Teologia Do Novo Testamento Roy B Zuck

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Transcript of Teologia Do Novo Testamento Roy B Zuck

  • T E O L O G I ANOVO

    TESTAMENTO

  • REIS BOOKS DIGITAL

  • R O Y B. Z U C KE d i t o r

    T E O L O G I Ad> NOVO

    TESTAMENTO

    Traduzido por Lena Aranha

    D os m em bros do Dallas Theological Faculty Roy B. Zuck, editor

    Darrell L. Bock, editor consultor

    CB4DRio de Janeiro

    I a Edio 2008

  • Todos os direitos reservados. Copyright 2008 para a lngua portuguesa da Casa Publicadora das Assemblias de Deus. Aprovado pelo Conselho de Doutrina.

    Ttulo do original em ingls: A Biblical Theology ofthe New TestamentMoodv PublishersPrimeira edio em ingls: 1994Traduo: Lena Aranha

    Preparao dos originais e reviso: Csar Moiss Carvalho e Gleyce Duque Capa: Josias FinamoreAdaptao de projeto grfico: Osas F. Maciel

    C D D : 225-Novo Testamento ISBN: 987-85-263-0955-5

    As citaes bblicas foram extradas da verso Almeida Revista e Corrigida, edio de 1995, da Sociedade Bblica do Brasil, salvo indicao em contrrio.

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    I a edio: 2008

  • Para o Dr. Stanley D. Toussaint, querido colega e estimado professor, que ensinou o

    Novo Testamento p ara cada um dos colaboradores desta obra quando ramos

    estudantes no D allas Theological Seminary.O Dr. Toussaint serviu na Faculdade D allas

    Seminary de 1960 a 1968 e de 1973 a 1993.

  • ROY B. ZU C K Bacharel, Biola University; Mestre e Doutor em Teologia, Dallas Theological Seminary), editor geral, chefe de departamento. professor snior de Exposio Bblica no Dallas Theological Seminary e professor emrito snior de Exposio Bblica no Dallas Theological Seminary. Mais recentemente, ele foi registrado no W hos Who in American Eucation [Quem Quem na Educao Estadunidense] 1991-92 International Directory o f Distinguished Leadership [Listagem Internacional de Liderana Eminente] (1994) e Directory of International Biography [Listagem de Biografia Internacional] (1994). Ele tambm editor da Bibliotheca Sacra [Biblioteca sacra] e co-editor de The Bible Knowledge Commentary [Comentrio compreensivo da Bblia].

    DARRELL L. B O C K Bacharel pela Universidade do Texas, em Aus- tin; Mestre pela Dallas Theological Seminary; doutor pela University of Aberdeen editor consultor de Novo Testamento, professor associado de Estudos do Novo Testamento no Dallas Theological Seminary e ministro da Palavra na Trinity Fellowship [Fraternidade da Trindade], em Richardson, Texas. Ele autor de Proclamation from Prophecy and Panem [Proclamao da profecia e do modelo]. Ele tambm co-editor de Dispensationalism, Israel, and the Church: The Search for Definition [Dispensacionalismo, Israel e a Igreja: a busca por definio] (1992) e co-autor de Progressive Dispensationalism [Dispensacionalismo progressivo] (1993), como tambm contribuiu em muitos outros livros.

  • PREFCIO

    Tem-se designado a teologia sistemtica como a rainha das cincias . Ela dedica-se investigao de Deus e seu universo. Por isso, a teologia envolve a observao sobre a revelao especial a Palavra inspirada de Deus e a revelao natural a criao de Deus , e tambm do relacionamento entre as duas. O telogo, para examinar a revelao especial, tem de investigar o contedo da Escritura. Isso exegese. A seguir, deve examinar passagens especficas luz da estrutura teolgica da obra especfica do autor da Escritura. Isso teologia bblica. Essa medida tenta impedir que o telogo tire as passagens de seu contexto ou de distorcer o sentido das passagens da Escritura para que se ajustem a uma teologia pessoal.

    O papel dos telogos bblicos difcil. De um lado, o comentarista pode pensar que as ramificaes do debate no foram levadas a srio pelos telogos bblicos. De outro lado, os telogos sistemticos podem achar que as dedues teolgicas dos telogos bblicos no se aprofundaram o suficiente. E um deleite verificar que no presente volume houve um exame cuidadoso dos frutos da exegese em uma tentativa de determinar a teologia dos escritores do Novo Testamento. A boa teologia sistemtica fundamenta-se nos frutos da boa teologia bblica, e esta, por sua vez, baseia-se na boa exegese.

    A presente obra no s discorre sobre as interpretaes histricas dos textos bblicos, mas tambm sobre a discusso contempornea dessas

  • 8 Teologia do Novo Testamento

    passagens e livros bblicos. Os autores discutem vrios pontos de vista sobre as passagens que tm relao com os ensinos teolgicos dos escritores bblicos especficos, alm de ser justos na expresso dessas vrias interpretaes e judiciosos em suas crticas. Ao ler esta obra, no sentimos que os autores querem iniciar nenhuma polmica nem enfocar apenas os assuntos que mais os atraem.

    Muitas vezes, difcil ler teologia, no necessariamente por ser profunda, mas pela confuso causada pelo uso de linguagem complexa. No entanto, este livro fcil de ler. Esta obra pode ser usada na ntegra pela igreja, pois no se dirige a uns poucos intelectuais. Ela serve como um instrumento acessvel a todos que comentam as Escrituras. Professores e pregadores conseguiro alcanar a compreenso do contedo de passagens particularmente problemticas do Novo Testamento e tambm observaro a relao dessas passagens com o desenvolvimento da teologia dos escritores bblicos e de como isso contribui para a teologia da Bblia como um todo.

    Esta obra, em razo dessa tendncia pandmica atual de fazer o que conveniente, um contrapeso bem-vindo. Os cristos no devem se deixar influenciar facilmente, nem pelas foras seculares nem pelas ecle- siais, mas devem, isso sim, seguir as ordens bblicas. Todos os cristos, com muita freqncia, so encorajados a tomar atitudes com base em uma exegese pobre ou em uma teologia sentimentalista. Quando os cristos lerem este livro, percebero o carter de Deus e o que Ele deseja para eles.

    Harold W. Hoehner Professor snior e diretor do departamento de

    Estudos do Novo Testamento doDallas Theological Seminary

  • SUMRIO

    Sobre os editores.................................................................................. 6

    Prefcio................................................................................................. 7

    Introduo............................................................................................. 11

    1. Teologia de Mateus............................................................................ 19

    2. Teologia de Marcos............................................................................ 69

    3. Teologia de Lucas-Atos...................................................................... 954. Teologia dos Escritos Joaninos.......................................................... 187

    5. Teologia das Epstolas Missionrias de Paulo.................................269

    6. Teologia das Epstolas Paulinas Escritas na Priso......................... 331

    7. Teologia das Epstolas Pastorais de Paulo....................................... 369

    8. Teologia de Hebreus........................................................................... 409

    9. Teologia de Tiago................................................................................. 46110. Teologia de Pedro e Judas...................................................................483

  • INTRODUO

    Eugene H. Merrill apresenta A Biblical Theology of the Old Testament [Teologia Bblica do Antigo Testamento] com uma definio de teologia bblica e uma discusso sobre o carter dessa disciplina em comparao com a teologia sistemtica.1 Nessa obra, ele define que a teologia bblica traa passo a passo, ao longo da Bblia, a histria da salvao, permitindo que a histria assuma qualquer forma apropriada a cada dado estgio da revelao, reconhecendo como a doutrina se desenvolve medida que a revelao progride.2 Essa definio de teologia bblica reflete a preocupao de traar de forma cuidadosa o desenvolvimento da doutrina no perodo da produo da Bblia, perodo esse que cobre mais de mil anos.

    A questo do progresso da revelao no tempo especialmente intensa no Antigo Testamento, j que sua produo estendeu-se por diversos sculos. Todavia, no que se refere ao Novo Testamento, a questo do progresso da revelao assume uma dimenso distinta. Esse Testamento, do comeo ao fim, emerge em um perodo de cinqenta anos. O Novo Testamento reflete o perodo mais intenso do desenvolvimento da revelao especial, uma vez que ele cobre o impacto da vida e do ministrio de Jesus sobre o plano de Deus. O que0 Antigo Testamento aguarda como promessa, o Novo Testamento afirma que comeou no cumprimento dessa promessa em Jesus. Hebreus 1.1,2 afirma isso com clareza: Havendo Deus, antigamente, falado, muitas vezes e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, a ns falou-nos, nestes ltimos dias, pelo

    1 Roy B. Zuck, ed., A Biblical Theology of the Old Testament, Chicago: Moody, 1989; p. 1-6.

    2 Ibid., p. 2.

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    Filho, a quem constituiu herdeiro de tudo, por quem fez tambm o mundo. Em suma, o Novo Testamento a respeito de Jesus e de como Ele completa o plano para o restabelecimento do governo de Deus sobre sua criao. Contudo, como organizar um material to firmemente condensado e carregado de sentido teolgico? O uso de que categorias melhor para a sintetizao desse material? Se, como mostrou Merrill, a teologia bblica distinta da teologia sistemtica, qual a relao dela com a exegese, o terceiro elemento da trindade interpreta- tiva? Como conseguir os blocos para construir a mensagem teolgica da Bblia? Onde se encaixa este volume sobre a teologia bblica do Novo Testamento? Esta introduo busca responder a essas questes ao definir a incomoda relao da teologia bblica com a exegese e a sistemtica, enquanto compara como este volume se encaixa nos esforos anteriores de escrever uma teologia bblica para o Novo Testamento.

    R ela o d a T e o l o g ia B b l ic a c o m a E x e g e se e a S ist e m t ic a

    Exegese a cuidadosa explicao do sentido de um determinado texto. O termo origina-se da palavra grega exgsis, que quer dizer explicao.3 A exegese envolve analisar um texto em seu cenrio histrico, cultural e literrio com referncia a seu contedo lxico, gramatical e teolgico. Contudo, todo aquele que estuda em um seminrio ou participa de aulas de estudo bblico sabe que, com freqncia, a exegese e a teologia parecem operar em programas distintos. Isso acontece apenas por que essas disciplinas questionam a partir de perspectivas diferentes. Entender como cada uma delas funciona ajuda a acabar com a tenso sentida nas diferentes abordagens. No h nada de errado em examinar um texto de vrios ngulos a fim de avaliar as vrias dimenses do texto bblico.

