Teologia Como Ciência - JB Libanio

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  • Teologia como Cincia

    A teologia e as cincias so realidades histricas. Sua relao depende fundamentalmente do conceito que se

    tem de cincia e de teologia nos diferentes momentos da histria. Varia, portanto, segundo se desenvolve a

    conscincia humana e se modificam as condies sociais, cosmovises, ideologias, interesses, em que tal

    relao se situa.

    a. Submisso da cincia teologia

    Teologia e cincia viveram longa lua-de-mel ou, mais exatamente, matrimnio patriarcal de fidelidade. As

    cincias dependiam da teologia que desempenhava o papel de rainha. Santo Toms, nesse contexto, define

    com rigor a relao entre teologia e cincia, servindo-se do conceito aristotlico de cincia e readaptando-o de

    tal modo que a teologia lhe realiza as condies bsicas.

    Cincia define-se, neste sentido, como conhecimento certo e sempre vlido, resultado de deduo lgica.

    Certo, porque procede de evidncias primeiras e indemonstrveis. Dedutivo, porque articula as concluses

    com os princpios universalmente vlidos por meio de raciocnios necessrios. Perfeito, porque atinge as coisas

    em seus princpios essenciais e necessrios. Por conseguinte, cincia pretende conhecer, de maneira certa, as

    causas ou razes de ser.

    Teologia diz-se cincia, no no sentido de ter evidncia imediata de seus princpios, a saber, das verdades

    reveladas, mas enquanto cincia subordinada cincia de Deus. Os princpios da teologia s tornam-se

    evidentes na cincia mesma de Deus, i. , na cincia que Deus tem de si. A teologia recebe da cincia de Deus

    cincia subordinante os seus princpios. Est em continuidade com essa cincia de Deus, em que as

    verdades reveladas participam da evidncia divina pela revelao e f. conhecimento certo e dedutivo, mas a

    seu modo.

    A teologia, como cincia subalterna, subordina-se cincia superior de Deus e dos santos. Adquire, por isso,

    mais dignidade que aquelas que se fundam em princpios conhecidos luz natural do intelecto e por si

    evidentes.

    Estribando-se na prpria cincia de Deus, que no se pode equivocar nem pode enganar-nos, toda verdade

    teolgica se faz normativa para as outras cincias. Em qualquer conflito de inteleco, a teologia nessa

    compreenso levava vantagem inegvel. Tutelava, por isso, tranqilamente todos os outros saberes humanos.

    b. Surgimento dos conflitos

    Com o advento da cincia moderna com Coprnico, Galileu Galilei e Newton, nascem os primeiros conflitos

    entre teologia e cincia. Aparece claro o choque entre as pretenses de ambas. A teologia, acostumada ao

    regime de cristandade, oferecia um sistema de representao completo e global da realidade, apoiado sobre a

    base da f, como princpio integrador e totalizador. As cincias modernas invertem o mtodo. Partem da

    experincia verificvel, matematizvel e tentam estudar os fenmenos, as causas segundas, em termos de leis

    fsicas, constantes, universalmente vlidas, independentemente do aval de outra cincia. Sua verdade se apia

    na racionalidade da experincia que se deixa repetir e verificar em determinadas condies. E suas verdades

    so pensadas em relao s coordenadas que elas mesmas se traam. A certeza j no se fundamenta nem na

    autoridade da Escritura nem na de filsofos da Antiguidade, mas em sua verificao experimental.

    O conceito moderno de cincia , por conseguinte, outro. Os conhecimentos, que formam o corpo terico das

    cincias, adquirem-se por meio de mtodos muito precisos de experimentao, nos quais as afirmaes se

    provam imediatamente, podem ser verificadas e por isso admitidas universalmente, desde que se respeitem

  • as condies do experimento. As cincias pretendem ter um controle de todas as pro-posies pela

    experimentao. Seus conhecimentos so elaborados e controlados por procedimentos de demonstrao e

    verificao.

