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Tema III Política Fiscal e a Crise Econômica Internacional

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Tema IIIPolítica Fiscal e a Crise Econômica Internacional

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A Crise Econômica de 2008 e o Sistema Financeiro Nacional na

Perspectiva pós-Keynesiana

Política Fiscal e a Crise Econômica Internacional – 3º lugar

Eric Lisboa Codo Dias *

* Bacharel em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Assistente de Negócios Private do Banco do Brasil S.A.

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Resumo

Este trabalho visa a entender como se deu a crise de 2008 à luz da teoria keynesiana a fim de explicar a realidade contemporânea no Brasil. Para análise do cenário que se desenhou, esta abordagem conduzir-se-á à apreciação estritamente do nível lógico-teórico. Na primeira seção será introduzido o tema. Na seção 2, aprofundaremos a discussão da teoria pós-keynesiana acerca da teoria da firma bancária, preferência pela liquidez e sua abordagem no que tange ao comporta-mento dos bancos e seus efeitos sobre a oferta de crédito e a moeda. Na seção 3, abordaremos a hipótese de instabilidade financeira de Minsky e sua relação com a gênese da crise. Na seção 4, trataremos da crise com foco no Brasil e mostraremos sua relação com a política fiscal e a regulação. Por fim, na seção 5 concluiremos que a crise não deixou o Brasil “de joelhos” devido ao desenho e à regulação do Sistema Financeiro Nacional. Destarte, a crise em estudo levou o mundo tan-to a repensar o próprio papel do Estado na economia quanto à necessidade de re-regular os sistemas financeiros domésticos, reestruturar o sistema financeiro mundial e intervir na economia por meio de políticas econômicas, sobretudo as fiscais, sendo o Brasil a prova empírica de tais afirmações. Contudo, é mister ter em mente que a regulação deve preocupar-se em diminuir a instabilidade na eco-nomia sem aumentar os custos de transação de forma significativa.

Palavras-chave: crise econômica; Sistema Financeiro Nacional; regulação econômica.

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Sumário

1 Introdução, 5

2 dIscussão teórIca pós-keynesIana, 6

2.1 A teoria da firma bancária, 7

2.2 A preferência pela liquidez, 11

2.3 A oferta de crédito, 13

2.4 A oferta de moeda, 15

3 MInsky e a orIgeM da crIse, 18

3.1 A instabilidade financeira de Minsky, 18

3.2 A gênese da crise, 21

4 a crIse no BrasIl, 24

4.1 Crise e política fiscal, 28

4.2 Crise e regulação, 30

5 conclusão, 35

referêncIas, 37

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1 Introdução

Inovação. Para Schumpeter, esse termo – cerne da economia capitalista – tem um significado preciso: é a substituição de formas antigas por formas novas de produzir e consumir. Produtos novos, processos novos, modelos de negócios novos. O mundo, no qual as ideias da “destruição criativa” e da “mão invisível” predominavam, assistiu à pujança da economia mundial até meados de 2008.

A partir desse fato, as circunstâncias surpreenderam até mesmo os mais pes-simistas. Uma crise no centro econômico capitalista começou a se tornar aparen-te, cujo desenrolar colocou em xeque a arquitetura financeira internacional. Essa arquitetura era decorrente de inovações financeiras com o objetivo de alavancar as operações dos bancos (CROTTY, 2009) desde os anos 1980 – no contexto da revolução conservadora liderada por Ronald Reagan e Margareth Thatcher – sem ter de reservar os coeficientes de capital requeridos pelos Acordos de Basileia. Isso só foi possível porque os outros agentes dispuseram-se a assumir a contra-parte dessas operações, ou seja, os riscos contra um retorno que, à época, parecia elevado. Esses agentes foram as instituições financeiras que formam o chamado shadow banking system.1

Aliado a essas inovações, nas últimas décadas o conjunto de medidas de supervisão e regulação dos sistemas financeiros, na maioria dos países, baseou-se nas ideias de autorregulação. Segundo essas ideias, a “mão invisível” do merca-do, por meio das práticas modernas de governança corporativa e de gestão, seria a maneira mais eficiente de evitar episódios que provocassem riscos sistêmicos. Esse princípio norteou, em grande parte, a revisão dos Acordos de Basileia, in-corporando, na segunda versão (Basileia II), as notas das agências de ratings e os modelos internos de precificação de ativos e de gestão de riscos como critérios alternativos para a classificação dos riscos de crédito e incentivos à utilização de mecanismos de mitigação desses riscos, como os derivativos de crédito (MEN-DONÇA, 2008).

Assim, a autorregulação aliada às inovações foram fatores que contribuíram para que a crise de 2008 se apresentasse. Quase dois anos após o início da crise in-ternacional, podemos afirmar que o cenário esperado no Brasil não se consolidou, pois a intensidade da crise em nossa economia mostrou-se menor que o esperado.

1 Termo que inclui o leque de instituições envolvidas em empréstimos alavancados que não tinham, até a eclosão da crise, acesso aos seguros de depósitos e/ou às operações de redesconto dos bancos centrais. Incluem-se os grandes bancos de investimentos independentes, os hedge funds, os fundos de pensão e as seguradoras. Nos EUA, ainda se somam os bancos regionais especializados em crédito hipotecário e as agências patrocinadas pelo governo. Essa definição contém um elemento implícito que é importante sublinhar: as instituições financeiras do shadow banking system não estão sujeitas às normas dos Acordos de Basileia, as quais, no caso norte-americano, só se aplicam aos grandes bancos universais com operações internacionais.

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Ainda que incerto o desdobramento da crise mundial, com possibilidade de novas quebras ou uma piora generalizada da economia internacional, é de extre-ma importância entender como o Sistema Financeiro Nacional reagiu à crise e em que medida suas particularidades contribuíram para que os efeitos negativos externos não se firmassem como em outros países.

Para a análise do cenário que se desenhou, esta abordagem conduzir-se-á à apreciação estritamente ao nível lógico-teórico da proposição pós-keynesiana, pois esta se mostra a mais adequada, visto que pretende compreender a dinâmica de economias monetárias contemporâneas em que falhas sistêmicas intrínsecas ao funcionamento destas levam frequentemente a situações de crise, além de seu exame acerca do comportamento dos agentes financeiros e seus efeitos sobre a oferta de crédito e, em última instância, sobre a demanda efetiva. Enfim, bus-caremos entender como o Sistema Financeiro Nacional reagiu à crise e em que medida suas particularidades contribuíram para que os efeitos negativos externos não se firmassem como em outros países.

Desse modo, investigaremos – considerando o arcabouço pós-keynesiano – as teorias que podem esclarecer-nos acerca da crise em questão, quais sejam, a da firma bancária, a da preferência pela liquidez, a da oferta de crédito e a da oferta de moeda. Em seguida, analisaremos as suposições de instabilidade financeira propostas, nomeadamente, por Minsky e a gênese da crise. Por fim, abarcaremos todas essas questões num estudo acerca da relação entre a crise no Brasil e a po-lítica fiscal e a regulação.

2 Discussão teórica pós-keynesiana

Considerando a solidez dos alicerces econômicos – reservas cambiais ele-vadas, bons indicadores de vulnerabilidade externa, sustentabilidade da dívida pública, etc. – do nosso país e considerando ainda que o setor bancário brasileiro praticamente não opera com fundos de investimento que têm em sua carteira títu-los externos de alguma forma relacionados ao mercado subprime norte-america-no, os efeitos da crise financeira mundial sobre a economia brasileira não deixam de ser, a princípio, surpreendentes. Não que os efeitos da crise não se fariam, em algum momento, sentir, em função do impacto da própria recessão econômica mundial, mas talvez o que surpreenda são seus efeitos diretos e mais imediatos.

A análise sobre o papel da autoridade monetária e dos próprios bancos na deter-minação das condições de crédito e liquidez na economia é fundamental para enten-der como os efeitos da crise de 2008 atingiram o Brasil e como esses agentes reagiram perante as abruptas mudanças de cenário econômico e expectativas. Distintos graus

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de resposta endógena da oferta de crédito e moeda às pressões da demanda modifica-ram as relações entre a política monetária e o nível de atividade econômica.

Para entender por que esses efeitos se fizeram sentir, iremos nos aprofundar na discussão teórica pós-keynesiana, analisando as ideias de vários autores. Con-siderando o extenso leque de ideias nessa linha teórica, apreciaremos, sobretudo, aquelas que mais se relacionam com a crise em estudo. Partiremos de uma análise mais específica, mostrando a Teoria da Firma Bancária, com base, especialmente, nos trabalhos de J. M. Keynes, H. Minsky, Luiz Fernando Rodrigues de Paula e Fernando José Cardim de Carvalho. Tomando por base essas ideias, abordare-mos a questão da preferência pela liquidez e da oferta de crédito. Em seguida, iremos para uma análise mais “macro”, buscando entender a oferta de moeda. Desse modo, compreenderemos o papel que a preferência pela liquidez, a admi-nistração da firma bancária e a moeda exercem no arcabouço teórico keynesiano – desvendando as implicações do conceito de moeda na Teoria Geral de Keynes e a transmissão da política monetária – a fim de ajudar a explicar o fenômeno de instabilidade na economia monetária brasileira em 2008.

2.1 A teoria da firma bancária

Segundo a proposição de Keynes, bancos são estabelecimentos capazes de criar crédito independentemente de depósitos anteriores, uma vez que a flexibili-dade de suas operações permite ceder recursos sem ter disponibilidade em caixa: a moeda é criada pelos bancos na forma de compromissos que emitem contra si próprios. No Treatise on money foram ponderadas as relações que se formam entre a atuação dos bancos, considerados individualmente, e o sistema bancário como um todo, e criticou-se a visão de que os bancos, sendo receptores passivos dos depósitos, não podem emprestar mais do que seus depositantes lhes cederam anteriormente. Conforme Keynes (1971), um banco em mercado ativo cria, por um lado, depósitos por valores recebidos ou contra promessas e, de outro, anula depósitos devido a direitos praticados contra ele.

Avaliando o banco individualmente, uma parte do total de seus depósitos pode ser compreendida como decorrência do processo ativo de criação de depósitos por esse banco, uma vez que seus clientes poderiam realizar pagamentos, com base em depósitos derivativos criados a seu favor para outros clientes desse banco; e outra parte seria fruto do processo de criação de ativo de depósitos de outros bancos que, para esse primeiro banco, seriam compreendidos como depósitos primários.

Por sua vez, segundo a percepção clássica de intermediação financeira, os bancos, ao criarem moeda, estão apenas intermediando a transferência de recur-sos das unidades superavitárias para unidades deficitárias (GURLEY, 1955). São,

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assim, meros mediadores na transferência de recursos na economia, ou seja, sua conduta pouco afeta a determinação das condições de financiamento da econo-mia. Os bancos comerciais operam, portanto, somente como uma correia de trans-missão que intermedia a relação entre as autoridades monetárias e os agentes não financeiros. Foi James Tobin que concebeu os determinantes da atuação dos ban-cos comerciais com base em fatores relacionados às conveniências lucrativas des-sas entidades. Criticando o que titulou de visão velha do multiplicador bancário, conforme o qual os bancos são criadores quase técnicos de moeda e a criação de moeda bancária resulta de um ajustamento passivo a uma dada razão de reserva, Tobin expôs que, na “visão nova” dos bancos comerciais, o volume de reservas não é um constrangimento para o tamanho do banco, na medida em que o uso que eles fazem das reservas disponíveis pelo sistema bancário é uma variável que depende das oportunidades de empréstimos e das taxas de juros.