    Fica claro que a teologia bblica, quando comparada com a exegese e a teologia sistemtica, ocupa a posio de ponte entre as outras duas formas de leitura da Bblia. Todas as trs disciplinas trazem uma contribuio vlida ao estudo teolgico, embora a suposio que possibilita que a teologia bblica e a teologia sistemtica trabalhem em direo a um objetivo unificador a de que um Autor divino permanece por trs das pores individuais da Escritura. Todas as trs disciplinas, sem o compromisso com o Autor por trs dos autores humanos, perdem qualquer esperana de produzir uma leitura unificada da mensagem da Bblia. E problemtico fazer teologia bblica ou sistemtica em um documento escrito e reunido de forma aleatria. A Bblia, todavia, no um agrupamento de registros de experincias religiosas individuais. Os autores deste volume sobre a teologia do Novo Testamento compartilham, com

    3 Henry Liddell e Robert Soctt, A Greek-English Lexicon, ed. Henry Jones, Oxford: Clarendon, 1968, p. 593.

  • Introduo 13

    os autores do volume sobre a teologia do Antigo Testamento, o compromisso com a viso superior da inspirao e autoridade da Bblia. Apenas essa viso fornece alguma esperana de se manter juntas as distintas perspectivas que emergem da exegese, da teologia bblica e da teologia sistemtica.4

    Desse modo, como fazer com que a exegese, a teologia bblica e a sistemtica se relacionem umas com as outras? A histria da interpretao mostra que a teologia sistemtica e a exegese sempre tiveram um carter definido, enquanto a teologia bblica no tem carter definido. A relao das trs disciplinas ajuda a explicar o porqu disso. A sistemtica pega o todo da revelao e busca tecer a unidade inerente entre as partes com o uso de categorias descritivas e tpicos de tema que facilitem unificar o todo. O que emerge uma grade que explica como as partes se encaixam. A prpria natureza do bloco de construo da disciplina representa que vrias grades foram propostas. Mas o mtodo, em cada caso, busca trabalhar a unidade esboada pelo todo da Escritura. Em contraste a isso, a exegese trabalha minuciosamente com as peas individuais do texto escriturai, procurando explicar o que cada parte diz. A terminologia da exegese, com freqncia, a do texto conforme definido pelo cenrio bem especfico a que a passagem se destinou originalmente. Questes de fundo, muitas vezes, dominam a busca do sentido original ou a pesquisa do ponto inicial por trs da mensagem. A justaposio dessas duas outras disciplinas, junto com o relativamente pouco tempo em que se considera a teologia bblica como disciplina, fazem com que a essa ltima seja o mais novo e esforado membro da famlia.3 Ela, com freqncia, extrada em

    4 Para uma perspectiva distinta de que no h nenhuma esperana de se fazer teologia bblica e sistemtica, a no ser em contextos eclesisticos, veja Heikki Risnen, Beyond New Testament Theology, Philadelphia: Trinity Press Int., 1990. Ele foca exclusivamente a disciplina histrica que mantm a histria e a teologia em campos totalmente distintos. Essa separao entre histria e teologia e a falta de separao entre ortodoxia e heterodoxia justamente o que os estudos teolgicos no devem fazer, embora o propsito de Risnen seja uma conseqncia natural do fato de ele conceber as matrias bblicas como parte do processo histrico natural, e no como dirigidos por Deus.

    A teologia bblica, como disciplina teolgica formal, , de fato, a mais nova das trs formas de ler o texto. Sua identidade, como a de todo recm-nascido, sempre esteve sujeita rivalidade das outras disciplinas irms. A primeira proposta notvel para se fazer teologia bblica veio de uma preleo de Johann Philipp Gabler, em 1787, em Altdorf, Alemanha. (A preleo citada e brevemente discutida na obra de Werner Georg Kmmel, The New Testament: The His- tory of the Investigation of Its Problems, traduo de S. McLean Gilmore e Howard C. Kee, Nashville: Abingdon, 1972, p. 99-104.) A teologia sistemtica e a exegese so alguns sculos mais antigas que a teologia bblica. Gabler descreve uma disciplina que teria o foco histrico e seria sensvel ao texto, em contraste aos vrios sistemas desenvolvidos de teologia dogmtica com orientao formal e filosfica to populares na poca. Gabler sobrepujou as tenses entre a histria e a Bblia, como tambm entre a teologia dogmtica e bblica ao desvalorizar demais a teologia sistemtica; porm, seu chamado a uma disciplina intermediria foi til ao permitir

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    discusses ou, caso contrrio, seria empurrada em duas direes distintas ao mesmo tempo.

    A teologia bblica a tentativa de estudar a contribuio individual de um dado escritor ou de um determinado perodo ao cnon da mensagem. Ela combina anlise e sntese. A posio intermediria da teologia bblica representa que se tem dado muito menos ateno a ela que teologia sistemtica ou exegese. Quando ela levada a srio, a questo passa a ser a direo para qual preciso voltar sua ateno. A teologia bblica deve honrar seu compromisso com a sntese e usar as categorias da sistemtica para descrever seu material? Ou deve demonstrar seu compromisso em traar o progresso histrico do material bblico da revelao? A teologia bblica deve focar a mensagem do cenrio histrico original ou as estruturas teolgicas que tratam daquele cenrio especfico? A teologia bblica, como uma corda puxada por duas foras poderosas e relacionadas, sempre luta com seu carter por este ser uma fuso de interesses sintticos e analticos. Ela, como a construo de qualquer ponte, aprende vagarosamente, medida que a teologia procede de sua base histrica para sua expresso como proposio de princpios, como agentar tanto peso.

    T e o l o g ia s d o N o v o T e s t a m e n t o :O n d e e st e V o lu m e se E n c a ix a

    Esse impulso da teologia bblica reflete-se nas vrias teologias bblicas do Novo Testamento em circulao hoje. Como o Novo Testamento foi escrito em um perodo de tempo muito mais condensado que o Antigo Testamento, um perodo de tempo ou organizao diacrnica dos escritos, conforme feito em algumas teologias do Antigo Testamento, no exeqvel. Outros caminhos tiveram de ser abertos. Assim, uma breve avaliao da abordagem de outras teologias do Novo Testamento pode servir como pano de fundo para onde se encaixa este volume sobre teologia bblica do Novo Testamento e como ele resolve essas tenses. A avaliao se limitar ao tratamento destinado originalmente a mais de um escritor do Antigo Testamento. No passado, seguiram-se quatro abordagens distintas.

    A primeira delas, que algumas teologias bblicas do Novo Testamento optaram pela organizao por autor, mas usaram categorias sistemticas como ponte para a sntese. As obras de Alan Richardson e de Charles Ryrie usaram essa abordagem.6 O valor dessa abordagem que os que trabalham com a

    que se construsse, passo a passo, a leitura da teologia com sensibilidade em relao ao carter histrico e ao progresso da revelao e, ao mesmo tempo, com sensibilidade s contribuies nicas de cada poro da Escritura. Desde sua obra, a teologia bblica busca definir se seus princpios organizadores devem se fundamentar na exegese, na sistemtica ou na histria.

    6 Alan Richardson, Introduction to the Theology o f the New Testament, New York: Harper, 1959; Charles Ryrie, Biblical Theology of the New Testament, Chicago: Moody, 1959.

  • Introduo 15

    teologia sistemtica conseguem perceber onde o material do Novo Testamento se encaixa em um esquema mais sinttico de coisas. No entanto, o ponto fraco dela que incita a unificao das distintas linhas de nfase do Novo Testamento com muita rapidez e sob categorias diferentes das usadas pelos escritores individuais.

    A segunda, afirma que outras teologias bblicas organizaram-se basicamente pelos indivduos, usando a categoria teolgica que cada um deles usou. Os indivduos escolhidos podem ser, ou no, escritores do Novo Testamento. Essa escolha traz preocupao histrica para o presente medida que cada indivduo destacado por sua contribuio nica para a teologia. Werner Kmmel e George Ladd focaram os ensinamentos de Jesus, Paulo e Joo, enquanto Ladd tambm tratou individualmente dos outros escritores importantes do Novo Testamento.7 Ladd apresentou Jesus unificando o tratamento dos evangelhos sinticos em uma nica discusso dos principais temas do ministrio de Jesus. Essa tambm uma forma til de proceder, e este volume adota, basicamente, essa abordagem, mas com duas diferenas.

    Este trabalho d tratamento individual aos evangelhos. Embora a tentativa de apresentar uma teologia unificada de Jesus tenha valor, o fato que a Bblia inclui quatro apresentaes de Jesus por intermdio da viso de seus seguidores. Os evangelhos so a descrio que eles fazem de Jesus, e cada descrio distinta da outra. A estrutura deste volume procura respeitar a estrutura literria da Escritura ao mesmo tempo em que presta ateno base histrica por trs dessa estrutura. A obra de Ladd mostra que o retrato de Jesus apresentado no Novo Testamento tem muitos traos em comum, em especial, os retratos dos sinticos. No entanto, em sua abordagem perde-se o retrato caracterstico que cada evangelho apresenta. Por isso, os colaboradores deste volume optaram por deixar que a teologia de cada evangelho aparea por si s.

    Embora se possa tratar a teologia de Paulo como uma unidade, o material dele, nesta obra, est separado em trs grupos principais. As epstolas pastorais tm um foco to exclusivo em assuntos ministeriais e estruturais da igreja que parece que elas ficariam perdidas em uma apresentao unificada da teologia de Paulo. Ademais, as epstolas escritas na priso tm um sabor mais cosmopolita. E provvel que duas delas, Efsios e Colossenses, pretendiam abranger mais de uma comunidade da igreja primitiva. Assim, as epstolas escritas na priso tambm recebem tratamento distin-

    7 Werner George Kmmel, The Theology o f the New Testament According to Its Major Wit- nesses: Jesus Paul John, trad. John E. Steeley, Nashville: Abingdon, 1973; e George E. Ladd, A Theology o f the New Testament, Grand Rapids: Eerdmans, 1974. Em 1993, publicou-se uma edio revisada da teologia de Ladd. Essa edio acrescenta um breve captulo individual sobre Mateus, Marcos e Lucas com a finalidade de melhorar o tratamento dado aos evangelhos sinticos, mas essa viso geral to resumida que apenas as diferenas mais bsicas de perspectiva existentes entre os evangelhos vm tona.

  • 16 Teologia do Novo Testamento

    to a fim de refletir no s o carter mais regional delas, mas tambm o fato de que emergem de um mesmo perodo essencial da vida de Paulo. As epstolas restantes focam claramente as comunidades individuais para as quais foram escritas, e, por isso, so tratadas como reflexo das inquietaes teolgicas fundamentais de Paulo. A fim de impedir que a separao desse material fragmentasse o retrato teolgico de Paulo, pediu-se aos diferentes autores dessas sees para que, quando apropriado, observassem as conexes do material paulino com os outros grupos. Os grupos restantes tambm so divididos por autor: Joo, Hebreus, Tiago, Pedro e Judas.

    A terceira abordagem para escrever uma teologia bblica do Novo Testamento a conciliao entre as categorias sistemticas e as de escritores. O livro de Donald Guthrie trata as categorias sistemticas como a estrutura unificadora e a subestrutura, mas discute cada categoria e subcategoria de um autor por vez.8 Esse mtodo tambm faz a conexo com snteses mais extensas, mas perde- se o sentido de coerncia que reflete a contribuio de cada autor. Por exemplo, a pessoa, para determinar o ensinamento de Joo, tem de ler individualmente diversas discusses de categorias teolgicas definidas e depois, junt-las. Este estudo no segue esse caminho.

    A quarta abordagem popular na Europa. Ela fundamenta-se na histria e na crtica, procurando ir atrs dos documentos mais antigos referentes histria e teologia refletidas neles. Joachim Jeremias e Leonard Goppelt tentam trabalhar a fim de determinar as formas mais antigas das tradies relacionadas a Jesus.9 J que Jeremias escreveu apenas um volume inicial, seu esforo cessa aqui. Goppelt continuou sua obra e trata cada autor do Novo Testamento de forma individual e, ao estabelecer o autor em seu cenrio original, tem um enfoque mais exegtico. Esses esforos histricos tendem a tirar a nfase na mensagem do texto bblico visto que tentam voltar s expresses mais antigas dos eventos associados a Jesus ou se preocupam em detalhar o cenrio original do ensinamento da forma mais especfica possvel. A natureza especulativa desse tipo de trabalho no parece ser um tpico para a teologia do Novo Testamento, desde que a Bblia, como a conhecemos hoje, tratada como um espelho nebuloso do passado. Esses tpicos devem ser tratados pelo estudo exegtico formal e histrico, no pela teologia bblica. E essa a razo pela qual este livro no investiga essas questes. Lida-se apenas em grau limitado com assuntos de pano de fundo e introdutrios.