    Evidentemente, com esse conceito de cincia, viveu-se um primeiro momento de mtua condenao. A

    teologia no cumpria essas condies de cincia e, por isso, era rejeitada como tal. Por sua vez, a teologia

    adjudicava ao orgulho humano esta pretenso de absoluta autonomia. O processo contra Galileu Galilei se fez

    simbolicamente o marco deste conflito. Fato histrico assaz conhecido, que finalmente encontrou seu

    desfecho com o reconhecimento por parte da Igreja de seu equvoco e pela plena reabilitao do cientista

    italiano.

    c. Soluo intermdia da harmonizao apologtica

    Em seguida, buscou-se harmonizao apologtica. Mantendo-se enquanto possvel as afirmaes teolgicas,

    bblicas ou outras, idnticas em sua materialidade literal, de um lado, e as afirmaes cientficas que pareciam

    contradiz-las, de outro, torciam-se os textos a tal ponto que se encontrava uma harmonizao. Nesta linha,

    tornou-se famoso o livro at hoje reeditado: E a Bblia tinha razo. Tal soluo precria no resistiu crise

    provocada pela considerao epistemolgica sobre os diferentes tipos de saber.

    d. O momento da ruptura: positivismo da cincia

    Entrou-se em nova fase de relacionamento. Da bela unidade tradicional passando pelo conflito, chegou-se

    ao divrcio com liberdade total para cada cnjuge. As cincias, independentemente da teologia, vo fixando

    sua episteme prpria, e a teologia esfora-se por ser ainda reconhecida com certa dignidade no consrcio das

    cincias. Inverte-se o cenrio. Antes as outras cincias mendigavam o beneplcito da teologia. A filosofia se

    dizia serva da teologia (ancilla theologiae). Agora a teologia debate-se para ser considerada com seriedade e

    no relegada ao mundo das fbulas.

    Cada mundo de saber explicita sua verdade prpria, intrasistmica, autnoma, irredutvel a qualquer outra. Ela

    se torna instncia crtica de si mesma e no de outras, nem se deixa criticar por outras. Reina viso positivo-

    hermenutica no sentido de que cada interpretao cientfica delimita ela mesma seu mundo de verdade, seus

    parmetros, sua objetividade. As cincias exatas reivindicam a explicao dos fenmenos por razes

    imanentes e verificveis em condies estabelecidas. As cincias humanas posicionam-se no universo do

    sentido das coisas. O modelo principal, cabia s cincias positivas, exatas, experimentais. As outras se

    moldavam por elas e eram tanto mais cincia quanto mais se aproximavam desse modelo positivista e

    empirista, que reduzia a cincia ao experimental e a experincia ao mbito do sensvel, relegando para o

    mundo subjetivo e fabuloso tudo o que transcendesse tal esfera sensvel e constatvel. Nesse sentido, cincia

    se dizia aquele conjunto de teses formado unicamente com o auxlio de mtodos precisos de experimentao.

    As afirmaes provam-se imediatamente por sua aptido em suscitar aplicaes concretas que efetivamente

    so admitidas por todos.

    Esta viso positivista marcou a compreenso vulgar de cincia, como se ela fosse baseada na evidncia slida e

    irrefutvel, e como se suas descobertas fossem inquestionveis com a pretenso de desvendar todas as reas

    da experincia humana. Seria questo de tempo. Ela gozaria de uma neutralidade irrefutvel, j que o cientista

    abordaria a realidade sem nenhum pressuposto.

    Evidentemente nesse quadro da cincia moderna, a teologia faz pobre papel. Tendo como objeto Deus,

    realidade transcendente e inexperimentvel no sentido positivista, ela alijada do mundo cientfico. O filsofo

    positivista A. Comte relegara a religio o mesmo vale para a teologia ao mundo da infncia da

    humanidade e das pessoas. A idade adulta da razo considera-a definitivamente superada como toda possvel

    f em Deus.

