Tempo e Dispositivo - hambrecine.files.wordpress.com · Os filmes de Cao Guimarães expressam de...

5
Tempo e Dispositivo nos Filmes de Cao Guimarães

Transcript of Tempo e Dispositivo - hambrecine.files.wordpress.com · Os filmes de Cao Guimarães expressam de...

Page 1: Tempo e Dispositivo - hambrecine.files.wordpress.com · Os filmes de Cao Guimarães expressam de forma ... Alterações que o cineasta obtém a partir de enquadramentos fotográficos

Tempo e Dispositivonos Filmes de Cao Guimarães

Page 2: Tempo e Dispositivo - hambrecine.files.wordpress.com · Os filmes de Cao Guimarães expressam de forma ... Alterações que o cineasta obtém a partir de enquadramentos fotográficos

]H[ espacio cine experimental ­ ISSN 2346­8831 | 23

hambremarço 2014

Tempo e Dispositivonos Filmes de Cao Guimarãespor Consuelo Linsi

Os filmes de Cao Guimarães expressam de formaexemplar um cruzamento e uma circulação cadavez mais intensos entre documentário e artecontemporânea, domínios até pouco tempodistantes, e mesmo hostis entre si. Cineastas quetrabalham prioritariamente no documentáriocriam instalações para serem expostas em museuse galerias ao mesmo tempo em que artistasexpandem suas criações para o campo dasimagens documentais. Os cinco longas metragensde Cao Guimarães são fortemente marcados pelafotografia, filmes experimentais e vídeosinstalações que o artista realiza desde o início dosanos 90. O fato de Andarilho, seu documentáriomais recente, ter sido escolhido para a abertura da27a Bienal de São Paulo (2006) é mais um indícioda fértil porosidade de fronteiras entre esses doiscampos artísticos.

Dois aspectos se destacam na passagem do artistade um campo a outro: primeiro, a observaçãosilenciosa do mundo praticada na fotografia e emfilmes experimentais e tão bem retomada pelocineasta ao filmar trabalhadores de ofícios emvias de extinção (O Fim do Sem Fim ­ 2001), umermitão (A Alma do Osso ­ 2003), três andarilhos(Andarilho ­ 2007) ou ainda o tempo que passanas pequenas cidades mineiras (Acidente ­ 2005);em seguida, a invenção de dispositivos paraproduzir uma obra, operação utilizada em certoscurtas­metragens e instalações e recuperada pararealizar filmes como Acidente e Rua de MãoDupla (2003).

É particularmente por meio desses procedimentosque o artista mineiro se confronta com estéticas,éticas e metodologias do documentário para

filmar personagens solitários, a maioria deles àmargem da modernidade capitalista, masatravessados por ela; em outras palavras, parafilmar o “outro”, questão central da tradiçãodocumental. E encontra assim, a seu modo e porconta própria, um certo cinema contemporâneofeito de planos­seqüências que duram, realizadopor cineastas que acreditam que, mais do que deimagens, o cinema se constitui de blocos deespaço­tempo (Gus Van Sant, Abbas Kiarostami,Alexandre Soukourov, Mercedes Alvarez, entreoutros). As construções temporais contidas nessesfilmes privilegiam a acuidade sensorial doespectador, propõem novas experiências sensíveise imprimem mudanças em nossa percepção demundo.

O tempo como matéria do filme

Em O Fim do Sem Fim, A Alma do Osso eAndarilho, Cao Guimarães fabrica, através delongos planos­seqüências, imagens que perturbamas definições, habituais no cinema, de imagens“objetivas”, registradas do ponto de vista dacâmera e portanto do diretor, e imagens“subjetivas”, atribuídas aos personagens.Alterações que o cineasta obtém a partir deenquadramentos fotográficos precisos nos quaisele insufla tempo; imagens de texturas diferente,fruto da mistura de suportes (vídeo, super 8, 16mm) presente em quase todos os seus filmes. Sãoplanos menos ligados às temáticas do filme, maispoéticos, livres, frágeis.

Em Andarilho, por exemplo, o cineasta faz usodesse procedimento, levando­o ao limite. Extraidas estradas pelas quais perambulam os

Page 3: Tempo e Dispositivo - hambrecine.files.wordpress.com · Os filmes de Cao Guimarães expressam de forma ... Alterações que o cineasta obtém a partir de enquadramentos fotográficos

]H[ espacio cine experimental ­ ISSN 2346­8831 | 24

hambremarço 2014

andarilhos efetivas visões: imagensexplicitamente objetivas ­ capturadas com acâmera fixa em um tripé durante longosmomentos ­ transformam­se pouco a pouco,ganhando uma estranha subjetividade, a ponto deadquirirem um caráter alucinatório que dissolvedistinções. É como se as imagens, inicialmentecapturadas do ponto de vista do diretor,contraíssem gradualmente a visão do personagematé o momento em que não pertencessem maisnem a um nem a outro, transformando ao mesmotempo a própria experiência do espectador.Objetivo e subjetivo, real e imaginário, ficção edocumentário perdem o sentido em imagens àbeira da abstração: caminhões e motos afundandono fundo da imagem, plantas evanescentes,estradas fumegantes, seres em dissolução.

