TEMAS AVANÇADOS POLÍCIA JUDICIÁRIA...Criminal pela Polícia Judiciária (Lumen Juris, 2016) e...

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2020 Coordenadores Eduardo Fontes Henrique Hoffmann Organizadores Eduardo Fontes | Henrique Hoffmann TEMAS AVANÇADOS de POLÍCIA JUDICIÁRIA 4.ª edição Revista, atualizada e ampliada Organizadores Eduardo Fontes Henrique Hoffmann Autores Adriano Sousa Costa Eduardo Fontes Francisco Sannini Gabriel Habib Henrique Hoffmann Márcio Adriano Anselmo Ruchester Marreiros Barbosa

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2020

Coordenadores

Eduardo FontesHenrique Hoffmann

Organizadores Eduardo Fontes | Henrique Hoffmann

TEMAS AVANÇADOS de

POLÍCIA JUDICIÁRIA

4.ª ediçãoRevista, atualizada e ampliada

OrganizadoresEduardo Fontes

Henrique Hoffmann

AutoresAdriano Sousa Costa

Eduardo FontesFrancisco Sannini

Gabriel HabibHenrique Hoffmann

Márcio Adriano AnselmoRuchester Marreiros Barbosa

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Capítulo 1

Moderno conceito do inquérito policial

Henrique Hoffmann

O Brasil adotou um sistema de investigação preliminar conduzido pela polícia judiciária, sobressaindo o inquérito policial como principal procedimento investigativo para a busca da verdade na fase pré-proces-sual. Desde o século XIX, consolidou-se como mecanismo central de investigação criminal, consagrado pela Lei 2.033/1871 e pelo Decreto 4.824/1871, legislação esta que o conceituava de maneira singela como “todas as diligências necessárias para o descobrimento dos fatos crimi-nosos, de suas circunstâncias e de seus autores e cúmplices”.

O atual arcabouço legal não fornece o conceito de inquérito policial, tarefa delegada à doutrina. O conceito do procedimento policial costumei-ramente difundido é formado por sua natureza jurídica, características e finalidades. Isso significa que sua correta definição depende da apropriada concepção de sua essência, objetivos e traços marcantes.

Segundo doutrina amplamente difundida, inquérito policial é o procedimento administrativo presidido pelo delegado de polícia, inqui-sitorial, informativo, dispensável e preparatório1. Essas supostas particu-laridades não resistem a um exame mais minucioso.

1. CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 148; AVENA, Norberto Cláudio Pâncaro. Processo Penal Esquematizado. Rio de Janeiro: Forense, 2014, TOURINHO FILHO, Fernando

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Na verdade, o inquérito policial é o processo administrativo presidido pelo delegado de polícia natural, apuratório, informativo e probatório, indispensável, preparatório e preservador. Examinemos o conceito ana-liticamente2:

a) processo administrativo3, e não um procedimento: apesar da re-sistência em utilizar o termo processo na seara não judicial, nada impede o etiquetamento do inquérito policial como processo administrativo sui generis,  no contexto da chamada processualização do procedimento4. Apesar de não existirem partes, vislumbram-se imputados em sentido amplo5. E nada obstante não haver na fase policial um litígio com acusação formal, existem, sim, controvérsias a serem dirimidas por decisões do delegado de polícia que podem resultar na restrição de direitos funda-mentais do suspeito (tais como prisão em flagrante, liberdade provisória com fiança, indiciamento e apreensão de bens). Os atos sucessivos afetam inegavelmente exercício de direitos fundamentais6, evidenciando uma atuação de caráter coercitivo que representa certa agressão ao estado de inocência e de liberdade7, ainda que não se possam catalogar tais restri-ções de direitos como sanções.

b) presidido pelo delegado de polícia natural: o inquérito policial só pode ser presidido por delegado de polícia (mediante juízos de prognose e diagnose)8, e nenhuma outra autoridade9. E não por qualquer autoridade de polícia judiciária. Por exigência do princípio do delegado de polícia

da Costa. Processo Penal. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 176; p. 240 e ss.2. Explicação aprofundada sobre todos esses tópicos pode ser encontrada nos nossos livros Investigação

Criminal pela Polícia Judiciária (Lumen Juris, 2016) e Polícia Judiciária no Estado de Direito (Lumen Juris, 2017 – no prelo).

3. HOFFMANN, Henrique. Há sim contraditório e ampla defesa no inquérito policial. Revista Consultor Jurídico, nov.2016. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-nov-01/academia-policia-sim--contraditorio-ampla-defesa-inquerito-policial>. Acesso em 1.nov.2016.

4. DANTAS, Miguel Calmon. Direito Fundamental à Processualização. In: Constituição e Processo. DIDIER JÙNIOR, Fredie; WAMBIER, Luiz Rodrigues; GOMES JÙNIOR, Luiz Manoel (Coord). Salvador: Juspodivm, 2007, p. 416.

5. CIDH, Caso Barreto Leiva vs. Venezuela, Sentença de 17/11/2009.6. ROCHA, Sérgio André. Processo Administrativo Fiscal. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2010, p. 38; BA-

CELLAR FILHO, Romeu Felipe. Processo Administrativo Disciplinar. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 58.7. LOPES JÚNIOR, Aury; GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Investigação Preliminar no Processo Penal. São

Paulo: Saraiva, 2013, p. 472.8. HOFFMANN, Henrique. Juízos de prognose e diagnose do delegado são essenciais na investigação. Re-

vista Consultor Jurídico, ago.2016. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-ago-09/academia-policia-juizos-prognose-diagnose-sao-essenciais-investigacao>. Acesso em 9.ago.2016.

