Temístocles Cezar, Biografia e Escrita Da História, 2003

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História e biografia

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    * Professor do Departamento de Histria e do Programa de Ps-Graduao em Histria daUFRGS; e-mail: [email protected]

    Livros de Plutarco: biografia e escrita da histriano Brasil do sculo XIX

    Temstocles Cezar*

    Resumo: O objetivo deste artigo o deanalisar as relaes entre a biografia e aescrita da histria no Brasil do sculo XIXa partir de dois exemplos: a obra de JooManuel Pereira da Silva (1817-1898) sobreos Vares illustres do perodo colonialbrasileiro, e a Galeria de brasileiros illustres,porm contemporneos, organizada pelofrancs Sbastien Auguste Sisson (1824-1893).

    Palavras-chave: biografia, escrita da histria,historiografia.

    Dos usos da biografia

    No escrevemos histrias, mas vidas, assinala Plutarco na biografia deAlexandre (Plutarco, 2001, p. 1.227). Arnaldo Momigliano lembra que emnossos dias, ningum, sem dvida, contesta que a biografia seja uma categoriada histria (Momigliano, 1991, p. 17). As relaes entre biografia e histriatm, portanto, uma historicidade que se caracteriza por distanciamentos, mastambm por aproximaes, por trocas e contribuies mtuas.

    Quando o historiador ou o biographo tem umrespeito religioso verdade, os seus escriptos fecundam.

    Manuel de Araujo Porto Alegre,

    Revista do IHGB, 1856.1

    Abstract: The objective of this article is toanalyze the relationship between biographyand writing of Brazils history of the 19th

    century. For this purpose it works with twoexamples: the work of Joo Manuel Pereirada Silva (1817-1898) on Vares illustres ofBrazilian colonial period, and the Galeria debrasileiros illustres, but contemporary, organizedby the French man Sbastien Auguste Sisson(1824-1893).

    Key words: biography, writing of history,historiography.

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    No Brasil do sculo XIX, biografia e histria protagonizam contatosmediados por duas questes: a constante busca de marcas de cientificidadee a tarefa de se escrever a histria da nao. Em ambos os casos, era precisoromper com a potica da histria presente na cultura histrica oitocentista, oque exigia um grande esforo, uma vez que aqueles que praticavam a pesquisaem histria, sobretudo os membros do Instituto Histrico e GeogrficoBrasileiro (IHGB), fundado em 1838, no tinham muito claras as distinesnecessrias para a definio de um campo cientfico. Alm disso, suasdisposies intelectuais no eram limitadas cincia: poetas e literatos emgeral compartilhavam a mesma casa, no sendo raro o exerccio de atividadesduplas; nem sempre ser poeta ou romancista era incompatvel com serhistoriador; e ir de um gnero a outro era uma opo, no umaimpossibilidade intelectual.

    Esse ciclo poltico-epistemolgico parcialmente resolvido ao longodo sculo. Narrar a vida de grandes ou ilustres brasileiros foi um dos caminhosescolhidos. Assim, em 1839, Janurio da Cunha Barbosa, ento primeiro-secretrio do IHGB, prope aos seus membros um projeto biogrfico, como objetivo de arrancar ao esquecimento, em que jazem sepultados, os nomese feitos de tantos illustres Brasileiros, que honraram a patria por suas lettrase por seus diversos e brilhantes servios (Barbosa, 1839, p. 14). Esses homensseriam o resultado inexorvel das potencialidades do prprio Brasil, e ahistria de suas vidas, as provas deste destino grandioso.2

    As biografias fazem parte, por conseguinte, do mesmo regime dehistoricidade que orienta os demais planos historiogrficos do IHGB e departe considervel da elite intelectual brasileira ao longo do sculo XIX: ahistoria magistra vitae (a histria mestra da vida) promotora de exempla (demodelos) a serem seguidos: na vida dos grandes homens aprende-se aconhecer as applicaes da honra, a apreciar a gloria e a affrontar os perigos,que muitas vezes so causa de maior gloria. O fundamento, a base de tudo,aquele em que os historiadores devem se inspirar, no limite copiar osprincpios e mtodos no outro seno Plutarco: o livro de Plutarco he umaexcelente escola do homem, porque offerece em todos os generos os maisnobres exemplos de magnanimidade (Barbosa, 1839, p. 15). A partir dele,a empresa biogrfica e aquilo que a justifica fazem-se notar: produzir aimitao no leitor (Hartog, 2001, p. 14). Para isso, fazia-se necessria acriao de um panteon nacional.3

    A Revista do IHGB torna-se um local importante para a publicaodessas biografias (Enders, 2000, p. 43). Assim, duas dcadas aps a propostade Barbosa, em 1858, o presidente do IHGB Cndido Jos de Araujo Vianna,Visconde de Sapucai, fazia um balano positivo do projeto biogrfico: O

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    Brasil abunda de modelos de virtudes, de vares distinctos por seu saber ebrilhantes qualidades. A Revista os tem apresentado em bem ordenadagaleria, collocando-os segundo os tempos e logares, para que fossem melhorpercebidos pelos que anhelam seguir os seus passos nos caminhos da honrae da gloria nacional (Vianna, 1858, p. 504). Os mais importanteshistoriadores do IHGB (Janurio da Cunha Barbosa, Joo Manuel Pereirada Silva, Joaquim Norberto de Sousa Silva, Manuel Duarte Moreira deAzevedo, Joaquim Manoel de Macedo, Francisco Adolfo de Varnhagen, entreoutros) ocuparam-se da redao dessas vidas. Entretanto, esses grandeshistoriadores no escreveram grandes biografias. Na verdade, tratam-se depequenas notcias biogrficas que no ultrapassam mais de duas ou trspginas. A biografia, como gnero historiogrfico autnomo e mais sofisticado,desenvolve-se mais para o fim do sculo XIX (Rodrigues, 1978, p. 210).

    Em todo o caso, esta primeira organizao biogrfica integra-se escrita da histria do Brasil. Ela auxilia na criao de uma ordem do tempo,o tempo da nao, e na definio de um espao de atuao: o territriobrasileiro. Nem um nem outro, contudo, estavam totalmente constitudos.Biografia e histria fazem parte, portanto, de um mesmo plano nacional.

    Por outro lado, a Revista do IHGB no o nico espao onde sepublicam biografias no Brasil do sculo XIX. O gnero tambm se manifestaem produes independentes do IHGB, mesmo que alguns autores tenhamcom ele um vnculo institucional, ou simplesmente sigam os seus princpiose a mesma inspirao. O objetivo deste artigo o de analisar dois exemplosdessa tendncia externa, porm com repercusses no IHGB: a obra de JooManuel Pereira da Silva (1817-1898) que traa a biografia dos vares illustresdo Brasil durante o perodo colonial; e a Galeria de brasileiros illustres, pormcontemporneos, organizada pelo francs Sbastien Auguste Sisson (1824-1893), que se constitui, de certa maneira, em um complemento ou em umacontinuao daquele.