Desse modo, o tamanho do balanço dos bancos – o volume de seus ativos e passivos – seria apurado pelo seu comportamento otimizador, no qual, num equi-líbrio competitivo, a taxa de juros requerida aos tomadores equilibra na margem a taxa de juros paga aos seus credores: “Sem as exigências de reserva, a ampliação do crédito e dos depósitos pelo sistema bancário precisaria ser limitada pela dis-ponibilidade de ativos a rendimentos suficientes para compensar os bancos dos custos de atrair e reter os depósitos” (TOBIN, 1987). Destarte, a percepção de Keynes objeta-se à visão convencional, segundo a qual os bancos são instituições passivas, constituindo-se em meros mediadores de recursos entre agentes supera-vitários e deficitários.

Nessa visão convencional, os estabelecimentos bancários não criam novos depósitos, apenas os recebem conforme as preferências dos depositantes e, con-sequentemente, não podem ofertar crédito além da quantidade de depósitos feitos pelos depositantes, pois, do contrário, levarão a situações insustentáveis de dese-quilíbrio. No entanto, para Keynes (1971, p. 22-23):

Por toda extensão em que os clientes tomadores de empréstimos liquidam seus de-pósitos para clientes de outros bancos, estes outros bancos encontram eles próprios fortalecidos pelo crescimento de seus depósitos criados passivamente pela mesma magnitude que o primeiro banco se enfraqueceu; e, da mesma forma, nosso próprio banco encontra-se fortalecido quando quer que outros bancos estejam ativamen-te criando depósitos. Uma parte destes depósitos criados passivamente, mesmo quando eles são frutos de seus próprios depósitos criados ativamente, é, contudo, o resultado de depósitos criados por outros bancos.

Assim, para Keynes, a criação de depósitos pelos bancos envolve duas di-mensões: uma passiva, na qual os depósitos são criados quando as pessoas depo-sitam seus recursos no banco e este concebe um depósito correspondente ao valor

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embolsado, criando os denominados “depósitos primários”, cujo volume não de-pende do comportamento do banco; e outra dimensão ativa, quando o banco cria “depósitos derivativos” com base na dilatação dos seus ativos, como investimen-to ou adiantamento, e torna disponíveis os recursos para aqueles que pagam ou adiantam recursos na forma de depósitos à vista.

De forma adversa, o banco precisa cancelar depósitos assim que são exer-cidos direitos contra ele, quer por saque direto dos seus clientes, quer atendendo a reivindicações de outras instituições bancárias. Portanto, a criação de depósitos resulta da maior ou menor agressividade da estratégia dos bancos: estes, ao utili-zarem os depósitos como meio de pagamento, são capazes de emprestar recursos que não possuem. Nesse processo de criação de moeda bancária, existem frontei-ras para a dilatação do banco.

Usualmente, um banco busca criar depósitos derivativos no mesmo ritmo do sistema bancário, sendo sua conduta governada pela média do comportamento de todos os bancos. Isso porque, a não ser que a participação no total de depó-sitos de um banco no volume total de depósitos do sistema bancário mude, ele não pode amparar uma ampliação de seus ativos e, por conseguinte, de depósitos derivativos, bem à frente dos outros bancos.

Se um banco procurar ampliar seus ativos em cadência superior à média do sistema, tal processo pode ocasionar um fortalecimento dos outros bancos, pois os depósitos derivativos criados por ele, que tenham suas reivindicações exerci-das, irão se transformar em depósitos primários de outras instituições bancárias, acarretando um fortalecimento dos balanços dos bancos concorrentes, que teriam sua disponibilidade de recursos aumentada graças ao comportamento enérgico do primeiro banco. Desse modo, num segundo momento, a criação acelerada de de-pósitos derivativos, com base na dilatação de ativos, pode constituir uma redução em suas reservas. Conforme Keynes (1971, p. 25):

Não pode existir nenhuma dúvida de que, usando a linguagem mais apropriada, todos os depósitos são “criados” pelos bancos ao retê-los. Certamente este não é o caso onde os bancos estão limitados àquele tipo de depósito, que, para ser criado, é necessário que os depositantes, movidos por sua própria iniciativa, tragam dinhei-ro ou cheques. Mas é igualmente claro que a taxa que um banco individual cria, de sua própria iniciativa, é sujeita a certas regras e limitações, e deve acompanhar o ritmo dos outros bancos, não podendo o banco em questão aumentar seus depósi-tos relativamente ao total de depósitos além da proporção de sua cota nos negócios bancários do país. Finalmente, o ritmo comum a todos os bancos membros é go-vernado pelo volume agregado de suas reservas.

Keynes expõe ainda que as taxas de reservas bancárias, uma vez fixadas por lei ou por força do hábito, tendem a ser conservadas pelos bancos numa mag-

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nitude estável ao longo do tempo; a conservação de uma taxa mais alta poderia denotar abrir mão de possibilidades de lucro, enquanto uma taxa menor poderia implicar dificuldades de liquidez.

O banco, por um lado, busca pôr suas reservas que não rendem juros ao mínimo e elevar os empréstimos o máximo possível, maximizando seus lucros; de outro, ele é infligido a sustentar tantas reservas líquidas quanto possível, mi-nimizando a incerteza da iliquidez. Assim, os bancos, como qualquer outra cor-poração, têm preferência pela liquidez baseados nas expectativas acerca de um futuro incerto, moldando seu portfólio de acordo com a lucratividade e sua escala de preferência pela liquidez. De tal escolha depende, em bom grau, a criação de crédito e depósitos bancários e, portanto, a oferta de moeda na economia.

Além disso, os bancos são notados como agentes ativos que administram ambos os lados de seus balanços, o que denota que eles não tomam seu passi-vo como dado, pois procuram influenciar as preferências dos clientes por meio do gerenciamento das obrigações e do estabelecimento de inovações financeiras. Como uma empresa que tem expectativas e motivações próprias, sua conduta tem influência decisiva sobre as condições de financiamento da economia e, logo, so-bre o estado de consumo dos agentes, afetando, desse modo, as variáveis reais da economia, como produto e emprego (PAULA, 1997).

Do ponto de vista de autores keynesianos, como Hyman Minsky, Paul Da-vidson, Victoria Chick, Sheila Dow e Fernando Carvalho, bancos são entidades ativas que possuem expectativas e motivações próprias, cuja conduta, baseada na administração ativa de seu balanço, tem influência determinante nas condições de financiamento da economia. Tal aspecto, além de enfatizar a função basilar que os bancos exercem no estabelecimento das condições de financiamento da economia e na determinação do nível de atividade econômica, precisa ser ajustada com a visão de Keynes acerca da tomada de decisões sob condições de incerteza não probabilística e sua teoria de preferência pela liquidez.

Enfim, para Keynes e pós-keynesianos a dinâmica da firma bancária afeta de forma determinante as condições e o volume de financiamento da economia e, por conseguinte, as decisões de gasto dos agentes, assim como os resultados da política monetária.

A lucidez acerca do papel da autoridade monetária e dos próprios bancos na determinação das condições de crédito e liquidez na economia é essencial para com-preender como os efeitos da crise de 2008 atingiram o Brasil e como esses agentes reagiram perante as abruptas mudanças de cenário econômico e expectativas.

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2.2 A preferência pela liquidez

Em sua Teoria Geral, Keynes explanou sua proposição da preferência pela liquidez, na qual a taxa de juros é a gratificação por se abrir mão da liquidez, uma medida do anseio daqueles que possuem recursos, de abrir mão do seu controle sobre eles, num modelo no qual havia apenas duas classes de ativos: moeda e títulos. A moeda é uma forma de riqueza, e a taxa de juros é o preço que norteia a escolha entre forma líquida e ilíquida de riqueza.

Nesse arquétipo, os juros pagos aos títulos são uma compensação pelo seu menor grau de liquidez quando comparado à moeda, a qual possui o maior prêmio de liquidez entre os ativos. Em uma economia monetária, os agentes retêm moeda, seja porque planejam gastos para financiar – motivo transação –, seja porque estão especulando acerca do comportamento futuro da taxa de juros – motivo especula-ção –, ou, ainda, por precaução contra um futuro incerto, uma vez que a moeda é um ativo seguro com o qual se pode conduzir a riqueza no tempo – motivo precaução. Desse modo, tanto a demanda por precaução por moeda quanto a especulativa são determinadas pela incerteza quanto ao futuro (KEYNES, 1973, p. 167).

Ademais, Keynes generalizou sua teoria da preferência pela liquidez para uma teoria de precificação de ativos, não mais delimitada pelos conceitos de ati-vos líquidos e ilíquidos, mas baseada no princípio geral de que os distintos graus de liquidez precisam ser compensados pelos retornos pecuniários que determi-nam a taxa de retorno conseguida pela detenção dos diferentes ativos.

Destarte, cada categoria de ativos possui sua própria taxa de juros, deter-minada em termos de preços correntes de mercado. Assim, a preferência pela liquidez é pensada em termos do trade off entre retornos monetários e o prêmio pela liquidez da moeda, acarretando, desse modo, substituições na estrutura de demanda por ativos, que se distinguem conforme combinações de retornos mone-tários e prêmio de liquidez que eles apresentam, sendo a liquidez apreciada quan-do a incerteza se eleva. Assim, pode-se determinar a preferência pela liquidez de uma instituição bancária conforme os diferentes níveis de liquidez associados aos diversos ativos ao alcance dela.

Nessa abordagem, Keynes (1971, vol. II, p. 67) já havia apontado que o problema dos bancos, considerando o gerenciamento bancário no lado do ativo, relaciona-se ao arranjo de seu portfólio de aplicações:

O que bancos estão ordinariamente decidindo não é quanto eles emprestarão no agregado – isto é determinado por eles pelo estado de suas reservas – mas quais formas eles emprestarão – em que proporção eles dividirão seus recursos entre os diferentes tipos de investimentos que estão abertos para eles.

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Keynes decompõe as aplicações, de forma geral, em três categorias: letras de câmbio e call loans – empréstimos de curtíssimo prazo no mercado monetário; investimentos – aplicações em títulos de terceiros, público ou privado; adianta-mentos para clientes – empréstimos em geral.

A respeito da rentabilidade dos ativos, os adiantamentos são mais rentáveis que os investimentos, e estes, por sua vez, mais lucrativos que os títulos e call loans, apesar de essa ordem não ser inexorável. No que diz respeito à liquidez, as letras de câmbio e os call loans são mais líquidos que os investimentos, pois são renegociáveis no curto prazo sem perdas expressivas, enquanto os investimentos são em geral mais líquidos que os adiantamentos. Esses adiantamentos abrangem diversos tipos de empréstimos diretos e são, comumente, as aplicações mais ren-táveis, todavia são mais arriscadas – quanto ao retorno do capital – e ilíquidas, pois são de mais longo termo e não comercializáveis.

