Temas atuais de Direito Previdenciário

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ENTREVISTA Temas atuais de Direito Previdenciário 03/11/2011 por Marisa Santos Como a senhora avalia a legislação previdenciária no Brasil? Nossos legisladores parecem não entender muito bem a natureza e finalidade da Previdência Social. De início, porque se trata de um seguro social, ao qual só têm acesso aqueles que pagam contribuições previdenciárias. Depois, porque a finalidade desse seguro é justamente de dar cobertura ao segurado quando já não pode trabalhar, e aos seus dependentes, quando morre ou é recolhido à prisão. É um sistema eminentemente contributivo que, atualmente, está tão desvirtuado que não encoraja ninguém a recolher contribuições previdenciárias. Depois de concedido, o benefício sofre defasagem constante em razão dos índices de reajuste da renda mensal que nunca correspondem à real perda do poder aquisitivo. Parece que, nessa questão, se parte da premissa de que quem deixa de trabalhar por se aposentar ou estar incapacitado não tem mais tantas necessidades. Mas não é assim, o segurado contribuiu durante toda a sua vida laboral justamente para ter a proteção previdenciária que necessita para viver com dignidade quando não pode mais trabalhar. E quando a previdência social lhe paga o benefício, não está fazendo nenhum favor, mas, sim, pagando a cobertura previdenciária para a qual ele contribuiu.

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ENTREVISTA Temas atuais de Direito Previdenciário 03/11/2011 por Marisa Santos

Como a senhora avalia a legislação previdenciária no Brasil?

Nossos legisladores parecem não entender muito bem a natureza e finalidade da

Previdência Social. De início, porque se trata de um seguro social, ao qual só têm acesso

aqueles que pagam contribuições previdenciárias. Depois, porque a finalidade desse

seguro é justamente de dar cobertura ao segurado quando já não pode trabalhar, e aos

seus dependentes, quando morre ou é recolhido à prisão. É um sistema eminentemente

contributivo que, atualmente, está tão desvirtuado que não encoraja ninguém a recolher

contribuições previdenciárias.

Depois de concedido, o benefício sofre defasagem constante em razão dos índices de

reajuste da renda mensal que nunca correspondem à real perda do poder aquisitivo.

Parece que, nessa questão, se parte da premissa de que quem deixa de trabalhar por se

aposentar ou estar incapacitado não tem mais tantas necessidades. Mas não é assim, o

segurado contribuiu durante toda a sua vida laboral justamente para ter a proteção

previdenciária que necessita para viver com dignidade quando não pode mais trabalhar.

E quando a previdência social lhe paga o benefício, não está fazendo nenhum favor,

mas, sim, pagando a cobertura previdenciária para a qual ele contribuiu.

Por outro lado, a legislação previdenciária tem adotado um viés assistencial, o que

acaba por desvirtuar o sistema. É o caso da cobertura previdenciária para os

trabalhadores rurais que nunca pagaram contribuições previdenciárias. Esses

trabalhadores devem ter proteção do Estado, mas nunca poderiam estar abrigados pelo

sistema previdenciário. A Previdência e a Assistência Social são regimes distintos,

caixas diferentes, de modo que a previdência não pode ser onerada com a dívida que

deveria ser da assistência social.

Como é o nosso Direito Previdenciário em relação ao Direito Comparado?

Todos os dias vemos nos jornais notícias de que em vários países - França, Espanha,

Itália, etc - há movimentos sociais reivindicando direitos no setor previdenciário,

fazendo as mesmas reclamações que temos no Brasil: os benefícios estão defasados. A

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previdência social acaba sendo, na verdade, um reflexo das crises econômicas, que

geram desemprego e, por consequência, a diminuição de valores que ingressam no

sistema e o aumento da quantidade de pessoas que passam a receber cobertura

previdenciária. As contas não fecham mesmo.

Como a senhora se posiciona sobre o Fator Previdenciário?