    Os estudos biogrficos, contidos nos trabalhos desses autores, tambmtm por meta criar o exemplo, o exemplar, integrado retrica danacionalidade, discurso historiogrfico e poltico extremamente persuasivodesenvolvido ao longo do sculo XIX, tanto no IHGB como fora dele, tantona histria como na literatura (Cezar, 2002). Contudo, tanto o trabalho dobrasileiro como o do francs revelam bem mais do que simples dadosbiogrficos. Desse modo, enquanto as biografias de Pereira da Silva sinalizampara concepes sobre o que a histria, qual a tarefa dos historiadores,como eles devem escrever a histria e qual suas relaes com os paradigmasantigos, aquelas apresentadas na obra de Sisson visam estabelecer uma relaomais consistente entre biografia e histria, sobretudo com a histria do

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    tempo presente, conferindo, desse modo, ao panteon da nao sua verso doque o homem ilustre atual. Trata-se portanto de uma boa oportunidadepara se tentar entender um momento de aproximao entre os dois gneros,onde as biografias funcionam como princpio de emulao e tambm comorecurso narrativo para a histria.

    O Plutarco brazileiro

    Joo Manuel Pereira da Silva o autor de um conjunto biogrficocujo ttulo chama imediatamente a ateno: O Plutarco brazileiro, publicadoem 1847. O trabalho, revisto e aumentado, foi publicado em Paris, em1858, sob o ttulo Os vares illustres do Brazil, durante os tempos coloniais.Essas obras fazem, evidentemente, eco a algumas idias de Janurio da CunhaBarbosa. Pereira da Silva, por exemplo, na epgrafe que abre Os vares, nodeixa dvida quanto ao regime de historicidade no qual seu empreendimentointelectual se coloca: A histria no tem parte mais agradvel e mais instrutivaque a vida particular dos grandes e virtuosos personagens que se distinguiramno teatro do mundo. A citao de Victor Cousin revela uma das variaesda historia magistra preconizada por Barbosa em seu projeto. Igualmenteimportante foi a recepo da obra no IHGB, divulgada pelo prprio autorno prefcio de 1858. O depoimento de Manoel Arajo de Porto Alegre foium dos comentrios escolhidos:

    O Plutarco Brazileiro um momento triunfal; uma obra de longofolego, que ganhar de dia em dia novas perfeies, novos toques deremate com o andar dos annos, com a colheita dos factos, com oengrandecimento do numero, e com a perfeio e a madureza queo tempo estampa em todos os trabalhos historicos. Este livrobrindado s lettras do paiz ter longa durao, e augura ao seuauctor uma nomeada duradoura, si elle durante a sua vida o forretocando, e ampliando como convm: um erro estampado umveneno que se lana posteridade; um ponto falso de projecono perimetro da historia; e toda a humanidade desviada da sendada verdade, logo que os idealistas ou historiadores falsificam osacontecimentos (Silva, 1858, p. 9).4

    Ao situar o Plutarco brazileiro como um momento triunfal, Porto Alegreconcede ao trabalho de Pereira da Silva uma dimenso temporal que nohavia escapado proposta de Barbosa em 1839: a constituio do projetobiogrfico precisa de tempo para evoluir e se realizar. A transformao doPlutarco brazileiro em Os vares illustres tenta, de um lado, responder a essapresso das circunstncias externas e, de outro, corrigir e aprofundar asanlises prematuras da primeira verso, considerada pelo autor como um

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    ensaio. Ferdinand Denis, J. J. da Rocha e Rodrigo Pontes, por exemplo,criticaram o Plutarco brazileiro por sua desordem cronolgica. Pereira daSilva aceitou a crtica. Desse modo, na segunda verso, o autor estabeleceum plano que comea no sculo XVI e termina no final do sculo XVIII. Ainsero dos Vares illustres em uma galeria ordenada cronologicamente fazparte de um movimento mais amplo, desse esforo coletivo para organizar ahistria brasileira, e construir uma temporalidade e espacialidade animadaspelos homens ilustres do Brasil.

    O Plutarco brazileiro, porm, recebeu crticas mais severas. Mesmoque tenha sido julgado pretensioso por alguns, no h dvida de que eleinaugura uma srie de publicaes do mesmo gnero (Enders, 2000, p. 45).Pereira da Silva, contudo, no tem nenhuma preocupao de tecercomentrios metodolgicos ou propor algum tipo de orientao terica sobrea melhor maneira de se escrever uma biografia. A introduo segundaedio , nesse sentido, absolutamente decepcionante. O autor chega mesmoa afirmar que s conservou a formula biographica por que havia merecidogeral approvao! Embora popular, decididamente no se trata de um gnerono apogeu de seu momento cientfico. Por outro lado, nas notcias biogrficas,encontram-se certas observaes interessantes a propsito do ofcio dohistoriador e do estudo de biografias.

    Pensar a histria a partir de uma biografia de um historiador:Rocha Pita

    Para escrever sobre Sebastio da Rocha Pita (1660-1738), baiano,autor de uma Histria da Amrica portuguesa (1730), Pereira da Silva teveque formular um nmero considervel de reflexes sobre a histria. Elecomea por uma distino entre duas escolas histricas: a descriptiva e afatalista. A primeira ocupa-se somente com a narrao dos acontecimentosda histria, tendo por misso especificamente: pintar os costumes, edescrever as physionomias, sem que ousem aventurar a menor observao,a mais ligeira analyse, e o juizo mais breve. Essa concepo de histria nopassa, portanto, de uma acta fiel e verdadeira dos tempos; a chronica dosfactos succedidos; a descripo dos diversos dramas, e das peripeciasdifferentes, que se tem realisado; o desenho dos caracteres, e odesenvolvimento da marcha das aces humanas. Enfim, o historiador dessaescola deve ter a mais absoluta neutralidade, e a mais escrupulosaimparcialidade (Silva, 1858, p. 190).

    A segunda escola , como seu prprio nome indica, aquela quepesquisa e relata os grandes acontecimentos do mundo apresentando-os como

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    effeitos de um fatalismo. Para ela, a moral est separada da aco humana.Conseqentemente, essa ao no um gesto livre:

    Portanto no tem imputao; o homem, a intelligencia, a moral, areligio e a consciencia, no tem dominio, nem influencia e nemvontade nos acontecimentos, que no so mais do que os vinculosde uma cadeia inabalavel, e que se ligam e se succedem pela fora dodestino: tem as cousas um curso regular que devem rigorosamenteseguir. So os homens apenas instrumentos do destino; est deantemo marcada a sua misso, que ha de ser necessariamentecumprida (Silva, 1858, p. 192).