Essa apreciação, quando conjugada com a teoria de decisões dos agentes sob condições de incerteza, aprofundada e desenvolvida por Keynes (1973; 1987) em trabalhos posteriores ao Treatise on money, permite dar foco às estratégias dos bancos – com relação ao seu portfólio de aplicações – considerando sua pre-ferência pela liquidez. Instituições bancárias, assim como qualquer outro agente cuja atividade seja especulativa e demande algum grau de proteção e cuidado, têm preferência pela liquidez e moldam seu portfólio procurando harmonizar lucrati-vidade com sua escala de preferência pela liquidez, a qual expressa a precaução de uma empresa cuja atividade tenha resultados incertos.

Desse modo, é da escolha de que ativos adquirir e que obrigações emitir, balizada pela combinação entre liquidez e rentabilidade, que resulta a ampliação ou a retração da oferta de moeda, pois a moeda é criada quando as instituições bancárias adquirem ativos financiados pela emissão de uma obrigação própria desses estabelecimentos: os depósitos à vista. Sob condições de incerteza, as perspectivas dos bancos têm um papel nevrálgico na determinação do arranjo de seus portfólios de aplicações, isto é, seu ativo.

Os estabelecimentos bancários demandam aplicações mais líquidas, não obstante menos lucrativas, devido à incerteza sobre as condições futuras, o que pode provocar um avanço em sua preferência pela liquidez, acarretando, por-tanto, um rearranjo em sua estrutura de ativos. Ativos líquidos e moeda, cujo retorno vem na forma de um prêmio de liquidez mais do que uma compensação pecuniária, concebem um dispositivo de proteção ao incerto, assim como de ar-refecimento dos riscos intrínsecos à atividade bancária. Aos bancos, a detenção de ativos líquidos admite conservar opções abertas, até mesmo para especular no futuro. Dessa forma, as proporções em que as distintas aplicações são decom-postas sofrem amplas flutuações, demonstrando as esperanças dos bancos quanto

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à rentabilidade e à liquidez de seus ativos e quanto ao estado geral do mercado. Caso suas expectativas sejam boas, as instituições bancárias privilegiarão renta-bilidade à liquidez, buscando aumentar prazos e submetendo-se a maiores riscos com relação a seus ativos, abrandando a relação entre ativos líquidos e ilíquidos em suas operações, resultando no aumento da participação dos adiantamentos e de ativos de maior risco no arranjo de sua estrutura ativa, como os empréstimos mais longos (PAULA, 1998).

Contudo, caso suas expectativas sejam pessimistas e a incerteza seja alta, uma vez que o grau de confiança nas suas expectativas quanto ao futuro enfra-quece, eles demonstram sua maior preferência pela liquidez e apontam suas apli-cações para ativos menos lucrativos – embora mais líquidos –, fazendo baixar a oferta de crédito ao mercado. Ou seja, buscarão abreviar o prazo médio de seus ativos e a seguir uma posição mais líquida, por meio da manutenção de reservas excedentes ou aquisição de ativos de grande liquidez, como títulos do governo, atenuando, em contrapartida, a participação de adiantamentos no total do ativo e focando as aplicações em ativos de menor risco e mais líquidos. Portanto, as es-tratégias bancárias buscam explorar o trade off liquidez e rentabilidade.

Habitualmente, de um lado, um estabelecimento bancário, ao focar liquidez em detrimento de maior rentabilidade, necessitará privilegiar ativos mais líqui-dos; por outro lado, ao procurar maior rentabilidade, precisará focar em ativos de mais alto risco ou de mais longo termo.

Assim, instituições bancárias com preferência pela liquidez poderão não ade-quar passivamente a demanda por crédito, pois procurarão confrontar os retornos esperados com os prêmios de liquidez de todos os ativos que podem ser adquiridos. A suscetibilidade dos bancos em relação às demandas de crédito das pessoas depen-de, em grande parte, das preferências que guiam suas decisões de portfólio.

2.3 A oferta de crédito

Para Minsky (1992a), os empréstimos bancários representam a troca de mo-eda hoje por acordos que representem moeda amanhã e, assim, a concessão de crédito depende, em boa parte, das expectativas do banco quanto à viabilidade dos empréstimos, isto é, da competência de o tomador embolsar receitas vindou-ras para cumprir seus contratos financeiros:

Cada transação financeira envolve uma troca de dinheiro-hoje por moeda mais tarde. As partes que transacionam têm algumas expectativas quanto ao uso que o tomador de moeda-hoje fará com os fundos e de como esse tomador reunirá fundos para cumprir a sua parte do negócio na forma de dinheiro-amanhã. Nesse negócio,

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o uso de fundos pelo tomador de empréstimos é conhecido com relativa segurança; as receitas futuras em dinheiro, que capacitarão o tomador a cumprir as parcelas de moeda-amanhã do contrato, estão condicionadas pela performance da econo-mia durante um período mais longo ou mais curto. Na base de todos os contratos financeiros está uma troca da certeza por incerteza. O possuidor atual de moeda abre mão de um comando certo sobre a renda atual por um fluxo incerto de receita futura em moeda (MINSKY, 1992a, p.13).

A volatilidade dessas ponderações feitas pelas instituições bancárias, além de sua preferência pela liquidez, acarreta flutuações na oferta de crédito e, por conseguinte, no nível de investimento, produto e emprego na economia, como ficou bem claro na crise de 2008.

Segundo Minsky (1986): “Este ativismo do banqueiro afeta não apenas o volume e distribuição do financiamento, mas também o comportamento cíclico dos preços, da renda e do emprego”. A partir de Minsky, pode-se estabelecer as seguintes posturas financeiras para os bancos em suas estratégias relacionadas às operações de crédito. Quando prevalece um maior grau de conservadorismo em termos da margem de segurança na administração do ativo bancário, as instituições bancárias focam o fluxo de caixa esperado como principal critério na concessão de fundos, sendo os empréstimos estruturados de tal forma que os fluxos de caixa antecipados preencham os compromissos financeiros, aparentando uma postura de financiamento hedge2 tanto para o tomador quanto para o emprestador.

Concomitantemente, as instituições bancárias buscam elevar a proporção de formas líquidas de aplicações no total do ativo, visando a atenuar a ocorrência do risco de crédito. Não obstante, caso as expectativas se tornem menos conser-vadoras, os bancos afrouxam os requisitos para concessão de crédito, os quais passam a ser baseados, sobretudo, no valor dos ativos dados como garantia. Con-sequentemente, amplia a participação de formas menos líquidas de ativos e com retornos mais longos, dando lugar à rentabilidade como principal critério a ser atendido na composição do balanço bancário, passando os bancos a adotar uma postura de financiamento especulativo.

2 Podemos diferir três condutas financeiras para os agentes na economia por meio da relação entre os compromissos de pagamento contratuais provenientes de suas obrigações e seus fluxos primários de dinheiro ao longo do tempo. Primeiramente, temos o comportamento hedge, o qual se refere a uma postura financeira cautelosa do agente, que significa que o fluxo de caixa esperado excede os pagamentos de dívida a cada período, ou seja, o agente manterá um excesso de receitas sobre o pagamento de compromissos contratuais a cada período, pois os lucros superam as despesas com juros e os pagamentos de amortizações. Temos, também, a postura especulativa, na qual uma unidade se torna especulativa quando, por alguns períodos, seus compromissos financeiros de curto prazo são maiores que as receitas esperadas como contrapartida desta dívida, o que a leva a recorrer ao refinanciamento para superar os momentos de déficit sem que haja um aumento da dívida, esperando-se que nos períodos seguintes a unidade tenha um excesso de receita que compense as situações iniciais de déficits. Por fim, temos a postura Ponzi, na qual os recursos líquidos não são suficientes nem mesmo para o pagamento dos juros devidos, tornando necessário tomar recursos adicionais emprestados para que a unidade possa cumprir seus compromissos financeiros, aumentando o valor de sua dívida (MINSKY, 1986).

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Nesse caso, o refinanciamento de posições abrange ativos que proporcionam retornos em longo prazo por meio de dívidas de curto prazo, isto é, uma unidade es-peculativa financia suas posições de longo prazo com recursos de curto prazo. A via-bilidade de um arcabouço financeiro especulativo depende tanto dos fluxos de lucro – no caso das instituições bancárias dos rendimentos líquidos sobre seus ativos – para pagar os juros sobre dívidas quanto do funcionamento do mercado financeiro no qual tais dívidas podem ser transacionadas. Comumente, um período de prosperidade da economia leva a uma redução ainda maior na preferência pela liquidez das institui-ções bancárias e uma anuência de práticas financeiras mais agressivas.

Assim, os bancos afrouxam ainda mais seus requisitos na concessão de fun-dos, permitindo uma relação de fluxo de caixa especulativo e concedendo em-préstimos baseados quase unicamente no valor dos colaterais, se inserido em um financiamento Ponzi – uma ocorrência extrema de especulação. Desse modo, o banco atenua as exigências pelas quais concede fundos concomitantemente com o crescimento da participação de adiantamentos no total do ativo. Os empréstimos Ponzi podem, além disso, ser impostos a um banco, pois a renda obtida por ele pode cair abaixo de suas expectativas ou as taxas de juros elevam-se na rolagem especulativa do financiamento além dos níveis antecipados tanto pelo tomador quanto pelo emprestador. A busca das instituições bancárias por maiores lucros ou uma modificação nas condições do mercado financeiro induzem ao financiamento especulativo ou mesmo Ponzi.

Destarte, a fragilidade ou a pujança global da estrutura financeira, da qual a estabilidade cíclica da economia depende, surge da gênese dos empréstimos feitos pelos bancos e também das próprias condições do mercado. Um foco no fluxo de caixa pelos banqueiros leva-os a sustentar uma estrutura financeira vigorosa; uma orientação dos banqueiros nos valores dos colaterais empenhados e nos valores es-perados dos ativos induz à emergência de uma estrutura financeira mais fragilizada.

Minsky (1986) demonstra, portanto, a natureza contraditória da atividade bancária: ao mesmo tempo em que é um componente essencial no financiamento da atividade de investimento e uma condição imprescindível para a operação sa-tisfatória de uma economia capitalista, essa conduta pode induzir ou ampliar uma instabilidade financeira, acarretando um mau funcionamento da economia, espe-cialmente em momentos de boom econômico, nos quais o nível de endividamento dos agentes tende a aumentar significativamente.

2.4 A oferta de moeda

Ampliando a acepção de oferta de crédito, nesta subseção iremos abordar a oferta de moeda, cujo comportamento influencia o ritmo de investimentos e de

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atividades econômicas. No modelo apresentado na Teoria Geral de Keynes, o encontro das condições monetárias e da eficiência marginal determina o nível de investimentos – que resulta ser a principal variável para explicar as variações no nível de renda e produção. Cabe aqui investigar em maior detalhe o comporta-mento do banco central e do sistema bancário em relação à oferta de moeda.

A contenda sobre a oferta de moeda, tanto sob a ótica ortodoxa quanto sob a heterodoxa, é extensa. Contudo, não nos iremos ater a essa discussão. Dada a abordagem teórica deste trabalho, vamos explanar a heterodoxia expondo a visão “estruturalista”, pois sua análise mais detalhada dos mecanismos de oferta de cré-dito e moeda creditícia – que concebe a influência autônoma do sistema bancário, além da atuação do banco central – acomoda um melhor entendimento do com-portamento das condições monetárias e abre maiores possibilidades à elaboração de políticas monetárias e à construção de parâmetros institucionais capazes de contribuir para a condução esclarecida da política econômica (FIOCCA, 2000).