Essa é, na minha opinião, a inconstitucionalidade mais evidente que existe na legislação

previdenciária. A Emenda Constitucional 20/98 não impôs a idade mínima como

requisito para a aposentadoria por tempo de contribuição. Como o governo ficou

vencido nessa questão quando foi aprovada a Emenda 20, apressou-se em encaminhar o

projeto que resultou na Lei 9876/99, que criou o fator previdenciário. Na prática, o FP

substitui, insidiosamente, o requisito da idade mínima porque quanto mais jovem o

segurado que pretende se aposentar menor será o valor da renda mensal de sua

aposentadoria. Além de evidente afronta à Emenda 20, o FP prejudica justamente

aqueles segurados que iniciaram sua vida contributiva mais cedo, ou seja, que

trabalharam mais tempo.

Em relação ao polêmico tema da Desaposentação qual sua opinião?

A tese da Desaposentação surgiu depois que a Lei passou a prever a contribuição do

aposentado que retorna ao trabalho, mas extinguiu o pecúlio, que lhe dava direito de

reaver esses valores quando deixasse a atividade laboral. Ocorre que muitos segurados

se aposentaram pela proporcional e continuaram trabalhando e contribuindo, ao mesmo

tempo em que viram os valores de seus proventos da aposentadoria serem consumidos

lentamente em razão de reajustes que não refletem a real perda aquisitiva. Entretanto, na

minha opinião, a Desaposentação, atualmente, não tem fundamento legal porque o

segurado continuou recebendo normalmente a sua aposentadoria e, equivocadamente,

diz que está renunciando a esse benefício, quando, na verdade, pretende apenas que seja

feito um novo cálculo, dessa vez com o aproveitamento das contribuições posteriores. É

necessário que a lei disponha sobre isso, que defina se os valores já recebidos devem ser

ou não restituídos pelo segurado e, nesse caso, como será feito esse cálculo. A situação

é pior quando se trata de pessoa que está aposentada pelo INSS e depois passa em

concurso público. Quando chega o momento de se aposentar pela compulsória, aos 70

anos, vai receber proventos proporcionais. Então, pede a Desaposentação para acrescer

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o tempo do regime geral ao de serviço público para, então, receber a aposentadoria

integral. Essa situação é muito séria porque, nesse caso, o INSS deverá compensar

financeiramente o regime do servidor, que pagará a aposentadoria. Mas como fará isso

se já pagou a aposentadoria para o segurado? São questões que dependem de lei.

Como a senhora vê a atual revisão de benefícios?

Todas as teses de revisão de benefícios estão baseadas no mesmo argumento: violação à

Constituição porque os cálculos da renda mensal inicial e os reajustes subsequentes

violam a garantia da preservação do valor real do benefício. Há teses que são

procedentes, mas há outras que não se sustentam porque já há jurisprudência do STF

contrária à pretensão do segurado.

Qual sua opinião sobre a regulamentação da aposentadoria especial para

servidores?

Os servidores públicos aguardam a regulamentação de sua aposentadoria especial desde

outubro de 1.988, quando entrou em vigor a Constituição. Esse benefício depende de lei

complementar para sua implantação. Com a Emenda 47/2005, ficou prevista a

aposentadoria especial para os segurados do regime geral e do regime próprio

portadores de deficiência e para os que exerçam atividades de risco, sempre dependendo

de lei complementar. Não entendo por que a lei complementar não foi editada mesmo

depois de mais de 20 anos. Os segurados do regime geral (INSS) têm direito ao

benefício na forma da Lei 8.213/91. Mas os servidores públicos ainda aguardam a

edição da lei complementar. Há muitos mandados de injunção no STF garantindo a

aposentadoria especial para o servidor público com as mesma regras do regime geral,

justamente porque uma norma constitucional não pode ser apenas uma promessa

inconseqüente, como afirmou o relator de um desses mandados de injunção. Essa

situação já é insustentável porque penaliza trabalhadores que comprovadamente

exercem suas atividades expostos a todos os perigos e não têm a proteção previdenciária

que a Constituição garante. E não devemos esquecer que os servidores públicos

contribuem com 11% do valor bruto dos seus ganhos, calculados antes do desconto do

IR, e sem limitações de teto, como ocorre no regime geral. Ou seja, estão também nesse

aspecto penalizados.