    A escola fatalista subdivide-se em duas vertentes: a vereda religiosa,philosophica e symbolica; e a vereda sceptica, material e atha. A primeiraprocura a razo espiritual dos factos. Tudo uma decorrncia de Deus,perante o qual o homem e os seus feitos desapparecem como a voz nodeserto. A segunda visa ao systema da perfectibilidade material. Os fatostm uma marcha necessaria e logica e as aes no comportam umaimputao moral, porque o fim, as circumstacias e a posio do homem edas naes o arrastam, dominam e influenciam. Essa segunda escola tambmreparte-se em duas tendncias: a primeira aquela de Vico, Herder, Bossuet,Hegel e Ballanche; a segunda nascida das theorias da revoluo de 1789, einteiramente franceza, estraga a vida, desmoralisa a consciencia, e pertuba oespirito. Apesar da presena de certas caractersticas fundamentais dotrabalho histrico nas duas escolas, sobretudo no nvel da escrita da histria,alm das exigncias de neutralidade e de imparcialidade da escola descriptiva,Pereira da Silva rejeita as duas concepes. Para ele, existe apenas umaverdadeira escola histrica que no nem a descriptiva nem a fatalista. Averdadeira e unica escola historica a de Tacito e de Thucydides; a deGibbon e a de Niebuhr; a de Machiavelli e de Muller; a de Plutarco e deThierry; a de Polybio e de Lingard. A grande diferena entre essa escolae as duas outras que ela se define a partir de sua relao com as fontes:

    Deve caracterisar o historiador o amor da verdade, e s da verdade;para consegui-la, torna-se necessario um zelo de exactido, umescrupulo de paciencia a toda a prova; os tumulos, os monumentos,os epitaphios, serve-lhe tudo; decifrar com o mesmo cuidado osvelhos e estragados archivos, os torturados documentos, e os livrose aceiados; procurar a verdade no meio do p dos manuscriptos, ea custa de vigilias e fastiosos trabalhos; e conseguida a verdade,necessitar de todo o sangue frio do seu juizo para distribuir ajustia, e analysar com imparcialidade (Silva, 1858, p. 193-194).

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    Pereira da Silva comprova o alargamento da noo de documento nacultura histrica brasileira no sculo XIX. A verdade histrica no se encontraexclusivamente nos arquivos, mas tambm em outros vestgios. O historiador-bigrafo pode beneficiar-se dessa dilatao documental. A partir de ento,ele pode procurar, medir e demonstrar a obra de um grande homem em umcampo mais vasto. Todavia, o historiador deve ter certas capacidades: serphilosopho, estadista, poeta, jurisprudente, financeiro, theologo e militar;necessita enfim o historiador de possuir uma universalidade de instrucosuperior talvz que Cicero exigia para o seu orador (Silva, 1858, p. 195).De uma certa maneira, Pereira da Silva corrobora a pluralidade deconcepes, que se nota no interior do IHGB, para se definir aquilo que ou deve ser um historiador. Este nunca exclusivamente um historiador,sempre tem duplos. Todas essas figuraes do historiador refletem-se naescrita da histria. Assim, aps ser examinada e conhecida a verdade dosacontecimentos, ouvida a voz dos seculos passados, mas a voz propria everdadeira, cumpre ao historiador narrar e descrever ainda, e de par com anarrao e a descripo julgar e moralisar (Silva, 1858, p. 196). Essas aescognitivas conduzem, tambm, ao melhor modo de se organizar o textohistrico:

    A descripo e a moralisao, a pintura e o juizo, a narrao e oraciocinio, so os elementos indispensaveis para traar-se o grandequadro dos acontecimentos humanos, indagar-lhes as causas,descobrir-lhes os resultados, ligar a vida do individuo vida dasociedade, reunir o homem especie, e formar assim a grande liopara que foi instituida a historia. Verdade e comprehenso, justia eintelligencia, sabedoria e imaginao, lhe tudo necessario para darvida sua historia, alma sua narrao, interesse sua obra,physionomia peculiar s epochas que descreve, e vestes proprias aosacontecimentos que narra (Silva, 1858, p. 197-198).

    A escrita da histria segue, assim, um princpio narrativo muitoprximo s teorizaes romnticas do final do sculo XVIII e do incio dosculo XIX, em torno da cor local. A presena dessa noo fundamental cultura histrica brasileira do sculo XIX. Nela, esto reunidas certas diretrizescapazes de tornar mais atrativa a leitura da histria da nao ao expor fontesridas ou hermticas, porm conservando sua dimenso criativa. A despeitode seu evidente valor potico, de seu constante apelo imaginao, de umaperspectiva onde o prazer esttico no desprezvel, a aplicao dos princpiosda cor local funciona como uma das premissas da organizao narrativa,pois os historiadores da nao tm necessidade de cativar seu leitores comuma histria que seja verdadeira e agradvel de se ler. O uso da cor local

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    como estratgia textual da narrao histrica, portanto de uma narraoverdadeira, para se aproximar do leitor, implicava, contudo, colocar emmovimento uma srie de conhecimentos prvios, ou seja, necessrio estudare fazer pesquisas antes de pintar.5

    Nesse sentido, a presena do par sabedoria e imaginao emerge demodo significativo. Mesmo que, ao que tudo indica, para Pereira da Silva ofato de o conhecimento fazer apelo imaginao no anule a fronteira que ossepara (Pomian, 1999, p. 77), a simples meno dessa relao traz tonasinais de subjetividade. Trata-se, de certa forma, de uma contrapartida spretenses de neutralidade e imparcialidade da escola descriptiva, onde aimaginao no interfere (ou no deveria interferir) na produo do saber.Contudo, a imaginao no a nica dimenso subjetiva do texto de Pereirada Silva. O estilo na histria tambm um elemento que deve ser considerado.O autor faz uma distino que mais uma vez ratifica as disputas conceituaisque opem entre si certos historiadores brasileiros no sculo XIX: o estylodo escriptor, e no do historiador; pertence o estylo ao caracter e ao individuo.Com efeito, se o historiador tem qualidades e se estudou aquilo que temnecessidade, ele pode escrever. Porm, lembra o autor, preciso que ohistoriador escreva de maneira mais facil e mais propria de exprimir os seuspensamentos, as suas ideias, e os seus sentimentos. O que ento o estilo? oestylo o segredo da intelligencia, e o mysterio do escriptor. O estilo assim purasubjetividade? No. O historiador deve se esforar para conhecer as regrasda linguagem, a sua feitura, e as suas necessidades. Eis, para Pereira da Silva,a parte material do estilo; todo o resto depende da inspirao! (Silva, 1858,p. 198-199).

    Uma das crticas feitas ao Plutarco brazileiro, todavia, foi justamente deter sido escrito com um excessivo colorido do estylo, o que torna sua anliseprxima, s vezes, da poesia apaixonada (Silva, 1858, p. 1). Contudo, deacordo com Pereira da Silva, preciso distinguir a imaginao que serve histria, aquela que cria o justo tom das cores, da imaginao potica. Essadiferena explica por que excelentes escritores podem ser pssimos historiadores:

    Foram escriptores excellentes e mus historiadores Tito Livio,Guilherme Robertson e Joo de Barros; escriptores excelentes,porque interessa o seu estylo, encanta e arrasta: mus historiadores,porque aceitram sem criterio um grande numero de factos, queincluiram nas suas historias, extravagantes uns, inverossimeis outros,e que no passavam de tradies populares revestidas da poesia dopovo, que toda patriotica, mas que no deixa de ser poesia, isto ,filha querida e doirada da imaginao. Os historiadores precisam demais estudos, e de mais discernimento (Silva, 1858, p. 199).

