Temas de Investigação II: Perceção da Fala - Trabalho 1 Helena Barrinha

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2.º Curso de Pós- Graduação em Português Língua Não-Materna SEMINÁRIO: Fundamentos Cognitivos para a Compreensão e a Produção de Linguagem Verbal DOCENTE: Professora Doutora Isabel Falé ATIVIDADE II: Texto de Reflexão TEMA: Produção e Perceção de Fala; Processamento e Compreensão de Fala TAREFA: Trabalho Individual

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Área: NeurolinguísticaTrabalho de Investigação

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2.º Curso de Pós-

Graduação em Português Língua Não-

Materna

SEMINÁRIO: Fundamentos Cognitivos para a Compreensão e a

Produção

de Linguagem Verbal

DOCENTE: Professora Doutora Isabel Falé

ATIVIDADE II: Texto de Reflexão

TEMA: Produção e Perceção de Fala; Processamento e Compreensão

de Fala

TAREFA: Trabalho Individual

AUTORA: HELENA TERESA DA SILVA BARRINHA

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No que diz respeito à perceção do discurso, a experiência mostra-nos que, por exemplo,

quando ouvimos um enunciado numa língua desconhecida, a sensação auditiva que

experimentamos é a de estarmos perante um continuun sonoro onde é impossível distinguir as

fronteiras das palavras. Só a aprendizagem dessa língua nos permite extrair unidades

linguísticas, dessa sequência “abstrata” de sons, e determinar o seu significado. Este processo

apresenta algumas analogias com aquisição da perceção do discurso na nossa língua materna,

sem que disso tenhamos consciência imediata: no primeiro ano de vida, as crianças passam de

um período pré-linguístico à perceção das cadeias sonoras que constituem a fala e,

posteriormente, à atribuição de significado à sequência sonora apreendida (Sim-Sim, 1998:

78-100). Segundo Mitterer & Cutler (2006: 770), a nossa preocupação principal, quando

ouvimos um determinado discurso, é determinar o significado do imput acústico que

recebemos. No que diz respeito às línguas, esse imput acústico, constituído por sequências

organizadas de palavras, resulta de uma combinação de, sensivelmente, trinta fonemas

(Maddieson, 1984, apud Mitterer & Cutler, 2006: 770). Como funcionam os mecanismos

neurofisiológicos que possibilitam a descodificação dos fonemas, do léxico e das estruturas

sintáticas das línguas (L1, L2 ou outras) a que os falantes são expostos? Por outras palavras,

como se processa a perceção do discurso? Estas têm sido algumas das questões centrais da

psicolinguística.

O “equipamento” neurofisiológico, que nos permite descodificar um dado enunciado

linguístico, é constituído pelo sistema auditivo e pelas zonas do cérebro associadas ao

processamento da linguagem, no hemisfério esquerdo e lobo frontal. Os sinais acústicos,

provocados pela agitação de partículas, são conduzidos pelo canal auditivo até à membrana do

tímpano. Aqui, a vibração é amplificada pelo martelo e bigorna e transmitida à janela oval, à

entrada da cóclea, pelo estribo. No interior da cóclea, a agitação hidrodinâmica permite às

células ciliadas a identificação das frequências sonoras e a sua transformação em estímulos

elétricos que são transmitidos ao cérebro através do nervo auditivo.1 Segundo Fitch, Miller &

Tallal (1997: 334-337), a transdução (transformação de um sinal de energia de determinada

espécie num sinal de energia diferente) ocorre quando as vibrações sonoras passam da

membrana do tímpano para a cóclea e, dentro desta, através da vibração das células ciliadas.

Essa transdução excita o nervo auditivo que se projeta no núcleo da cóclea, originando as

sinapses que são transmitidas às zonas do córtex cerebral onde se processa o reconhecimento

1 - Cf. Humberto Fonseca, Vasco Santos e Aníbal Ferreira, (2002), “A audição – Princípio de funcionamento”, in: http://telecom.inescn.pt/research/audio/cienciaviva/principio_aaudicao.html#janela_oval, (acedido em 4/4/2010).