    8 Donald Guthrie, New Testament Theology: A Ihematic Study, Downers Grove, 111.: InterVar-sity, 1981.

    9 Joachim Jeremias, New Testament Theology: The Proclamation of Jesus, trad. John Bowden,New York: Charles Scribners & Sons, 1971; Leonard Goppelt, Theology of the New Testament, ed. Jrgen Roloff, trad. John Alsup, 2 volumes, Grand Rapids: Eerdmans, 1981, 1982. Uma srie de volumes, atualmente produzido no Reino Unido, sob a editoria de James Dunn, tambm adota essa abordagem com forte concentrao no cenrio original.

  • Introduo 17

    Talvez Rudolf Bultmann10 nos fornea o exemplo perfeito dessa abordagem. Ele tambm tenta determinar o Novo Testamento historicamente neste mundo, mas fundamenta muitssimo seu trabalho em questes relacionadas crtica. Ele muito mais radical em sua abordagem que Jeremias ou Goppelt. Ele to ctico em relao ao retrato de Jesus apresentado no Novo Testamento que mal chega a discutir a teologia de Jesus.11 Antes, ele segue a diviso fundamentada na histria e na etnia: o querigma da igreja primitiva (ou seja, a comunidade judaica crist), o querigma da igreja helnica e, depois, a teologia de Paulo. Essa abordagem considera grande parte do Novo Testamento como produto da reflexo da Igreja Primitiva, mais que a afirmao de assuntos que dizem respeito a Jesus. Embora essa teologia seja provavelmente a mais lida neste sculo e a que mais influencia os estudos do Novo Testamento, ela muito ctica no tratamento dos documentos e muito influenciada pelo uso excessivo de assuntos relacionados crtica.

    Em contraste a isso, este volume trabalha o texto do Novo Testamento como seu ponto de referncia. Reuniu-se uma equipe de estudiosos de acordo com sua especialidade na rea designada a cada um deles. Eles esto bem conscientes de que poderiam dizer muito mais sobre cada rea de que tratam, mas foi-lhes pedido que salientassem os principais aspectos do desenvolvimento teolgico da rea de cada um deles. As preocupaes histricas da exegese ou tentativas detalhadas de voltar histria que impacta o texto ou ao cenrio original especfico no tm um lugar importante no tratamento teolgico aqui apresentado. O sentido do texto escriturai o foco fundamental e primrio desta obra, especialmente a forma como as vrias passagens sobre temas semelhantes, dos escritos de cada autor, se ajusta. Este estudo tenta trazer tona a nfase teolgica fundamental de cada escritor do Novo Testamento. Esses estudos, primeiro, trabalham com as prprias categorias do autor bblico, embora muitas das discusses procedam de disposies facilmente relacionveis com disposies sistemticas mais tradicionais. O objetivo trazer tona as estruturas e perspectivas teolgicas bsicas que enfatizam o todo da obra de um autor. Detalhes que preenchem as estruturas

    10 Rudolf Bultmann, Theology of the New Testament, trad. Kendrick Grobel, 2 volumes, New York: Charles Scribners & Sons, 1952, 1955. O livro de Hans Conzelmann, An Outline of the Theology of the New Testament, trad. John Bowden, New York: Harper & Row, 1969, apresenta uma abordagem similar. A maior parte da abordagem dele faz paralelo com a de Bultmann, a no ser pelo fato de que a dele apresenta uma seo separada sobre os evangelhos sinticos e uma para Joo, ao mesmo tempo em que combina a teologia das comunidades primitivas e das helenistas. Ele, do ponto de vista histrico, tambm menos ctico que Bultmann, embora seja mais ctico que Goppelt e Jeremias.

    11 Na verdade, podemos suspeitar que Jeremias e Goppelt podem ter escrito, em parte, para tentar desafiar Bultmann a respeito desse ponto. Yeja Bultmann, Theology of the New Testament, p. 3-32.

  • 18 Teologia do Novo Testamento

    bsicas apresentadas pela teologia bblica podem ser encontrados em comentrios exeg ticos sobre as passagens essenciais em questo, enquanto a forma como vrias passagens se ajustam s estruturas ou sistemas teolgicos que se estendem ao longo da Bblia podem ser examinados em discusses sistemticas. A leitura deste volume capacita-nos a sentir a unidade entre os autores do Novo Testamento, como eles dizem coisas semelhantes de formas distintas, e em que ponto um autor bblico traz uma contribuio nica para a teologia do Novo Testamento. Podemos observar, como uma luz atravessando o diamante, a diversidade de cores e a intensidade da verdade teolgica que o Novo Testamento oferece.

    Nessa rica diversidade da teologia do Novo Testamento emerge a unidade inerente em torno da atividade de Deus por intermdio de Jesus Cristo. A promessa caminha para a realizao. A expectativa est se tornando realidade. A salvao vem por intermdio dEle, medida que Ele inicia sua obra de recuperao do relacionamento da humanidade com Deus. A criao suspira por sua redeno final, e o grande Mdico Jesus vir para aliviar o sofrimento dela. A teologia do Novo Testamento proclama a mensagem da esperana por meio da narrativa, da histria e do debate. A teologia bblica preenche o espao entre o sentido das passagens individuais e a sntese da proposio teolgica. Os colaboradores deste volume oferecem este estudo com a esperana de que os leitores consigam uma melhor avaliao da riqueza e da diversidade existente no terreno bblico, como tambm da relao entre interpretao e teologia. s vezes, ficar de p em uma ponte alta permite que a pessoa perceba com mais clareza a extenso e o progresso da esperana bblica. s vezes, ao lermos a Bblia sob uma nova perspectiva, vemos as coisas antigas de uma nova forma.

    D a rrell L. B o c k

  • 1TEOLOGIA DE MATEUS

    D avid K. L o w er y*

    Acho til, antes de considerar aspectos particulares do Evangelho de Mateus, pensar sobre a natureza dos quatro Evangelhos. No entanto, fornecer uma breve definio de um Evangelho no to simples como pode parecer, j que os Evangelhos funcionam de vrias maneiras distintas. Em um sentido, eles servem como biografias de Jesus. Mateus, por exemplo, inclui um relato de eventos relacionados ao nascimento de Jesus e tambm aspectos de seu ministrio pblico e de sua morte. Seu Evangelho, como a maioria das biografias, fornece a compreenso de seu sujeito no s pela narrativa das palavras e obras que fizeram parte da vida deste, mas tambm pela interpretao do sentido delas para o leitor.

    Todavia, os evangelhos, de forma distinta da maioria das biografias modernas, so relativamente breves. Mateus, por exemplo, devota diversas longas sees de seu Evangelho ao ensinamento de Jesus, mas cada seo pode ser lida em minutos. Fica claro que o escritor bblico est apresentando um resumo do ensinamento de Jesus. A comparao de passagens semelhantes dos evangelhos tambm sugere que cada escritor exerceu liberdade (em comparao com as restries, em geral, associada historiografia moderna) na apresentao e disposio do material. Essa liberdade permitiu que cada autor, sob a inspirao do Esprito Santo, salientasse aspectos distintos das palavras e obras de Jesus. O resultado disso que os relatos fornecem, de modo cumulativo, uma compreenso mais rica da importncia da vida e do ministrio de Jesus.

    Embora Jesus seja o foco central dos evangelhos, o relato de sua vida e de seus ensinamentos no a nica preocupao deles. Os Evangelhos tambm

    David K. Lowery, bacharel, mestre em Teologia e doutor, professor de Estudos do Novo Testamento no Dallas Theological Seminary.

  • 20 Teologia do Novo Testamento

    ajudam os leitores a entender alguns dos fatores que levaram formao da Igreja, j que os discpulos que Jesus reuniu a sua volta e instruiu foram os membros fundadores dela. Meditar sobre o que Jesus disse e fez com seus primeiros discpulos responde, em parte, a uma questo crucial: como chegamos onde estamos hoje? Por essa razo, os evangelhos tambm so homilias pastorais, sermes na forma escrita que buscam conseguir uma resposta afirmativa e prtica de cada leitor.

    D e u s

    Ao mesmo tempo em que a vida e o ministrio de Jesus so o foco do Evangelho de Mateus, ele tambm deixa claro que o que Jesus disse e fez, como tambm os eventos que conspiraram para lev-lo cruz, faz parte do plano e do propsito de Deus. O principal sentido de salientar esse ponto a freqente ligao de eventos da vida de Jesus com passagens do Antigo Testamento. Todos os escritores dos evangelhos, em um grau ou outro, retratam a vida e o ministrio de Jesus como o cumprimento da profecia e da expectativa do Antigo Testamento. Mas Mateus particularmente caracterstico em relao a isso. Seu evangelho caracteriza-se por uma srie de citaes do Antigo Testamento introduzidas com o uso do verbo cumprir na voz passiva (plrothna). A primeira ocorrncia no evangelho de Mateus ilustra a natureza dessas introdues: Tudo isso aconteceu para que se cumprisse o que foi dito da parte do Senhor pelo profeta (Mt 1.22). A essa introduo, segue-se uma citao de Isaas 7.14. Diz-se que o evento, ou circunstncia, acontece de acordo com o plano e propsito de Deus.1

    Diversas dessas citaes so ligadas s circunstncias do nascimento de Jesus, da subseqente fuga da famlia para o Egito e do retorno para que a famlia se estabelecesse em Nazar. Esses eventos, do ponto de vista do ser humano, parecem uma estranha variao ao auspicioso incio, geralmente associado a um rei, a um rei divino, em especial. Mesmo em seus primeiros dias, o Filho amado e sua famlia tiveram de fugir da perseguio em Israel. Eles retornaram apenas para fixar residncia nas regies remotas da Galilia, longe do centro de influncia poltica e religiosa de Jerusalm em que se esperava que um rei davdico residisse. No entanto, Mateus, com esse recurso de citaes do Antigo Testamento, mostra que, nessas exigncias aparentemente espontneas, pode-se observar a mo determinada de Deus cumprindo seu plano na vida de Jesus.

    Mateus, na apresentao da genealogia de Jesus, tambm ilustra que o propsito de Deus alcanado apesar das circunstncias adversas e do comportamento deplorvel de algumas dessas pessoas que aparecem na genealogia.

    1 O evangelho tem onze citaes semelhantes a esta (1.22,23; 2.5,6,15,17,18,23; 4.14-16; 8.17; 12.17-21; 13.35; 21.4,5; 27.9,10). A estas, pode-se acrescentar 26.56, em que no se menciona uma passagem especfica do Antigo Testamento; Mas tudo isso aconteceu para que se cumpram as Escrituras dos profetas .

  • Teologia de Mateus 21

    Mateus, no primeiro versculo de seu evangelho, diz que Jesus descendente de Davi e de Abrao. A seguir, exploraremos a relevncia dessas designaes para o retrato que Mateus apresenta de Jesus. Por ora, suficiente dizer que a linhagem abramica e davdica de Jesus envolve muitas guinadas e voltas penosas que, todavia, no impedem a realizao do plano divino.