  • e. Momento hermenutico

    A discusso vai mais longe. A dvida, a suspeita, a crtica bateram s portas da pretenso objetivista e

    empirista da concepo positivista da cincia. A experincia cientfica, exemplar mximo do dado objetivo,

    envolvida pela suspeita hermenutica e ideolgica. Hermenutica, ao afirmar-se que no h puro dado. Todo

    dado interpretado. A experincia tem a face objetiva da presena do dado, mas tambm implica a percepo

    desse objeto pelo sujeito que o penetra e o exprime em linguagem. E, ao fazer isso, interpreta-o. Suspeita

    ideolgica, porque todo conhecimento reflete interesse. Rui o universo frio e assptico do conceito positivista

    de cincia. Por revelar viso interessada e querer passar por absoluta e apodtica, torna-se equivocada.

    Institui-se a distino entre o xito instrumental da cincia que permite prever corretamente o funcionamento

    do mundo natural e as teorias cientficas pelas quais os cientistas descrevem tal funcionamento de modo

    complexo e objetivo. Enquanto h unicidade e neutralidade da cincia no controle e previso do

    comportamento de nosso mundo, h diversidade de teorias explicativas, conflitivas entre si e carregadas de

    valor. Se a cincia instrumental se rege pela perfeita adequao ao mundo fsico, as teorias, por sua vez, se

    definem pela coerncia interna e pelo fato de obter consenso entre os cientistas.

    Com efeito, a multiplicidade de possveis interpretaes impede de recorrer correspondncia emprica pela

    via da verificao. Questiona-se ento a objetividade absoluta e impessoal das teorias cientficas.

    Caminha-se, assim, para novo patamar de relao. Toda experincia, tambm a cientfica, ao converter-se em

    teoria, reflete a interpretao do sujeito, traduzida em determinada linguagem. Este sujeito pode ser a

    comunidade cientfica, que se relaciona com o objeto mediante modelos, categorias ou paradigmas. Ela os

    constri para captar e interpretar o dado em discurso cientfico. Ora, sob este aspecto, todas as cincias,

    inclusive a teologia, sofrem esse mesmo procedimento. Submetem-se a este mesmo estatuto epistemolgico.

    Em outros termos, toda cincia interpreta modelarmente a realidade, seja explicando-a, seja dando-lhe

    sentido, ao compreend-la. Explica interpretando, interpreta explicando.

    A viso positivista pretendia pr a subjetividade totalmente entre parnteses. Entretanto, a subjetividade

    entra no centro da concepo de cincia. No se trata de um sujeito abstrato, nem de uma razo pura, mas da

    coletividade pesquisadora e geradora de cincia. H uma subjetividade coletiva inserida na histria, articulada

    num horizonte scio-poltico e movida por interesse.

    Mais. As teorias de W Heisenberg e N. Bohr levam adiante a reflexo, sobretudo em relao ao mundo

    atmico. No se consegue nenhuma previso de comportamento global nesse microcosmo. As partculas no

    podem ser conhecidas em si mesmas, mas somente em sua relao com o observador. A ocular do observador

    define tambm o fenmeno e no simplesmente o capta.

    A comunidade cientfica trabalha com paradigmas, que exprimem o conjunto de pressupostos conceituais e

    metodolgicos de determinada tradio cientfica e a partir dos quais os fenmenos so interpretados.

    Quando, porm, novo fenmeno descoberto relevante j no cabe dentro desse paradigma, elabora-se outro

    diferente daquele vigente, sob o influxo da intuio genial de algum cientista. Acontece uma revoluo

    cientfica, como sucedeu nos casos da passagem do paradigma ptolomaico para o newtoniano, e deste para o

    einsteiniano.