“Estruturalistas” aludem que o banco central pode restringir a expansão do crédito ao impor limites quantitativos às demandas por liquidez e impelir a elevação da taxa de juros quando a demanda por crédito excede os limites definidos pela au-toridade monetária. Nesse caso, a oferta de moeda teria inclinação positiva no plano moeda-juros. Ademais, eles dão maior destaque ao papel dos bancos como elemen-tos interventores no processo de criação de moeda, sopesando como suas decisões de portfólio afetam a disponibilidade final de crédito, assim como afirma Minsky (1986). Essa abordagem enfatiza o papel do sistema financeiro na determinação das condições monetárias vigentes, diversamente da abordagem “horizontalista”, a qual confere o comportamento das condições de crédito essencialmente à impossibilida-de de que o banco central venha a indeferir reservas aos bancos.

Por sua vez, a abordagem estruturalista consente relacionar os períodos de taxas de juros altivas à aceleração do desenvolvimento de inovações financeiras. Estas seriam instigadas com o intuito de aumentar a alavancagem do sistema fi-nanceiro em relação à base monetária. Taxas de juros elevadas reforçam o esforço de economizar na manutenção de recursos que não rendam juros ou que paguem taxas menores.

Portanto, a ampliação da oferta de crédito não é um fenômeno rotineiro e sem tensões. A elevação do crédito não ocorre, nos períodos de maior demanda, pela atuação do Banco Central, mas apesar dela. Tratamento teórico no qual o sistema bancário exerce influência própria sobre as condições de crédito para os processos de expansão – que não dependa apenas da postura do banco central – tem respaldo no Treatise on money, no qual Keynes (1971) discute o papel do sistema bancário na viabilização da expansão dos investimentos por meio das transferências de moeda de certas esferas de circulação para outras. Conceitual-

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mente, como os bancos também estão sujeitos à incerteza, é necessário supor que tais instituições tenham uma escala de preferência pela liquidez.

Assim como os outros agentes econômicos, os bancos têm compromissos contratuais expressos em moeda e detêm ativos de liquidez variada. Como passivos e ativos não são impecavelmente casados, o aumento dos balanços, com a elevação dos passivos em relação ao capital próprio, acresce a exposição ao risco. A elevação das operações diminui a posição de liquidez bancária, uma vez que os intermedi-ários financeiros habitualmente ofertam empréstimos de longo prazo baseados em passivos de mais curto prazo. Como ressalta Carvalho (1992, p. 150):

Quando os bancos criam financiamentos, eles aceitam ficar temporariamente ilí-quidos. Bancos emitem, tipicamente, passivos de curto prazo, tais como depósitos à vista ou certificados de depósitos a prazo. [...] Quando é feito um empréstimo a uma firma investidora, o banco está assumindo uma posição especulativa, pela absorção de um ativo, um empréstimo, que, em última instância, está apoiado em um ativo ilíquido, o bem de um investimento comprado pela firma.

As instituições bancárias habitam o mesmo ambiente de expectativas que os gestores de ativos de capital reais e as famílias que possuem ações e outros ativos financeiros. A alavancagem de lucros retidos, isto é, o financiamento com débitos, no financiamento do investimento depende não só das perspectivas das firmas que estão investindo, mas também da disposição dos bancos para acompanhar tal expansão. Destarte, a abordagem estruturalista da endogeneidade da oferta de moeda reconhece a competência do sistema bancário para acompanhar aumentos da demanda de crédito para, assim, criar moeda bancária.

Contudo, coerente com o conceito de preferência pela liquidez, e diversamen-te do que sustenta a visão “horizontalista”, a visão estruturalista não supõe que a ca-pacidade e o anseio de acomodação pelo sistema bancário sejam infinitos nem que atendam inteiramente a qualquer grau de demanda por empréstimos. A evolução do mercado interbancário demonstra o ganho de eficiência no emprego das reservas. Enquanto cada instituição bancária administra seu grau de reservas independente-mente das outras, as sobras de reservas de alguns bancos ficam ociosas, enquanto a carência de reservas de outros é suprida diretamente no redesconto.

Assim, o sistema bancário como um todo manterá, em média, uma quan-tidade de reservas maior do que a soma das quantidades mínimas de reserva de cada banco. Conforme se desenvolve o mercado interbancário, as reservas ocio-sas de alguns bancos servirão para atender às necessidades de outros sem que estes últimos necessitem apelar para o redesconto. No final, a quantidade total de reservas mantidas pelo sistema aproximar-se-á da soma das reservas mínimas de cada instituição. O sistema financeiro pode, assim, elevar a proporção depósitos/reservas. Enfim, as condições de oferta de moeda, compreendidas como decorrên-

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cia da política do banco central e das políticas bancárias, determinadas pela con-duta dos bancos em relação às condições colocadas pela autoridade monetária, mas também por sua resposta às pressões relacionadas ao nível de renda, geradas no setor privado convergem para determinar o futuro ritmo de expansão da renda agregada (FIOCCA, 2000).

A competência das condições de oferta de moeda para ratificar ou amortecer os movimentos de ampliação ou retração tal como colocados pelo setor privado é, desse modo, essencial para definir a direção macroeconômica. No que concerne às conjecturas de política monetária, a incerteza da taxa de juros de curto prazo e seu impacto apenas indireto e irregular sobre as variações da quantidade de crédito apontam para que se examine a conveniência de instrumentos de caráter regulatório na condução da política monetária.

Se um dos efeitos mais importantes da política monetária é sua influência sobre o ritmo de expansão do crédito, então, caso o mecanismo indireto da taxa de juros falhe, faz sentido que a autoridade monetária atue mais diretamente sobre a oferta de crédito. A recíproca dessa proposição é verdadeira, como pudemos notar nas ações – que serão explanadas nas seções posteriores – do Banco Central brasileiro no período da crise de 2008.

3 Minsky e a origem da crise

Nesta seção, inicialmente, estudaremos a visão de instabilidade econômica de Hyman Minsky, desvendando as contribuições desse autor para a compreensão de crises em economias com sistemas financeiros desenvolvidos e evidenciando sua relação com os desdobramentos da crise mundial. Depois, analisaremos como se desenhou em detalhes o colapso econômico de 2008. Desse modo, o entendi-mento da seção posterior será claro.

3.1 A instabilidade financeira de Minsky

Juntamente com o colapso financeiro de 2008 e sua consequente crise eco-nômica se esgotaram também as principais proposições que nas últimas décadas se haviam convertido na ortodoxia do pensamento econômico. Destarte, econo-mistas, integrantes da mídia especializada e autores de políticas econômicas con-cluíram que é o momento de procurar teorias alternativas à atual ortodoxia que ajudem a entender como funcionam as economias contemporâneas.

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Quiçá o mais venturoso resultado dessa procura tenha sido a redescoberta de Hyman P. Minsky. Como iremos expor a seguir, esse economista pós-keyne-siano formulou sua hipótese de instabilidade financeira ao explanar que econo-mias capitalistas em expansão são, de modo inerente, instáveis e predispostas a crises, pois a maioria dos agentes apresenta postura especulativa, resultando em práticas de empréstimos de alto risco.

O avanço da fragilidade financeira é pautado por um paulatino e desperce-bido processo de dilaceração das margens de segurança de corporações e bancos em um contexto no qual o crescimento de lucros e rendas corrobora o avanço do endividamento. Dentre todas as proposições que compõem o arcabouço ortodoxo, talvez a mais contestada pela crise financeira recente seja a hipótese dos mercados financeiros eficientes de Eugene Fama (2001). Colocada de forma bem resumida, a teoria financeira desse autor antevê que, em razão da possibilidade de membros de mercados financeiros incorporarem em suas decisões todas as informações re-levantes para a ponderação apropriada dos valores de ativos financeiros, os preços ativos negociados em mercados financeiros tendem a refletir diretamente e de for-ma hábil as variáveis que de fato determinam os ganhos gerados por esses ativos.

Para esclarecer melhor, ativos financeiros transacionados em mercados sa-tisfatoriamente desenvolvidos são precificados de forma adequada. Na ausência de modificações conjecturais que desfigurem os fatores objetivos peremptórios da rentabilidade de um ativo, flutuações nos preços de ativos financeiros deveriam ser incomuns e pouco expressivas.

À hipótese da instabilidade financeira de Minsky (1992b) pode ser sopesa-da a antítese da hipótese dos mercados eficientes de Fama. Intenso estudioso de Keynes, Minsky entendeu que em uma economia monetária, na qual a atividade econômica é arranjada em função da busca por rendimentos nominais, é imprati-cável identificar elementos puramente objetivos que determinem a remuneração futura gerada por um ativo financeiro.

Para Minsky, uma contribuição fundamental de Keynes em sua Teoria Geral teria sido a teoria de preferência de liquidez como uma teoria de precificação de ativos. Não obstante na versão de Minsky para a equação keynesiana do valor de um ativo as taxas de retorno tenham sido transformadas em valores nominais, os elementos componentes do valor de ativos foram conservados: o retorno espera-do, o custo de carregamento, o prêmio de liquidez e o ganho de arbitragem.

Desse modo, em razão de as expectativas de membros de mercados finan-ceiros serem o principal ocasionador do valor presente de instrumentos financei-ros e por essas opiniões serem, simultaneamente, guiadas pelas condutas desses mesmos preços, mercados financeiros tendem a ser dominados por interpretações diversas, as quais invalidam de forma crucial a hipótese de mercados financeiros

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bem comportados de Fama. Os preços de ativos financeiros e o mercado financei-ro são tão voláteis quanto as opiniões dos partícipes desses mercados. A hipótese da instabilidade financeira inicia-se com a exposição de uma economia que expe-rimenta um período de expansão estável, na qual as expectativas de produtores e investidores quase nunca são frustradas.

Como já vimos, investidores cuidadosos financiam externamente a compra de novos ativos apenas modestamente, assegurando-se que seus fluxos de caixa futu-ros sejam suficientes para cobrir totalmente seus compromissos financeiros. Minsky definiu a posição financeira na qual o devedor consegue arcar integralmente com seus contratos financeiros sem apelar para novo endividamento como finanças hedge.

A perseverança da relativa calmaria econômica faz com que agentes econô-micos principiem a desdenhar a possibilidade da ocorrência de retrações inespe-radas de renda. Para investidores, a economia em expansão origina oportunidades de alcançar retornos futuros opulentos, que por vezes obrigam a contração de empréstimos mais arrojados.

Ainda que as obrigações financeiras totais compostas de juros e pagamen-tos de principal excedam a capacidade de pagamento dos investidores em cada período, seus fluxos de caixa são suficientes para que ao menos os juros sejam pagos. Minsky classificou a posição financeira na qual o devedor realiza apenas pagamentos de juros sobre sua dívida mantendo estável o tamanho de seu passivo de finanças especulativas.