9. Art. 2º, §1º da Lei 12.830/13; STF, Tribunal Pleno, RE 593.727, rel. min. Cezar Peluso, DJ 14/5/2015.

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Cap. 1 • MODERNO CONCEITO DO INQUÉRITO POLICIAL 29

natural10, o delegado a coordenar os atos de determinado inquérito policial só pode ser aquele definido conforme regras pré-estabelecidas, vedando-se indicação ad hoc tendenciosa, sob pena de o Estado-Investigação falhar no dever de investigar de forma imparcial e célere11. Consequentemente, veda-se a avocação e redistribuição arbitrárias do inquérito policial, bem como a remoção despótica do delegado de polícia12.

c) apuratório, e não inquisitivo: para restabelecer a igualdade, tendo em vista o desnível provocado pelo próprio criminoso, é preciso que o Estado tenha alguma vantagem na etapa investigativa, para a eficiente colheita de vestígios13. Essa vantagem se traduz no elemento surpresa, materializada no sigilo inicial das medidas investigativas da polícia judiciária; ao serem efetivadas sem prévia notificação do suspeito, as diligências policiais podem ter um mínimo de eficácia na colheita de elementos informativos e probatórios. O segredo não é absoluto, não afetando o direito de o investigado ter ciência dos atos de investigação já concluídos e documentados nos autos, para que possa se defender14. Ocorre que o termo inquisitivo, comumente utilizado para designar essa característica, é mais apropriado para diferenciar a fase processual, e não a investigação preliminar. Aliás, utilizando esse critério para caracterizar o inquérito policial, ele se aproxima mais do sistema acusatório do que do inquisitorial, pois não concentra funções numa única autoridade nem ignora direitos do investigado (como integridade física, informação e de-fesa). Além disso, a palavra inquisitivo remete à abusiva Santa Inquisição, que concebia o imputado como mero objeto, e não sujeito de direitos. Portanto, o vocábulo que melhor indica essa característica é apuratório, por indicar que se trata de apuração criminal que compatibiliza sigilo inicial, imparcialidade e dignidade da pessoa humana.

d) informativo e probatório15, e não somente informativo: o inquérito policial de fato produz elementos informativos, em relação aos quais o

10. ALENCAR, Rosmar Rodrigues; TÁVORA, Nestor. Curso de Direito Processual Penal. Salvador: JusPodivum, 2016, p. 148-149; NUCCI, Guilherme de Souza. Prática Forense Penal. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 32; BARBOSA, Ruchester Marreiros. Princípio do Delegado Natural. In: HOFFMANN, Henrique. et al. Investigação Criminal pela Polícia Judiciária. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016, p. 22-29.

11. CIDH, Caso Rodríguez Vera vs. Colômbia, Sentença de 14/11/2014.12. Art. 2º, §§ 4º e 5º da Lei 12.830/13.13. ARSENÍO, Enrique Jiménez. Derecho Procesal Penal. v. 1. Madrid: Revista de Derecho Privado, p. 104.14. Súmula vinculante 14 do STF; art. 7º, XIV do EOAB.15. HOFFMANN, Henrique. “Mera informatividade” do inquérito policial é um mito. Revista Consultor

Jurídico, nov.2016. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-nov-29/academia-policia--mera-informatividade-inquerito-policial-mito>. Acesso em 29.nov.2016.

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contraditório é regrado quanto ao direito de informação, ou seja, condi-cionado à conclusão das diligências policiais (basicamente as oitivas, que serão repetidas em juízo). Mas também fabrica elementos probatórios, em que há incidência de contraditório, ainda que diferido para a fase processual (provas cautelares e irrepetíveis). Esse contraditório postergado é extrínseco à produção da prova e ocorre após a sua formação16, o que significa que a prova foi efetivamente colhida no bojo do inquérito policial sob presidência do delegado de polícia17. Como consequência, eventuais vícios no procedimento investigativo podem, sim, acarretar nulidade18 inclusive afetando o ulterior processo penal19.

e) indispensável20, e não meramente dispensável: muito embora seja possível o oferecimento de denúncia desacompanhada de inquérito, a esmagadora maioria dos processos penais é antecedida da investigação policial. Isso não ocorre por acaso, mas em decorrência do sistema per-secutório brasileiro, que adota a investigação criminal por órgão estatal, e no qual os indícios suficientes de materialidade e autoria (justa causa) são obtidos por meio de diligências com a chancela do estado. Afinal, trata-se de garantia do cidadão, no sentido de que não será processado temerariamente, e exatamente por isso a persecução criminal não começa na etapa final do processo penal, mas sim na fase inicial consistente na investigação criminal. A própria Exposição de Motivos do CPP desta-ca que o inquérito policial traduz uma salvaguarda contra apressados e errôneos juízos, formados antes que seja possível uma precisa visão de conjunto dos fatos, nas suas circunstâncias objetivas e subjetivas. A instrução preliminar é a ponte que liga a notitia criminis ao processo pe-nal21, retratando a transição do juízo de possibilidade para probabilidade

16. LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. Salvador: Juispodivm, 2015, p. 51.17. ANSELMO, Márcio Adriano. Inquérito Policial como Instrumento de Obtenção de Provas. In: HOFFMANN,

Henrique. et. al.  Investigação Criminal pela Polícia Judiciária. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016, p. 63-67.

18. HOFFMANN, Henrique. Inquérito policial se sujeita a nulidades que contaminam o processo penal. Re-vista Consultor Jurídico, jan. 2017. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2017-jan-24/academia-policia-inquerito-policial-sujeita-nulidades-processo-penal>. Acesso em 24.jan.2017.

19. LOPES JÚNIOR, Aury; GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Investigação Preliminar no Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 343.

20. HOFFMANN, Henrique.  Inquérito policial é indispensável na persecução penal.  Revista Consultor Jurídico, dez.2015. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-dez-01/inquerito-policial--indispensavel-persecucao-penal>. Acesso em 1.dez.2015.

21. LOPES JÚNIOR, Aury. Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 41.

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Cap. 1 • MODERNO CONCEITO DO INQUÉRITO POLICIAL 31

pela via mais segura. E, justamente por esse motivo, mesmo quando o Ministério Público já dispõe dos elementos mínimos para propor a ação penal sem o inquérito policial, na maior parte das vezes prefere requisitar a sua instauração, não abrindo mão desse filtro processual. De mais a mais, não se deve perder de vista que, nos crimes de ação penal pública incondicionada (que são a maioria), a regra é a obrigatoriedade de ins-tauração do inquérito policial, e esse procedimento deve acompanhar a peça acusatória sempre que servir de suporte à acusação22. Portanto, a regra é a indispensabilidade, sendo a dispensabilidade uma exceção que por isso não pode ser erigida à característica do instituto.

f) preservador e preparatório23, e não apenas preparatório: o pro-cedimento policial é destinado a esclarecer a verdade acerca dos fatos delituosos relatados na notícia de crime, fornecendo subsídios para o ajuizamento da ação penal ou o arquivamento da persecução penal. Logo, o inquérito policial não é unidirecional24 e sua missão não se resume a angariar substrato probatório mínimo para a acusação. Não há entre a investigação policial e a acusação ministerial relação de meio e fim, mas de progressividade funcional. A polícia judiciária, por ser órgão imparcial (e não parte acusadora, como o Ministério Público), não tem compromisso com a acusação ou tampouco com a defesa. Além da função preparatória, de amparar eventual denúncia com elementos que constituam justa causa, existe a função preservadora, de garantia de direitos fundamentais não somente de vítimas e testemunhas, mas do próprio investigado, evitan-do acusações temerárias ao possibilitar o arquivamento de imputações infundadas. Assim, além de a função preparatória não ser a única, ela sequer é a mais importante.