    Os interesses das cincias exatas e das cincias humanas revelam-se diversos. Mas so interesses. As primeiras

    buscam um acmulo de informaes com o objetivo de dominar com xito a natureza e seus processos. E, ao

    lado desse interesse geral, somam-se outros interesses ainda mais ideolgicos. Quando a comunidade

    cientfica americana investiu para produzir a bomba napalm, certamente esteve presente o interesse geral de

    domnio das leis qumicas. Mas por que precisamente a bomba napalm e no outra composio qumica? Isso

  • j no se explica, nem pela pura objetividade das leis qumicas, nem pelo interesse geral de conhecimento e

    domnio da natureza, mas revela conexes econmico-polticas, ligadas guerra do Vietn.

    Os interesses epistemolgicos das cincias humanas aparecem mais claramente vinculados com o objetivo de

    incrementar, ampliar a interao e comunicao entre as pessoas dentro de um universo de sentido. Elas

    usam modelos e paradigmas que permitem ao ser humano situar-se em suas relaes consigo, com os outros

    e com o mundo, por meio do conhecimento de seus mecanismos e de seu sentido em vista de construir vida

    mais humana. Evidentemente, a liberdade humana pode perfeitamente inverter o interesse fundamental que

    justifica o nome de cincias humanas, ao orientar seu estudo e pesquisa no sentido de ampliar a explorao

    sobre o ser humano (...)

    A teologia utiliza tambm modelos e paradigmas para entender seu objeto central, a saber, a

    autocomunicao de Deus na histria em aes e palavras. Tem o mesmo estatuto epistemolgico no sentido

    de aproximar-se da revelao de Deus com categorias, matrizes, paradigmas interpretativos, hauridos da

    filosofia e das experincias humanas. Alm disso, deixa-se mover pelo interesse maior de interpretar a Palavra

    de Deus para dentro da histria humana em vista de sua libertao. Infelizmente, tambm a liberdade humana

    pode transgredir esse estatuto emancipatrio da teologia, como cincia humana hermenutica, e transform-

    la em uma teia do processo de dominao. A clareza da percepo, no s dessa possibilidade, mas de sua

    concretizao em determinadas categorias teolgicas, levou J. L. Segundo ao projeto teolgico de Libertao

    da teologia.

    A teologia, fiel ao seu propsito ltimo e fundamental de ser libertadora, intenta dialogar com as outras

    cincias exatas e humanas no sentido de mutuamente se criticarem e se estimularem em vista da

    concretizao do projeto emancipatrio, sentido ltimo de toda cincia feita pelo ser humano. Nesse

    movimento de compreender o mundo, criando modelos interpretativos e transformadores, e de dar-lhe

    sentido, as cincias podem dialogar com a teologia, cujo nico escopo desvelar o sentido ltimo e

    transcendente da vida humana. Pois ela priva com o mistrio de Deus, realidade ltima e fundante de todo

    sentido e de toda cincia. A mais positiva e exata cincia remete, em ltima instncia, ao mistrio do ser, do

    real Deus , como um no-saber que sustenta todo saber. E a teologia vive desse e para esse mistrio.

    Nesse nvel se restabelece plenamente o dilogo entre teologia e cincia.

    f. Concluso

    A teologia cumpre determinadas funes da cincia, mas que tambm no responde a outras. Diz-se cincia

    de maneira original. A cincia, enquanto voltada para o mundo do fenmeno, do constatvel, do verificvel, e,

    portanto, sujeita ao processo de verificao e comprovao de suas verdades pela via da experimentao ou

    da simulao, no corresponde natureza da teologia. Uma vez aceita a pluralidade dos jogos lingsticos, dos

    diversos saberes, das diferentes maneiras de conduzir o prprio mtodo, de pautar seu rigor terico e de fazer

    parte de uma comunidade cientfica como expresso moderna de cincia, a teologia faz-lhe pleno jus.

    Este texto cap.2. do livro "Introduo Teologia" de Joo Batista Libanio, publicado pela Loyola, 2010, 4

    Ed. Ele est, tambm, disponvel no blog A Casa da Teologia: Cf

    http://casadateologia.blogspot.com/2010/05/teologia-como-ciencia.html. Acessado em 10/03/2011.