A prosperidade econômica caracterizada por estáveis taxas de retorno so-bre o investimento reduz o prêmio de liquidez e, por conseguinte, o custo de aquisição de novo crédito, alimentando a demanda por ativos menos líquidos. O mercado financeiro passa a ser dominado por expectativas positivas, e a per-sistente disposição de inflação dos preços de ativos nutre ainda mais a demanda especulativa por esses ativos. Na ausência de regulação e políticas contracíclicas, uma bolha financeira, de maneira inevitável, acaba se constituindo. Possuidores de ativos em valorização têm agora a alternativa de refinanciar suas dívidas ainda que seus fluxos de caixa sejam insuficientes até mesmo para cobrir o pagamento de juros. Minsky classificou a posição financeira na qual o devedor acrescenta à sua dívida existente o valor de juros vencidos de finanças Ponzi.

No caso de instituições em situação financeira de Ponzi, a não aquisição de refinanciamento para suas dívidas é fator suficiente para que se tornem insol-ventes. Segundo Minsky (1992b), economias capitalistas tornam-se mais frágeis financeiramente à medida que aumenta o número de instituições especulativas e Ponzi. Isso ocorre porque a sobrevivência financeira de entidades financeiras Ponzi depende da valorização de seus ativos usados como garantia para o refinan-ciamento de dívidas vencidas. A postergação do colapso financeiro em economias

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com predominância de elementos Ponzi depende da existência de alguma bolha inflacionária. No caso da crise do mercado subprime, o colapso financeiro pôde ser adiado enquanto os preços dos imóveis continuaram subindo, o que permitiu que as entidades Ponzi refinanciassem suas hipotecas.

O momento exato que detona o colapso financeiro pode ter origens distin-tas. No caso da crise das hipotecas em questão, elementos originados do mercado de hipotecas haviam instituído hipotecas com juros reajustáveis, assim, a aquisi-ção de empréstimos a juros iniciais reduzidíssimos atraía mutuários carentes, ain-da que após certo período os juros fossem ser reajustados, impossibilitando, em muitos casos, que o mutuário continuasse a cumprir seus contratos financeiros. Assim que houve um decréscimo agudo na adimplência em hipotecas, reverteu-se o otimismo generalizado, gerando o estouro da bolha, e o mercado ianque foi lan-çado na crise. A seriedade dessa crise deveu-se, sobretudo, à enorme proporção do mercado financeiro que havia assumido posições Ponzi.

O estouro da bolha imobiliária e a retração do crédito tornaram insolvente um número enorme de entidades financeiras de todos os tamanhos, algumas antes consideradas grandes demais para falir. Minsky defendia que a hipótese da insta-bilidade financeira era o apêndice imprescindível para a teoria de ciclos econômi-cos de Keynes baseada em flutuações no investimento privado. As casuais crises financeiras que afligem economias fragilizadas pelo processo natural de ponzifi-cação produzem como efeito duplo o incremento do prêmio de liquidez – custo de uso do dinheiro – e a redução da eficiência marginal do capital, elementos que reduzem os investimentos privados.

Segundo Minsky e Keynes, é a contração do investimento privado que de-termina, na ausência de ações contracíclicas do Estado, a contração do nível de emprego e produção. Indubitavelmente, as preleções de Minsky foram compre-endidas no meio do pessimismo que abocanhou os sistemas financeiros mundo afora. Os governos dos países desenvolvidos decidiram atuar ativamente para evitar que uma abrupta e intensa crise financeira implicasse uma ampla e demo-rada depressão. Portanto, de Minsky – o qual sustenta que uma crescente fragili-zação financeira resulta em uma crise – passamos a Keynes, em que os governos de vários países passaram a adotar uma política fiscal contracíclica em face da crescente degradação no estado de expectativas dos agentes, deterioração esta que limita o ímpeto da política monetária sobre a demanda agregada.

3.2 A gênese da crise

No contexto ideológico apresentado na Introdução, financeiras e bancos ame-ricanos passaram a buscar, no final do século passado, novos mercados que prome-

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tessem maiores lucros. Um mercado promissor era o de financiamento imobiliário dos Estados Unidos. Nesse maduro mercado, as instituições financeiras, em busca de novas fronteiras, encontraram uma fonte de lucro nos chamados empréstimos subprimes3 (BLANKENBURG; PALMA, 2009). Havia um modo para que as pes-soas sem renda, sem emprego fixo, sem ativos para dar como garantia e sem história de crédito para provar confiabilidade fossem integradas ao mercado de financia-mentos. Segundo Carvalho (2008, p. 18), isso foi conseguido por dois caminhos:

Por um lado, passou-se a usar cada vez mais modelos estatísticos na análise de crédito, ao invés do juízo mais subjetivo do analista bancário. Esses modelos são alimentados com informações quantitativas (séries temporais, como são chama-das) e permitem calcular a probabilidade de sucesso de um empréstimo, se tudo continuar como no presente. A cláusula é importante, porque se o mundo mudar, os cálculos baseados no passado pouco servirão para projetar o futuro. A economia norte-americana, do final dos anos 1980 até praticamente 2006, passou por um pe-ríodo de sustentada prosperidade. Apenas duas recessões leves e rápidas interrom-peram o crescimento da economia nesse intervalo. Um dos resultados disto é que o emprego manteve-se crescente ou estável a maior parte do tempo. Assim, pessoas sem emprego fixo, com empregos informais, que seriam, no passado, consideradas de alto risco, apareciam nas estatísticas com uma renda estável, sem um emprego fixo, mas com trabalho todo o tempo, e assim por diante. Ou seja, os modelos esta-tísticos de análise de crédito sugeriam que, como essas pessoas conseguiram traba-lho no passado, elas continuariam conseguindo no futuro, ou, em outras palavras, como a economia norte-americana foi bem no passado, ela iria bem para sempre. Assim, o risco de perda do empréstimo foi subestimado pelos bancos e financeiras envolvidos no processo.

[...] Restava, naturalmente, convencer as pessoas a tomar esses empréstimos. Muitos artifícios foram usados, inclusive o de cobrar taxas de juros muito baixas nos primei-ros anos do empréstimo, aumentando-as dramaticamente depois de algum tempo. Com isso, muitas famílias aceitaram se endividar porque parecia que dava para pagar os juros dessa dívida, até que descobriam que a conta subia rapidamente depois de algum tempo. Na verdade, foi exatamente isso que iniciou a crise no final de 2006.

Com essas carteiras de crédito subprimes em mãos, os bancos e as financei-ras as disfarçaram, usando-as em um processo chamado de securitização. Por esse mecanismo, toma-se certa quantidade de contratos de hipotecas, que anunciam remunerar a uma determinada taxa de juros, para lastrear um título financeiro. Então, esse título é comercializado com bancos, famílias ricas, empresas, fundos de investimento, etc., que, em geral, não têm noção do risco do que estão com-prando, pois não se veem as hipotecas que lastreiam os investimentos.

3 Termo que identifica os indivíduos que não teriam renda, nem garantias, nem história de crédito que justificassem a concessão de empréstimo.

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Esse engenho financeiro funcionou bem até que houve uma interseção entre reajustes de juros das hipotecas e a falta de vigor econômico norte-americano no final de 2006, fato já previsto pelos pós-keynesianos:

Como os bancos não podem obter informações completas com relação ao grau de risco de seus tomadores de empréstimos, um aumento na taxa de juros pode efeti-vamente levar a uma carteira de empréstimos com maior número de inadimplentes potenciais (WRAY, 1990, p. 180).

Desse modo, enquanto algumas pessoas não conseguiram acompanhar o aumento dos juros, outras perderam fontes de renda, e, assim, muita gente não deu conta de arcar com o pagamento do financiamento. Essa foi a primeira parte da crise.

A segunda parte da crise veio quando os financiadores perceberam que o risco de inadimplência era maior do que se supunha e que, talvez, tivessem sido feitos empréstimos com base numa visão otimista e maior que a capacidade de pagamento da população que compunha o subprime. Assim, investidores e insti-tuições que compraram títulos parecidos começaram a tentar vender esses papéis, mas perceberam que não havia muitos compradores, pois todos tinham os mes-mos temores. Com isso, os investidores descobriram que estavam expostos a um risco de liquidez (isto é, impossibilitados de revender sem prejuízo de um ativo qualquer) maior do que esperavam.

A partir daí, a desconfiança passou a atingir também outros papéis seme-lhantes aos subprimes, contagiando os demais segmentos do mercado de capitais. Assim, embarcamos na terceira fase da crise, quando entra em cena a crise patri-monial. No caso dos bancos e das financeiras que compraram os papéis lastreados em hipotecas subprimes, quando o valor destes caiu verticalmente por conta da sua desvalorização no mercado, muitos se tornaram insolventes, falidos, e outros quase. Como quase a totalidade das instituições financeiras norte-americanas fez esse tipo de investimento, todas se viram expostas em algum grau. Na melhor das hipóteses, seu capital, ainda que continuasse positivo, diminuiu bastante por causa da desvalorização de seus direitos a auferir (CARVALHO, 2008).

Porém, há dois agravantes. O primeiro é que bancos e financeiras com ati-vos valendo menos que passivos precisam ser fechados, sofrerem intervenção ou serem vendidos a outras instituições que, em geral, relutam em fazer essas aquisi-ções se não forem favorecidas ou pressionadas pelo governo. Foi o que aconteceu com Lehman Brothers, Fannie Mae, Freddy Mac, Bear Stearns, Merrill Lynch, AIG etc. A série de bancarrotas, intervenções e vendas sob estresse espalhou a desconfiança e o assombro não só no mercado financeiro, mas entre a sociedade em geral, que passou a temer por suas economias.

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O segundo agravante é que as instituições sobreviventes se retraíram, pois compartilharam o clima negativo, enfraquecendo a capacidade de empréstimo devido à contração de capital próprio. Assim, os bancos e as financeiras passaram a emprestar menos, as empresas ficaram sem capital de giro viável para produzir e os consumidores deixaram de adquirir bens duráveis, pois não havia crédito. Em suma, a economia real começou a arrefecer, o crescimento econômico ficou negativo, o desemprego cresceu e o risco de uma recessão séria instalou-se no país dono da maior economia do planeta.

Consequentemente, a crise chegou ao resto do mundo. Primeiro à Inglater-ra, depois ao continente europeu, à Ásia e aos países emergentes mais importan-tes, como a Rússia e o Brasil. Em cada país, a crise iniciada nos Estados Unidos teve desdobramentos específicos. Na próxima seção, buscaremos entender o de-senrolar da recente crise econômica no Brasil e sua relação com as estruturas e as regulações dos principais participantes do Sistema Financeiro Nacional.

4 A crise no Brasil

Os efeitos da crise sobre a economia brasileira sepultaram a tese do desco-lamento dos países emergentes. No Brasil, a maior preferência pela liquidez dos bancos provocou um “empoçamento” da liquidez e uma redução no crescimento do crédito. Enfim, a deterioração das expectativas de firmas e bancos originou o receio de uma forte desaceleração, justamente quando a economia brasileira vi-nha passando por um de seus mais longos ciclos de crescimento.

Ao contrário do que alguns podiam pensar, a economia brasileira não estava blindada contra a crise financeira internacional devido à fragilidade financeira do setor produtivo, a qual se deve a sua exagerada exposição a instrumentos de de-rivativos de câmbio. As empresas valeram-se de um processo de amparo de mar-gem de lucro diante do processo contínuo de apreciação cambial evidenciado nos anos de 2006 e 2007, ocasionando redução na receita operacional das empresas. Podemos afirmar, consequentemente, que as empresas trocaram receita operacio-nal por receita financeira.