Em outras palavras, inquérito policial consiste no processo adminis-trativo apuratório levado a efeito pela polícia judiciária, sob presidência do delegado de polícia natural; em que se busca a produção de elementos informativos e probatórios acerca da materialidade e autoria de infração penal, admitindo que o investigado tenha ciência dos atos investigativos após sua conclusão e se defenda da imputação; indispensável para evitar

22. Arts. 5º e 12 do CPP.23. HOFFMANN, Henrique. Missão da Polícia Judiciária é buscar a verdade e garantir direitos fundamen-

tais. Revista Consultor Jurídico, jul.2015. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-jul-14/academia-policia-missao-policia-judiciaria-buscar-verdade-garantir-direitos-fundamentais>. Acesso em 14.jul.2015.

24. NICOLITT, André Luiz. Manual de Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 201/202.

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acusações infundadas, servindo como filtro processual; e que tem a fina-lidade de buscar a verdade, amparando a acusação ao fornecer substrato mínimo para a ação penal ou auxiliando a própria defesa ao documentar elementos em favor do investigado que possibilitem o arquivamento, sempre resguardando direitos fundamentais dos envolvidos.

Aqueles que propositalmente buscam diminuir a importância do inquérito policial, ensinando que é dispensável, não possui valor pro-batório e não tem que ser conduzido com imparcialidade, transmitem a equivocada ideia de que o investigado não precisa se preocupar com a fase policial. Vendem a imagem de que o inquérito policial supostamente não teria qualquer relevância para o desfecho do processo penal, quando na verdade a regra é que investigação policial determina a sorte da etapa processual. De modo que, quando uma defesa despreparada abrir os olhos, no adiantar da persecução penal e com as provas devidamente produzidas, terá perdido a chance de adotar estratégia defensiva minimamente eficaz.

Não se pode olvidar que o inquérito policial, ao promover a colheita imparcial de vestígios e preservar direitos fundamentais, serve como barreira contra acusações draconianas, qualificando-se como devida investigação criminal25. Já passou da hora de o seu exame ser feito sob a lente constitucional, sem reducionismos antidemocráticos.

25. SANNINI NETO, Francisco. Polícia Judiciária e a Devida Investigação Criminal Constitucional. Atuali-dades do Direito, out. 2013. Disponível em: <http://atualidadesdodireito.com.br/franciscosanni-ni/2013/10/09/policia-judiciaria-e-a-devida-investigacao-criminal-constitucional>. Acesso em 25.abr.2016.

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Capítulo 6

Atuação do advogado no inquérito policial

Adriano Sousa Costa e Henrique Hoffmann

Com o advento da Lei 13.245/16, que alterou o artigo 7º do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei 8.906/94), deu-se início a um conjunto de novas diretrizes para uma maior atuação do causídico na de-fesa de clientes investigados pela prática de ilícitos. Alterações ulteriores, a exemplo da Lei 13.869/19 (Abuso de Autoridade) e da Lei 13.964/19 (Pacote Anticrime), surgiram em idêntico sentido. Por isso é que alguns passaram a enxergar a possibilidade de defenderem a existência de um sistema policial remodelado, finalmente de contornos acusatórios.

O inquérito policial1, consiste em importante ferramenta inquisito-rial de produção de elementos informativos e probatórios2, sem descurar de sua missão de resguardo dos direitos básicos dos envolvidos, inclusive do investigado.

A justificativa da manutenção da natureza inquisitorial é de fácil entendimento. Afinal, caso todos os atos investigatórios dependessem de

1. HOFFMANN, Henrique de. Inquérito policial é indispensável na persecução penal. Revista Consultor Jurídico, dez. 2015. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-dez-01/inquerito-policial--indispensavel-persecucao-penal>. Acesso em: 06 dez. 2015.

2. ANSELMO, Márcio Adriano. Inquérito policial é o mais importante instrumento de obtenção de pro-vas. Revista Consultor Jurídico. Ago. 2015. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-ago-04/academia-policia-inquerito-importante-instrumento-obtencao-provas>. Acesso em: 20 nov. 2015.

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prévia comunicação à defesa, restaria frustrada a localização de fontes de prova e comprometida a eficácia da Polícia Judiciária, em grande parte calcada no elemento surpresa.

Isso não significa que não haja incidência dos princípios do contra-ditório e da ampla defesa, que são perfeitamente aplicáveis durante a fase pré-processual, ainda que de forma mais tênue do que na fase processual. Nada obstante a afirmação reducionista de parte da doutrina e das próprias cortes superiores3 no sentido de que os postulados não se aproveitariam na investigação preliminar, o próprio Supremo Tribunal Federal reconhe-ceu a incidência flexibilizada das normas siamesas ao editar a famigerada Súmula Vinculante 14, que estabelece que é direito do defensor ter acesso amplo aos elementos de prova, desde que já documentados e no interesse do representado para o exercício do direito de defesa.

Isso posto, passemos à análise de algumas alterações trazidas pela Lei 13.245/16 à luz da nova Lei de Abuso de Autoridade e do Pacote Anticrime.

Estabelece o novel inciso XXI do artigo 7º do EOAB que é direito do advogado “assistir a seus clientes investigados durante a apuração de infrações, sob pena de nulidade absoluta do respectivo interrogatório ou depoimento e, subsequentemente, de todos os elementos investigatórios e probatórios dele decorrentes ou derivados, direta ou indiretamente, podendo, inclusive, no curso da respectiva apuração: a) apresentar razões e quesitos”.

Nota-se que a participação do advogado no inquérito policial conti-nua sendo, em regra, facultativa, possuindo o procurador do investigado o direito de participar da inquirição do cliente quando devidamente constituído. A Lei de Abuso de Autoridade reforça a possibilidade da pre-sença do advogado ao ato de interrogatório quando o cliente o contratar (art. 15, parágrafo único, II), com direito a entrevista prévia e reservada com o investigado (art. 20, caput) e, inclusive, a possibilidade de assento contíguo com o seu cliente (art. 20, parágrafo único).