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da fala: áreas de Wernicke e Broca. Alguns estudos neurológicos e comportamentais em

pessoas com lesões cerebrais e distúrbios da fala demonstraram que a área de Broca,

associada, inicialmente, apenas, ao processamento da fala, é também ativada na tarefa de

perceção, bem como algumas zonas subcorticais. A especialização de tarefas, nos centros de

retransmissão auditiva, parece ser topograficamente organizada, em função da sensibilidade

às variações de frequência e modulação (Schreiner & Langer, 1988, apud Ficht, Miller &

Tallal, 1997: 337). No nervo auditivo, a informação temporal (duração do som) pode ser

codificada em intervalos de milionésimo de segundo (Palmer, 1982, idem), enquanto no

núcleo genicular médio ou no corte auditivo primário tudo indica que as respostas neuronais

ocorrem no início de segmentos da mudança temporal (Schreiner & Langer, 1988, idem).

Deste modo, um estímulo de origem mecânica (ondas sonoras), que começa por se propagar

através do ar, é transformado num fluído, no ouvido interno e, posteriormente, em impulsos

elétricos que transportam a informação ao cérebro,2 que a descodifica. Mas a descrição deste

processo neurofisiológico não é suficiente para explicar o modo como se processa essa

descodificação dos significados contidos no estímulo auditivo que constitui o discurso.

Definido o discurso como um sinal acústico, composto por múltiplas coocorrências de

frequências designadas por formantes, torna-se possível, pela análise dessas frequências,

distinguir a especificidade dos sons vocálicos (combinações de frequências e estados

temporalmente estáveis) e consonânticos (combinação de tempos iniciais variáveis e

transições rápidas de frequências) que, alternando na cadeia sonora, formam as unidades

significativas do enunciado (Ficht, Miller & Tallal, 1997: 332). Quando os falantes produzem

um enunciado, os fonemas não surgem concatenados, uns a seguir aos outros, na cadeia

discursiva. Hokett (1955: 210 apud Mitterer & Cutler, 2006: 771) estabeleceu uma analogia

entre os sons da fala e uma série de ovos de Páscoa coloridos, num tapete rolante, que são

esmagados por um cilindro, resultando daí uma mistura dos fragmentos de cada ovo com os

fragmentos dos restantes. Assim, também na produção da cadeia discursiva, alguns traços

articulatórios dos fonemas surgem misturados, num fenómeno que se designa por

coarticulação: antecipação da produção de um fonema quando ainda está a ser produzido o

anterior, através da inclusão de traços articulatórios desse fonema no precedente. Dito de

outro modo, os testes utilizando o espectrógrafo revelam que as frequências típicas de um som

consonântico, num determinado contexto, contêm já informação que indica, antecipadamente,

a vogal que vem a seguir (Ficht, Miller & Tallal, 1997: 334). Este fenómeno, responsável pela

variação dos traços articulatórios (ou coordenadas acústicas) dos fonemas utilizados,

2 - Idem, ibidem (nota 1).

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determina a complexidade da tarefa de mapeamento das propriedades acusticamente

relevantes do discurso, no processo de elocução (Stevens & Blumstein, 1981, apud Miller,

1999 : 788). Além do contexto em que os fonemas surgem, na cadeia discursiva, também as

particularidades fisiológicas dos falantes ou as variedades dialetais que estes utilizam

contribuem para a ocorrência de variações nos traços articulatórios desses fonemas (Mitterer

& Cutler, 2006: 772). Assim sendo, se os traços articulatórios dos fonemas se apresentam

misturados e variam constantemente, como é que os ouvintes estabelecem os contrastes

fonéticos que lhes permitem reconhecer aquela palavra específica, em vez de outra, num

determinado discurso?

Por um lado, essa variância não impede que se possam detetar classes de fonemas, através

de traços particulares relevantes, o que permite restringir as hipóteses. Tal é o caso das

propriedades que permitem distinguir as vogais das consoantes e estas entre si: - as vogais

correspondem às partes do sinal acústico que contêm as amplitudes máximas e a sua produção

depende da vibração das cordas vocais; - as consoantes distinguem-se das vogais pela

ausência desses traços e distinguem-se entre si através do ponto de articulação e da maior ou

menor permeabilidade à passagem do ar (Mitterer & Cutler, 2006: 772 – 774). Por outro lado,

o próprio contexto linguístico fornece pistas para que essa seleção se afigure plausível ou seja

rejeitada, como agramatical, do ponto de vista sintático e semântico. Além disso, a perceção

categorial dos falantes, entendida como uma característica da própria fala (idem: 774),

também se desenvolve em função das aquisições lexicais que estes vão fazendo ao longo da

vida. Dos vários modelos de reconhecimento da linguagem falada que têm sido produzidos

pela investigação, a “Teoria da Ressonância Adaptativa” (idem: 780) parece descrever, de

modo mais ou menos satisfatório, o que se passa. Esta teoria assume que o reconhecimento

das categorias fonéticas depende do desenvolvimento de um ciclo de ressonância entre o nível