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Como a senhora vê a aplicação do Direito Previdenciário nos juizados especiais?

Os Juizados Especiais Federais alavancaram o crescimento da importância do Direito

Previdenciário porque facilitaram o acesso à justiça para um grande número de

segurados e dependentes que não sabiam nem onde ir para defender seus direitos.

Qual seu posicionamento acerca da prestação continuada e o cálculo de renda da

família?

Pelas normas constitucionais, a lei pode estabelecer o valor da renda familiar para fins

de benefício assistencial. Porém, o que não pode é fixar valor que, por si só, seja

inconstitucional. É o que ocorre com o limite mínimo de ¼ do salário mínimo da renda

per capita familiar. A Constituição estabelece que o salário e os benefícios

previdenciários não podem ser inferiores ao salário mínimo, quantificando e

qualificando o bem estar social, ou seja, não há bem estar sem o mínimo necessário à

sobrevivência com dignidade. Sendo assim, se admitirmos que pode ser fixado um valor

menor que o salário mínimo para a renda per capita familiar, estaremos dizendo algo

terrível: o assistido pode sobreviver sem dignidade.

Qual seu posicionamento acerca da responsabilidade objetiva dos sócios pelos

débitos previdenciários?

Sonegar ou apropriar-se indevidamente de contribuições previdenciárias são crimes

contra o sistema previdenciário. Essas ações são extremamente lesivas porque acabam

por contribuir para o sucateamento do sistema, em prejuízo do trabalhador. É justo que

quem administra empresas responda por esses desvios, tanto na esfera penal quanto na

civil.

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4. O ORDENAMENTO JURÍDICO PÁTRIO VEDA A DISPENSA DESMOTIVADA E SEM JUSTA CAUSA

4.1 DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

4.1.1 Do conceito

Para conceituar os direitos fundamentais importa transcrever as  magníficas palavras do eminente jurista Bonavides (2001):

Criar e manter os pressupostos elementares de uma vida na liberdade e na dignidade humana, eis aquilo que os direitos fundamentais almejam, segundo Hesse, um dos clássicos do direito público alemão contemporâneo. Ao lado dessa acepção lata, que é a que nos serve de imediato no presente contexto, há outra, mais restrita, mais específica e mais normativa, a saber, direitos fundamentais são aqueles direitos que o direito vigente qualifica como tais. (BONAVIDES, 2001, p.514)

Os direitos fundamentais podem ser considerados aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado. Sendo que todos os direitos fundamentais equivalem a vínculos substanciais que condicionam a validade substancial das normas produzidas no âmbito estatal, ao mesmo tempo em que expressam os fins últimos que norteiam o moderno Estado constitucional de Direito, dentre eles, na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, a concretização do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana.

Pode-se afirmar que os direitos fundamentais vão além do catálogo do art. 5º ao art.17 da Constituição Federal de 1988[16]. Ou seja, o princípio da dignidade da pessoa humana, que foi objeto de análise, serve como critério para a construção de um conceito materialmente aberto de direitos fundamentais na nossa ordem constitucional. Para além daqueles direitos e garantias expressamente reconhecidos como tais pelo constituinte, existem direitos fundamentais assegurados em outras partes do texto constitucional que não no Título II, sendo também acolhidos os direitos positivados nos tratados internacionais em matéria de Direitos Humanos. Igualmente, conforme expressa previsão do artigo 5º, § 2º, da Carta de 1988, foi chancelada a existência de direitos não-escritos decorrentes do regime e dos princípios da nossa Constituição, assim como a revelação de direitos fundamentais implícitos, subentendidos naqueles expressamente positivados. De início, pode-se afirmar que o princípio da dignidade da pessoa humana serve como diretriz material para a identificação de direitos implícitos e sediados em outras partes da Constituição.