    A meno das quatro mulheres na genealogia de Jesus (Mt 1.1-17) uma ilustrao disso. No se pode determinar com certeza por que Mateus, ao contrrio da prtica usual de citar apenas os homens, escolhe mencionar essas mulheres. Contudo, digno de nota que Tamar (v. 3), Raabe (v. 5), Rute (v. 5) e Bate-Seba (v. 6, mencionada apenas como mulher de Urias) eram gentias e, no caso de Tamar, Raabe e Bate-Seba, o nome de cada uma delas est ligado a casos de imoralidade. Elas servem para lembrar o leitor de que Deus demonstrou misericrdia com gentios indignos no passado e tambm que o plano de Deus no pode ser frustrado pelas falhas humanas. A linhagem do Messias marcada por alguns personagens questionveis, os tipos que um genealogista seletivo poderia ficar inclinado a no mencionar. Esses personagens, embora no sejam modelos de comportamento (conforme veremos, Mateus estabelece os mais altos padres ticos), so um lembrete de que, com freqncia, a graa de Deus estende-se s pessoas mais improvveis, as quais, por sua vez, servem para desenvolver os propsitos dEle no mundo.

    Esse tema de que o plano de Deus avana por meio das pessoas mais improvveis e em face de circunstncias inescrutveis aparece repetidas vezes no evangelho de Mateus. Um texto clssico em relao a esse tema a orao de Jesus de ao de graas e de louvor a Deus: [...] Graas te dou, Pai, Senhor do cu e da terra, que ocultaste estas coisas aos sbios e instrudos e as revelaste aos pequeninos. Sim, Pai, porque assim te aprouve (11.25,26; cf. Lc 10.21). Essa declarao est ligada ao tema da seo precedente, a misso dos discpulos (que se inicia em Mt 9.35). Ela um lembrete de que a resposta adequada pregao deles est inseparavelmente relacionada obra de Deus de tornar o corao e a mente receptivos mensagem que os discpulos de Jesus proclamam e tambm de lembrar que essa graa se estende com mais freqncia queles que so menos considerados pela sociedade em geral.

    Os prprios discpulos so um caso em pauta. Eles, um grupo heterogneo de personagens diversos, parecem candidatos improvveis ao papel de representar Jesus e de desenvolver o ministrio dEle. Contudo, foi a esses que Deus concedeu revelaes a respeito de quem Jesus. Isso revelado com clareza no relato de Mateus sobre a confisso de Pedro. Este, em resposta pergunta: Quem dizem os homens ser o Filho do Homem?, declara: Tu s o Cristo, o Filho do Deus vivo (16.13,16). Todavia, a resposta de Jesus deixa claro que Pedro no chegou a esse fato por sua inteligncia ou habilidade intelectual, por mais que ele pudesse ter essas duas coisas em boa quantidade (v. 17). Pedro era um dos pequeninos, mencionados por Jesus na passagem 11.25, para quem Deus revelou essa verdade. Observe o registro prprio de Mateus das palavras

  • 22 Teologia do Novo Testamento

    de Jesus para Pedro nessa ocasio: [...] Bem-aventurado s tu, Simo Barjonas, porque no foi carne e sangue quem to revelou, mas meu Pai, que est nos cus(16.17). E Deus quem revela (as passagens 11.25 e 16.17 usam o mesmo verbo, apokalupt), conforme lhe apraz (11.26), essa verdade s pessoas.

    Jesus, em sua resposta pergunta dos discpulos a respeito do uso que faz de parbolas (13.10: Por que lhes falas por parbolas?), tambm expressa essa mesma viso da obra divina de Deus de revelar a verdade para alguns, mas no para outros. Ele responde aos discpulos: Porque a vs dado conhecer os mistrios do Reino dos cus, mas a eles no lhes dado (v. 11). As vezes, nesse tipo de declarao, chama-se o uso da voz passiva ( dado conhecer) de passivo divino.: Dessa forma, os escritores e oradores judeus podiam se referir a um ato de Deus sem mencionar explicitamente o nome dEle, e essa forma de falar era considerada reverente.3 Mas entendia-se quem executava a ao do verbo. Mais uma vez, o ponto que o ato da revelao por meio da qual a pessoa entende e acredita na mensagem proclamada por Jesus algo feito por Deus.

    Embora essas declaraes possam confundir aqueles que se acham donos de seu destino, improvvel que Mateus as registre apenas para esse propsito. Antes, essas afirmaes a respeito da soberania de Deus, particularmente ligadas resposta positiva mensagem de Jesus e a respeito dEle, servem para acalmar as inquietaes que os discpulos pudessem ter em relao adequao e eficcia deles para a responsabilidade confiada a eles. A recepo adequada mensagem que eles proclamam , em ltima instncia, um feito de Deus, no deles. Eles tm um ministrio a exercer e devem exerc-lo de uma forma que agrade a Deus; no entanto, o resultado do ministrio no responsabilidade deles. Esse um conceito libertador no s para aqueles acossados por dvidas em relao a si mesmos (momentos que, compreensivelmente, a mdia dos indivduos chamados a executar a obra de Jesus enfrenta), mas tambm para aqueles embriagados pela autoconfiana (Pedro, assim como outros, tambm passou por esses momentos) e que tentam, por meio do charme ou da prtica manipuladora, exagerar o efeito do evangelho entre seus ouvintes. Para uma minoria assediada, o que, em geral, a Igreja do sculo I o era, a garantia da soberania de Deus uma palavra de encorajamento. Sem dvida, esse tipo de pensamento poderia levar passividade ou produzir uma mentalidade escapista; no entanto, a apresentao de Mateus percorre um longo caminho a fim de impedir essa eventualidade.

    2 Cf. Friedrich Blass e Albert Debrunner, A Greek Grammar o f the New Testament and Other early Christian Literature, traduo da 9a 10a edio alem por Robert W. Funk, Chicago: Univer- sity of Chicago, 1961, p. 313; e Joachim Jeremias, The Parables o f Jesus, 8a ed., London: SCM, 1972, p. 203 n. 57.

    3 Esse mtodo de expresso tambm se relacionava preocupao de no tomar o nome de Deus em vo (Ex 20.7). Uma forma bvia de impedir isso era usar o nome de Deus o menos possvel. Dessa forma, surgiram circunlquios metafricos (a habitao de Deus, cu em vez de Deus) e o uso do verbo na voz passiva (evitando a meno de Deus como sujeito do verbo).

  • Teologia de Mateus 23

    Mateus, de modo caracterstico, no hesita em registrar o fato de que Joo Batista e Jesus cumpriram a vontade de Deus e que, ao fazer isso, seguiram o caminho que os levou ao martrio. Nisso, vemos a mo de Deus at mesmo no incio do ministrio pblico de Jesus. Logo aps o batismo de Jesus, ainda com as palavras de Deus: Este o meu Filho amado, em quem me comprazo(3.17), ecoando nos ouvidos dos leitores, Mateus registra a tentao de Jesus, introduzindo-a com estas palavras: Ento, foi conduzido Jesus pelo Esprito ao deserto, para ser tentado pelo diabo (4.1). Cada um dos escritores sinticos registra a tentao de uma maneira bastante distinta, peculiar ao escritor, mas os leitores de Mateus no podem deixar escapar o fato de que a mo de Deus est presente nessa experincia da tentao de Jesus. Ele conduzido (voz passiva) pelo Esprito (o agente de Deus)4 a fim de ser tentado (outro verbo na voz passiva, dessa vez um infinitivo que transmite propsito) pelo Diabo (o agente da tentao). Em vista das citaes subseqentes de Deuteronmio por parte de Jesus (4.4,7,10), o leitor poderia achar que a experincia de Israel no deserto a contraparte do Antigo Testamento para essa provao de Jesus (cf. Dt 8.2). No entanto, deve-se desculpar o leitor se a histria de J tambm vier mente. Embora seja possvel ver claramente que o que aconteceu a J era do conhecimento de Deus, naquele relato, Satans, pelo menos, vai at Ele para pedir permisso para o que se seguiu. No caso de Jesus, Ele levado a essa tentao pelo Esprito! O pedido final da orao (modelo) do Pai Nosso, E no nos induzas tentao, mas livra-nos do mal (Mt 6.13), assume um sentido especial quando visto luz da experincia de Jesus no deserto. Tiago afirma, com acerto, que Deus mesmo no tenta ningum (Tg 1.13), mas Mateus no deixa dvida de que, s vezes, Ele permite que seus filhos sejam tentados.

    Da mesma forma, Mateus deixa claro que as provaes podem levar ao martrio, como aconteceu com Jesus e Joo Batista. Mateus, na responsabilidade missionria transmitida aos discpulos por Jesus, inclui esta palavra de advertncia: E no temais os que matam o corpo e no podem matar a alma; temei, antes, aquele que pode fazer perecer no inferno a alma e o corpo. No se vendem dois passarinhos por um ceitil? E nenhum deles cair em terra sem a vontade de vosso Pai (10.28,29). Se algum inventasse a categoria de ditos assustadores para as afirmaes bblicas, essa certamente seria uma candidata. Contudo, ela tambm fornece uma palavra de garantia em relao ao cumprimento do plano de Deus para seu povo no mundo. A experincia de oposio, de perseguio e at mesmo de martrio no uma indicao de que Deus se separou de seu povo ou virou as costas para ele. Essas so experincias que acontecem, como aconteceram com Joo e Jesus, e aos servos mais seletos de Deus. O pardal no cai sem a vontade de Deus. Todavia, o pardal cai. Essa a viso de Mateus da vontade de Deus.

    Em Mateus 3.16, o escritor do evangelho utiliza uma meno modificada ao Esprito com o genitivo de Deus, indicando que o Esprito pertence a Deus (posse) ou vem dEle (fonte). De qualquer forma, o Esprito Santo o agente que executa a vontade de Deus.

  • 24 Teologia do Novo Testamento

    Isso, sem dvida, no tudo que Mateus escreve sobre a forma como Deus realiza seu plano para este mundo por intermdio de seus servos da Igreja. Contudo, esse um lembrete de que este Deus, conforme descrito com freqncia por Mateus, realiza seus propsitos de formas inesperadas e, muitas vezes, desafiadoras, de acordo com o ponto de vista do homem. Entretanto, Ele, ao fazer isso, no um Deus afastado de seu povo nem indiferente situao dele. O Senhor est profundamente preocupado com o bem-estar de seu povo, consciente das suas necessidades e desejoso de cuidar de cada um.

    Vrias passagens do Sermo do Monte apresentam esse ponto. Na sentena introdutria do Pai Nosso, os discpulos recebem a garantia da preocupao real de Deus para com eles: [...] Vosso Pai sabe o que vos necessrio antes de vs lho pedirdes (6.8). Poucos versculos adiante, reafirma-se essa garantia, quando os discpulos so informados que no precisam se preocupar com o alimento e a vestimenta, pois o Pai celestial bem sabe que necessitais de todas essas coisas (v. 32) e que todas essas coisas [lhes] sero acrescentadas (v. 33). Da mesma forma, descreve-se Deus como o doador de boas coisas para os que lhe pedem isso (7.11). Essas boas coisas no incluem apenas as necessidades da vida fsica, mas tambm as bnos espirituais associadas ao evangelho (cf. o uso da mesma palavra, agatha, boas em Rm 10.15 [Is 52.7] e Hb 10.1).5

    O cuidado de Deus em relao a todos os membros da comunidade de discpulos tambm vem tona na parbola da ovelha perdida (Mt 18.12- 14), registrada em um captulo que contm vrias instrues a respeito da manuteno do relacionamento correto com os seguidores de Cristo. O versculo que introduz essa parbola enfatiza como aqueles que, por muitos motivos, so pouco estimados pelos outros membros da comunidade, entretanto, so importantes para Deus. Na verdade, o versculo uma advertncia: Vede, no desprezeis algum destes pequeninos, porque eu vos digo que os seus anjos nos cus sempre vem a face de meu Pai que est nos cus (18.10). Embora, s vezes, entenda-se que esse versculo diz que todos os cristos tm um anjo da guarda designado para cuidar deles, provvel que essa seja uma interpretao extremada da declarao. O que se afirma que os anjos da mais alta ordem (os mais prximos de Deus) ministram para os pouco estimados (kataphrone quer dizer desprezar ou tratar com desprezo6) pela sociedade humana. Esse um lembrete de que Deus valoriza as diferenas da humanidade e tambm que a avaliao que algum faz da importncia dos outros pode ser distinta da avaliao de Deus e, portanto, talvez os critrios de avaliao precisem ser revistos.

