essa visão fossem algo como chifre que se forma nos bois e com os quais ele então vegeta. Somente porque o ser e a verdade do ser são e estão essencialmente para além dos homens e de suas humanidades, pode, e então, deve o “ser” ou “não-ser” do homem “ter a ver” com o lugar onde o homem, enquanto histórico, é determinado para a preservação da verdade do ser. Um declínio não pode jamais ser evitado pelo fato de ele simplesmente ser segurado, como que freado e orientado para um progresso e para “tempos mais belos”. Todo progresso podería ser somente um desencaminhar, “para longe” do âmbito essencial do começo. Apenas em relação ao começo, o declínio se deixa pensar e experimentar. O declínio só pode ser superado se o começo é salvo, mas, então, ele já está superado. Mas o começo pode ser salvo somente se ele for e puder ser o começo que ele é. O começo é primordial apenas quando o pensar é primordial e quando o homem pensa em sua essência de modo primordial. Isso não se refere à tarefa impossível de repetir o primeiro começo no sentido de uma renovação do mundo grego e sua transformação para aqui e agora. Ao contrário, significa entrar, através do modo do pensar primordial, numa confrontação e diálogo com o começo, de tal modo a perceber a voz da tonância e determinação futuras. Essa voz pode ser somente experimentada lá onde há experiência. E experiência é, em essência, o sofrimento, no qual a alteridade essencial dos entes se revela em oposição ao costumeiro e usual. Mas a suprema forma de sofrimento é morrer a própria morte como um sacrifício para a preservação da verdade do ser. Essa oferta é a mais pura experiência da voz do ser. Mas o que fazer, se a humanidade alemã é esta humanidade histórica, que, como os gregos, é chamada a poetizar e a pensar, e se esta humanidade alemã necessita primeiramente perceber a voz do ser! Então não são necessários aqui os sacrifícios, sejam quais forem os fatores que os desencadeiem, uma vez que o sacrifício tem em si sua própria essência e não necessita de nenhuma outra meta ou utilidade! Então, o que seria, se a voz do começo anunciasse a si mesma em seu destino histórico?

Mas o que seria, se o começo tivesse caído no esquecimento? Não devemos então, também, antes de tudo, experimentar que o esquecimento não é uma simples negligência ou descuido do homem, e sim um evento que pertence à verdadeira essência do próprio ser, isto é, ao desencobrimento?

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0 que seria, se não somente o homem tivesse esquecido da essência do ser, mas se o próprio ser tivesse esquecido o homem e o tivesse abandonado no auto-esquecimento? Estamos falando de Xf|9q aqui somente para parecer eruditos?

Os gregos silenciam muito sobre a Xf|0r|. De tempos em tempos, no entanto, eles dizem uma palavra. Hesíodo a menciona numa unidade com Xipóç, com a ausência de comida, como uma das filhas da noite que encobre. Píndaro, por sua vez, fala dela e indica a direção que o nosso olhar necessita seguir, para poder intuir sua essência escondida.

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Posfácio do editor

0 presente volume 54, da edição completa [Gesamtausgabe], compreende o texto, até então não-publicado, da preleção de uma hora que Martin Heidegger deu no semestre de inverno de 1942/43 com o título Parmênides e Heráclito, na Universidade de Friburgo.

Tendo em vista a ocupação quase que exclusiva com Parmênides, modificamos o título da presente preleção. O volume aparece em décimo oitavo lugar na série da edição completa.

O editor teve à sua disposição manuscritos do autor com oitenta e quatro páginas numeradas de preleções e trinta e quatro páginas de recapitulações. Heidegger não havia preparado uma recapitulação de cada preleção. O próprio autor indicou as páginas onde as recapitulações deviam ser inseridas. Nesses casos, a escolha do lugar exato no interior das páginas foi realizada pelo editor.

Os manuscritos são em formato fólio e a escrita é de modo cruzado. As folhas, no seu lado direito, contêm numerosos acréscimos encadeados uns nos outros. Heidegger indicou seu ponto de contato com o texto em cada caso.

O “Acréscimo”, incluído ao final (p. 233-236), é o texto de uma recapitulação referente às páginas 115-118. Não foi apresentado nas prelações e foi descrito por Heidegger como um “mero projeto”.

O editor teve, pois, à sua disposição cópias datilografadas de todos os manuscritos mencionados acima. Eles foram checados duas vezes com os manuscritos. Algumas passagens nos manuscritos, ausentes nas transcrições, foram inseridas pelo próprio autor em seu próprio lugar.