Na verdade, não se questiona o fato de que os direitos fundamentais expressam uma ordem de valores objetiva, cujos efeitos normativos alcançam todo o ordenamento jurídico, no âmbito do que se convencionou denominar de eficácia irradiante.

4.1.2 Classificação dos direitos fundamentais

Os direitos fundamentais são classificados em dimensões devido à mutação histórica experimentada por esses direitos e pelo caráter de complementariedade. Os da primeira dimensão são os direitos da liberdade, os da segunda são os direitos sociais, culturais e econômicos bem como os direitos coletivos ou de coletividades, os da terceira são os

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direitos da fraternidade e os da quarta são, segundo o ilustre professor Bonavides (2001, p.516-526), o direito á democracia, o direito á informação e o direito ao pluralismo.  

Merecem destaque, neste trabalho, os direitos fundamentais da segunda dimensão. Pois tais direitos podem ser considerados uma densificação do princípio da justiça social, além de corresponderem à reinvidicação das classes menos favorecidas, de modo especial, a classe operária, a título de compensação, em virtude da extrema desigualdade que caracterizava e ainda caracteriza as relações com a classe empregadora, destacadamente a detentora de um maior ou menor grau de poder econômico. Dentre os direitos fundamentais da segunda dimensão está o art. 7º, inciso I, da Constituição Federal de 1988, objeto de análise no presente trabalho, dispondo ser direito dos trabalhadores urbanos e rurais “a relação de emprego protegida contra a despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos”.

4.1.3 A vinculação das entidades privadas aos direitos fundamentais

O constituinte não previu expressamente uma vinculação das entidades privadas aos direitos fundamentais. Porém, através do art. 5º, §1º[17], da Carta Constitucional de 1988, pode-se considerar que todos os direitos fundamentais são normas de aplicabilidade imediata, ou seja, a eficácia e aplicabilidade das normas de direitos e garantias fundamentais implica a vinculação do poder público, nas suas mais variadas formas de expressão, incluindo-se, por óbvio, o legislador privado e os órgãos jurisdicionais competentes para a aplicação destas normas, no âmbito de seu poder-dever de solucionar os conflitos entre os particulares. Portanto, observa-se que a ausência de uma referência expressa à vinculação do poder público aos direitos fundamentais não afasta a circunstância de que esta vinculação existe.    

Atualmente, partindo da idéia de que o direito à propriedade privada não é absoluto e, portanto, também sujeito às restrições, houve a superação da concepção liberal-burguesa de que os direitos fundamentais são oponíveis apenas e sempre contra o Estado. O ponto de partida para o reconhecimento de uma eficácia dos direitos fundamentais na esfera das relações privadas é a constatação de que, no Estado Social de Direito, os direitos fundamentais não apenas têm por escopo proteger o indivíduo das ingerências por parte dos poderes públicos na sua esfera pessoal, mas também contra os mais fortes no âmbito da sociedade, isto é, os detentores de poder social e econômico. Importa trazer as palavras de Delgado (2004) a respeito destes detentores do poder social e econômico: “Hoje é hegemônica na Ciência Política a conclusão de que existem centros distintos de poder salpicados no interior da sociedade civil, ao lado do centro de poder principal que se conhece, consubstanciado no Estado.” (DELGADO, 2004, p. 646)

Sarlet (2002, p. 112-114) leciona que, por sua natureza igualitária e por exprimir a idéia de solidariedade entre os membros da comunidade humana, o princípio da dignidade da pessoa vincula também no âmbito das relações entre os particulares. A constatação do dever de proteção e respeito dos particulares ou das entidades privadas ao direito da dignidade da pessoa humana de um indivíduo decorre do fato que o Estado não ser o único e maior inimigo das liberdades e direitos fundamentais em geral. A opressão socioeconômica exercida pelos assim detentores dos poderes sociais e econômicos tais como a dispensa desmotivada  e sem justa causa do empregado pelo empregador, prova essa afirmativa. A própria eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre os

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particulares tem encontrado importante fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana, fazendo com que os direitos fundamentais vinculassem também diretamente os particulares nas relações entre si, mormente na relação empregatícia.