Ademais, evidenciou-se um segundo fator que colaborou para essa exposi-ção, qual seja, o otimismo generalizado do mercado. Foi nessa conjuntura que as empresas diminuíram suas margens de segurança e, sob esse aspecto, podemos dizer que o mito da blindagem desconsiderou a fragilidade do setor privado não financeiro. A crise brasileira foi endógena, decorrente da crescente fragilidade financeira do setor privado e da exposição ao risco cambial, mas o disparo, evi-dentemente, foi exógeno, proveniente dos efeitos da crise internacional.

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As perdas com as operações de derivativos cambiais foram grandes. No setor produtivo, graúdas empresas exportadoras de commodities foram afetadas de forma imediata, nomeadamente Votorantim, Sadia e Aracruz. Isso aconteceu devido a operações financeiras especulativas sofisticadas no mercado a termo e de opções, que tinham como objetivo abrandar os efeitos negativos da valorização cambial sobre a rentabilidade das exportações. Quando as perspectivas do mercado se inverteram, com a rápida desvalorização do real, essas empresas amargaram prejuízos bilionários (PAULA, 2008). Como sequela desses prejuízos, sobreveio um acréscimo expressivo do risco de crédito das empresas do setor produtivo. Tal conjuntura, agravada pelo ambiente de incerteza originado pela crise financeira internacional, fez com que os bancos brasileiros restringissem de forma expressiva o crédito, sobretudo o crédito ao financiamento do capital de giro das empresas.

Saindo do setor privado, podemos afirmar que a gravidade da crise, no início, não foi adequadamente compreendida pelo governo. O Banco Central acreditou que os efeitos da crise internacional se restringiam à questão da falta de liquidez do setor bancário. Assim, as medidas resumiram-se, primeiramente, à liberação parcial de depósitos compulsórios visando a banhar o mercado financeiro com a liquidez mandatória para que este funcionasse normalmente. Porém, como já vimos, instituições bancárias, como qualquer outro agente, têm preferência pela liquidez determinada por suas expectativas quanto ao futuro incerto (PAULA, 1999). Particularmente, na acepção de estratégia de portfólio, se defrontam o trade-off liquidez versus rentabilidade, sendo a liquidez desejada em momento de maior incerteza em detrimento da rentabilidade, que, por sua vez, é apreciada quando há otimismo em função da menor incerteza percebida.

Instituições bancárias têm, destarte, uma conduta pró-cíclica, isto é, na fase da expansão econômica tendem a atender à demanda por crédito dos agentes, provocando um aumento de endividamento destes, na presunção do prosseguimento do crescimento dos lucros e da renda na economia. Na fase de desaceleração – como no caso da recente crise –, a maior preferência pela liquidez resulta em um endurecimento do crédito, justamente o período no qual os agentes precisam renegociar seus débitos. Sob outro ponto de vista, o comportamento das instituições bancárias tende a acelerar o crescimento em período de otimismo e a aprofundar a crise no período de desaceleração econômica. Em suma, esta é a teoria da preferência pela liquidez dos bancos, fortemente inspirada em Keynes4 e em Minsky, conforme já analisamos.

4 Embora, em alguns de seus trabalhos, Keynes tenha destacado o papel crucial do sistema bancário na determinação do nível de investimentos e, destarte, do nível da atividade econômica, ele pouco escreveu sobre os aspectos comportamentais dos bancos, só o fazendo de forma sugestiva.

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No caso brasileiro, de modo óbvio, não houve crise de insolvência dos bancos, contudo observou-se uma crise de liquidez ocasionada pelo empoçamento da liquidez, havendo agudos indícios de início de uma desaceleração e maior seletividade na oferta de crédito, em parte ocasionada pelo próprio encarecimento do custo do dinheiro para os bancos – mercado interbancário e certificados de depósitos bancários (CDBs). A combinação desses dois fatores – liquidez represada e retração do crédito – afeta mais os bancos pequenos, que são, comumente, menos líquidos, mais alavancados e mais dependentes das operações de crédito para se manterem em funcionamento (CINTRA et al., 2008).

Por sua vez, os grandes bancos varejistas, que têm um funding – depósitos a vista, depósitos a prazo, etc. –, portfólio e receitas mais diversificadas, estavam suficientemente capitalizados, ou seja, o índice de Basileia – o qual discutiremos posteriormente – foram cumpridos com folga e têm maior liquidez. Além disso, uma boa parte do portfólio dessas grandes instituições financeiras estava aplicada em títulos e aplicações interfinanceiras, sobretudo títulos públicos indexados à taxa Selic ou à taxa de inflação.

Em suma, os grandes bancos varejistas contrataram o crédito e, por sua vez, tornaram-se mais seletivos na concessão de empréstimos, aumentaram a liquidez do seu ativo – com redução no prazo médio dos seus empréstimos – e, ainda, se aproveitaram das suas aplicações em títulos públicos –, que lhes forneceram uma proteção contra acréscimos nas taxas de juros, enfim, uma conduta característica de sua maior preferência pela liquidez (CARVALHO, 2008). Desse modo, o pro-blema não foi de falta de liquidez, mas de empoçamento de liquidez. Isso é cor-roborado pelo fato de as reservas compulsórias dos grandes bancos com o Banco Central do Brasil terem sido substituídas por reservas voluntárias.

Desse modo, o problema foi de ampliação da preferência pela liquidez dos bancos. Essas grandes instituições bancárias não emprestaram porque tinham receio de que esses empréstimos não fossem pagos. Essa expectativa tem a capacidade de se tornar uma profecia autorrealizável, ou seja, o receio gera retração do crédito, a qual gera uma queda do nível de produção e de emprego, que, por sua vez, causa um avanço da inadimplência dos empréstimos bancários, ratificando, desse modo, o temor inicial e produzindo uma nova temporada de contração de crédito.

Além disso, não devemos perder de vista que ao longo dos últimos anos marchamos para uma situação de conversibilidade de fato da conta capital, isto é, de aumento da liberalização financeira no país, tanto para residentes quanto para não residentes. Isso permitiu dois caminhos de contágio da crise financeira. Da parte de residentes – instituições bancárias e grandes empresas –, dificuldade em aquisição de financiamento no mercado financeiro internacional, seja sob a forma de empréstimos, seja por emissão de títulos. Da parte de não residentes

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–investidores externos –, as perdas em outros mercados os fizeram vender suas posições no mercado de ações e títulos – assim como em outros países emergentes –, seja para recompor parcialmente suas perdas, seja por conta de um efeito manada dos investidores. Destarte, essa fuga de capitais deflagrou um início de queda nos preços das ações na bolsa de valores brasileira (BRESSER-PEREIRA, 2008).

Numa conjuntura de desaceleração cíclica do nível de atividade econômica, é papel da autoridade monetária garantir a menor queda possível do nível de produção e de emprego. Quando a crise de confiança intimida os planos de investimentos das empresas, a política fiscal deve ajudar a política monetária por meio da ampliação dos gastos públicos, sobretudo com investimentos em infraestrutura. Dessa forma, segundo o receituário pós-keynesiano, a adoção de uma política monetária expansionista, com redução significativa da taxa de juros, em conjunto com uma política fiscal expansionista são medidas que devem ser adotadas. Poderá haver algum avanço da dívida líquida do setor público, o qual é o preço a ser pago pelo uso da política anticíclica para retificar as falhas de mercado em grande escala geradas, eventualmente, pela dinâmica endógena das economias capitalistas.

Assim, para remediar a crise de liquidez e evitar uma crise de solvência que possa eventualmente resultar em uma crise sistêmica, seguindo, claramente, uma postura keynesiana, o governo brasileiro adotou uma série de medidas, entre as quais se destacam: diminuição do compulsório sobre depósitos à vista, a prazo e de poupança e ampliação do limite de isenção para o compulsório sobre depósitos a prazo aplicado na alíquota regular. Além disso, algumas iniciativas foram toma-das quanto aos bancos públicos: linha de crédito para exportações, permissão de que bancos públicos – Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal – pudessem comprar bancos privados, e a autorização para que a Caixa Econômica Federal pudesse constituir um banco de investimento para adquirir participação acionária em empresas de construção civil (PAULA, 2008).

Enfim, o governo utilizou um arsenal diversificado e vasto para combater a crise de liquidez e retração do crédito do setor bancário. Contudo, os efeitos indiretos da crise mundial ainda se fizeram sentir, como no caso da desaceleração no comércio internacional, no aumento do desemprego e na redução do produto interno bruto. Em suma, a atuação do Banco Central no episódio seguiu o recei-tuário minskyano. Como iremos tratar posteriormente, tal estudioso defende a regulação prudencial como política ideal. No entanto, quando a situação é de ins-tabilidade iminente, o melhor artifício é a contenção da crise via políticas fiscais contracíclicas e atuação do Banco Central como emprestador de última instância.

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4.1 Crise e política fiscal

Para Minsky (1982), uma depressão pode ser evitada ou atenuada por atua-ção do banco central como emprestador de última instância e da adoção de polí-ticas fiscais contracíclicas. Já analisamos intensamente a questão do emprestador de última instância nas seções anteriores. Além disso, também vimos que o pro-blema, no Brasil não foi de falta de liquidez, mas de empoçamento de liquidez. Dessa forma, a política fiscal teve um papel fundamental no combate à crise de 2008. Doravante, iremos explanar, de modo conciso, a relação entre política fiscal e crise econômica.

A política fiscal é elemento de estudos e polêmicas desde meados da dé-cada de 1930, quando Keynes (1973) indicou o uso dos gastos e das receitas do governo como meio de influenciar, positivamente, o grau de atividade econômica – produção e emprego – nas economias de mercado. Para Keynes, ao contrário do que pensam seus críticos, o componente essencial da política fiscal é o gas-to público, notadamente em investimentos, e não, necessariamente, o déficit. A análise keynesiana a respeito dos efeitos dos gastos e dos tributos do governo sobre a demanda agregada pode ser sintetizada do seguinte modo. Os gastos do setor público representam compras de bens e serviços – inclusive mão de obra – às empresas e famílias. Esses gastos estimulam o avanço da produção, pelas corporações, de um lado; e do consumo, pelas famílias, de outro, o que estimula novas empresas a elevarem sua produção. A receita do governo, ceteris paribus, atua sobre a demanda agregada no sentido contrário – sendo um pagamento com-pulsório do setor privado ao governo, os impostos representam um vazamento da renda do setor privado que, de outro modo, poderia ser alocada à compra de bens e serviços no mercado.

Quanto à gerência do orçamento, Keynes sugeriu que os governos atuas-sem com dois orçamentos distintos. Um orçamento ordinário para os gastos com consumo – custeio –, e um orçamento de capital de caráter arbitrário para os investimentos do governo. O primeiro deveria ser, metodicamente, equilibrado e, quando possível, superavitário. Esses superávits, idealmente, precisariam ser gerados pelo aumento endógeno da receita do governo, ou seja, mediante o avan-ço da base de arrecadação – a renda agregada – e, por conseguinte, nos tempos de maior prosperidade econômica. Nesses períodos, os recursos excedentes do governo deveriam compor um fundo para financiar os gastos públicos em inves-timentos, imprescindíveis nos períodos de deficiência de demanda efetiva (KRE-GEL, 1991). Nesse aspecto, deve-se observar ainda que Keynes propunha uma atuação preventiva da política fiscal – assim como da política monetária –, e não corretiva, ou seja, a finalidade da política fiscal deve ser evitar a deficiência de demanda efetiva, e não compensá-la a posteriori.