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    Segundo Pereira da Silva, Sebastio da Rocha Pita, cuja biografia lhesuscitou essas reflexes, no soube, apesar de seus inumerveis talentos,entre os quais aquele de escrever pequenas notcias biogrficas, evitar aarmadilha da imaginao potica, sobretudo quando descreve os fatos maisrecuados de sua histria. No obstante, Pereira da Silva valoriza, no trabalhode Rocha Pita, a anlise que este faz do seu tempo presente, para o qual noteria tido necessidade de fontes lendrias. Logo, Rocha Pita deve serdesculpado. Todas as naos do mundo, afirma Pereira da Silva, tmdificuldades para narrar seus primeiros tempos que esto mais ou menosenvoltos em vo mysterioso e poetico, que no ousa rasgar o historiador,dado mesmo que os no acredite (Silva, 1858, p. 209). Essa premissa vlida tambm para os homens ilustres. Isso explica por que no fcilencontr-los, nem subtra-los s verses mticas de sua vida.6

    Obras e vidas paralelas: Plutarco brazileiro e Plutarco

    Esse presentismo aqui uma alternativa historiogrfica. O presente, sejaele da histria coletiva, seja aquele da biografia, impe-se ao passado. Nenhumanovidade. Tucdides no pensava diferente (Hartog, 1999, p. 59). O interessante,nesse caso, que Pereira da Silva parece sugerir que uma imaginao controladadeveria se superpor imaginao potica, sendo essa mais apropriada sexplicaes sobre as origens.7 A questo do presentismo tem tambm relaocom a pretenso de Pereira da Silva em instruir seus contemporneos. O princpioque orienta o trabalho biogrfico do autor pode ser, assim, comparados quelede Plutarco: tornar conhecidos os atos dos grandes homens do passado nopresente. Com efeito, a partir dos dois livros sobre a biografia de homensilustres que serviram nao brasileira pode-se tomar Pereira da Silva por umaespcie de Plutarco brasileiro. O prprio ttulos de suas obras j indica que elemesmo, provavelmente, se pensava um Plutarco. A manuteno, apesar de tudo,da estrutura biogrfica nos Vares illustres parece confirmar essa hiptese. Oprprio Pereira da Silva faz referncia ao historiador grego na edio do Plutarcobrazileiro de 1847.

    Os costumes, os fatos histricos, a cronologia, as idias morais ephilosophicas da epoca, a influencia dos homens celebres, tudo isso Plutarcoestudou e soube; de sorte que quando lemos uma de suas vidas, parece que nosachamos no seculo que ele descreve, to vivas so suas cores e to perfeito o seutrabalho (Silva, 1847, p. 219-220).

    O uso de Plutarco, de seu nome e de alguns de seus pressupostos temticossolidificam as notcias biogrficas de Pereira da Silva com a fora dosargumentos de autoridade que a tradio clssica tem o hbito de conferir

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    escrita da histria do sculo XIX. O Plutarco brazileiro, de fato, operaem um registro prximo aquele de Plutarco, mas que no necessariamente idntico. Assim, explica Franois Hartog, como bigrafo,Plutarco no se limita a contar todos os fatos clebres, pois freqentementemais instrutivo escolher os pequenos fatos, que so como signos (smeia) daalma; ele retm a vida dos heris aquilo que mais importante e o maisbonito, e volta-se para os grandes homens do passado grego e romano [...]propondo que sejam imitados por seus contemporneos (gregos e romanos);enfim ele no se preocupa mais com as virtudes do que com a glria, com opresente mais do que com a posteridade (Hartog, 1999, p. 187).8

    Por outro lado, Pereira da Silva deve contar a vida de seus personagensglobalmente. Ele no faz uma distino clara entre os grandes e os pequenosfatos, nem cria uma hierarquizao das qualidades pessoais dos indivduosbiografados. A glria, a virtude, a inteligncia, o herosmo e o patriotismoso as condies gerais e elementares dos indivduos dos quais a vida elenarra. Mas podemos, tambm, apreender outras caractersticas nas biografiasque se articulam umas nas outras sem, necessariamente, criar uma ordemde valores: a alma pura de Jos de Anchieta no sculo XVI, a coragem deAndr Vidal de Negreiros na luta contra os holandeses ou a irreverncia deGregrio de Matos no sculo XVII, a inventividade de Bartholomeu Lourenode Gusmo, e o senso de justia de Jos Joaquim da Cunha de AzeredoCoutinho no sculo XVIII.

    Pereira da Silva no fala, explicitamente, em imitao. Contudo, aperspectiva pedaggica na qual insere seus trabalhos no deixa dvida deque um dos seus objetivos o de propor aos seus leitores modelos imitveis.9

    Ele no tem, certamente, a mesma dependncia face aos homens de aoque Plutarco, para quem os historiadores nada so sem eles: se apagas, dizPlutarco, os homens de ao, no ters mais escritores (Hartog, 1999,p. 179). Em uma obra posterior, na Historia da fundao do imperio dobrazileiro, em sete volumes, o Plutarco brasileiro afirma quase o contrrio:

    Tive sempre gosto pela historia. No a quero, porm, para saber datas,estudar vidas de principes e personagens illustres, e aprender o numerodas guerras e combates que se pelejaro. Prefiro a que examina a fundoa sociedade inteira, que desce da cupola elevada at o humilde cho dopovo miudo, discriminado as escalas e camadas pelas quaes se derramaa nao, e o sentir, o soffrer, o gozar e o aspirar de cada um dos subditos.Agrada-me mais a que desenha os traos da administrao publica, nomais largo sentido desta palavra, social, politica. Assim comprehendea historia o povo e a nao toda, e a representa de perfil, de face, nocorpo, nalma e no espirito. Afigura-se-me ento a historia como o maismoralisado, instructivo, agradvel e sublime dos ramos litterarios (Silva,1864, p. 7).

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    Essa concepo deixa Pereira da Silva mais prximo de Michelet quede Plutarco, na medida em que o grande homem aqui parece ter setransformado na prpria sociedade. A essa diferena terica entre Pereirada Silva e o modelo plutarquiano necessrio acrescentar uma outra, nocampo metodolgico: a falta, pelo menos explicitamente, do paralelo, comoum instrumento cognitivo nos trabalhos biogrficos do brasileiro. Em Plutarco,explica Franois Hartog, o paralelo concebido como princpio da imitao.Ele

    um espelho que deve reenviar ao leitor imagem daquilo quegostaramos que ele fosse ou que ele deveria ser. Ele portanto umavariedade do exemplum: um exemplo desdobrado. Ele vai do passadoem direo ao presente do leitor. Mas o paralelo , com Plutarco,algo mais: instrumento de conhecimento e de melhoramento de si, tambm a expresso de uma poltica cultural. Ele pressupe edemonstra que os gregos e romanos pertencem ao mesmo mundo,compartilham a mesma natureza e os mesmos valores. Ele legitima(em grego, para leitores gregos e romanos) a existncia de um impriogreco-romano, onde os gregos tm um lugar que lhes volta e umpapel a desempenhar (Hartog, 1998, p. 161).