Trata-se mais de prerrogativa do advogado constituído do que um direito do suspeito, cujo exercício da ampla defesa, conquanto seja mitigado na fase pré-processual, será pleno apenas na etapa processual. Afinal, o artigo 6º, V do CPP admite o emprego das regras do interro-

3. STF, HC 69.372, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 07/05/1993; STJ, HC 259.930, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, DJ 14/05/2013.

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Cap. 6 • ATUAÇÃO DO ADVOGADO NO INQUÉRITO POLICIAL 73

gatório judicial à fase policial apenas no que for aplicável, em respeito justamente à natureza inquisitiva do inquérito policial.

Nessa linha, inexiste direito de que todos os atos de investigação se-jam informados antecipadamente aos advogados. Corretamente, entende a Suprema Corte que o delegado não é obrigado a nomear defensor dativo ou tampouco a intimar o advogado contratado.4 Claro que a não exigência de intimação do advogado em nada afeta o direito do defensor de acesso aos elementos investigativos produzidos antes desse marco temporal.

Exceções importantes foram trazidas pelo Pacote Anticrime, de situações em que a atuação do advogado no inquérito policial se torna obrigatória. Nas investigações que envolvam o uso de força letal por policiais (agentes das forças de segurança pública elencados no art. 144 da CF), serão requeridas não só a citação da instauração do respectivo inquérito, mas também a indicação de um defensor ao agente da lei, caso ainda não o tenha. Nesse sentido estão o art. 14-A do Código de Processo Penal e art. 16-A, § 1º do Código de Processo Penal Militar.

A regra geral é que o causídico atuará imperativamente a partir da produção da “prova” oral relativa a seu cliente, ou seja, desde sua oitiva como indiciado (“interrogatório”) ou como mera testemunha (“depoi-mento”). É dizer, o advogado tem direito a assistir o seu cliente no curso do procedimento apuratório, mas não necessariamente desde o seu início formal, nem muito menos em face de todos os atos.

Até porque na maioria das investigações inexiste a priori um rol de investigados. À medida que as várias linhas investigativas vão submer-gindo e imergindo no arenoso terreno da apuração é que os envolvidos passam a se inserir verdadeiramente no contexto apuratório policial, quando são intimados a prestar seus esclarecimentos no bojo do proce-dimento apuratório, sejam como vítimas, testemunhas ou suspeitos. É nesse ponto que passa a ser necessário que a legislação dê garantias ao advogado para que ele possa acompanhar o seu cliente na oitiva (inde-pendentemente de já o ser considerado suspeito), sob pena de ele acabar produzindo, inadvertidamente, elementos em seu desfavor.

Sempre foi uma luta dos advogados ter mais voz ativa no contexto de apurações inquisitoriais, principalmente quando da realização de oi-

4. STF, Pet 7.612, Rel. Min. Edson Fachin, DJ 12/03/2019.

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tivas. Frequentemente, os advogados queriam expor razões ao presidente das investigações, bem como fazer questionamentos circunstanciados a seus clientes, e acabavam sendo silenciados, sob o argumento de que não deveriam interferir no curso da oitiva. Certamente esse parece ser um dos motes das alterações legislativas acerca do inquérito policial, que permitem ao defensor apresentar razões e quesitos nesse contexto, ou seja, garante ao causídico, além de poder assistir o seu cliente quando de sua oitiva, também justificar fatos e formular perguntas que auxiliem na apuração dos fatos. Evidentemente, a participação do defensor no inter-rogatório policial não deve se convolar em protagonismo na direção da colheita de elementos. A condução do ato deve ser feita pela autoridade policial, que ao final pode admitir perguntas pertinentes e relevantes (artigo 188 do CPP).

Essa atuação poderá também consistir na apresentação de razões, procurando apontar elementos a justificar um desindiciamento, levando o delegado de polícia a externar juízo de valor no relatório do inquérito policial por meio de análise técnico-jurídica5. Ou mesmo na formulação de quesitos relativos a eventual perícia.6

O impedimento do acesso do advogado ao interrogatório do clien-te gera nulidade absoluta7 do respectivo ato, bem como dos elementos (investigatórios ou probatórios) decorrentes.8 Some-se a isso a possível incidência do art. 15, parágrafo único, II, da Lei de Abuso de Autoridade, precipuamente em face da vedação à presença do advogado ao ato de interrogatório.

Embora ainda haja vozes sustentando que os vícios do inquérito policial constituem “meras irregularidades” sem o condão de acarretar nulidade no processo penal, há fartos exemplos em sentido contrário na jurisprudência das cortes superiores9 e na doutrina10. Nada mais correto,

5. Art. 2º, §6º da Lei 12.830/13.6. O que não significa alteração da natureza diferida do contraditório nessa prova não repetível, per-

manecendo a indicação de assistente técnico exclusiva da fase processual (art. 159, §5º, II do CPP).7. Cabe ressaltar que na nulidade absoluta, segundo a doutrina majoritária, o prejuízo é presumido,

não se aplicando o postulado do pas des nullités sans grief, e resta protegida da preclusão temporal.8. Teoria dos frutos da árvore envenenada ou prova ilícita por derivação (art. 5º, LVI da CF e STF, Tribunal

Pleno, HC 72.588/PB, Rei. Min. Maurício Corrêa, DJ 04/08/2000).9. STF, Rcl 22.557, Rel. Min. Edson Fachin, DJ 14/12/2015; STF, HC 106.566, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ

16/12/2014; STF, RE 680.967, Rel. Min. Luis Fux, DJ 24/06/2015; STJ, 24.253, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJ 20/02/2010; STJ, HC 137.349, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJ 05/04/2011; STJ, HC 149.250, Rel. Min. Adilson Vieira Macabu, DJ 07/06/2011.

10. GLOECKNER, Ricardo Jacobsen; LOPES Jr., Aury. Investigação Preliminar no Processo Penal.  São Paulo:  Saraiva, 2014, p. 339.

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tendo em vista que a investigação policial tem força suficiente para em-basar restrições à liberdade e ao patrimônio do cidadão.

A alínea “b” do inciso XXI do artigo 7º do EOAB, que permitia ao advogado requisitar diligências, foi vetada. Como explicado nas razões do veto, da forma como redigido, o dispositivo poderia levar à interpretação equivocada de que se trataria de ordem11. Persiste, todavia, o direito do advogado a requerer diligências, que serão ou não realizadas a juízo discricionário do delegado de polícia (artigo 14 do CPP), presidente do inquérito policial. A inexistência de poder requisitório do advogado na investigação preliminar fortalece o que estamos a defender: a manuten-ção da característica inquisitorial do inquérito policial, mesmo após tal alteração legislativa.