Segundo Delgado (2004, p. 628), o poder empregatício concentra um conjunto de prerrogativas de grande relevo socioeconômico, que favorecem o empregado, conferindo-lhe enorme influência no âmbito do contrato e da própria sociedade.

Além de vincularem todos os poderes públicos, os direitos fundamentais exercem sua eficácia vinculante também no âmbito das relações jurídicas entre particulares. Certamente, pode-se afirmar que, dentre os direitos fundamentais, há direitos que têm por destinatário única e exclusivamente os órgãos estatais, tais como os direitos políticos, as garantias fundamentais na esfera processual como o habeas corpus e o mandado de segurança, assim como parte dos direitos fundamentais sociais, a exemplo dos direitos à assistência social e previdência social. Por outro lado, não há como negar também que há direitos fundamentais que se dirigem diretamente aos particulares, tais como diversos direitos sociais, de modo especial no que diz respeito aos direitos dos trabalhadores que têm por destinatário os empregadores, em regra, particulares.

Porém, mesmo nos casos em que parece indiscutível uma vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, é possível questionar qual a forma desta vinculação, se é direita, ou seja, os acordos de direito privado, os negócios e atos jurídicos não podem contrariar os direitos fundamentais, ou indireta, a aplicação dos direitos fundamentais para a solução de conflitos de direito privado deve realizar-se mediante os meios colocados à disposição pelo próprio sistema jurídico seja no plano da legislação, seja no plano da interpretação realizada pelo poder judiciário. Há duas concepções distintas, segundo SARLET (2000, p.128), no que pertine aos destinatários da vinculação dos direitos fundamentais na esfera privada: as relações que se estabelecem entre indivíduo e os sujeitos particulares detentores de poder social e as relações entre os particulares em geral, caracterizadas por uma pelo menos tendencial igualdade, já que, na última concepção, todos os personagens envolvidos na relação jurídica estão situados fora das relações de poder.

A princípio, há que se reconhecer uma vinculação direta no caso de entidades particulares dotadas de poder social e econômico, por se tratar de uma posição semelhante a que se registra no âmbito das relações entre o particular e o Estado. Isto é, configura uma relação caracterizada por um significativo desnível poder capaz de afetar, inequivocadamente, a paridade entre os pólos da relação jurídico-privada, configurando o desequilíbrio de poder social e econômico na referida relação em causa. Tal entendimento decorre do fato dos direitos fundamentais dos indivíduos carecerem de proteção também em relação aos agentes privados, especialmente grupos empresariais e grandes corporações, que são dotados de significativo poder social e econômico.  Tal observação é feita por Sarlet (2000):

Se mesmo em Estados desenvolvidos e que, de fato, assumem (em maior ou menor grau) as feições de um estado democrático (e social) de Direito já se aceita – inobstante as ressalvas já referidas – que nas relações cunhadas pela desigualdade, o particular mais ‘poderoso’ encontra-se diretamente vinculado aos direitos fundamentais do outro particular (embora ambos sejam titulares de direitos fundamentais), mais ainda tal vinculação deve ser reconhecida na ordem jurídica nacional, onde, quando muito,

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podemos falar na previsão formal de um estado social de Direito que, de fato, acabou sendo concretizado apenas para um diminuta parcela da população. De fato, é perfeitamente viável questionar até que ponto o assim denominado estado social e democrático de Direito, entre nós e ao menos para a maior parte da população, não passou até agora de um projeto insculpido na constituição formal. No mínimo, importa reconhecer que quanto mais sacrificada a liberdade e igualdade substanciais, maior haverá de ser o grau de proteção exercido pelo Estado no âmbito dos seus deveres gerais e específicos de proteção, atuando positivamente no sentido de compensar as desigualdades, mediante intervenção na esfera da autonomia privada e liberdade contratual.(SARLET, 2000, 153)