(empírico) de representação da palavra e o das representações pré-lexicais armazenadas na

memória de longo prazo: há um constante feed-back, desde a palavra ouvida até à sua

representação abstrata, que ativa as unidades fonéticas correspondentes que, por sua vez,

ativam as unidades lexicais. Em todo o caso, o reconhecimento das palavras não se faz sem

um certo grau de incerteza, pois este implica a ativação de vários nódulos lexicais candidatos

ao mesmo contexto empírico. (idem, ibidem). Assim, compreender um discurso falado é

decidir sobre a escolha imediata deste ou daquele fonema, desta ou daquela palavra, bem

como das suas possibilidades combinatórias, para que o continuum sonoro apreendido faça

sentido.

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Mas isso também não é suficiente para explicar o que se passa com estudantes tardios (pós

adolescência) de uma língua não materna. Por exemplo, ao comparar a aquisição /

aprendizagem da flexão de número em nomes, do alemão, por crianças falantes nativas e

aprendizes adultos dessa língua, Parodie et alii (2004), (apud Felser & Classen, 2009: 306-

310), descobriu que, na aquisição da língua materna, o reconhecimento das marcas de plural

surge cedo, para todos os contextos em que estas ocorrem. Em contraste, nos aprendizes

tardios de L2, embora o seu nível de proficiência tenha feito variar os resultados, muito

poucos conseguiram estabelecer concordâncias de número dentro do SN, o que indicia a

existência de condicionantes neurofisiológicas, nos aprendizes tardios de L2, que dificultam a

aquisição da flexão morfológica. Outros estudos, levados a cabo por Clahsen et alii (2007),

Hahne et alii (2006) e Lück et alii (2006), (apud Felser & Classen, 2009: 308) através da

eletroencefalografia, revelaram a ocorrência de efeitos ERP (potencial relacionado a evento)

durante a exposição dos participantes a estímulos sonoros contendo flexões de número

corretas e incorretas. Os resultados mostraram uma variação pouco significativa, na ativação

das zonas cerebrais associadas à perceção do discurso, entre crianças falantes nativas e

aprendizes tardios de L2. Por comparação com adultos monolingues, concluiu-se que as

crianças falantes de L1 e aprendizes tardios de L2 são mais lentos no processamento da língua

– alvo do que os falantes monolingues adultos, o que pode ter origem num início mais tardio

dos efeitos ERP para os aprendizes tardios de L2 (idem: 316). Se é verdade que, quanto maior

for a experiência linguística e performance dos falantes, maior será a sua capacidade de

perceção categorial e mais acertada a seleção dos fonemas e palavras disponíveis para um

determinado contexto discursivo, tudo indica que isso se verifica, apenas, para a perceção do

discurso produzido na língua materna.

BIBLIOGRAFIA

. Felser, Claudia & Harald Clansen, (2009), “Grammatical Processing of Spoken Language in Child and Adult Language Learners, Journal of Psycholinguistic Resarch, nº 38, pp. 305-319, Springer Science+Business Media, LLC, in: http://www.moodle.univ-ab.pt/moodle/mod/resource/view.php?id=221913, (acedido em 25/3/2010).

. Fitch, R. Holly, Steve Miller & Paula Tallal, (1997),“Neurobiology of Speech Perception”, Annu. Rev. Neuroscience, nº 20, pp. 331-353, in: http://www.moodle.univ-ab.pt/moodle/mod/resource/view.php?id=221912, (acedido em 23/3/2010).

. Fonseca, Humberto, Vasco Santos & Aníbal Ferreira, (2002), “A audição – Princípio de funcionamento”, in: http://telecom.inescn.pt/research/audio/cienciaviva/principio_aaudicao.html#janela_oval, (acedido em 4/4/2010).

. Miller, J. “Speech Perception”, (1999), Wilson, R. & F. Keil (eds.), (1999), The MIT Encyclopedia of the Cognitive Sciences, MIT Press, pp.787-790, in: http://www.moodle.univ-ab.pt/moodle/mod/resource/view.php?id=221910, (acedido em 20/3/2010).

. Mitterer, H. & A. Cutler (2006), “Speech Perception”, in: The Encyclopedia of Language and Linguistics, 2nd edition, Elsevier, pp.770-782, in: http://www.moodle.univ-ab.pt/moodle/mod/resource/view.php?id=221911, (acedido em 24/3/2002).

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