    Acredito, todavia, que h, nas obras do historiador brasileiro o usodaquilo que se poderia chamar de um paralelo subjacente. Ele funciona naeconomia dos textos biogrficos de Pereira da Silva como uma estratgiaintelectual capaz de estabelecer relaes entre um grande homem do panteonnacional e um grande homem pertencente a uma outra poca oucontemporneo daquele que est sendo biografado. A utilizao desse paralelosubjacente auxilia o autor no somente a definir, por oposio ou analogia,algumas caractersticas pessoais desses vares, mas tambm a comparar assituaes espao-temporais pretensamente semelhantes.10

    ***

    O Plutarco brazileiro de 1847 e os Vares illustres provm de um mesmocnon cultural cuja origem encontra-se no IHGB. Pereira da Silva produzuma verso plausvel proposta de Janurio Cunha Barbosa. Por outro lado,ele demonstra que os modelos historiogrficos do Brasil no sculo XIX eram,e este no parece ser um caso isolado, ainda mais dependentes da culturaclssica, cujas referncias continuam vlidas e atuantes, do que da histriacientfica (metdica ou positivista). Em conseqncia, do mesmo modo quea opo romntica, ou a viso medievalizada do passado nacional (aquelaque via no Peri de Jos de Alencar quase um cavaleiro medieval), no umaposio cultural e poltica homognea, a historiografia brasileira tambm

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    reflete certos desacordos: ela no tem unidade, nem fidelidade epistemolgica(Cezar, 2002, p. 201-207). Era ser moderno se deixar levar pelas idiasromnticas. Entretanto, o uso dos antigos no era sinnimo de atraso emrelao a seu tempo. Ele procede, antes de tudo, da segurana metodolgicae terica que a experincia antiga conferia aos historiadores brasileirosoitocentistas. Plutarco era para Pereira da Silva um instrumento e uma idia.No se trata, portanto, de mera influncia ou de simples imitao, mas casoo seja, parece vlida a frmula de Quintiliano no sculo I, para quem noh imitatio sem inventio.

    O panteon contemporneo do Brasil

    A obra de Sebstien Auguste Sisson, a Galeria dos brasileiros illustres(os contemporaneos), retratos dos homens mais illutres do Brasil, na politica,sciencias e letras, desde a guerra da independencia at os nossos dias pode serconsiderada como uma seqncia involuntria do trabalho de Pereira daSilva. O francs instalou-se no Brasil em 1852, exercendo o ofcio de litgrafoe desenhista. Um sentimento de reconhecimento pela hospitalidade amigae generosa que recebeu, segundo seu testemunho, no seio do Imprio doBrasil, o conduziu a esta difficil e trabalhosa tarefa (Sisson, 1861, p. 1).

    A Galeria composta por 90 notcias biogrficas e de suas respectivaslitografias. Entre elas, 39 eram de indivduos mortos em 1861. Em torno de30% so membros do IHGB. Trs mulheres tm o direito de ser consideradascomo Brasileiros illustres: a esposa do Imperador, Dona Thereza ChristinaMaria de Bourbon, e suas filhas, as princesas Isabel e Leopoldina. No entanto,mesmo se a Galeria foi recenseada nos catlogos historiogrficos do Brasilcomo uma obra de Sisson, na realidade, no se trata de trabalho de umnico autor. Sisson deixa no silncio esse detalhe. No se encontra nem naintroduo, nem nas notcias biogrficas, nem na dedicatria a D. Pedro II,sequer uma nota explicativa a propsito do assunto. Lemos os dois luxuososvolumes, apadrinhados pelo Imperador, como sendo a obra de Sisson. Umaleitura atenta, entretanto, coloca em dvida a possibilidade da autoriaindividual. A homogeneidade textual constantemente rompida porrepeties indevidas, por contradies de ordem poltica e pelas diferentesformas como as biografias so escritas (contedo mais ou menos crtico,extenso da notcia, gnero de escrita por exemplo o texto das princesas uma poesia!). Tambm no se percebe algum tipo de organizao quehierarquize as biografias. Os personagens no so classificados segundo umaseqncia cronolgica ou alfabtica, menos ainda de acordo com uma escalade valores. Nem mesmo a condio de fundador ou de continuador do

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    imprio no um critrio vlido para criar uma classificao racional. Porexemplo: a biografia de D. Pedro I a quarta do segundo volume, enquantoaquela de D. Pedro II a vigsima do primeiro volume. Ao que tudo indica,as biografias so dispostas ao acaso. A nica marca unificadora da obra oretrato litografado de cada indivduo, de modo geral, assinado por Sisson.

    Essa desorganizao parece ser o efeito da variedade de autores da Galeria.No Dicionrio de pseudnimos, de Tancredo de Barros Paiva encontrei ainformao de que a obra de Sisson teve, pelo menos, 39 colaboradores,responsveis por 70 notcias biogrficas (Paiva, 1929, p. 173). Podemos dividi-los em quatro grupos: 1. os redatores independentes (23); 2. os redatores membrosda famlia, mas no identificados (7); 3. os membros da famlia identificados(2); 4. as autobiografias (7). Para as 20 biografias restantes Tancredo de BarrosPaiva no indica o autor. Entre os colaboradores, observa-se a presena defiguras importantes da cena intelectual brasileira do perodo, entre os quaisdois notveis do IHGB, Manuel de Arajo Porto Alegre e Joaquim CaetanoFernandes Pinheiro; jornalistas conhecidos tais como Francisco Otaviano deAlmeida Rosa, tambm senador, ministro e poeta, e Justiano Jos da Rocha,considerado o mais importante homem de imprensa da sua poca, ou ainda,um grande escritor como Jos de Alencar que escreveu duas biografias, sendouma delas de seu prprio pai. Todavia, o autor identificado por Tancredo deBarros Paiva como sendo aquele que redigiu o maior nmero de notcias naGaleria de Sisson foi Adolfo Bezerra de Menezes (1831-1900), responsvel por17 biografias.11 Entre os redatores identificados, dois so autores e ao mesmotempo bigrafos e biografados: Jos da Silva Carro e D. Manoel de AssisMascarenhas. Enfim, trs notcias biogrficas so assinadas: duas pelo BaroHomem de Mello; e uma por Francisco Octaviano.

    Assim, a Galeria nada mais do que a materializao de umempreendimento coletivo dissimulado sob o nome de Sisson. A variedadede autores, de origens e de formaes intelectuais, coloca, de um lado,problemas quanto unidade formal da obra e, de outro, permite a verificaodas tendncias e tenses pelas quais o estudo biogrfico passava. Maisprecisamente, notam-se, aqui, tentativas desses escritores em fazer da biografiaum gnero histrico reconhecido, sobretudo quando se trata da vida doscontemporneos. Nesse sentido, a Galeria, assinada por diversos autores,reinscreve os nomes dos principais brasileiros ilustres em um processohistrico inteiramente nacional e atual: o titulo de nossa obra indica bemclaramente, que tommos por ponto de partida a poca gloriosa daIndependencia do Brasil. Por outro lado, as litografias conferem a essecontexto, e aqui notamos incontestavelmente a mo de Sisson, uma densidadevisual, pois a simples relao dos feitos dos grandes homens ainda no

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    tudo: a nao, como a familia, se apraz de conservar indelevel a imagem, ea figura de seus membros mais distinctos. A iconografia fornece obrauma caracterstica particular:

    A patria, como a mais extremosa das mis, se extasia ante os retratosde seus filhos: os contemporaneos, que nem todos conhecem deperto os seus concidados mais assignalados, e a posteridade, que apenas herdeira de sua fama, folgo de procurar na fronte do sabioos calculos profundos de sua vasta intelligencia, nos olhos doguerreiro o fogo marcial que brilhra nos campos de batalha.Encontra-se finalmente um encanto indisivel em ter junto da historiado here, ou do homem eminente, a imagem de seu rosto: entoparece que se renova o passado, ou que se testemunha scenasbrilhantes, de que se esteve longe: ento como que se v o estadistameditando no seu gabinete, como que se admira o orador na tribuna,e o poeta exaltando-se em suas horas da mais feliz e ardente inspirao(Sisson, 1861, p. 1).