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Em suma, uma política fiscal fundamentada em déficits seria, do ponto de vista de Keynes, aconselhada apenas como último recurso em situações de recessão já em curso, quando a arrecadação fica comprometida e a necessidade de execução de in-vestimentos públicos pode superar a disponibilidade de fundos próprios do governo. Nesses casos, contudo, torna-se ainda mais difícil financiar o déficit, visto que tal situ-ação tende a elevar a preferência por liquidez dos agentes – privados – superavitários.

Para viabilizar a política fiscal expansiva nesses contextos, a política mo-netária deve agir igualmente de forma expansiva, como coadjuvante da política fiscal. Sua função seria, por um lado, reduzir o custo do financiamento do déficit público, pois a maior preferência por liquidez se manifesta em aumento das ta-xas de juros exigidas pelo mercado para aceitar títulos em geral, em detrimento da posse – segura – de moeda. De outro lado, caso a preferência por liquidez se torne absoluta – armadilha da liquidez –, ou quase absoluta, a política monetária expansiva seria a única forma de viabilizar a política fiscal expansiva, na medida em que os títulos públicos emitidos ficariam, por algum tempo, na própria carteira do banco central (CARVALHO, 1999).

Ademais, os gastos públicos incitam o nível da atividade econômica por meio das companhias que fornecem bens e serviços ao governo e por meio do consumo das famílias. Devido a esse estímulo indireto ao consumo, diz-se que os gastos do governo, assim como os investimentos privados, têm um efeito multiplicador sobre a atividade econômica. Além disso, a propensão a consumir é maior nas classes de baixa renda, cujo padrão de vida e consumo é ainda baixo. Nessas classes, qualquer avanço de renda tende a ser fundamentalmente alocado a consumo. Destarte, a propensão a consumir sofre influência do nível de desenvolvimento econômico do país e, sobretudo, do perfil de distribuição de renda em vigor. Quanto menor a renda per capita do país, maior será sua propensão a consumir; e quanto maior o grau de concentração da renda pessoal no país, maior a proporção de famílias de baixa renda em comparação com as de renda elevada e maior a propensão desta última a consumir.

Além do efeito expansivo sobre o consumo, os gastos públicos podem tam-bém induzir as corporações a novas decisões de investimento. Entretanto, ao con-trário da reação do consumo, que é célere, para que a atuação do governo na eco-nomia chegue a gerar novos investimentos, é imperativo que seus gastos sejam relativamente elevados – como proporção do PIB – durante um longo período. Na visão de Keynes, mais importante que o estímulo de curto prazo que os gastos pú-blicos podem dar à economia é a sinalização que a administração da política fiscal dá às empresas com relação ao comportamento da demanda agregada no futuro.

Desse modo, num contexto de crise econômica aguda como a de 2008, Sicsú (2008, p. 50) expõe:

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Uma política fiscal agressiva de gastos será necessária. Todas as políticas de salvamento de instituições financeiras podem restabelecer a saúde do sistema, mas não são capazes de restaurar a sua atividade. O saneamento do sistema é um problema objetivo, contábil. Contudo, sua atividade depende de sentimentos, conjecturas e temores tanto da parte do sistema financeiro quanto da parte do setor real. Toda a liquidez que poderá restaurar instituições financeiras e impedir que a crise atinja o sistema em sua totalidade pode ficar represada. Banqueiros e empresários não têm interesse em realizar negócios que podem não ser validados pelo consumidor final. A saída bem-sucedida deverá ser uma ativação dos negó-cios privados estimulada pelo setor público, que deverá realizar gastos, contratar mão de obra e transferir renda àqueles que têm alta propensão a gastar (que são os “subcidadãos”) e, portanto, não vão represar liquidez.

Enfim, a diferença entre as políticas de aumento da liquidez e as políticas fiscais de gastos é que as primeiras são condicionadas às reações, às vezes, pessimistas ou demasiadamente precavidas do setor privado, enquanto as últimas representam um antídoto direto, isto é, aquisições diretas ao setor privado, contratações de mão de obra ou cessões de renda àqueles que gastam tudo o que recebem e que, por conseguinte, intensificam os negócios privados da economia. Na conjuntura da crise de 2008, o governo brasileiro pareceu seguir à risca esse receituário pós-keynesiano: implantou aumento dos gastos de investimento, focando o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), manteve o ritmo de crescimento do poder de compra das classes mais pobres (aumento do salário mínimo) e desonerou impostos – redução do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) – de bens como automóveis e eletrodomésticos para manter a demanda aquecida.

4.2 Crise e regulação

Como conciliar a necessidade de regulação5 do sistema financeiro com a também necessária liberdade para a inovação e a criação de novos produtos? Segundo Minsky (1982), a regulação prudencial do mercado seria a forma mais indicada de intervenção, mas exige cuidados por trazer maior rigidez e limitar a atuação das forças de crescimento do capitalismo. No pêndulo dessas questões, a atual crise financeira internacional deixa claro que os mercados não são eficientes e que, portanto, é imprescindível a mão visível do Estado para assegurar a estabilidade do mercado.

5 Adotamos aqui o termo regulação em vez de regulamentação, pois o significado do primeiro termo é mais amplo que o do segundo. Enquanto este se resume ao disciplinamento jurídico de uma atividade, aquele remete a uma noção de intervenção dos Poderes públicos em atividades econômicas de interesse da coletividade.

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Segundo a visão neoclássica, a eficiência do sistema financeiro está direta-mente conexa à sua capacidade de minimizar os custos de transação envolvidos no processo de intermediação financeira. A proposta de desregulamentação dos sistemas financeiros liderada pela teoria convencional sugere que esses sistemas são inerentemente eficientes e, como tal, as tentativas de regulamentar essa ativi-dade acabam por mitigar, ao menos parcialmente, a busca pela eficiência. Como definido por Fama (2001), mercados eficientes são aqueles nos quais inexistem custos de transação; a informação é livre; e as expectativas dos agentes são ho-mogêneas. Como já observado, mercados financeiros não atendem a todos esses requisitos, haja vista que a informação não está disponível a custo zero para to-dos os agentes e os custos de transação não são desprezíveis. No entanto, se esse mercado for deixado a operar por si, sem a intervenção de um regulador, supõe-se que este o faria em condições as mais próximas possíveis das condições perfeitas. Esta é a base da proposição convencional de desregulamentação.

Evidentemente, operar o mais próximo possível da eficiência traria ganhos inequívocos para a economia e para o crescimento econômico. No entanto, sob o ponto de vista pós-keynesiano, a desregulamentação dos sistemas financeiros, ainda que contribua para a elevação da oferta de recursos para os tomadores, possui um forte componente de desfuncionalidade com base na fragilização das estruturas financeiras da economia. Além disso, a proposta de desregulamenta-ção engloba também uma proposta de abertura das contas de capital. Quando combinadas, estas duas propostas aumentam significativamente o grau de fra-gilidade financeira, posto que induzem à criação de instrumentos que tornam o financiamento de capital uma atividade essencialmente especulativa no sentido de Minsky. O mesmo passa a ser feito predominantemente por instrumentos que re-querem a constante renovação das posições financeiras entre as partes envolvidas, abrindo espaço para impactos adversos decorrentes de mudanças súbitas na taxa de juros e nas disponibilidade de financiamento. Além disso, esses instrumentos atuam no sentido de mitigar a avaliação dos investidores às reais condições de retorno e risco dos projetos, pois estes são vendidos como instrumentos eficazes de proteção contra o risco, auxiliados pelos bancos que buscam maximizar seus lucros mediante a maximização das comissões cobradas na comercialização de tais operações.

Por sua vez, a percepção de eficiência na teoria pós-keynesiana conside-ra mister não só a redução dos custos de transação já aludidos, mas ainda uma redução concomitante da instabilidade inerente ao processo de transferência de recursos. O refinamento desse suporte, não obstante, tem de ser feito sem exa-cerbar a instabilidade característica do financiamento da atividade produtiva em economias monetárias da produção.

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De fato, em mercados financeiros organizados, os dealers6 são mesmo capazes de ofertar contratos que melhor atendem aos anseios peculiares de tomadores e emprestadores a baixos custos. Contudo, é justamente essa premissa que fica em xeque com a desregulamentação financeira e o desenvolvimento dos instrumentos derivativos. Todavia, essa maior oferta acontece à custa de uma maior fragilidade financeira, pois as partes envolvidas nos contratos de derivativos que amparam a obtenção dos pay-offs demandados pelos tomadores podem mudar abruptamente de posição, o que implicaria a inadimplência do tomador, no mais perfeito estilo especulativo descrito por Minsky (1986), especialmente se for considerado que a liberalização da conta de capital dos países é um dos principais componentes do processo de desregulamentação financeira.

Os riscos enfrentados por tais instrumentos são essencialmente de três ti-pos: o risco de mercado, o risco de crédito e o risco de liquidez. O risco de mer-cado é aquele no qual o valor de mercado de um instrumento financeiro sofre um acentuado declínio ao longo do tempo como resultado de mudanças nas taxas de juros ou de câmbio. O risco de crédito decorre da possibilidade de que uma das partes envolvidas na transação financeira se torne incapaz de honrar os termos do contrato, quer por desonestidade, quer por inadimplência. O risco de liquidez é o risco de que o instrumento financeiro não possa ser vendido ligeiramente pelo seu valor de mercado, obrigando o detentor deste a aceitar um expressivo deságio para atender sua preferência pela liquidez.

Mesmo que pensados como instrumentos para divisão do risco, a natureza dos novos instrumentos e os requisitos para operação dos seus mercados atu-am no sentido de elevar consideravelmente a fragilidade financeira da economia, em particular se for considerado que a liberalização das contas de capitais dos balanços de pagamentos dos países faz parte do conjunto de propostas de desre-gulamentação financeira na busca da transferência mais eficiente de recursos de unidades superavitárias para unidades deficitárias.

Kregel (1998) ainda chama a atenção para os riscos inerentes à nova estru-tura dos sistemas financeiros globais. O autor sinaliza para uma feição pertinente dessa nova configuração que coopera para a acentuação da fragilidade das estru-turas financeiras que atualmente vigoram em países que implementaram um forte processo de desregulamentação, qual seja, a propriedade de mascarar o risco ane-xo a uma operação de transferência de recursos de investidores para tomadores, isto é, uma vez que os novos instrumentos financeiros fornecem alternativas visi-velmente eficazes de lidar com o risco – de qualquer natureza – característico de uma operação de empréstimo, o emprestador –, ou seja, o investidor do mercado de capitais – tende a não se preocupar adequadamente com a probabilidade de o

6 Instituições que negociam em mercados de balcão comprando e vendendo ativos financeiros, mais especificamente, neste caso, contratos de opções e de futuros, tipicamente empresas de propósito específico.