    5 A afirmao paralela do evangelho de Lucas (11.13) se refere a Deus conceder o Esprito Santo, o agente de muitas boas ddivas ligadas s bnos da salvao.

    6 Walter Bauer, William F. Arndt e F. Wilbur Gingrich, A Greek-English Lexicon ofthe New Testament and Other Early Christian Literature, 2a ed., rev. F. Wilbur Gingrich e FrederickW. Danker, Chicago: University o f Chicago, 1979, p. 420.

  • Teologia de Mateus 25

    A parbola da ovelha perdida (18.12-14) uma ilustrao disso. Jesus foca um membro da comunidade que se desviou (a palavra descritiva plana quer dizer levado a desviar ou desencaminhar, por conseguinte, enganar ou corromper). Talvez a resposta de alguns seja: Bons ventos o levam, ou: Estamos contentes que ele se foi . Contudo, por mais que alguns sejam propensos a tratar esse desviado com desprezo, as palavras de Jesus, aqui, so um lembrete contundente de que a pessoa fraca e desviada importante para Deus. Deve-se procurar essa pessoa com solicitude e, se possvel, salv-la do erro de seu caminho. [...] No vontade de vosso Pai, que est nos cus, que um destes pequeninos se perca (18.14). Essa afirmao da preocupao de Deus com o perdido no se restringe queles que se consideram discpulos. Mateus tambm registra as palavras de Jesus sobre o cuidado de Deus com o mundo, geralmente como fundamento para exortar os discpulos a demonstrar amor por todas as pessoas, at mesmo seus adversrios: [...] Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem, para que sejais filhos do Pai que est nos cus; porque faz que o seu sol se levante sobre maus e bons e a chuva desa sobre justos e injustos (5.44,45).

    O ponto est bem claro. Deus concede bnos naturais de forma abrangente e incondicional. Os discpulos, da mesma forma, devem amar os outros, fazer o melhor para eles e orar para que os inimigos se tornem aliados. No entanto, parece haver uma dissonncia nessa comparao por causa da discrepncia entre o natural e o espiritual. Podemos ver e sentir o sol e a chuva. A orao, com certeza, menos tangvel. Dar po ao inimigo parece uma comparao mais apropriada, mas a ilustrao um tanto enigmtica comum no estilo de ensino de Jesus. Esse estilo provoca o pensamento e no d espao para a complacncia. E o Antigo Testamento, como muitas vezes o caso, fornece um ponto de conexo que serve para elucidar e revelar a simetria da comparao.

    No Antigo Testamento, a ordem de Deus para que haja sol e chuva no retratada apenas em termos de uma bno natural. Antes, os elementos da natureza tambm testemunham por Deus: Os cus manifestam a glria de Deus e o firmamento anuncia a obra das suas mos. [...] ouvem-se as suas vozes em toda a extenso da terra, e as suas palavras, at ao fim do mundo (SI 19.1,3,4). Da mesma forma, o relato do protesto de Paulo, contra a lisonja dirigida a Bar- nab e a ele, comprova o testemunho da natureza: [...] No se deixou a si mesmo sem testemunho, beneficiando-vos l do cu, dando-vos chuvas e tempos frutferos (At 14.17).7 Os elementos naturais so uma declarao de Deus para toda humanidade a respeito de si mesmo.8 De forma semelhante, os discpulos, em sua resposta ao mandamento de amar todas as pessoas, devem testemunhar

    7 Paulo disse quase a mesma coisa em sua Epstola aos Romanos (1.20).

    8 Isaas 55.10,11 compara a palavra que sai da boca de Deus com a chuva do cu que rega aterra.

  • 26 Teologia do Novo Testamento

    por Deus e manifestar, por meio de suas obras, a bondade do Senhor. Assim, a comparao completa-se no objetivo do empreendimento missionrio de trazer todas as pessoas ao ponto em que tambm podem glorificar a Deus e orar com propsito a splica inicial do Pai Nosso: [...] Pai nosso, que ests nos cus, santificado seja o teu nome (6.9). Mas isso antecipar outro aspecto da teologia de Mateus. Todavia, antes de considerarmos esse aspecto, devemos dar ateno principal figura do Evangelho de Mateus.

    C r is t o

    O foco do Evangelho de Mateus a pessoa de Jesus Cristo. Pode-se obter alguma idia de quem Ele e do que faz ao se meditar sobre os vrios ttulos concedidos ao Salvador. Mas os ttulos apenas no exaurem a mensagem de Mateus a respeito de Jesus. Os relatos do que Jesus disse, fez e continua a fazer tambm fornecem discernimento de quem Ele e mostra por que o Mestre o objeto de f adequado.

    O primeiro versculo do Evangelho apresenta quatro nomes, ou ttulos, descritivos de Jesus: Jesus Cristo, Filho de Davi, Filho de Abrao. O nome dado a Ele no nascimento, Jesus, a forma grega do nome hebraico Yeshua que quer dizer o Senhor salva. Esse nome foi aquele que o anjo do Senhor ordenou Jos a dar ao filho de Maria, sua noiva, que nasceria (1.21). Portanto, o nome foi escolhido por Deus, em nome de quem o anjo falou. O nome descreve o que Jesus estava destinado a fazer: Ele salvar o seu povo dos seus pecados (1.21).

    Acostumados a pensar que as pessoas tm diversos nomes, sendo o ltimo o que designa o nome de famlia da pessoa, talvez alguns fiquem inclinados a achar que Cristo, da mesma maneira, algum tipo de ltimo nome ou sobrenome de Jesus. Mas, ele, na verdade, um ttulo, ou designao, concedido ao Filho de Deus. Cristo, como o nome Jesus, tambm a forma grega da palavra hebraica Messias e quer dizer Ungido, uma pessoa especialmente designada por Deus para realizar sua vontade.

    O Evangelho da vida e do ministrio de Jesus revela qual a vontade de Deus para o Messias. A forma como o Messias salvar o seu povo dos seus pecados um tanto distinta do que seria provvel que a maioria das pessoas esperasse. Embora seja difcil determinar com certeza qual seria a expectativa geral dos judeus do sculo I para um messias, provavelmente seria correto dizer que a idia de algum sofredor e humilhado no deveria ser muito difundida na imaginao pblica.9

    Mateus mostra que os associados mais prximos de Jesus seus discpulos acham censurveis (16.21-23) e dolorosos (17.22,23) os comentrios dEle sobre seu sofrimento e morte iminentes. Portanto, causa pouca surpresa o fato de Ele, em geral, procurar chamar pouca ateno sobre si mesmo no curso de seu ministrio e tentar limitar a propagao de suas obras miraculosas que,

    9Veja Jacob Neusner, William Green, Ernest Frerichs, eds,,Judaism s and Their Messiahs at the Turn ofthe Christian Em, New York: Cambridge University, 1987.

  • Teologia de Mateus 27

    como compreensvel, alimentariam esperanas nacionalistas de um libertador poltico.10 No entanto, a libertao poltica no era seu objetivo imediato, no obstante, sua reconhecida linhagem real.

    F IL H O D E D A V I

    A terceira designao atribuda a Jesus no primeiro versculo do Evangelho foca sua linhagem real como descendente de Davi com direito a reivindicar o trono de Israel. A genealogia que se segue enfatiza esse ponto ao dividir a rvore familiar de Jesus em trs blocos genealgicos com quatorze nomes em cada um,11 nmero que corresponde soma acumulada das letras hebraicas do nome Davi : dalet = 4; vav = 6; dalet = 4.12

    Essa nfase sobre as ligaes davdicas de Jesus diz respeito afirmao do Evangelho de que Jesus, na verdade, o Rei de Israel, embora a manifestao da realeza dEle difira, de forma marcante, da norma. Ele um rei que se caracteriza pela humildade, conforme Mateus, citando Zacarias 9.9, declara: Dizei filha de Sio: Eis que o teu Rei a te vem, humilde e assentado sobre uma jumenta (Mt 21.5). No obstante, Ele um rei, fato que reconhece quando Pilatos lhe pergunta: Es tu o Rei dos judeus? E disse-lhe Jesus: Tu o dizes (27.11). Os soldados romanos zombam dEle por causa dessa verdade: Salve, Rei dos judeus! (v. 29). E tambm includa na placa posta acima da cabea dEle na cruz: ESTE JESUS, O REI DOS JUDEUS (v. 37).

    Todavia, se a realeza de sua primeira vinda foi marcada pela humilhao, no ser assim no retorno dEle. Aqui, Mateus retrata Jesus como o Rei exaltado, sentado em seu trono na glria celestial (25.31). Ele sintetiza a reverso que caracterizar o povo de Deus em geral (19.28). Ele no ser mais aquEle que julgado, pois julgar e vindicar o justo (25.34,40).

    F IL H O D E A B R A O

    A quarta designao, Filho de Abrao, mais um lembrete de que Jesus judeu, descendente de Abrao, o pai da nao israelita.13 Talvez os leitores

    10 Esse um fator na pergunta de por que Jesus tentou manter seu messiado em segredo, fenmeno particularmente associado ao relato de Marcos sobre o ministrio dEle.

    11 Essa arrumao conta Jeconias duas vezes, no final do segundo bloco (1.11) e no incio do terceiro (v. 12), o que termina com Jesus em 14 (v. 16).

    12 Essa conveno literria, que os judeus chamam de gematria (termo emprestado da palavra grega para geometria), curiosa para os leitores modernos, mas relativamente comum e compreensvel para os leitores judeus e gentios da poca de Mateus. Veja Encyclopaedia Judaica, New York: Macmillan, 1971, 7:369-74.

    13Josefo, historiador judeu, refere-se a ele como nosso pai Abrao Jewish Antiquities 1.158; cf. Jo 8.39). Outra designao para Jesus no Novo Testamento descendncia de Abrao (Jo 8.33,37; Rm 9.7; 11.1).

  • 28 Teologia do Novo Testamento

    tambm devam pensar na promessa que Deus fez para Abrao de que em ti sero benditas todas as famlias da terra (Gn 12.3) e ver na vida e ministrio de Jesus, Filho de Abrao, o cumprimento dessa promessa.

    FILHO DE DEUS

    Esse o ttulo mais comum para Jesus no Evangelho de Mateus e, diriam alguns, o mais importante.14 No Antigo Testamento, s vezes, a expresso filhos de Deus serve para se referir a Israel como um todo (Os 11.1) e a diferentes grupos ou a indivduos de Israel, como os reis (2 Sm 7.14) ou os sacerdotes (Ml1.6). No Novo Testamento, os cristos tambm so chamados de filhos de Deus (por exemplo, Rm 8.14).

    A importncia da idia de filiao aplicada a todos esses diversos grupos que se espera que os chamados de filho representem com fidelidade Deus, seu Pai, e que realizem a vontade dEle. A mesma noo primordial no uso desse ttulo em relao a Jesus. Ele, de forma distinta de todos, realizou fielmente a vontade de Deus Pai, fato afirmado de forma lancinante em sua orao no Get- smani: Meu Pai, [...] faa-se a tua vontade (Mt 26.42).