Ainda a respeito do poder social e econômico, no âmbito da relação de emprego, percebe-se que o detentor de tal poder é quem possui os meios de produção, ou seja, o empregador, neste sentido importa transcrever a preciosa lição de Silva, A. (1992):

(...) Quem governa o modo de produção capitalista é quem possui os meios de produção, assim como, no regime feudal, quem fazia a guerra e impunha a paz era o detentor da propriedade imóvel. Mudou-se apenas o objeto da propriedade para que se atualizasse na história o domínio de uma classe sobre outra. (Silva, A., 1992, p.15).

Contudo, o particular ou entidade detentor de certo grau de poder social não deixa de ser também titular de direitos fundamentais, devendo-se aferir a variação da intensidade do exercício deste poder, para que ocorra diversificação quanto ao grau e medida desta aplicação direta e inviabilize a existência de soluções uniformes, e por conseqüência, a eficácia direta absoluta dos direitos fundamentais em face os particulares. As soluções da uma eventual violação aos direitos fundamentais por um sujeito privado detentor de poder social podem apenas ser devidamente aferidas à luz do caso concreto mediante ponderação de direitos, impedindo um tratamento idêntico ao das relações particular-poder público, vez que as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais possuem natureza eminentemente principiológica. Ou seja, não se pode criar restrições à atividade do empregador capaz de inviabilizar a sua atividade econômica e leva-lo à ruína. Tal ressalva é bem observada por Sarlet (2000):

Desde logo, cumpre assinalar que – a despeito do mérito de ampliar as possibilidades de uma vinculação direta dos particulares - também esta concepção não poderá ser aceita de forma ampla e irrestrita, pena de uma simplificação equivocada. Em primeiro lugar, há que levar a sério a objeção de que não é a existência de uma situação de ‘poder privado’ ou de desigualdade na relação entre particulares que irá alterar o caráter jurídico-privado da relação jurídica em causa, nem afastara a circunstância de que, em última análise, estamos – também aqui – diante de uma relação entre dois titulares de direitos fundamentais, já que, à evidência, também o particular ou entidade detentor de certo grau (por maior que seja) de poder social, não deixa de ser titular de direitos fundamentais. Assim, também nas relações deste tipo não se poderá deixar de reconhecer a existência de um conflito de direitos fundamentais, tornando-se indispensável uma compatibilização (harmonização) à luz do caso concreto, impedindo um tratamento idêntico ao das relações particular-poder público. (SARLET, 2000, p.129-130).

Vale ainda ressaltar que a tensão inevitável entre o princípio da autonomia privada de modo geral, e a liberdade contratual como sua principal manifestação, e outros direitos

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fundamentais, assim como o da dignidade humana e o do valor social do trabalho, muito embora possa apresentar dimensões específicas, é idêntica aos conflitos entre quaisquer outros dos direitos fundamentais numa concepção calcada na idéia da ponderação entre princípios diante um determinado caso concreto.   

Ademais, não se pode desconsiderar outros argumentos, que também merecem ser citados a favor da vinculação direta do particular detentor do poder social. Primeiramente pode-se afirmar seguramente que há a exigência do dever geral de respeito por parte de todos, seja do Estado, seja de particulares em relação aos direitos fundamentais. Isto é, os direitos fundamentais constituem normas expressando valores aplicáveis para toda a ordem jurídica, como decorrência do princípio da unidade da ordem jurídica, bem como em virtude do postulado da força normativa da Constituição. Não há como aceitar a hipótese da vinculação exclusivamente do poder público aos direitos fundamentais. Além disso, conforme já mencionado, na Constituição Federal de 1988 nos deparamos com normas, tais como os direitos sociais dos trabalhadores elencados no art. 7º, que expressamente vinculam sujeitos particulares, mais especificamente os empregadores.