Já segundo o artigo 7º, XIV do EOAB, que sofreu singelas e impor-tantes modificações, o advogado tem o direito de “examinar, em qualquer instituição responsável por conduzir investigação, mesmo sem procura-ção, autos de flagrante e de investigações de qualquer natureza, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos, em meio físico ou digital”.

A substituição do termo “inquérito policial” por “investigações de qualquer natureza” indica, em primeiro lugar, que a atuação do advogado na defesa do cliente pode se dar não apenas no inquérito policial mas também na verificação da procedência das informações, no termo cir-cunstanciado de ocorrência ou no boletim de ocorrência circunstanciado. Além disso, não se restringe à esfera criminal, inclusive porque não raras vezes os ilícitos penais reverberam na seara administrativa. Nesse mesmo sentido segue o art. 32 da Lei 13.869/19.

O legislador, ao trocar a expressão “qualquer repartição policial” por “qualquer instituição responsável por conduzir investigação“, dei-xou claro que o causídico pode acessar autos de investigações em todos os órgãos estatais.12 Não apenas o inquérito policial na Polícia Civil ou Federal, mas também o procedimento investigatório criminal produzido

11. Do mesmo modo, o MP não pode requisitar diligências enquanto a investigação ainda está trans-correndo, sob a presidência exclusiva do Delegado de Polícia. Afinal, deve requisitar, após a remessa do IP relatado pela Autoridade Policial, apenas as diligências imprescindíveis ao oferecimento da denúncia (art. 16 do CPP).

12. Na linha do que já estabelece o art. 44, VIII da Lei Complementar 80/94 (Lei Orgânica da Defensoria Pública da União.

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pelo Ministério Público13 e os procedimentos que tramitam no Cade e no Coaf, por exemplo.

O direito a “copiar peças e tomar apontamentos” teve seu alcance ampliado, podendo ser feito “em meio físico ou digital”, significando que a cópia de peças, que ocorre na maioria das vezes por fotocópia, também pode ser feita por CD ou pen drive, por exemplo.

Quanto aos demais elementos do inciso XIV, permanece a leitura anterior, a saber.

No que concerne aos procedimentos que ainda não tenham sido concluídos (“findos ou em andamento”), bem como aqueles “conclusos à autoridade” deve ser feita uma interpretação cum grano salis. No que tange à Lei de Abuso de Autoridade, só há que se considerar típica a sonegação de acesso no caso de procedimentos em andamento, mas nunca os arquivados.

Sabe-se que a sigilosidade das diligências não afasta a possibilidade de o defensor ter acesso aos autos do procedimento investigatório. Esse direito exsurge, todavia, a partir de sua finalização e formalização docu-mental. Isso significa, segundo a doutrina e a Corte Constitucional, que:

em se tratando de diligências que ainda não foram realizadas ou que estão em andamento, não há falar em prévia comunicação ao advogado, nem tampouco ao investigado, na medida em que o sigilo é inerente à própria eficácia da medida investigatória. É o que se denomina de sigilo interno, que visa assegurar a eficiência da investigação, que poderia ser seriamente prejudicada com a ciência prévia de determinadas diligências pelo investigado e por seu advogado.14 O direito do indiciado, por seu advogado, tem por objeto as informa-ções já introduzidas nos autos do inquérito, não as relativas à decreta-ção e às vicissitudes da execução de diligências em curso (...); dispõe, em consequência a autoridade policial de meios legítimos para obviar

13. Vale lembrar que, nada obstante todas as críticas que pesam sobre a investigação levada a efeito peloParquet, o STF admitiu (RE 593.727, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ 14/05/2015) que a parte acusa-dora promova apurações criminais, ainda que o constituinte originário tenha rejeitado a inclusão dessa atribuição no art. 129 da CF, e mesmo que não seja apropriado se falar em teoria dos poderes implícitos ante a ausência de relação de meio e fim entre investigação e ação penal e a inexistência de poder implícito onde ele foi explicitado.

14. LIMA, Renato Brasileiro de. Curso de Processo Penal. Salvador: Judpodivm, 2014, p. 117.

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inconvenientes que o conhecimento pelo indiciado e seu defensor dos autos do inquérito policial possa acarretar à eficácia do procedimento investigatório.15

Esse entendimento também está estampado no parágrafo 11, segundo o qual “no caso previsto no inciso XIV, a autoridade competente poderá delimitar o acesso do advogado aos elementos de prova relacionados a diligências em andamento e ainda não documentados nos autos, quando houver risco de comprometimento da eficiência, da eficácia ou da fina-lidade das diligências”, cujo conteúdo se assemelha à súmula vinculante 14 do STF.

Claro que no caso de diligências interdependentes, em que a inicial já foi realizada mas a subsequente ainda não (ex: depoimento de testemu-nha que indicou arma escondida na casa do suspeito, e posterior busca e apreensão domiciliar), o sigilo persiste sobre o conjunto das medidas, podendo a defesa acessar os atos de investigação somente quando a última da cadeia probatória for concretizada, sob pena de ineficácia. Nesse sen-tido dispõe o art. 32 da Lei de Abuso de Autoridade, segundo o qual não constitui infração penal o fato de não se deixar a defesa conhecer peças que possam indicar a realização de diligências futuras e cujo sigilo seja imprescindível. O segredo acerca de diligências umbilicalmente ligadas incide sobre o todo até que sejam finalizadas.

Não custa lembrar que os requerimentos devem ser escritos (artigo 9º do CPP), e em se tratando de investigação referente a organizações criminosas, uma vez decretado o sigilo da investigação pela autoridade judicial competente, o acesso do advogado aos elementos informativos deve ser precedido de autorização judicial (artigo 23 da Lei  12.850/13).

De mais a mais, é importante grifar que segundo o STF não há di-reito de vista se o peticionante não for investigado, ou seja, quando não se verificar qualquer ato concreto no inquérito policial.16

Em que pese a regra geral de desnecessidade de procuração, o ins-trumento de mandato é necessário para acesso a autos sigilosos17, por-

15. STF, HC 90232, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 02/03/2007; STJ, HC 55.356⁄RJ, Rel. Ministro Felix Fischer, DJ 26/02/2007.