    O recurso iconogrfico tem por funo fazer com que oscontemporneos conheam e reconheam os contemporneos illustres. Eleconsolida a relao entre os homens comuns e a histria narrada a partir dosgrandes homens. Os homens comuns so chamados a observar a grandeza ea excepcionalidade das fisionomias e dos gestos dos grandes e excepcionaishomens; os primeiros so passivos, os segundos os ativos. Essa assimetriano significa a excluso do observador na construo histrica da naobrasileira. Ao contrrio, ela indica os papis de cada um no curso de umdevir mais geral: uns fazem aquilo que os outros devem imitar. Ler umabiografia , portanto, antes de tudo, um ato de contemplao, mas igualmente um gesto de insero cultural e poltica.

    Nesse sentido, Sisson explica, nas pginas introdutrias do seutrabalho, que seu objetivo o de fazer histria, ou principalmente escreverde um ponto de vista histrico: ele deseja, em uma palavra, apresentar osquadros e a historia do Brasil neste periodo. Tambm verdade que a Galeriatem por meta propor exemplos. No entanto, Sisson impe obra umalimitao metodolgica: o historiador e o bigrafo sempre devem distinguiraquilo que pblico daquilo que privado na vida do indivduo. A vidapblica, e em princpio somente ela, o que interessa: em nossos trabalhosbiographicos esmerilhando cuidadosos a vida publica do homem,suspenderemos nossos passos diante do lar domestico. Deve-se fechar osolhos ao proceder particular, pois no pertence ao escriptor a vida intima docidado: smente tradio cabe revelar estes detalhes para completar o caracterdos homens celebres. A nica exceo que autoriza o bigrafo a escrever sobrea vida privada quando ela parece inseparvel da vida pblica. o caso, por

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    exemplo, da biografia de Manoel Jacinto Nogueira da Gama, Marqus deBaependy (1764-1847). Conforme Justiano Jos da Rocha, autor dessa notcia,na vida do nobre Marquez pde-se considerar o homem privado e o homempublico, pois neste podemos ver o homem de estudo e de magisterio, ohomem de administrao, e o homem politico. Finalmente, conclui o redator,por todos esses aspectos pde o Brasil ufanar-se de to distincto filho, e apresenta-lo como modelo. No se trata de uma amlgama entre o homem privado e ohomem pblico, mas da anulao do primeiro pelo segundo. Esse apagamento,contudo, no significa a suspenso da vida privada, nem que ela sejadesinteressante para a histria. A vida privada dos homens ilustres brasileiros um segredo, que deve ser preservado pelo bigrafo. Ele deve esperar que atradio faa sua obra, que ela a desvele. Tal soluo supe a passagem dotempo. Isso significa que os aspectos particulares da vida de um homem, deum que merea que lhe seja consagrada uma biografia, somente serodivulgados aps um trabalho de rememoraes da vida de um indivduo,cuja biografia apenas uma das fontes.12 Trata-se, portanto, de um mesmomovimento historiogrfico, tanto de proteo poltica e social da vida pblica,bem como por outro de preservao da vida privada.13

    A competncia reduzida do bigrafo explicada na Galeria comosendo, por vezes, um efeito da clssica distino entre a histria e abiografia.14 Na notcia biogrfica de D. Pedro I, por exemplo, Justiano Josda Rocha escreve que

    o biographo no historiador; se pde indicar algumas observaes,no deve demorar-se nellas, nem mesmo completa-las, cumpre queellas sio de si mesmas, das circumsntancias da vida que narra, dosacontecimento em que seu here achou-se envolto como personagemcapital: a nossa tarefa pois limitada (Sisson, 1861, p. 7).

    As pesquisas em biografia so rpidas, ligeiras. Os traos e ascaractersticas sobre a vida de um indivduo so imanentes quilo que obigrafo pode observar. Nesse sentido, a biografia surge do prprio biografado.Ela no tem exterioridade evidente ou importante. Mais ainda, o mundoindividual e todas suas circunstncias conjunturais no passam demanifestaes ontolgicas, quase epifanias. Porm, mesmo que elas surjamdo prprio indivduo, elas no provm, curiosamente, do espao privado,mas do espao pblico. Assim, em uma outra notcia biogrfica, aquela deGabriel Jos Rodrigues dos Santos (1816-1858), o redator (algum da famlia)afirma que ele quer iniciar seu relato de modo diferente das outras biografias:No comearei como quase todos os biographos, recordando os pais, a familia, ea adolescencia dos grandes caracteres, visto que os laos de ascendencia ou

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    descendencia deixo inexplicavel o talento, a virtude e a gloria. Com efeito, asqualidades do personagem concentram-se e emergem dele mesmo: uma vidatriunphante se revela por si mesmo, se traduz em seus actos, e se eternisa pelasproprias virtudes (Sisson, 1861, p. 51).

    Um outro fator restritivo escrita biogrfica a contemporaneidadedos atores. o que se passa na biografia de Joaquim Jos Igncio, pocacom 53 anos de idade. O autor, cuja identidade desconhecida, explica noprefcio que:

    escrever a vida dos que ainda vivem tem seus inconvenientes. Aemulao em uns, e a inveja em outros procuram muitas vezesdesmerecer factos, que, encarados sem preconceitos e ms intenesdo altos direitos a considerao e respeito dos contemporaneos edos psteros. Demais, os proprios biographos no podem sempredar o devido realce a algumas aces dos seus heres, porqueordinariamente estes ou se negam ao fornecimento de apontamentos,ou os prestam to succintos, que impossivel desenvolve-los comtodo o escrupulo e conveniencia da verdade (Sisson, 1861, p. 91).

    O bigrafo do contemporneo pode se chocar com as fontes, com ostestemunhos que o cercam, cuja parcialidade nem sempre assegurada, etambm com o prprio biografado que, s vezes, se apresenta como uminformante instvel. Por isso, este gnero de trabalho, precisa o autor annimo,depende de uma certa durao, de um certo decorrimento do tempo, duranteo qual fria e lentamente sejam estudados os elementos da historia que se procuraescrever. Ele encontra, desse modo, as condies necessrias para verificarcom severidade e pacincia as circumstancias das pocas em que os factosse deram. O redator conclui que s de mortos se deve escrever a historia.Entretanto, como

    voga de biografar os contemporaneos, que assumem os logares deprimeira ordem social, e que sabem distinguir-se por qualquer generode merito, que fra injustia, e injustia clamorosa, omittir esse usopara com o eminente General da nossa Armada, o Sr. ChefedEsquadra Joaquim Jos Ignacio (Sisson, 1891, p. 91).