    Assim, Filho de Deus antes de tudo uma descrio funcional. Claro que essa designao tambm tem relevncia para a compreenso da posio e do relacionamento de Jesus com Deus, mas o fato de outros serem chamados de filhos de Deus um lembrete de que essa expresso menos uma afirmao, ou confirmao, ontolgica da divindade dEle, e mais uma afirmao tica, ou funcional, de que Jesus, na verdade, realizou a vontade de seu Pai.

    No resta a menor dvida, obviamente, quanto divindade dEle. Cristo foi concebido pelo Esprito Santo (1.20). Ele recebe o nome de E m a n u e l , que quer dizer Deus conosco (1.23). Ele recebeu todo o poder no cu e na terra (28.18). No entanto, a designao Filho de Deus d particular ateno ao modo de vida dEle. Nessa rea, Ele mostrou-se nico.

    FILHO DO HOMEM

    Se algum ttulo disputa com Filho de Deus o lugar de maior importncia como designao descritiva de Jesus o de Filho do Homem. Jesus usa essa designao de si mesmo com mais freqncia que qualquer outro ttulo. Talvez alguns digam que ele no tem mais relevncia que um circunlquio ambguo, uma forma indireta por meio da qual Jesus diz coisas sobre si mesmo sem usar o pronome pessoal eu. A validade dessa argumentao ilustrada pelo fato de que os escritores do Evangelho, no registro das afirmaes dEle, s vezes, alternam Eu e Filho do Homem.

    14Jack Kingsbury, Mathew: Structure, Christology, Kingdom, Philadelphia: Fortress, 1975.

  • Teologia de Mateus 29

    Duas passagens de Mateus 16 ilustram isso. Na pergunta que Jesus apresenta a Pedro em relao a sua identidade, Mateus escreve: Quem dizem os homens ser o Filho do Homem? (16.13b), enquanto Marcos diz: Mas vs quem dizeis que eu sou? (Mc 8.29b), e Lucas: Quem diz a multido que eu sou? (Lc 9.18). Poucos versculos adiante, Mateus registra a primeira predio de Jesus de sua morte iminente com estas palavras: Comeou Jesus a mostrar aos seus discpulos que convinha ir a Jerusalm, e padecer muito (Mt 16.21), enquanto Marcos e Lucas escrevem: importava que Filho do Homem padecesse muito (Mc 8.31), e: E necessrio que o Filho do Homem sofra muitas coisas (Lc 9.22; ARA).

    O fato de os escritores do Evangelho intercalarem, com relativa liberdade, a designao Filho do Homem com o pronome pessoal no quer dizer que o ttulo no tivesse importncia teolgica para eles. Quer dizer apenas que eles no tinham dvida de que os leitores saberiam que a designao aplica-se apenas a Jesus. provvel, com base na afirmao de Jesus em seu julgamento diante do Sindrio: [...] vereis em breve o Filho do Homem assentado direita do Todo-poderoso e vindo sobre as nuvens do cu (Mt 26.64), que o fundamento teolgico da expresso se encontre em Daniel 7.13,14.

    Essa passagem ilustra nitidamente o duplo sentido da designao conforme usada em Mateus (e nos outros Evangelhos sinticos). Jesus estava em meio humilhao que culminaria na cruz; contudo, Ele se refere a sua futura exaltao. A maioria dos usos da designao no Evangelho cai em uma ou outra destas categorias: na presente humilhao do Filho do Homem ou em sua futura exaltao em que Ele manifestar as prerrogativas da divindade. Assim, os leitores do Evangelho de Mateus observam no uso dessa designao de Jesus que ambos os aspectos, a humilhao e a exaltao, so vivenciados por Ele. Essas duas experincias, no entanto, so diferenadas temporalmente para que a humilhao caracterize a maior parte do curso de sua vida terrena. Todavia, Jesus, aps a ressurreio, entra em seu papel exaltado. Ele recebe toda autoridade no cu e na Terra (28.18), embora a manifestao terrena dessa glria exaltada seja apenas demonstrada em plenitude em sua segunda vinda. Ento, aparecer no cu o sinal do Filho do Homem; e todas as tribos da terra se lamentaro e vero o Filho do Homem vindo sobre as nuvens do cu, com poder e grande glria (24.30). A garantia de sua derradeira vindicao, a despeito da realidade de sua presente humilhao, explica a preferncia de Jesus por essa enigmtica expresso como designao de si mesmo, um ttulo que, em alguma medida, captura o enigma da encarnao: Deus tornou-se homem para, no fim, ser aclamado como Senhor de todos.

    SENHOR

    Talvez algum se incline a pensar que o ttulo Senhor, de todas as designaes aplicadas a Jesus, implique, de forma to clara quanto qualquer outro, a realidade da divindade dEle. E provvel que nas tradues do Evangelho para

  • 30 Teologia do Novo Testamento

    o portugus isso seja verdade. Todavia, a palavra grega kyrios, traduzida por Senhor, tem uma gama mais ampla de sentidos. Ela pode ser usada como uma simples expresso de respeito corts. Por exemplo, quando o chefe dos sacerdotes e os fariseus vo a Pilatos para pedir que ponha um guarda no tmulo de Jesus, o relato da petio deles comea com o (vocativo do) tratamento kyrie, que averso em portugus traduz, com acerto, por senhor (27.63). No se retratam os judeus como indivduos que conferem prerrogativas divinas a Pilatos; eles apenas o tratam com respeito.

    Kyrios, por sua vez, usado, em geral, como um ttulo de Deus na traduo grega do Antigo Testamento, por isso, as citaes do Antigo Testamento que aparecem no Evangelho, em geral, referem-se a Deus dessa forma. Esse uso como divindade relevante luz da discusso de Jesus com os fariseus sobre sua filiao. A pergunta apresentada desta forma: Que pensais vs do Cristo? De quem filho? (22.42). Quando eles respondem de forma correta que Ele Filho de Davi, Jesus lhes apresenta um enigma, fundamentado em Salmos 110.1: Como , ento, que Davi, em esprito, lhe chama Senhor, dizendo: Disse o Senhor ao meu Senhor: Assenta-te minha direita, at que eu ponha os teus inimigos por escabelo de teus ps. Se Davi, pois, lhe chama Senhor, como seu filho? (Mt 22.43-45). Com certeza, aqui, afirma-se tanto a superioridade de Cristo em relao a Davi como tambm se observa a implicao da divindade dEle graas ao jogo de palavras com o ttulo Senhor.

    Mateus deixa claro, em duas passagens referentes a Jesus como o Juiz que determina os destinos individuais, que v prerrogativas divinas associadas ao ttulo Senhor. De acordo com a passagem 7.22, muitos professaro submisso a Jesus e sero contados entre seus seguidores, mas, no fim, sero banidos da presena dEle. Muitos me diro naquele Dia: Senhor, Senhor, no profetizamos ns em teu nome? E, em teu nome, no expulsamos demnios? E, em teu nome, no fizemos muitas maravilhas? E, ento, lhes direi abertamente: Nunca vos conheci; apartai-vos de mim, vs que praticais a iniqidade (7.22,23).

    Nesse contexto, chamar Jesus de Senhor identifica formalmente esses indivduos como seguidores de Cristo; todavia, no fim, as obras deles mostram que essa confisso de f falsa. E digno de nota o fato de que as obras que revelam a falsidade da confisso deles no so os milagres e as maravilhas. No se nega a afirmao deles em relao a essas obras. Antes, eles no fizeram a vontade de Deus (v. 21); eles deixaram de fazer as obras aparentemente prosaicas e comuns. O que isso pode representar ilustrado, em parte, pela segunda passagem a respeito da relevncia de Jesus como Senhor e Juiz supremo.

    O relato que compara o julgamento das naes com a separao entre ovelhas e bodes tambm uma passagem distintiva do evangelho de Mateus (25.31-46). Aqui tambm, Jesus, como Juiz de toda a humanidade, exaltado como Senhor pelos benditos (v. 34) e pelos malditos (v. 41). Menciona-se, como evidncia da realidade dessa confisso, a ateno que Jesus dedica aos

  • Teologia de Mateus 31

    chamados meus pequeninos irmos (v. 40), com os quais Ele se identifica de forma a poder dizer que o que se faz a um deles como se fizesse a Ele (cf. 10.45). Embora os malditos aclamem Jesus como Senhor, eles, por suas obras, mostram que no so suas ovelhas.

    O fato de os benditos e os malditos reconhecerem Jesus como Senhor coerente com a convico de que Deus o exaltou soberanamente e lhe deu um nome que sobre todo o nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho [...], e toda lngua confesse que Jesus Cristo o Senhor (Fp 2.9-11). Assim, Senhor o ttulo associado ao exerccio das prerrogativas divinas por parte de Jesus, e esse ttulo sugere a sua divindade.

    Senhor tambm parece ser a designao que Mateus considera a mais apropriada para os lbios dos discpulos. Alm das duas passagens discutidas acima, a comparao com dois relatos tambm registrados por Marcos e Lucas ilustram esse fato. A primeira comparao est no relato em que Jesus acalma a tempestade do mar da Galilia (Mt 8.23-27; Mc 4.35-41; Lc 8.22-25). Os discpulos, embora Jesus estivesse com eles no barco, ainda que adormecido, tm medo de morrer e pedem ajuda a Ele. No entanto, os escritores registram formas de tratamento distintas em relao a Jesus: Lucas e Marcos usam Mestre (Lc 8.24; Mc 4.38); e Mateus, Senhor (Mt 8.25).

    O mesmo padro ocorre no relato da transfigurao de Jesus (Mt 17.1-9; Mc 9.2-10; Lc 9.28-36). Pedro, ao aparecimento de Moiss e Elias na conversa com Jesus, faz uma proposta. De novo, os escritores registram formas de tratamento distintas consistentes com a usada antes: Lucas e Marcos usam Mestre (Lc 9.33; Mc 9.5); e Mateus, Senhor (Mt 17.4).

    Mateus parece dizer aos seus leitores que a forma mais certa de se dirigir a Jesus cham-lo de Senhor. Esse evangelista reconhece tanto a autoridade de Jesus como a responsabilidade que os discpulos tm de obedecer s ordens dEle (28.20).

    OUTRAS DESIGNAES E PAPIS

    Esse breve exame dos nomes e ttulos, ou designaes, dados a Jesus no Evangelho de Mateus no pretende sugerir que apenas a compreenso deles fornecer a completa viso do carter e da pessoa de nosso Salvador. Todavia, eles representam uma maneira de o leitor conseguir avaliar a vida e ministrio dEle e, por sua vez, dar a resposta apropriada a Ele. O que Jesus disse e como se conduziu so tambm, bvio, uma parte crucial do processo pelo qual os discpulos chegam correta avaliao do Mestre que eles devem imitar (10.25).

    A meno ao papel de mestre um bom exemplo disso. Embora Jesus, com freqncia, fosse chamado de Mestre pelas pessoas fora do crculo de discpulos (8.19; 9-11; 12.38; 17.24; 19.16) ou fosse tratado de Rabi, por Judas, em duas ocasies (26.25,49), Mateus nunca apresenta os discpulos se dirigindo a Ele dessa forma. Contudo, fica claro que Mateus v Jesus como Mestre, ou

  • 32 Teologia do Novo Testamento

    melhor, como o Mestre, em vista do fato de que ele registra Jesus aplicando esse ttulo a si mesmo em duas ocasies (23.10; 26.18)13 e inclui em seu evangelho uma extensa seo dos ensinamentos de Jesus. Mateus introduz o registro do sermo do monte de Jesus, por exemplo, com as palavras: E, abrindo a boca, os ensinava (5.2). E Mateus tambm menciona, na concluso do sermo, que "a multido se admirou da sua doutrina, porquanto os ensinava com autoridade (7.28,29). Fica claro que Jesus, embora no Evangelho de Mateus nenhum discpulo o chame de Mestre, um mestre sem igual.