Trata­se de um procedimento que favorece umaatenção inédita e concentrada às pequenas coisasdo mundo, aos seres, movimentos, gestos, sons,ruídos, conversas, utilizado desde o primeirodocumentário, O fim do sem fim, dirigido emparceria com Lucas Bambozzi e Beto Magalhães.Só que de forma atenuada: os planos­seqüênciasdesse filme são distribuídos entre os depoimentosde muitos personagens dispersos em todo oBrasil. Em A Alma do Osso, Cao Guimarãesrealiza uma espécie de depuração das opçõeséticas e estéticas do primeiro filme. Reduzpersonagens, situações, locações, e amplia o usode longos planos para acompanhar o ermitão. Ofilme nos desvela pouco a pouco que mesmoexistências aparentemente isoladas sãoperpassadas por questões centrais do mundo atual,tais como a mídia, o dinheiro e a lógica doespetáculo: depois de testemunharmos a solidãodurante boa parte do filme, vemos que o ermitão étambém ponto turístico. É como se não fosse maispossível uma ruptura com o “social”: o espetáculoconstitui o mundo e o próprio filme não deixa defazer parte dessa lógica, mesmo se a desloca ­ oermitão torna­se imagem e passa, assim, a circular

pelo mundo.

Dispositivo e jogo

Os filmes Rua de Mão Dupla, concebidoinicialmente como vídeo instalação para a 25ªBienal Internacional de São Paulo, em 2002, eAcidente, realizado em parceria com PabloLobato, são produzidos a partir da idéia dedispositivo. No primeiro filme, Cao Guimarãesconvidou seis pessoas pertencentes às camadasmédias da população de Belo Horizonte paraparticipar de uma experiência inusitada: divididosem duplas, eles trocariam de casa por 24 horas e,munidos de uma pequena câmera digital,filmariam o que bem lhes aprouvesse em casaalheia, tentando "elaborar uma "imagem mental"do outro (a) através da convivência com seusobjetos pessoais e seu universo domiciliar"1. Aofinal, dariam um depoimento para a câmera,contando como imaginaram esse "outro".Portanto, o diretor não filma nem dirige, masconcebe um jogo, distribui cartas, determinaregras, escolhe jogadores, fornece câmeras,transporte, comida. Provê o necessário e sai decampo. Trata­se de uma maquinação que implicaa ausência de controle do diretor sobre o materialfilmado, propiciando uma espécie de "retiradaestética" não propriamente do filme ­ afinal odispositivo é dele, assim como a montagem dofilme ­, mas das imagens e sons que seu filme vaiconter, atribuindo a seis outros indivíduos a tarefade filmar e se autodirigir.

O dispositivo que “dispara” a filmagem deAcidente é, de certa maneira, mais conceitual.Não há inicialmente nenhum interesse particulardos cineastas por um aspecto concreto darealidade. É como se houvesse, antes de tudo,pairando no ar, uma questão imensa, questão devida, em que os cineastas se perguntassem comose relacionar com o mundo diante de tantaspossibilidades, de tantos filmes já feitos, de tantas

Page 4: Tempo e Dispositivo - hambrecine.files.wordpress.com · Os filmes de Cao Guimarães expressam de forma ... Alterações que o cineasta obtém a partir de enquadramentos fotográficos

]H[ espacio cine experimental ­ ISSN 2346­8831 | 25

hambremarço 2014

imagens prontas, sem sucumbir nem ao caos nemaos clichês. Ou, como diria J. L. Comolli, “comofazer para que haja filme”2? Cao Guimarães ePablo Lobato decidem se apegar às palavras:criam um dispositivo­poema e, de posse dele,começam a filmar. Mas não são palavrasquaisquer retiradas do dicionário – poderia ser,mas seria outro filme.

São nomes de cidades mineiras cuja lista elespesquisaram na internet. Selecionaram cem e asimprimiram. Espalharam os papeis sobre a mesa ecomeçaram a brincar com as palavras.Sonoridades, sentidos, materialidades,ressonâncias: foi isso que contou para os cineastase não um conhecimento prévio da realidade dascidades, das quais aliás eles ignoravam tudo.Chegam a um poema com 20 nomes que evocauma fábula de amor e dor: Heliodora, Virgem daLapa, Espera Feliz, Jacinto Olhos d’Água. EntreFolhas, Ferros, Palma, Caldas, Vazante, Passos.Pai Pedro Abre Campo, Fervedouro Descoberto,Tiros, Tombos, Planura, Águas Vermelhas, Doresde Campos.