16. STF, Rcl 9.789, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ 18/08/2010.17. Tal como decorre do art. 20 do CPP, art. 234-B do CP, art. 8º da Lei 9.296/96, art. 17-C da Lei 9.613/98

e art. 23 da Lei 12.850/2013.

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quanto, segundo o novo §10, “nos autos sujeitos a sigilo, deve o advogado apresentar procuração para o exercício dos direitos de que trata o inciso XIV”. Além do mais, pode ser exigido diante de suspeita de irregularidade ou patrocínio infiel.

Por fim, consigna o §12 que “a inobservância aos direitos estabele-cidos no inciso XIV, o fornecimento incompleto de autos ou o forneci-mento de autos em que houve a retirada de peças já incluídas no caderno investigativo implicará responsabilização criminal e funcional por abuso de autoridade do responsável que impedir o acesso do advogado com o intuito de prejudicar o exercício da defesa, sem prejuízo do direito subjetivo do advogado de requerer acesso aos autos ao juiz competente”. A defesa não pode ser prejudicada com a seleção apenas de provas que beneficiem o Ministério Público, como já advertiram os tribunais supe-riores18, sob pena de abuso de autoridade.

Deveras, persiste a facultatividade do advogado no inquérito po-licial, bem como os demais regramentos atinentes à defesa na fase pré-processual, tais como direito do preso se comunicar com o advoga-do19 e encaminhamento de cópia do auto de prisão em flagrante para a Defensoria Pública20

Com efeito, a nova redação do Estatuto da OAB, bem como a Lei de Abuso de Autoridade e o Pacote Anticrime, muito embora não tenham promovido uma revolução na fase pré-processual, ressaltou que a pre-sença do advogado é extremamente recomendável em toda a persecução penal, até mesmo na fase inquisitorial, atuando como mais uma garantia de credibilidade do procedimento policial.

18. STF, Tribunal Pleno, Inq 2.266, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 26/05/2011; STJ, HC 66.304, Rel. Min. Paulo Medina, DJe 29/09/2008.

19. Art. 5º, LXII e 306, caput do CPP.20. Art. 306, §1º do CPP.

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Capítulo 8

Detetive particular e sua atividade não criminal

Adriano Sousa Costa e Henrique Hoffmann

A Lei 13.432/17 surgiu com o propósito de disciplinar a atividade do detetive particular. Definiu sua natureza como não criminal (artigo 2º), exigiu contrato escrito com estipulação de honorários e prazo (artigos 7º e 8º) e confecção de relatório do serviço (artigo 9º), além de estabelecer vedações (artigo 10), deveres (artigo 11) e direitos (artigo 12). Possibi-litou ainda a colaboração do detetive profissional com a investigação policial mediante autorização do contratante e aceite do delegado de polícia (artigo 5º). A lei não instituiu carteira de identidade profissional (como desejava a versão inicial do projeto de lei) nem concedeu porte de arma de fogo ao detetive. A regulamentação é complementada pela Lei 3.099/57 e pelo Decreto 50.532/61, que não foram revogados expressa ou tacitamente pela Lei 13.432/17.

O detetive particular pode atuar “por conta própria ou na forma de sociedade civil ou empresarial” (artigo 2º). Caso opte por constituir sociedade, deve estar registrada na Junta Comercial do estado respectivo (artigo 1º da Lei 3.099/57), bem como na delegacia de polícia do local de atuação (artigo 1º do Decreto 50.532/61).

A atuação do detetive é restrita territorialmente. Não altera essa constatação o fato de ser direito do detetive (artigo 12, I) exercer a pro-fissão “em todo o território nacional”, pois isso deve ser feito “na forma

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desta Lei”, ou seja, observando a exigência de estipulação contratual do “local em que será prestado o serviço” (artigo 8º, V).

A legislação não criou a figura de investigador privado, eis que a atuação do detetive particular deve ser extrapenal. Sua função é de coleta de informações de natureza não criminal, limitando-se ao “esclarecimento de assuntos de interesse privado do contratante” (artigo 2º), que consti-tuem, ao menos em princípio, irrelevantes penais (tais como infidelidade conjugal e desaparecimento de pessoas ou animais).

Sua atividade é movida pelo lucro (artigo 8º, VI), e não pelo interesse público. Por isso, foi vetado o dispositivo (artigo 12, V) que o definia como “profissional colaborador da Justiça e dos órgãos de polícia judiciária”, justamente para evitar “confusão entre atividade pública e privada, com prejuízos a ambas e ao interesse público”.

Com efeito, a investigação criminal continua sendo atividade essen-cial e exclusiva de Estado, em homenagem ao princípio da oficialidade, o que significa dizer que as funções de apuração de infrações penais e de polícia judiciária são exercidas pela polícia judiciária, com a presidência do procedimento policial nas mãos do delegado de polícia (artigo 144 da CF e artigo 2º, parágrafo 1º da Lei 12.830/13). Eventual contrato que ajustar a investigação criminal como objeto é nulo em razão da expressa vedação legal (artigo 2º).

E nem mesmo a reunião de dados de interesse privado é exclusiva do detetive profissional, conforme consignam os vetos aos artigos 1º e 3º, podendo perfeitamente ser exercida, por exemplo, por um advogado.

A lei não empregou os termos investigação ou apuração, preferin-do coleta de dados e informações (artigos 2º, 9º e 10, III e V), deixando claro que não se confunde com a investigação criminal ou tampouco com a atividade de inteligência.

Diferencia-se da investigação criminal, pois o detetive profissional não possui poder de polícia (não pode condicionar a liberdade e a proprie-dade dos indivíduos mediante ações preventivas e repressivas). A coleta particular de dados é desprovida dos atributos da discricionariedade, autoexecutoriedade e coercibilidade, inexistindo supremacia do seu agir em relação ao particular, ao contrário da atuação do membro da polícia judiciária (artigo 144 da CF, artigo 2º, parágrafo 2º da Lei 12.830/13 e artigo 6º do CPP).

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Cap. 8 • DETETIVE PARTICULAR E SUA ATIVIDADE NÃO CRIMINAL 87

Também se distingue da atividade de inteligência, executada para obtenção de dados negados de difícil acesso e/ou para neutralizar ações adversas marcadas por dificuldades e/ou riscos iminentes. A compilação privada de elementos de convicção não abrange o emprego de pessoal, material e técnicas especializadas (Portaria 2/16 do Ministério da Justiça, que aprovou a Doutrina Nacional de Inteligência de Segurança Pública).