    O mesmo verdade em relao designao de Servo. Jesus nunca chamado especificamente de Servo, porm, aplica-se o texto de Isaas 42.1-4 (Eis aqui o meu Servo que escolhi) a Ele em conexo ao seu ministrio de cura (Mt 12.18-21). Alm disso, Mateus 8.17 cita Isaas 53.4 em relao a Jesus, e isso tambm ocorre em conexo com seu ministrio de cura. E talvez Isaas 53 forme o pano de fundo para as afirmaes dEle de que o Filho do Homem no veio para ser servido, mas para servir e para dar a sua vida em resgate de muitos (Mt 20.28). Embora se possa debater a extenso em que esse retrato de Jesus foi influenciado pelo Servo de Isaas, fica claro que Mateus mostra Jesus como aquEle que era um servo. E Mateus levanta o exemplo dEle como o modelo a ser seguido pelos discpulos.16

    Alguns intrpretes do Evangelho tambm acham que Mateus apresenta Jesus como a Sabedoria de Deus, aplicando a Ele a personificao encontrada em Provrbios 8.12-36 e desenvolvida na literatura judaica intertestamen- tria (como em Siraque, o livro apcrifo do Antigo Testamento).17 Se a base para essa identificao no de todo convincente, verdade, no entanto, que o estilo de vida de Jesus ilustra os princpios de sabedoria e a aplicao da revelao de Deus para as situaes dirias da vida, e que Ele, como a sabedoria, convida os outros a imitarem sua forma de viver (Mt 11.28-30).

    O retrato de Jesus apresentado por Mateus mostra de forma hbil que Ele manso e humilde de corao (Mt 11.29), descrio enfatizada pela aplicao das palavras de Isaas (42.2,3) a Ele: No contender, nem clamar, nem algum ouvir pelas ruas a sua voz; no esmagar a cana quebrada e no apagaro morro que fumega, at que faa triunfar o juzo (Mt 12.19,20). Todavia,

    15 Didaskalos, a palavra usual para mestre, tambm ocorre em Mateus 23.8. Provavelmente, tambm uma referncia a Jesus, embora o Pai seja mencionado no versculo 9, e Cristo, no versculo 10, mas talvez possa sugerir que o mestre do versculo 8 deva ser compreendido como o Esprito Santo. O uso, no versculo 10, da palavra katbgts para descrever Cristo como mestre ocorre apenas nessa passagem do Novo Testamento.

    16 A conjuno, bem como (hsper), que inicia a passagem 20.28, introduz um exemplo em vista da admoestao precedente dos versculos 26 e 27.

    17 Jack Suggs, Wisdom, Christology, and Law in Mathews Gospel, Cambridge, Mass.: Harvard University, 1970; Frederick Burnett, The Testament of Jesus-Sophia, Washington, D. C.: Catholic University, 1981; cf. Celia Deutsch, Hidden Wisdom and the Easy Yoke, Sheffield, U. K.: Sheffield, 1987.

  • Teologia de Mateus 33

    Mateus tambm mostra Jesus, mesmo em sua humildade, como aquEle que j sxerce grande autoridade para que a molstia (8.1-4), a enfermidade (w. 5-13),i doena (w. 14,15), os demnios (v. 16), os poderes do mundo natural (w. 23-

    e a prpria morte (9.18-26) se submetam a sua ordem.At que ponto pretendia-se que essas obras fossem vislumbres de sua auto

    ridade (cuja subseqente investidura, em sua ressurreio, apenas reconhece que, agora, sua autoridade opera em escala mais ampla; 28.18) ou obras realizadas pelo poder do Esprito (12.28), talvez seja uma questo que Mateus veria como discutvel ou irrelevante, se no pedante. Contudo, a vinda do Esprito sobre Jesus em seu batismo (3.16) e o pronunciamento de Deus (v. 17) parecem ser um comissionamento e autorizao com autoridade,18 vistos e reconhecidos subsequentemente como de Deus (9.8). No entanto, tentar distinguir a autoridade divina e o ministrio do Esprito talvez seja algo que v alm do que necessrio saber. Contudo, embora as referncias ao Esprito sejam relativamente raras no Evangelho de Mateus, ele um assunto importante a ser considerado.

    O E s p r it o S a n t o

    No Evangelho de Mateus ocorrem apenas dez referncias ao Esprito, sendo mais de um tero delas no captulo 12. Como se deve esperar de um evangelho preocupado em interpretar a importncia da vida e do ministrio de Jesus, a maioria das referncias descreve a obra do Esprito em relao a Jesus.

    J foram mencionadas as referncias que falam do Esprito como o agente concessor de vida no nascimento de Jesus (1.18,20). Por isso, tambm se dedica alguma meditao importncia da vinda do Esprito sobre Jesus no incio de seu ministrio pblico (3.16; 12.18). Jesus, em seu nico comentrio especfico a respeito da relao do Esprito com seu ministrio, atribui a execuo de sua obra de exorcismo interveno do Esprito: [...] Eu expulso os demnios pelo Esprito de Deus (12.28).19 Se essa afirmao pode ser extrapolada para explicar a execuo de todas suas obras milagrosas algo a ser debatido; todavia, sob o ponto de vista teolgico, no h nada de problemtico em fazer isso nem inconsistente com o retrato de Jesus no contexto mais amplo do Novo Testamento.20

    18 O pronunciamento fundamenta-se em duas passagens (SI 2.7; Is 42.1), relacionadas ao incio dos papis divinamente designados.

    19Essa citao tirada da primeira parte da declarao condicional (se [...] ento ), mas claramente uma proposio que leitores e ouvintes devem julgar como verdade.

    20 Filipenses 2.7, por exemplo, menciona que Jesus aniquilou-se a si mesmo . Tambm podemos traduzir a afirmao aniquilou-se a si mesmo por disposio para se tornar homem. Usa-se a palavra grega kene para descrever a deciso do Filho de renunciar ao uso de suas prerrogativas divinas em sua encarnao. Por isso, quando os discpulos perguntaram a Jesus quando ser o fim, isso no foi revelado ao Filho que no se permitiu beneficiar-se de seu poder divino e, de fato, respondeu; [...] Daquele Dia e hora ningum sabe [...] nem o Filho (Mt 24.36).

  • 34 Teologia do Novo Testamento

    Em um dos anncios de Joo Batista a respeito de Jesus, ele diz s pessoas que Jesus batizar com o Esprito Santo e com fogo (3.11). E possvel que a associao de fogo ao Esprito seja uma referncia obra limpadora, ou purifica- dora, que o Esprito realizar. Entretanto, o mais provvel, em vista do versculo seguinte (v. 12) que se refere queima de palha com fogo inextinguvel, que dois aspectos da obra de Jesus, resumidos de forma ampla, estejam em vista. A declarao de Joo Batista parece reunir aspectos distintivos da primeira e da segunda vinda de Jesus.21 O batismo de fogo est associado com as bnos da salvao, e o fogo representa o destino terrvel daqueles enviados presena de Jesus, o Juiz (13.40-42; 25.41). Assim, as experincias alternativas abertas para toda a humanidade so representadas pelas referncias ao Esprito e ao fogo.

    Joo Batista no diz quando Jesus batizar com o Esprito. Uma concluso a respeito disso se relaciona, em parte, ao debate anterior sobre a relao da autoridade de Jesus com o papel do Esprito. Os leitores do Novo Testamento criam que o batismo com o Esprito predito por Joo foi cumprido inicialmente em Pentecostes (At 2) e, depois disso, em conjuno com a experincia da converso (1 Co 12.13).

    O relato de Mateus em relao a isso ocorre no dcimo captulo. Ele, no primeiro versculo, registra que Jesus deu-lhes poder sobre os espritos imundos, para os expulsarem e para curarem toda enfermidade e todo mal (Mt 10.1; cf. v. 8). Presume-se que o recurso por meio do qual os discpulos foram capazes de fazer essas coisas o mesmo de Jesus o Esprito Santo (12.28) , embora, nesse ponto da narrativa, isso no seja afirmado de forma clara.22 Todavia, depois, no discurso relativo garantia de que os discpulos no precisam se preocupar sobre o que devem responder se forem acusados diante de cortes gentias ou judaicas por causa de seu ministrio, menciona-se a proviso do Esprito (10.17-20).

    Aqui, a meno desse ministrio do Esprito pode ser mais uma indicao de que, na verdade, o Esprito foi concedido no curso dessa primeira misso dos discpulos. Entretanto, um fator que adverte contra adotar, com muita facilidade, essa concluso se relaciona com o fato de que as instrues de Jesus a respeito do empreendimento missionrio do qual os discpulos devem se encarregar parece antecipar uma misso mais ampla que a primeira qual foram enviados. Os discpulos, nessa primeira comisso, deviam restringir seu ministrio a Israel (10.5),

    21E possvel que o prprio Joo no reconhea nenhuma distino temporal na realizao da obra de Jesus. Talvez esse fato conte para sua pergunta sobre o messiado de Jesus (11.2,3). Joo, preso e abatido, pode muito bem ter se perguntado por que a vindicao do justo e o julgamento dos indivduos maus no estavam acontecendo em um ritmo mais rpido.

    22 No h indcio de que Judas foi impedido de ter esse privilgio. Toda a aparncia indica que ele tambm era capaz de realizar milagres. Portanto, isso poderia ser uma ilustrao da situao prevista em 7.21-23. Se esses milagres, como parece provvel, foram feitos por meio do Esprito, esse fato tambm esclarece passagens como Hebreus 6.4, em que os que se fizeram participantes do Esprito Santo podem, apesar disso, descobrirem-se contados entre os perdidos.

  • Teologia de Mateus 35

    mas a garantia do auxlio do Esprito est ligada ao testemunho tambm diante de cortes gentias (v. 18). Dessa maneira, o comentrio de Jesus parece antecipar futuras misses, e pode ser que algumas dessas advertncias e promessas estejam destinadas a ser interpretadas luz de Pentecostes.

    O papel do Esprito central para o empreendimento missionrio e, na verdade, para a experincia do perdo j que fica claro o papel dEle em vista do que dito em relao blasfmia contra o Esprito: [...] todo pecado e blasfmia se perdoar aos homens, mas a blasfmia contra o Esprito no ser perdoada aos homens. E, se qualquer disser alguma palavra contra o Filho do Homem, ser-lhe- perdoado, mas, se algum falar contra o Esprito Santo, no lhe ser perdoado, nem neste sculo nem no futuro (12.31,32).

    E compreensvel que esses versculos, por uma srie de motivos distintos, aflijam os leitores do Evangelho. Primeiro, algum pode se perguntar o que blasfmia, ou falar, contra o Esprito, j que isso no definido. Segundo, como algum, dada a falta de definio, sabe se um ato cometido, mesmo que de forma inadvertida, o torna culpado de um pecado para o qual no h perdo?

    Ao responder s perguntas desse tipo, diversos fatores so relevantes. A conscincia do contexto imediato da afirmao, de modo caracterstico, essencial compreenso adequada de seu sentido. Nesse caso, Jesus foi acusado de executar expulso de demnios por meio de Satans (12.24), o que eqivale a repudiar a Ele e a sua mensagem.