Por fim, há que levar em conta o fato de que os direitos fundamentais constitucionalmente assegurados constituem concretizações do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, de tal sorte que todas as normas de direitos fundamentais, ao menos no que diz com o seu conteúdo em dignidade humana, vinculam diretamente o Estado e os particulares. Vejamos o que afirma Sarlet (2000), que cita a doutrina e jurisprudência constitucional germânica nesta seara:

Como bem o demonstrou Jörg Neuner, em recente e instigante tese de cátedra apresentada na Universidade de Munique, Alemanha, a partir de uma exegese do art. 1º da Lei Fundamental da Alemanha, tanto o princípio da dignidade da pessoa humana (inciso I), quanto os direitos humanos (inciso II), por sua natureza indisponível, vinculariam sempre até mesmo o Poder Constituinte Originário, sendo portanto, inquestionável a vinculação do poder público e dos próprios agentes privados. Segundo Neuner, tal conclusão se revela como imperativa, desde uma perspectiva histórica (já que os autores da lei Fundamental partiram do reconhecimento de um núcleo de direitos de cunho supraestatal, que a todos vinculam), encontrando, sustentáculo já na própria expressão literal do texto constitucional, na medida em que, consoante dispõe o art. 1º da Lei Fundamental, a ‘ dignidade da pessoa humana é intangível’ (die Würde des Menschen ist unantastbar) e que o povo alemão – e não apenas o poder público – reconhece os direitos humanos. Por derradeiro, ainda de acordo com Neuner, também uma interpretação sistemática e teleológica implica o reconhecimento de uma vinculação multidirecionada (vertical e horizontal) do art. 1º da lei Fundamental. Com efeito, tal conclusão se impõe seja em virtude da existência de normas de direitos fundamentais que expressamente vinculam os particulares, seja em razão de que estas normas integram o rol das ‘cláusulas pétreas’, ao menos, no que diz com o seu conteúdo em dignidade humana. Para além disso, resulta evidente que a dignidade da pessoa humana não se encontra sujeita apenas às agressões oriundas do Estado, mas também de particulares, já que, em verdade, pouco importa de quem provém a ‘bota no rosto do ofendido’ . (SARLET, 2000, p.149).

4.1.4 Direitos fundamentais e o dever de proteção

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Os direitos fundamentais constituíam e ainda constituem limites negativos à atuação do Poder Público, impedindo ingerências indevidas na esfera dos bens jurídicos fundamentais. Porém, com a teoria dos deveres de proteção decorrente das normas definidoras de direitos fundamentais, impõe-se aos órgãos estatais o dever de proteção dos particulares mais frágeis contra agressões aos bens jurídicos fundamentais constitucionalmente assegurados, inclusive quando as mencionadas agressões forem decorrentes de outros particulares, ou seja, uma atuação positiva do Estado em defesa do indivíduo perante particulares mais poderosos no aspecto social e econômico. Segundo Alexy (1993, p. 435), por “derechos a protección habrá e entenderse aquí los derechos del titular de derecho fundamental frente al Estado para que este lo proteja de intervenciones de terceros.”

Quanto a Teoria do Dever de Proteção, preconiza Mendes (1999):

A concepção que identifica os direitos fundamentais como princípios objetivos legitima a idéia de que o Estado se obriga não apenas a observar os direitos de qualquer indivíduo em face das investidas do Poder Público (direito fundamental enquanto direito de proteção ou de defesa – Abwehrrecht), mas também a garantir os direitos fundamentais contra agressão propiciada por terceiros (Schutzpflicht des Staats)

(...)

A jurisprudência da Corte Constitucional alemã acabou por consolidar entendimento no sentido de que do significado objetivo dos direitos fundamentais resulta o dever do Estado não apenas de se abster de intervir no âmbito de proteção desses direitos, mas também de proteger esses direitos contra a agressão ensejada por atos de terceiros.

Essa interpretação do Bundesverfassungsgericht empresta sem dúvida uma nova dimensão aos direitos fundamentais, fazendo com que o Estado evolua da posição de adversário (Gegner) para uma função de guardião desses direitos (Grundrechtsfreund oder Grundrechtsgarant).