Ou seja, o detetive está longe de ser um policial privado ou um agente de inteligência particular. Age como um despachante do cliente, arrecadando informações de natureza não criminal, como pode ser feito por qualquer pessoa; inclusive pelo contratante, que, todavia, preferiu a comodidade de pagar para que alguém faça esse serviço em seu lugar. Isto é, cuida-se de um contrato específico de prestação de serviços (si-nalagmático, oneroso e intuitu personae). A Lei 13.432/17 não conferiu ao prestador do serviço qualquer prerrogativa ou vantagem na coleta de dados, pelo contrário, trouxe mais exigências para a formalização do contrato e admitiu sua colaboração somente dentro de rígidos limites.

Sua atuação é apenas complementar. Não pode executar técnicas ordinárias de investigação (tais quais oitivas e quebra de sigilo de dados) nem meios extraordinários de obtenção de prova (como infiltração poli-cial comum ou virtual). Também não tem autorização para implementar ações de inteligência de segurança pública (a exemplo de vigilância e entrevista).

O detetive não pode participar diretamente de diligência policial (artigo 10, IV). Além disso, os recursos de pesquisa permitidos ao contra-tado são apenas aqueles disponíveis a qualquer cidadão, que não podem atingir direitos fundamentais alheios (artigo 3º do Decreto 50.532/61), sendo um de seus deveres justamente “respeitar o direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem das pessoas” (artigo 11, II).

Outrossim, o detetive pode apenas pesquisar informações em fontes abertas (tais quais redes sociais e sites de órgãos públicos e privados), em locais públicos (como vias públicas e áreas não restritas de estabele-cimentos) e sem molestar envolvidos (vítima, testemunha ou suspeito). Sua atuação se dá por meio da sugestão de fontes de prova (a exemplo de indicação de testemunha, localização de objeto e exibição de documento e apontamento de dados). A efetiva obtenção do meio de prova (intima-ção e oitiva da testemunha, apreensão e perícia na coisa e requisição de dados) será feita pela polícia judiciária, sob o manto estatal.

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Não vingou a redação original do Projeto de Lei 1.211/11, que auto-rizava o detetive a realizar investigação criminal, por meio de diligências como “relatórios de investigações privadas, juntando descrições, croquis, gráficos, fotografias, filmes e gravações magnéticas” referentes a “situação hipotética envolvendo fato, criminoso ou não”. Nessa esteira, o relatório a que faz menção o artigo 9º consiste em simples prestação de contas ao contratante em relação ao serviço realizado, e não documentação de diligência de investigação criminal, razão pela qual não deve ser juntado no procedimento policial.

A limitação do trabalho do detetive é essencial para garantir a higidez da persecução penal e evitar a perda de uma chance probatória, além de preservar a própria integridade física do detetive, que atua desarmado, sem identidade profissional e movido por interesse financeiro.

A atuação do detetive fora dos limites enseja responsabilidade pessoal e ilicitude de provas.

O detetive particular que exceder aos limites da chancela autori-zadora do delegado de polícia será responsabilizado por usurpação de função pública (artigo 328 do CP), pois não abarcado pela excludente de ilicitude de exercício regular de direito (artigo 23, III do CP), admitindo-se cumulação de outras infrações penais como violação de domicílio (artigo 150 do CP), lesão corporal (artigo 129 do CP), interceptação telefônica clandestina (artigo 10 da Lei 9.296/96) ou perturbação da tranquilidade (artigo 65 da LCP).

Ademais, se a obtenção da informação pelo detetive ocorrer mediante violação de normas legais ou constitucionais (realizando ato típico de investigação criminal ou inteligência de segurança pública, em vez de se limitar a pesquisar em locais públicos e fontes abertas), a prova será ilícita e não poderá ser aproveitada (artigo 5º, LVI da CF e artigo 157 do CPP).

Excepcionalmente, a ilicitude de prova clandestina será excluída por aplicação da máxima da proporcionalidade, quando a colheita ilí-cita da prova se der para o suspeito se defender e provar sua inocência (prova ilícita pro reo)1, ou a vítima proteger seu bem jurídico ofendido ou colocado em risco (prova ilícita em legítima defesa)2, podendo se

1. STF, RE 402.717, rel. min Cezar Peluso, DJ 2/12/2008.2. STJ, REsp 1.026.605, rel. min. Rogerio Schietti Cruz, DJ 13/5/2014.

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Cap. 8 • DETETIVE PARTICULAR E SUA ATIVIDADE NÃO CRIMINAL 89

valer de auxílio técnico do detetive3. Sublinhe-se: apenas como desvio da regra geral.

Como regra, o detetive atua em situação penalmente atípica (a exemplo de levantamento da vida pregressa de um postulante a cargo em empresa, verificação da idoneidade de contratante ou constatação das companhias de um filho). Entretanto, muitas situações (como o inadimplemento contratual e o desaparecimento de pessoa) se encontram no limbo entre o que é extrapenal e penal; ocasiões em que geralmente a polícia judiciária possui dados precários que não se qualificam como indícios mínimos aptos a ensejar a instauração de inquérito policial.

Nesse contexto sobressai a verificação da procedência das informa-ções (artigo 5º, parágrafo 3º do CPP). Possui a finalidade de compro-vação da verossimilhança da notitia criminis apresentada4, evitando a instauração despropositada de inquérito policial se não houver evidência mínima da infração penal5. Permite a confirmação ou não da notícia de crime, de modo que a instauração do inquérito policial ocorrerá apenas se diante de início de justa causa (juízo de possibilidade), sob pena de trancamento6.

Nessa vereda, a colaboração do detetive, quando autorizada, possui como principal utilidade servir de elemento de convicção que permita a deflagração do inquérito policial, e não instruir um procedimento policial já instaurado. Isso porque, se o inquérito policial está em curso, é sinal de que o delegado já obteve os mínimos dados necessários e a polícia judiciária já definiu caminho investigativo para extrair os meios de prova, sendo o aprofundamento da investigação incompatível com a possibilidade limitada de atuação do detetive. Apenas excepcionalmente deve ser admitida a participação do contratado para indicar fontes de prova ainda não conhecidas do Estado-Investigação.