    A biografia do tempo presente , ao que parece, um gnero provisriode histria, ou melhor ainda, uma substituta que est conectada ao seutempo: ela est na moda! Tal como essa, ela leve e efmera, e sua dimensopblica , indiscutivelmente, o que mais conta. No imaginemos, contudo,que seja fcil biografar a contemporaneidade dos homens ilustres. Ao contrrio,alm de ser uma das tarefas mais difceis do bigrafo, ela tambm umexerccio glorioso, com o qual se pode estabelecer o lao, o annel, a cada queprende duas pocas da historia do Brasil, o passado, poca de lutas tremendas, e

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    de organisao depois da victoria; e a actualidade, periodo de progresso ecivilisao. Em 1861, o ano de 1822 e os eventos que o sucedem so vistos jcomo um passado institudo, mesmo se vrios combatentes morreramrecentemente ou se alguns deles ainda esto em vida. O discurso histricobrasileiro do sculo XIX tem essa capacidade de instaurar sem cessar opassado, mesmo o passado mais imediato, no seu prprio tempo para, assim,contitui-lo enquanto presente. Esse princpio de converso temporal operasobre a mesma rede que os registros biogrficos; aquela do dinamismo, darapidez, das novas modas, enfim das mudanas nas relaes entre o pblicoe o privado.

    ***

    A Galeria dos brasileiros ilustres poderia ser catalogada como sendouma tentativa limitada ou dispersa, ou uma resposta involuntria propostade Janurio da Cunha Barbosa. Em todo caso, o trabalho assinado por Sissonno passou desapercebido no IHGB. Ele merece mesmo uma resenha doento primeiro-secretrio Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro, que, emseu relatrio anual, afirma:

    Com igual prazer acolheu o Instituto a remessa que lhe fez o Sr.Sisson da importantissima obra de que editor. Se a Galeria dosBrasileiros Illustres no pode ser ainda a biographia severa edesapaixonada que deve um dia, julgar os protagonistas do nossogrande drama politico, nem por isso menos curiosa, nem exiguoservio presta historia, arrancando do esquecimento muitos factosque debalde um dia com afan se buscariam, reflectindo em suaspaginas as varias cores da actualidade (Pinheiro, 1859, p. 700).

    Inicialmente, o primeiro-secretrio reconhece que Sisson apenas oeditor da obra. Pinheiro no tinha muita opo uma vez que ele mesmo eraum dos redatores da Galeria. Aps essa identificao, ele no mencionamais o nome de Sisson, nem de nenhum outro colaborador. Galeria suficiente. Alis, trata-se de trabalho que pode ser aproveitvel, uma vez quesalva certos nomes do anonimato. Porm, ainda que seja classificada comouma contribuio irrecusvel, a obra no passa, para Pinheiro, de um trabalhode segunda categoria, um conjunto de dados, organizados sem o rigor e aracionalidade requeridos pelo IHGB. A Galeria, enfim, pode ser til comoum livro de Plutarco, mas no cientfica.

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    1 Mantive, nas citaes dos textos do sculoXIX, a grafia original.2 Neste sentido, ainda em 1839, JosFeliciano Fernandes Pinheiro, presidentedo IHGB, servindo-se de uma citao dofilsofo francs Victor Cousin, cujainfluncia sobre a primeira gerao doinstituto notria, declara: Dai-me a Carta diz Cousin de hum paiz, sua configurao,seu clima, suas aguas, seus ventos, e toda suageographia fisica; informai-me de suasprodues naturaes, de sua flora, de suazoologia, etc. e eu me comprometo a dizer-vosa priori, qual ser o homem deste paiz, e quelugar gosar na historia, no acidentalmente,mas necessariamente; no em tal poca, masem todas; em fim a ida que este paiz hechamado a representar (Pinheiro, 1839,p. 65; Cousin 1828, p. 210-211).3 A constituio de um panteon nacionalera uma questo problemtica para oshistoriadores e bigrafos brasileiros daqueleperodo. Como a prpria nao estava emformao, o conceito de brasileiro no estavaclaro. De fato, determinar com preciso oque o constituia, sobretudo no perodocolonial, quem se enquadrava na condiode ser brasileiro parecia algo impossvel.Assim, de maneira geral, o panteon nacionalda Revista do IHGB era composto poraqueles que se tornaram ilustres ou clebres,a compreendidos homens, mulheres,ndios, mestios e negros. Trata-se de umaconcepo prxima quela de VictorCousin: la rgle fondamentale de laphilosophie de lhistoire, relativement auxgrands hommes, est de faire commelhumanit, de les considrer par ce quilsont fait, non par ce quils ont voulu faire, cequi na pas le moindre intrt, puisquils nelont pas fait, de ngliger la peinture defaiblesses inhrentes leur individualit et

    Notas

    qui ont pri avec elle, pour sattacher auxgrandes choses quils ont faites, qui ont servilhumanit, et qui durent encore dans lammoire des hommes, enfin de rechercheret dtablir ce qui les constitue despersonnages historiques, ce qui leur a donnde la puissance et de la gloire ; savoir, lidequils reprsentent, leur rapport intime aveclesprit de leur temps et de leur peuple(Cousin, 1828b, p. 267). Porm, diferen-temente do caso francs, no h para osbrasileiros uma distino clara entre homemilustre e grande homem. Ver (Bonnet, 1998,p. 32-49 e Ozouf, 1984, p. 144).4 Por solicitao do IHGB, Manuel deArajo Porto Alegre havia iniciado, em1852, uma pesquisa para preparar umopsculo onde constaria uma colleco deimagens, s quaes juntaria algumas noticiasbiographicas, que deveria servir decomplemento ao Plutarco brazileiro. Oprojeto foi, no entanto, interrompido (PortoAlegre, 1856, p. 349).5 Carine Flickinger explica em termos tericoso princpio da cor local lidal qui sous-tend lanotion de couleur locale, en effet, est celui de lavie ou de la ralit fidlement reproduite. Lartistesattribue dans ce sens des dons dobservateur presqueillimits, puisquil peut voir la ralit dans toutesa multiplicit, traverser les frontires gographiques et mentales et mme, par lepouvoir magique de son imagination, voyagerdans le temps. Lintermdiaire du langage necompromet nullement ces facults: lcrivain peutretranscrire tout ce quil a vu (Flickinger, 1995,p. 34-35). Agradeo a autora por me passaresse trabalho.6 A biografia de Diogo Alvares, o Caramuru,que teria sido o primeiro europeu a habitarna Bahia, um bom exemplo. SegundoPereira da Silva, convem profundamentepesquizar e estudar a existencia historica de