Martin Heidegger havia revisto a cópia datilografada da preleção enquanto estava preparando suas preleções sobre o Logos de Heráclito (cf. edição completa, vol. 55; na presente edição, nota 19, p. 211). Ele complementou o texto transcrito em inúmeras ocasiões, com acréscimos feitos à mão, sendo alguns menores e outros maiores. Eles foram decifrados pelo editor e também foram considerados, sem exceção, na edição do presente texto.

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A divisão era parágrafos numerados, as subdivisões em letras e números, como todas as formulações de título provêm do editor. As últimas se atêm estreitamente ao texto da preleção de Martin Heidegger. Segundo seu desejo, um sumário extenso dos conteúdos deveria preceder a obra e isso, junto com as divisões do texto, deveria tornar a estrutura das preleções claramente visível ao leitor.

Em conexão com o presente volume, recorde-se ao leitor o ensaio de Heidegger intitulado “Moira (fragmento de Parmênides VIII, 34-41)”, que apareceu na obra Ensaios e conferências [Vortràge und Aufsàtze]2', publicados pela primeira vez em 1954 pela editora Gúnther Neske.

O editor gostaria de expressar seu sincero e cordial agradecimento pela assistência que recebeu nesta obra do Sr. Dr. H. Heidegger, do Sr. Dr. H. Tietjen e do Sr. Pastor W. Deyhle, que revisaram o texto escrito à máquina, e do Sr. Prof. F.-W. von Herrmann, que respondeu a questões que diziam respeito à decifração de muitas passagens. Do mesmo modo, agradecimentos são devidos ao do Sr. Prof. Dr. Francis B. Vawter, C. M. da De Paul University, pelo auxílio técnico.

De Paul University, Chicago, outubro 1981.

Manfred S. Frings

21. Nota da tradução: cf. Martin Heidegger, Ensaios e conferências. 4. ed., Bragança Paulista: Edusf; Petrópolis: Vozes, 2007, p. 205-226.

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Coleção Pensamento

Franciscano- E s c r ito s f ilo s ó f ic o - te o ló g ic o s : B r e v i ló q u io ; I t in e r á r io d a m e n te p a r a

D e u s ; R e d u ç ã o d a s c iê n c ia s à teo lo g ia ; C r is to , ú n ic o m estre d e to d o s,

Boaventura de Bagnoregio

- O b r a s p o lít ic a s : T r a ta d o c o n tr a B e n e d it o ( liv r o V I); P o d e u m

p r ín c ip e ; C o n s u lt a so b r e u m a q u e s tã o m a t r im o n ia l; S o b r e o p o d e r d o s

im p e r a d o r e s e d o s p a p a s , Guilherme de Ockham

- L ó g ic a d o s term o s, Guilherme de Ockham

- E s c r ito s a n tia v e r r o ís ta s ( 1 3 0 9 - 1 3 1 1 ) : D o n a s c im e n to d o M e n in o

Jesus; L iv r o d a la m e n ta ç ã o d a f i lo s o f ia , Raimundo Lúlio

- P r ó lo g o d a Ordinatio, João Duns Scotus

- O i t o q u estõ e s so b re o p o d e r d o p a p a , Guilherme de Ockham

- C r ô n ic a s d e v ia g e m : F r a n c is c a n o s n o E x tr e m o O r ie n t e a n te s d e

M a r c o P o lo ( 1 2 4 5 - 1 3 3 0 ) , João de Pian dei Carpine, Guilherme de Rubruc, João de Montecorvino e Odorico de Pordenone

- O b r a s esco lh id a s: C a r t a a C le m e n t e I V ; A c iê n c ia e x p e r im e n ta l; O s

seg red os d a a r t e e d a n a tu r e z a e so b r e a n u l id a d e d a m a g ia , Rogério Bacon

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O princípio é o que na história essencial vem por último. Naturalmente, para um pensar que conhece somente a forma do cálculo, a frase “o princípio é o último” permanece um contra- senso. Antes de tudo, porém, o princípio aparece, em seu início, oculto num modo peculiar. Por isso surge o fato surpreendente de que o princípio, facilmente, é tido como o incompleto, inacabado, grosseiro. É chamado, também, de “primitivo”. Assim surge, então, a opinião de que os pensadores antes de Platão e Aristóteles seriam ainda “pensadores primitivos”. Certamente nem todo pensador, no início do pensamento ocidental, já é também um pensador originário. O primeiro pensador originário chama-se Anaximandro. Os dois outros são Parmênides e Heráclito. No decorrer das épocas da história ocidental, o pensamento posterior afastou-se do seu início não apenas cronologicamente, mas, também, e antes de tudo, com respeito ao que é pensado. As gerações posteriores dos homens tomaram-se mais e mais estranhas ao pensar antigo. Por último, a distância tornou-se tão grande a ponto de surgir a dúvida se uma época posterior conseguiría simplesmente ainda re-pensar os pensamentos mais antigos.