Além do mais, a atuação do advogado já é suficiente para tutelar os direitos do investigado ou da vítima no inquérito policial. O trabalho que o detetive particular poderia exercer será melhor realizado pelo causídico, já que o rol de ferramentas do advogado em muito excede ao do detetive

3. Para gravação de conversa telefônica ou ambiental, por exemplo.4. STJ, RHC 14.434, rel. min. Jorge Scartezzini, DJ 1/4/2004.5. COSTA, Adriano Sousa; SILVA, Laudelina Inácio da. Prática policial sistematizada. Niterói: Impetus,

2016.6. STF, HC 132.170 AgR, rel. min Teori Zavascki, DJ 16/2/2016.

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particular, a exemplo da apresentação de razões e quesitos (artigo 7º, XXI da Lei 8.906/94) e acesso às diligências concluídas do inquérito policial (artigo 7º, parágrafo 11 do Estatuto da OAB e Súmula Vinculante 14 do STF), bem como requerimento de diligências (artigo 14 do CPP).

O detetive sequer pode requerer diligências em nome do cliente (artigo 14 do CPP), pois celebra contrato de prestação de serviços de coleta de dados (artigos 2º e 8º da Lei 13.432/17), e não de mandato (artigo 653 do CC e artigo 1º, II do Estatuto da OAB) que o habilitaria a pleitear perante a polícia judiciária.

Em epítome, a partir da instauração do inquérito policial, desapa-rece a legitimidade do detetive particular, ganhando relevo a atuação do advogado na defesa dos interesses de seu cliente.

A colaboração do detetive profissional com a investigação policial deve ser precedida de autorização do cliente e concordância do delegado de polícia (artigo 5º).

A anuência do contratante deve ser expressa (por escrito) e especí-fica (documento à parte, não bastando cláusula genérica no contrato). Isso porque o pacto negocial possui natureza não criminal e fugiria ao espírito da lei uma autorização geral para colaboração criminal que não passasse pelo crivo especial do cliente.

Intitulamos o documento que formaliza a colaboração de termo de colaboração particular circunstanciada. O nome do documento já permite a identificação das principais características:

a) termo de colaboração: autorização escrita do delegado de polícia para que o detetive auxilie a polícia judiciária provendo elementos mí-nimos iniciais;

b) particular: o detetive atua em caráter privado, preservando a oficialidade da investigação criminal e a presidência do procedimento policial nas mãos do delegado de polícia (sem qualquer protagonismo do prestador de serviço);

c) circunstanciada: a atuação do detetive deve ser especificada do modo mais detalhado possível. É restrita, não podendo o detetive par-ticipar diretamente de diligência policial (artigo 10, IV) e só podendo realizar pesquisas disponíveis a qualquer cidadão, sem imperatividade e sem atingir direitos fundamentais alheios (artigo 11, II e artigo 3º do Decreto 50.532/61).

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Cap. 8 • DETETIVE PARTICULAR E SUA ATIVIDADE NÃO CRIMINAL 91

Caso já disponha de informações, o detetive deve imediatamente fornecê-las indicando as fontes de prova (pessoas e coisas) de onde a polícia judiciária possa extrair os elementos de convicção. Se não dispuser dos dados, a busca pode ser feita em determinado lapso temporal fixado pelo delegado (que não irá extrapolar o prazo estabelecido no contrato firmado pelo detetive e seu cliente para atuação não criminal – artigo 8º, II).

Deve ficar registrado no termo qual é o interesse do cliente para motivar a proposição de colaboração na investigação policial, seja na condição de vítima ou suspeito. Não pode o detetive colaborar com o Estado quando não houver interesse particular a ser tutelado (como no caso de crimes vagos).

Além disso, o detetive não pode atuar em investigação policial relativa a crimes violentos, ocasião em que deve não só se abster de colaborar com a polícia judiciária, mas inclusive renunciar ao serviço contratado face ao risco à sua integridade física ou moral (artigo 12, III).

São anexos obrigatórios do termo: a) autorização expressa do contra-tante, que deve ser feita por escrito; b) contrato de prestação de serviços do detetive para seu cliente (artigo 8º), que precisa conter a qualificação completa, natureza da coleta de dados não criminais (especificação do problema, tal qual infidelidade conjugal), local de coleta de dados, prazo, relação de documentos e dados fornecidos pelo contratante e estipulação de honorários.

Não se exige concordância do Ministério Público nem chancela judicial.

A ação penal do crime não afeta a possibilidade de colaboração. Em crimes de ação penal pública condicionada ou privada, caso o contratante seja a vítima, sua autorização já constituirá a condição de procedibilidade para deflagração do procedimento policial.

A autoridade de polícia judiciária pode exercer juízo de retratação e voltar atrás em seu ato discricionário para determinar a qualquer tempo a cessação da colaboração em curso (artigo 5º, parágrafo único da Lei 13.432/17); o contratado também deve interromper o auxílio em caso de extinção do contrato (pressuposto da colaboração) em razão da rescisão por inadimplemento ou força maior (artigo 607 do CC).

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A participação do detetive particular no curso da investigação policial é uma discricionariedade do delegado de polícia, e não uma prerrogati-va profissional. Registre-se ainda que não há qualquer menção sobre a possibilidade de tal profissional auxiliar no curso do processo criminal.

É vedado ao detetive divulgar os meios e os resultados da coleta de dados e informações a que tiver acesso no exercício da profissão, salvo em defesa própria (artigo 10, III).

E é seu dever profissional preservar o sigilo das fontes de informação (artigo 11, I). Obviamente esse segredo não pode impedir o fornecimento de documentos e indicação de pessoas e coisas pelo detetive ao delegado, se autorizado a colaborar com a investigação criminal.

É crível concluir que a lei não promoveu alargamento na utilização da investigação criminal privada (e sua espécie investigação criminal defensiva)7, ao contrário do que ocorreria com aprovação do novo Có-digo de Processo Penal (Projeto de Lei 156/09, artigo 13), que faculta ao investigado entrevistar pessoas. Na atual sistemática, a vítima ou suspeito não pode produzir a prova com imperatividade.

Para que a informação obtida pelo particular se revista de idonei-dade a embasar a persecução penal, já que não possui fé pública, deve ser submetida à supervisão estatal, sem a qual não há como assegurar a confiabilidade dos relatos8. Incide a chamada teoria da canalização, segundo a qual o elemento de convicção, para ser considerado válido e aproveitável na persecução criminal, deve obter a chancela estatal, dando verniz de oficialidade. Além disso, a ação instrutória do particular não pode obstruir a investigação policial por meio de inovação artificiosa do estado de lugar, coisa ou pessoa, sob pena de crime (artigo 347 do CP).

7. MACHADO, André Augusto Mendes. Investigação criminal defensiva. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

8. STF, AP 912, rel. min. Luiz Fux, DJ 14/2/2017.

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