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projeto de investimento não fornecer o retorno requerido, uma vez que tem à sua disposição mecanismos razoavelmente eficientes de proteção, resultando destarte em uma alocação não eficiente dos recursos.

Nesse processo, os investidores são ajudados pelos bancos, que, perante uma diminuição sistemática da intermediação financeira, passam a procurar a ma-ximização dos lucros por meio da maximização das comissões derivadas de suas operações de corretagem. Isso avigora o caráter ambivalente dessas inovações, pois mesmo colaborando categoricamente para a redução dos custos de transa-ção elas acabam por reforçar a ineficiência dos sistemas financeiros, implicação exatamente oposta àquela preconizada por seus criadores e pelos arautos da des-regulamentação cabal.

No Brasil, o desenho institucional do Sistema Financeiro Nacional (SFN) foi o principal fator que contribuiu para que a crise internacional não colocasse de joelhos nossa economia, pois as instituições financeiras brasileiras são obrigadas a seguir um extenso aparato legal de regulação e autorregulação. Viu-se a retirada de dinheiro da bolsa de valores pelos estrangeiros (sobretudo capital especulativo), mas os investimentos e as instituições financeiras mantiveram-se “de pé”. O Sistema Financeiro Nacional pode ser definido como o conjunto de instituições e órgãos que regulam, fiscalizam e executam as operações relativas à circulação da moeda e do crédito,7 podendo ser dividido em dois grandes subsistemas: o normativo e o de intermediação e instituições auxiliares.

O Subsistema Normativo regulamenta e fiscaliza o mercado financeiro. Fa-zem parte desse subsistema o Conselho Monetário Nacional (CMN), o Banco Central do Brasil (Bacen), a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), a Supe-rintendência de Seguros Privados (Susep) e a Secretaria de Previdência Comple-mentar (SPC). A atuação e a estruturação dos dois primeiros subsistemas citados contribuíram para mitigar os efeitos da crise internacional no Brasil.

O CMN é o órgão deliberativo máximo do Sistema Financeiro Nacional, cabendo a ele estabelecer as diretrizes gerais das políticas monetária, cambial e creditícia; regular as condições de constituição, funcionamento e fiscalização das instituições financeiras e disciplinar os instrumentos de política monetária e cambial, ou seja, sua atuação é mais prudencial e regulatória.

O Bacen é uma autarquia vinculada ao Ministério da Fazenda criada pela Lei n. 4.595, de 31 de dezembro de 1964. É o principal executor das orientações do Conselho Monetário Nacional e responsável por garantir o poder de compra da moeda nacional, tendo por objetivos: zelar pela adequada liquidez da econo-mia; manter as reservas internacionais em nível adequado; estimular a formação

7 A Lei n. 4.595, de 31 de dezembro de 1964, a qual dispõe sobre a política e as instituições monetárias, bancárias e creditícias, cria o Conselho Monetário Nacional e dá outras providências.

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de poupança; zelar pela estabilidade e promover o permanente aperfeiçoamento do sistema financeiro. Essa instituição ganhou visibilidade internacional durante a crise, pois foi apontada como referência no que diz respeito a sua atuação e regulamentação. Nesse sentido, podemos citar como importantes as Resoluções n. 3.490 (dispõe sobre a apuração do Patrimônio de Referência Exigido – PRE); n. 3.380 (dispõe sobre a implementação de estrutura de gerenciamento do risco operacional); n. 3.721 (dispõe sobre a implementação de estrutura de gerencia-mento do risco de crédito) e n. 3.464 (dispõe sobre a implementação de estrutura de gerenciamento do risco de mercado).

O Subsistema Intermediação e Instituições Auxiliares é constituído pelos agentes autorizados e pelos órgãos do Subsistema Normativo a funcionar. Nessa categoria, temos os agentes especiais (Banco do Brasil, Banco Nacional de De-senvolvimento Econômico e Social – BNDES – e Caixa Econômica Federal); os principais intermediários financeiros (bancos comerciais, de investimentos e múlti-plos); sistemas e câmaras de liquidação e custódia (Sistema Especial de Liquidação e Custódia – Selic; Central de Custódia e Liquidação Financeira de Títulos – Cetip; Companhia Brasileira de Liquidação e Custódia – CBLC; e Clearing); e, por últi-mo, os outros intermediários, auxiliares e participantes do mercado (Bolsa de Valo-res, Mercadorias e Futuros – BVMF; Mercado de Balcão Organizado; Sociedades Corretoras de Títulos e Valores Mobiliários – CCVM; Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários – DTVM; Cooperativas de Crédito e Sociedades de Crédito, Financiamento e Investimento). Dessas instituições, as que mais têm relação com este trabalho são os bancos comerciais, dos quais já tratamos extensamente nas seções anteriores. Vale ressaltar, apenas, que os bancos públicos foram usados pelo governo federal para implementar ações anticíclicas durante a crise. O Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal adotaram agressivas posturas para concessão de crédito a fim de compensar a retração dos bancos privados, atendendo às deman-das das empresas e das famílias, e de manter o nível de atividade econômica.

Saindo da regulação governamental, o princípio da autorregulação pelo mercado, nas últimas décadas, norteou o conjunto das medidas de supervisão e regulação, numa tentativa de substituir e/ou complementar a regulação estatal. Esse princípio pode ser expresso da seguinte forma: a governança corporativa e a gestão de riscos dos bancos evoluíram ao ponto de suas decisões poderem ser avaliadas como as mais próprias e eficientes para evitar ocorrências que possam implicar risco sistêmico. Foi ele que pautou, em grande parte, as modificações dos Acordos de Basileia que congregaram, na sua segunda versão (Basileia II), as notas das agências de ratings e os modelos internos de precificação de ativos e de gestão de riscos como critérios alternativos para a classificação dos riscos de crédito e incentivos à utilização de mecanismos de mitigação desses riscos, dentre os quais os derivativos de crédito.

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No Brasil, a Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima) foi criada em outubro de 2009 como resultado da união entre a Associação Nacional dos Bancos de Investimento (Anbid) e a Associação Nacional das Instituições do Mercado Financeiro (Andima). A nova entidade representa 325 associados, entre bancos comerciais, múltiplos e de investimento, asset managements, corretoras, distribuidoras de valores mobiliários e consultores de investimento. Essa instituição tem por objetivo fortalecer o mercado de capitais como instrumento de financiamento do desenvolvimento, apoiar o fortalecimento da CVM como órgão regulador do mercado de capitais, aperfeiçoar os arcabouços legal, regulatório e tributário do mercado de capitais, incentivar a adoção de melhores práticas entre os associados e o respeito aos direitos dos investidores, aprimorar a infraestrutura de serviços e a racionalização das práticas operacionais do mercado de capitais, aprimorar e divulgar a supervisão como mecanismo de aperfeiçoamento dos mercados, contribuir para a ampliação do conhecimento dos investidores e dos agentes relevantes do mercado sobre os produtos de investimento disponíveis no mercado de capitais e dotar o mercado de informações importantes sobre os segmentos da indústria financeira representados pela entidade.

Por fim, podemos afirmar que o desenrolar da crise colocou em xeque a arquitetura financeira internacional na medida em que explicitou as limitações dos princípios básicos do sistema de regulação e supervisão bancária e financeira atualmente em vigor, assim como pôs em questão a sobrevivência de um perfil específico de instituições financeiras (CINTRA et al.). Enfim, foi a falta de atuação do Estado e não sua ação ativa que causou a crise. Desse modo, a crise financeira de 2008 foi uma crise das finanças globais desregulamentadas, que fez com que uma crise em um segmento específico do sistema financeiro norte-americano acabasse se propagando pelo mundo. Contudo, no Brasil a crise teve seus efeitos mitigados pelo desenho institucional do Sistema Financeiro Nacional.

5 Conclusão

A dinâmica da firma bancária afeta de forma determinante as condições e o volume de financiamento da economia e, por conseguinte, as decisões de gasto dos agentes, assim como os resultados da política monetária. A lucidez acerca do papel da autoridade monetária e dos próprios bancos na determinação das condições de crédito e liquidez na economia foi deturpada, nas últimas décadas, pelas teorias econômicas liberais. Desse modo, o conjunto de medidas de supervisão e regulação dos sistemas financeiros, na maioria dos países, baseou-se nas ideias de autorregulação. Segundo essas ideias, a “mão invisível” do mercado, por meio da prática moderna de governança

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corporativa e de gestão, seria a maneira mais eficiente de evitar episódios que provoquem riscos sistêmicos. Esses princípios nortearam, em grande parte, a revisão dos Acordos de Basileia, incorporando, na segunda versão (Basileia II), as notas das agências de ratings e os modelos internos de precificação de ativos e de gestão de riscos como critérios alternativos para a classificação dos riscos de crédito e incentivos à utilização de mecanismos de mitigação desses riscos, como os derivativos de crédito.

Nesse contexto, muitas das inovações nos mercados financeiros tiveram como pilar a hipótese da eficiência da autorregulação. Na crise mundial de 2008, assistimos à fragilidade dessa sustentação e ao desmoronamento dos mercados financeiros. Destarte, economistas, integrantes da mídia especializada e autores de políticas econômicas buscaram nas teorias alternativas à ortodoxia aquelas que os auxiliassem a entender como funcionam as economias contemporâneas, encontrando na teoria pós-keynesiana muitas das respostas que procuravam.

Assim, tivemos os “momentos” Keynes e Minsky. A realidade de deteriori-zação das expectativas, a retração na oferta de crédito, balizada pelo empoçamen-to da liquidez e a insolvência de um número enorme de entidades financeiras de todos os tamanhos, algumas antes consideradas grandes demais para falir, “cou-beram como uma luva” na explicação teórica dada por esses autores. A hipótese da instabilidade financeira foi o apêndice imprescindível para a teoria de ciclos econômicos baseada em flutuações no investimento privado.

O cenário econômico no Brasil não se mostrou tão degradado como em outros países. Isso ocorreu porque o desenho institucional do Sistema Financeiro Nacional é devidamente organizado e regulado. Os grandes bancos nacionais não sofreram riscos de quebra, apenas sofreram grandes choques algumas empresas não financeiras que se arriscaram em operações demasiadamente especulativas. Para remediar os efeitos da crise, o governo brasileiro adotou uma série de medi-das claramente keynesianas, sobretudo por meio de uma política fiscal anticíclica.

Crises financeiras não são apenas resultados de comportamentos “irracio-nais” dos agentes, mas resultam da própria forma de operação dos mercados fi-nanceiros liberalizados e sem um sistema de regulação adequado. Destarte, a crise em estudo levou o mundo tanto a repensar o próprio papel do Estado na economia quanto à necessidade de re-regular os sistemas financeiros domésticos e reestru-turar o sistema financeiro mundial, sendo o Brasil a prova empírica de tais afir-mações. Em outras palavras, a interferência do Estado com o intuito de diminuir a fragilidade financeira, complementando os mercados privados, é indispensável para criar um ambiente institucional favorável às decisões de gastos privados – consumo e investimento –, impactando, desse modo, a demanda efetiva. Porém, é mister ter em mente que a regulação deve preocupar-se em diminuir a instabi-lidade na economia sem aumentar os custos de transação de forma significativa.

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