    Um segundo fator relevante diz respeito a que informao o contexto mais amplo da Escritura traz tona para fundamentar a interpretao de qualquer passagem apresentada. Um aspecto do ministrio do Esprito dar testemunho de Cristo. O Evangelho de Mateus deixa isso claro, pois as obras de Jesus, feitas por intermdio do Esprito, atestam o messiado dEle. Quando Joo Batista envia emissrios para questionar Jesus a respeito de seu messiado, Ele responde apontando para as coisas que j fez (11.2-6). Por essa razo, se algum negar que essas obras foram feitas pelo Esprito e que, portanto, elas autenticam Jesus representa a rejeio mxima dEle como emissrio de Deus, e isso faz com a pessoa exclua a si mesma da salvao que Ele oferece.

    Tambm relevante o fato de que o que Jesus disse aqui representa uma advertncia. Nesse ponto, essa fala no apresentada como um pronunciamento de julgamento, nem mesmo contra aqueles que fizeram esse julgamento preliminar a respeito de Jesus. E uma advertncia de que a persistncia nesse julgamento representa, por fim, rejeitar o testemunho do Esprito no que concerne a Jesus, ato que leva perdio dos defensores desse julgamento. Esse parece ser o foco da passagem.

    Se esse for o caso, duvidoso que algum preocupado em cometer esse pecado tenha motivo para isso. Em relao aos outros difcil, se no impossvel, determinar quando algum alcana o ponto de rejeio total e final do ministrio do Esprito no que diz respeito a Jesus. Todavia, suficiente dizer que improvvel que os que chegaram a esse ponto estejam preocupados com isso. A ansiedade a respeito do destino eterno no uma caracterstica tipicamente

  • 36 Teologia do Novo Testamento

    associada s pessoas perdidas. Conforme Mateus relembra os leitores de seu Evangelho: Porquanto, assim como, nos dias anteriores ao dilvio, comiam, bebiam, casavam e davam-se em casamento, at ao dia em que No entrou na arca, [...] assim ser tambm a vinda do Filho do Homem (24.38,39).

    Isso no quer dizer que as pessoas no podem cruzar uma linha da qual no h retorno. Talvez Judas seja o caso de algum que fez isso (27.3,4), e o escritor de Hebreus (6.4-6) talvez tambm esteja advertindo sobre isso. Mas improvvel que Mateus incluiu essa passagem sobre rejeitar o testemunho do Esprito como uma palavra de condenao pronunciada aps o fato. Antes, uma palavra de advertncia de que o testemunho do Esprito sobre Jesus no deve ser rejeitado.

    Duas passagens finais a respeito do papel do Esprito podem ser mencionadas antes de se fazer alguma observao conclusiva sobre esse aspecto da teologia de Mateus. A passagem 22.43 refere-se ao papel do Esprito na inspirao da Escritura, quando afirma que Davi, no salmo 110.1, falou em esprito. E expressa-se a personalidade do Esprito Santo, em igualdade com Deus Pai e Deus Filho, na ordem de Jesus para que os discpulos sejam batizados em nome do Pai, e do Filho, e do Esprito Santo (28.19). O batismo o testemunho visual do incio do relacionamento de um discpulo com o Deus trino.

    Este um ponto apropriado para se considerar as duas afirmaes de Jesus sobre sua presena com os discpulos, j que o Esprito parece ser o agente, no mencionado, dessa presena. Na passagem 18.20, Mateus registra essa afirmao de Jesus: [...] onde estiverem dois ou trs reunidos em meu nome, a estou eu no meio deles. Essa afirmao antecipa com clareza a ausncia fsica de Jesus, ao mesmo tempo em que afirma a presena espiritual dEle. De modo semelhante, a afirmao final do Evangelho a palavra de garantia de Jesus: [...] eu estou convosco todos os dias, at consumao dos sculos (28.20). Se algum perguntar como ou em que sentido Jesus est presente com seus discpulos, a resposta seria por meio do Esprito Santo. Assim, aqui est outra ilustrao do ministrio do Esprito apontando para Cristo. Jesus, apesar da ausncia fsica, est presente por intermdio do Esprito que d testemunho de nosso Salvador e continua, em nome dEle, a estender o ministrio para outros.

    O R e in o d o s C u s / d e D e u s

    Antes de mencionar o que Mateus escreve a respeito do Reino dos cus, ou Reino de Deus, precisamos fazer algumas consideraes em relao ao sentido dos prprios termos. Em geral, a palavra reino denota a idia de um domnio, uma regio fsica ou espacial, incluindo o povo e a terra sobre os quais um rei exerce autoridade. Esse sentido tambm se aplica s palavras usadas para reino no Antigo e no Novo Testamentos.

    No entanto, o termo reino tambm pode se referir ao exerccio de governo ou autoridade. Nesse uso do termo existe um sentido mais dinmico, ou ativo, que se refere imposio da vontade de um governante, ou de sua soberania, sobre seus sditos. Portanto, o termo tem uma noo esttica ou

  • Teologia de Mateus 37

    espacial associada a ele e tambm um sentido dinmico ou espiritual. A palavra domnio pode ilustrar esses sentidos j que pode ser usada tanto para o exerccio da autoridade como para a regio, ou reino, em que se exerce essa autoridade.

    Nem sempre fica claro se uma passagem especfica da Bblia se refere a um ou outro aspecto do sentido de reino ou a ambos. No final do Salmos 103, por exemplo, aparece esta afirmao: O Senhor tem estabelecido o seu trono nos cus, e o seu reino domina sobre tudo (v. 19). Contudo, outra verso da Bblia traduz a segunda parte do versculo desta maneira: e como rei domina sobre tudo o que existe (NVI). Essa segunda traduo faz bastante sentido em vista dos versculos seguintes que se referem aos anjos que obedecem voz da sua palavra (v. 20), e aos ministros [...] que executa[m] o seu beneplcito (v. 21). Todavia, a frase seguinte tambm sugere algum senso do sentido espacial: [...] em todos os lugares do seu domnio (v. 22). Assim, os dois aspectos da palavra podem ser relevantes em uma determinada passagem, embora talvez um sentido predomine em alguma circunstncia especfica.

    Tambm h dualidade temporal associada ao uso da palavra no Antigo e no Novo Testamentos. Em geral, fala-se no Reino de Deus como uma realidade presente. Por exemplo, de acordo com o salmista: Todas as tuas obras te louvaro, Senhor, e os teus santos te bendiro. Falaro da glria do teu reino e relataro o teu poder, para que faam saber aos filhos dos homens as tuas proezas e a glria da magnificncia do teu reino (SI 145.10-12).

    Em outras passagens se referem a um reino futuro, ou ao que seria mais bem descrito como a futura manifestao do Reino de Deus. Isaas aguarda aquEle que governar sobre o trono de Davi e no seu reino, para o firmar e o fortificar em juzo e em justia, desde agora e para sempre (Is 9.7). E Daniel registra a viso de um como o filho do homem; e [...] foi-lhe dado o domnio, e a honra, e o reino, para que todos os povos, naes e lnguas o servissem; o seu domnio um domnio eterno, que no passar, e o seu reino, o nico que no ser destrudo (Dn 7.13,14).

    Sentidos semelhantes esto associados ao que Mateus diz sobre o Reino de Deus ou o Reino do Filho do Homem. Mas antes de examinarmos algumas dessas afirmaes especficas, faz-se necessrio um comentrio geral sobre uma expresso que especfica do Evangelho de Mateus. O ponto de interesse o uso que ele faz da expresso Reino dos cus em passagens em que Marcos ou Lucas, em seus relatos, referem-se ao Reino de Deus (por exemplo, Mt 13.31; Mc 4.30; Lc 13.18).

    J mencionamos que os judeus usavam a voz passiva para descrever atos de Deus como uma forma respeitosa de descrever o que Ele fez sem mencionar seu nome (desde que mais fcil omitir o sujeito com o uso do verbo na voz passiva). A substituio do nome de Deus por cus, a moradia do Senhor, outra forma desse tratamento respeitoso. Essa expresso ocorre apenas no Evangelho de Mateus. No entanto, ele tambm usa quatro vezes a expresso Reino de Deus (12.28; 19.24; 21.31,43), sugerindo, assim, que a diferena de nomen

  • 38 Teologia do Novo Testamento

    clatura mais uma questo de preferncia, ou deferncia, que qualquer outra coisa.

    E incerto o motivo por que o Evangelho de Mateus menciona o Reino dos cus de forma rotineira, o que no acontece nas outras narrativas. provvel que Jesus usasse as duas expresses, mas Lucas e Marcos simplesmente escolheram usar, de forma consistente, a expresso Reino de Deus por ser menos ambgua para leitores gentios que a expresso mais judaica Reino dos cus. Fica claro, a partir de passagens como 19.23,24, em que Jesus diz aos discpulos: difcil entrar um rico no Reino dos cus. [...] mais fcil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no Reino de Deus, que Mateus considera as duas expresses praticamente como sinnimas.

    De forma distinta de muitas passagens do Antigo Testamento que se referem ao Reino de Deus como uma realidade presente, as referncias no Evangelho de Mateus tm em vista, em geral, um reino ainda futuro ou a entrada no reino que ainda est no futuro. De qualquer modo, a passagem 12.28, em que Jesus afirma o seguinte a respeito de sua atividade de expulsar demnios: Mas, se eu expulso os demnios pelo Esprito de Deus, conseguintemente chegado a vs o Reino de Deus, refere-se ao Reino como uma realidade presente.

    A afirmao expressa na forma de uma proposio condicional, mas a concluso bastante clara. At mesmo os fariseus reconhecem que Jesus expulsa demnios (12.24). O debate refere-se ao meio pelo qual Ele faz isso. Eles dizem que isso feito por Satans, mas Jesus diz que feito pelo Esprito Santo. Claro que Mateus no deixa dvida sobre qual dessas argumentaes est correta. Jesus expulsa demnios por meio do Esprito Santo. E se isso acontece dessa forma, diz Jesus, ento chegado [...] [a vocs] o Reino de Deus.

    O verbo chegado (ephthasen) est no particpio. Embora seja verdade que no caso dos verbos gregos, em geral, o tempo mais relevante em relao forma como a ao do verbo retratada que em relao estrutura de tempo em que ela descrita,23 difcil escapar concluso de que aqui o particpio tambm afirma que, de alguma maneira, o Reino de Deus est presente no ministrio de Jesus.

    Mas em que sentido o Reino de Deus est presente? Provavelmente, da forma prevista pelo salmista quando disse: Para que faam saber aos filhos dos homens as tuas proezas e a glria da magnificncia do teu reino (SI 145.12). No ministrio de Jesus, o poder do Esprito d expresso autoridade de Deus e a demonstra. O governo soberano de Deus manifestou-se no ministrio de Jesus. Por isso, os que testemunharam o ministrio de Jesus e ouviram a mensagem dEle foram, ao mesmo tempo, confrontados com o chamado para se submeter

    23 O verbo ephthasen (a forma presente, ou lxica, phthan) est escrito no tempo aoristo (e no modo indicativo, forma geralmente usada para fazer uma assero ou afirmao). O tempo aoristo provavelmente o menos relevante dos tempos verbais para ser usado para a forma como a ao do verbo descrita (igualando-se, talvez, com o futuro), desde que esse tempo verbal, em geral, usado apenas para afirmar que algo aconteceu.

  • Teologia de Mateus 39

    ao governo e reinado de Deus e, nesse sentido, para entrar no Reino de Deus, em que aqueles que so servos do Senhor realizam a vontade dEle.

    O anncio de Joo Batista de que o Reino de Deus est prximo (engiken;3.2),2z* visto sob essa luz, tambm compreensvel. Joo tentava preparar as pessoas para ouvir a mensagem de Jesus e responder a ela e ao ministrio dEle, chamando-as ao arrependimento. Nesse sentido, o ministrio de Joo um lembrete de uma v