O dispositivo­poema torna­se portanto umamáquina de produzir imagem e adquire, comotodo dispositivo, um certo poder sobre oscineastas. Decide por eles onde vão filmar; retiradeles o direito de recusar uma cidade caso nãogostassem dela, porque nesse caso o poemadeixaria de funcionar. Diminui o excesso deintencionalidade. É um jogo, que tem suas regras,às quais eles devem se submeter. Não se trata emabsoluto de adaptar palavras às coisas, nomes àscidades, mas construir uma forma de seconfrontar com o caos do mundo sem submergir,de imprimir uma direção inicial, abrindo aomesmo tempo o filme aos acasos, imprevistos eimponderáveis do real.

Os documentários que resultaram dessesdispositivos são profundamente distintos entre si.

Acidente possui traços em comum com os filmesconstituídos de planos­seqüências, mas não hápropriamente personagens nem temas. São blocosde espaço­tempo que capturam a duração, emvárias camadas, nas cidades do interior de Minas,e nos fazem ver e sentir “um pouco de tempo emestado puro”3, à maneira de Ozu. Onde Acidentemais parece se aproximar da imagem estática dafotografia, é justamente onde mais se distancia,em função da duração. Na cidade de Entre Folhas,por exemplo, vemos o cair da tarde do balcão deum bar onde praticamente nada acontece, a nãoser os movimentos infra­ordinários do seuproprietário ou a rara circulação de carros epessoas do lado de fora. Na cidade de Palma, ofilme se atém a uma ladeira em que os temposmortos se alternam com micro­acontecimentos.

O filme inteiro é capturado por uma espécie deinação, que contamina personagens e cineastas. Oespectador também é envolvido nesse circuito emque as conexões entre palavras e coisas, nomes ecidades, acontecimentos e personagens, sãotênues, frágeis e, finalmente, de poucaimportância. Trata­se de um filme em que adimensão propositiva se mistura à uma dimensãomais plástica, contemplativa e formal, mesclandoem um só tempo dois movimentos que CaoGuimarães identifica em sua trajetória, emtrabalhos diferentes.

Quanto à Rua de Mão Dupla, a grande invençãodo filme, responsável pela solidez da proposta, é asolicitação do diretor de que os “outros” emquestão, os participantes do filme, se interessempor outros e não por eles mesmos; atitude queredireciona o desejo da “besta da confissão”4 emque nos transformamos a partir do momento emque uma câmera é postada diante de nós. CaoGuimarães não quer que eles se voltem para si,que falem de suas vidas, que se revelem para acâmera; pede, antes, que falem de pessoasdesconhecidas e filmem casas alheias. A mudança

Page 5: Tempo e Dispositivo - hambrecine.files.wordpress.com · Os filmes de Cao Guimarães expressam de forma ... Alterações que o cineasta obtém a partir de enquadramentos fotográficos

]H[ espacio cine experimental ­ ISSN 2346­8831 | 26

hambremarço 2014

do foco do “eu” para o “outro” faz com que ospersonagens fiquem menos atentos aautocontroles, censuras e filtros que normalmenteacionamos para oferecer a imagem que desejamosde nós mesmos. A maneira como se relacionamcom o espaço alheio, o que escolhem filmar, oque dizem, como falam, palavras, sintaxes,entonações que colocam em cena, tudo isso revelamuito mais deles mesmos do que poderíamosesperar. São imagens do outro fortementeembebidas da visão de mundo e dos afetosdaquele que filma.

O que o filme mostra de modo cristalino é o quãoencharcado de memórias e afecções corporais énosso olhar sobre o mundo, o quão arraigadossomos a determinadas maneiras de ver e sentir, otanto que ignoramos nossos preconceitos, o tantode impossibilidade de nos colocarmos no lugar dooutro, de aceitá­lo na sua diferença esingularidade. Em suma, nos mostra que“estamos” onde menos esperamos, nãoespecialmente no “conteúdo” do que dizemos oupensamos de forma consciente, tampouco em uma“interioridade” prévia, já dada, mas em “toneladasde subjetividades”5 que se constituem e seexpressam na nossa relação com o mundo e como outro. Através de um gesto à primeira vistapequeno ­ alterar a direção do que se solicita aospersonagens em grande parte dos documentáriosbaseados em conversas – o cineasta imprime umestrondoso deslocamento em relação a todas asquerelas em torno da "voz do outro" queatravessam a história do documentário.

iPublicado no livro “Cao Guimarães, Edição Caja de Burgos,Espanha, 2007.

1Cao Guimarães, no texto na contracapa do vídeo Rua de MãoDupla.

2“Sob o risco do real”, in Catálogo do 5o Festival do filmedocumentário e etnográfico. Belo Horizonte: novembro de 2001,pp. 99.

3Gilles Deleuze, referindo­se ao cineasta japonês, em A Imagem­Tempo. São Paulo: Brasiliense, 2006.

4Expressão de Michel Foucault em História da Sexualidade 1, Avontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1984.

5Expressão de Peter Pál Pelbart, in Vida Capital, Ensaios deBiopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003, p.20.