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    Diogo Alvares. [...] a nossa opinio esta;como ha nos primeiros tempos de todas asnaes acontecimentos, que a tradioguarda, e passa de pais a filhos, e que com oandar dos tempos, vo calando no animodo povo, doirados pelo maravilhoso espiritoda epocha, e desenvolvidos pela phantasiados homens; assim nos parece ter sido amarcha da historia de Diogo Alvares,appelidado pelos indigenas Caramuru;tomou delle posse a fico; creou-lhe apoesia romanescas aventuras; mas existiuDiogo Alvares, como existiu Carlos Magno,como existiu Rodrigo de Bivar, e comoexistiu Romulo. Comprovemos suaexistencia com documentos irrecusaveis(Silva, 1858, p. 307-310). Pereira da Silvadiscorda nesse ponto (como em outros) deVarnhagen, que acredita sem a minimaduvida na existencia do Caramuru(Varnhagen, 1848, p. 144).7 Acredito que perfeitamente possvel sefazer uma analogia entre essa imaginaocontrolada com aquilo que Paul Ricurchama de iluso controlada. Escreve ofilsofo francs: je parlerai volontiers dillusioncontrle pour caractriser cette heureuse unionqui fait, par exemple, de la peinture de laRvolution franaise par Michelet une uvrelittraire comparable Guerre et paix de Tolsto,dans laquelle le mouvement procde en sensinverse de la fiction vers lhistoire et non plusde lhistoire vers la fiction (Ricur, 1985,p. 338).8 Franoise Frazier explica a distino paraPlutarco entre historiador e bigrafo. Paraela preciso renoncer lide courante selonlaquelle la diffrence entre biographe ethistorien rsiderait dans le choix de lamatire, lun se rservant les petits faits etlautre les grands vnements. On ne peutpas plus la placer dans les intentionspdagogiques de Plutarque : tout historienantique veut aussi instruire son lecteur et lamorale tient une grande place dans sesleons, parce que les hommes, avec leur

    raison et leurs passions, jouent un rlecapital dans la marche de lHistoire. Mais,et l se fait leur diffrence, lhistoriensapplique analyser la causalit historiquepour amliorer la comprhension de faitsdu mme ordre et apprendre y faire face,tandis que le biographe nattache aucuneimportance la chane causale, ddain quise traduit dans llaboration mme du rcit(Frazier, 1996, p. 95).9 O paradigma sempre Plutarco, que noprefcio s vidas de Paulo-Emlio e Timoleon,escreve: Lhistoire est mes yeux comme unmiroir, laide duquel jessaie, en quelque sorte,dembellir ma vie, et de la conformer aux vertusde ces grands hommes. Jai vraimentlimpression dhabiter et de vivre avec eux:grce lhistoire, joffre lhospitalit, si lon peutdire, chacun dentre eux tour tour,laccueillant et le gardant prs de moi; jecontemple comme il fut grand et beau, et jechoisis les plus nobles et les plus belles de sesactions afin de les faire connatre (Plutarque,2001, p. 465). Ao analisar a questo daimitao, Franoise Frazier mostra quchaque fois, le miroir prsente ainsi limagedu vrai et du bien et se lie la notion demodle; on peut, grce au miroir,contempler et imiter, [...]. Condamne sansappel par Platon dans le domaine artistique,o elle est synonyme dextnuationontologique, limitation a en revanche droitde cit en morale ; mieux, limitation desbelles actions, celle que prnent aussi lesVies, est la seule valable pour lhomme debien. Telle est la conclusion laquelleparvient Platon, lorsquil rflchit lducation des futurs chefs de la cit (Refr.III. 395C), cest--dire lorsque, commePlutarque, il se situe dans une perspectivepdagogique (Frazier, 1996, p. 60).10 De acordo com M. Nouilhan, Jean-MariePailler e Pascal Payen, na introduo quefazem a uma outra obra de Plutarco: lesparallles (sunkriseis) qui terminent les

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    couples de Vies sont loin de tournersystmatiquement lavantage du Greccivilis ou du Romain victorieux. Le critre,pour lauteur [Plutarque], nest pas danslorigine civique ou culturelle du hros, nidans la grandeur de sa cit, mais dans ladmonstration, face aux circonstanceshistoriques, des qualits de lhomme deguerre, de lhomme dtat, de lhommetout court. Lessentiel est que lunivers derfrence fourni par les grands exemplesdu pass grco-romain et par leur mise enparallle autorise lhabitant mme dunepetite ville de lEmpire, comme la Chronede Plutarque, se fixer comme objectif lavie bonne gouverne par lart (Plutarco,1999, p. 47).11 Adolfo Bezerra de Menezes, doutor emMedicina pela Faculdade do Rio de Janeiro(1856). Reeleito deputado por vriaslegislaturas. Torna-se mdico-homeopata eadepto do Espiritismo. Tornou-seconhecido como o Alan Kardec brasileiroe o Mdico dos Pobres. Morre em grandemisria (Menezes, 1969, p. 439).12 Podemos aproximar essa tendncia que traauma fronteira entre bigrafo e biografado dosprincpios que orientaram a criao no IHGBda arca do sigillo, dentro da qual seriamguardados documentos que somente seriamdivulgados depois de passado um certo perodo(RIHGB, 1847, p. 567).13 preciso lembrar que a distino entrevida pblica e vida privada insere-se tambmem uma concepo da histria, que maistarde ser designada por positivista. SegundoGiovanni Levi: Un compromis fut trouvdans la biographie morale qui, de fait,renonait lexhaustivit et la vracitindividuelles pour rechercher un accentplus didactique, en ajoutant parfois passionset motions au contenu traditionnel desbiographies exemplaires, savoir les faits etgestes du protagoniste. vrai dire, cettesimplification suppose une certaine

    confiance dans la capacit de la biographie dcrire ce qui est significatif dans une vie.Cette confiance culminera dailleurs dansle positivisme et le fonctionnalisme, aveclesquels la slection des faits significatifs vaaccentuer le caractre exemplaire ettypologique des biographies, en privilgiantla dimension publique par rapport ladimension prive et en considrant commeinsignifiants les carts aux modles proposs(Levi, 1989, p. 1328).14 Arnaldo Momigliano mostra que aseparao entre biografia e histria umaherana da historiografia grega: labiographie et lautobiographie furent desgenres autonomes ds leur origine et sedvelopprent paralllement lhistoirepolitique : celle-ci ne les absorba jamais. Ladistinction entre biographie et histoire(entendons ici lhistoire politique) futfonde en thorie au cours de la priodehellnistique, mais elle existait dj en faitau Ve sicle (Momigliano, 1983, p. 108). necessrio notar que essa distino no muito clara nem muito presente no discursohistrico oitocentista do Brasil. No entanto,ela pode ser uma explicao para a ausnciade grandes biografias escritas porimportantes historiadores brasileiros dapoca. A despeito da influncia de VictorCousin, sobretudo na primeira gerao doIHGB, essa fraca produo de biografiasparace seguir o movimento mais geral dahistria durante o sculo XIX, quetestemunha o afastamento do gnerobiogrfico da histria. De acordo comLoriga, le foss entre biographie et histoiresest creus au cours du XIXe sicle chez lesphilosophes, quand on a commenc chercherle sens de lhistoire empirique dans lhistoirephilosophique. Une certaine rduction de laplace de lindividu tait dj prsente dansune brve tude sur la finalit de lhistoirecrite, en 1784, par Emmanuel Kant, quireprsentait lhomme comme un moyen, pourla nature, de raliser ses propres fins: lhistoire

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    devait changer dchelle pour dpasser lecas individuel car ce qui, chez des individussinguliers, se rvlait confus et irrgulierapparaissait dans la totalit de lespcecomme une succession homogne etcohrente dvnements. La dimensionbiographique a perdu davantage encore deson intrt avec la prfrence accorde une vision providentielle de lhistoire.

    Lorsque les vnements du monde, des plusdivers jusquaux plus aberrants, ont tintgrs dialectiquement dans uneperspective eschatologique (celle dundveloppement infini et ncessaire du genrehumain), les individus sont apparus commedes instruments de la raison, quiaccomplissent ce quils ne peuvent mmepas comprendre (Loriga, 1996, p. 213).

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